• Os 23 (+1) melhores álbuns que você não ouviu em 2017

    Lana del Rey, Björk, Taylor Swift, Beck, Lorde, Demi Lovato, P!nk, Ed Sheeran, Drake, JCD Soundsystem, Kesha, The xx, Paramore, St. Vincent,  Harry Styles, Jay-Z, Kendrick Lamar - tanta gente lançou tanta coisa boa este ano que não foi fácil chamar atenção com um trabalho original.

    Não obstante, este também foi um ano de muitas novidades - que se não conseguiram chegar a "causar" com o grande público, pelo menos agradou este incansável explorador do pop que vos escreve. Tudo, como sempre, é questão de ter a mente aberta - seja para uma coletânea de música árabe ou para um "maluco" que decide fazer um álbum em cima do seu teste de DNA (ou outro que grava 50 músicas pra comemorar 50 anos!).

    E como esse espaço é infinito, que seja eu mais uma vez seu guia nessa viagem musical ligeiramente alternativa. Não há regras - nem mesmo no total de músicas na lista: eu costumava fazer com 20 títulos, mas dessa vez quis fechar com 23... Algum problema? A ordem aqui não é de preferência, mas apenas para colocar um pouco de ordem. E se quiser "provar" um pouco de cada um desses álbuns, fiz um playlist com uma faixa de cada um deles no meu perfil zecacamargomusic no Spotify: Ainda Não Ouviu? 2017 - vai lá... é bom se arriscar...

    Habibi

     
    1) "Habibi Funk 007: an eclectic selecion of music from the Arab World",vários artistas - por onde começar? Por Fadoul com sua estranhamente familiar "Bsslama Hbibt"? Pelo funk de Ahmed Malek misteriosamente identificado como "Tape 19.11"? Pelo embalo irresistível de Kamal Keila em "Al asafir"? Comece por onde quiser, mas não pare de ouvir essa compilação, de fato, eclética do pop árabe. E eu digo mais: pode mergulhar sem susto no playlist com o mesmo nome, "Habib Funk" no Spotify. Uma fonte eterna de inspiração e a prova definitiva de que quanto mais longe de casa você vai, mais interessante fica a música que você ouve...

     Stream Jidenna’s ‘Boomerang’ EP

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


     
    2) "Boomerang", Jidenna - tecnicamente é só um EP. Jidenna também lançou um álbum propriamente dito em 2017, o excelente "The chief" - pode ouvir sem susto, só cuidado para não ser hipnotizado pela faixa "Adaora"... Mas aí veio esse EP, pra rechear uma pequena obra prima de um single chamado "Boomerang". Pronto! Tem um cara chamado Drake que deve tá ouvindo essa faixa sem parar e se perguntando: como eu faço pra gravar uma coisa melhor agora? Mas não pare só em "Boomerang": desafio você a ficar parado com "Little bit more" ou não sentir algo estranho ao ouvir "Out of body". Seis faixas quase perfeitas.

    Magnetic Fields

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     



     
    3) "50 song memoir", The Magnetic Fields - que tal escrever uma música para cada ano que você viveu? Quem dera eu tivesse um talento pra tal façanha - mas o bom é que Stephin Merritt tem e fez exatamente isso para comemorar seus 50 anos. É bom lembrar que esse é o cara que já tinha conquistado meu coração quando gravou "69 love songs" (1999) - sim, "99 canções de amor", se você precisa mesmo de tradução eheh! Nesse tributo a ele mesmo, o nome por trás do Magnetic Fields vai do "mambo infantil" ("67: Come back as a cockroach") ao "trash disco" ("97: Eurodisco trio"), sem esquecer da "balada minimalista" ("03: The Ex and I"). Um trabalho de gênio que eu ainda não absorvi por inteiro...

    Residente

     
    4) "Residente", Residente - por falar em projetos "malucos", que tal fazer um disco em cima do seu teste de DNA. Por que não? Um músico de Porto Rico, Juan Pérez (que talvez você conheça por seu trabalho em Calle 13) foi pesquisar suas origens e elas serviram de inspiração para um dos conjuntos de música mais criativos que ouvi este ano - talvez nesta década. Pérez/Residente foi fundo nas suas raízes, a ponto de usar até ópera chinesa numa faixa ("Una leyenda China") - e esse não é nem o melhor ingrediente que ele tem na manga. Ainda estou anestesiado pelo efeito de ouvir "Dagombas en Tamale" mais de dez vezes seguidas - e de boca aberta com o clima de mistério (dançante!) de "La sombra". Não tem uma faixa ruim, nem mais ou menos - cada canção abre uma porta de possibilidades e é vibração atrás de vibração. Uma celebração mais que bem descrita em "Somos anormales". Graças a Deus!
     


     
    5) "Black origami", Jlin - quantas vezes ultimamente você ouviu um álbum e se perguntou: o que aconteceu comigo, o que eu acabei de escutar? Jlin fez isso com meus ouvidos - e continua a fazer, a cada vez que escuto. Não sei se isso é o futuro da música eletrônica, mas eu acho que quem está pensando em levar esse gênero adiante deve prestar atenção a "Black origami". A faixa título, que abre o disco, já é atordoante: você ouve e fica procurando algum corrimão pra se apoiar. Felizmente, não encontra. E segue assim pelo menos até "Kyanite". Mas aí quando entra alguns vocais tipo coral - nesse trabalho fortemente instrumental - você tem a certeza de que está diante de um trabalho maior.

    Rincon Sapiência

     
    6) "Galanga live", Rincon Sapiência - simplesmente o disco mais presente, mais importante, mais interessante e mais presciente do pop brasileiro em 2017. Não é que cada faixa da estreia desse poeta seja explosiva. Todo o álbum tem uma urgência de fazer corar até o Racionais MC. Estou vendo Kendrick Lamar mais uma vez (e justamente) ser celebrado como um dos álbuns do ano nos EUA (se não "o" álbum do ano"). Num mundo perfeito, Sapiência estaria ganhando a mesma celebração por aqui. Pegue um verso qualquer, tipo "quanto vale uma vida? / pensa no seu pivete / na bolsa tem a bíblia / também tem canivete", de "A volta pra casa". É genial. Ou toda a letra de "Ostentação à pobreza", que vira a mesa na tal ostentação ("muitos estão na velha classe merda") em cima de uma batida original. "Galanga live" vale cada rima que sai da boca de Rincon...

     

     
     7) "World Spirituality Classics 1: The ecstatic music of Alice Coltrane" - ainda bem que sempre tem o mestre David Byrne para nos salvar. Seu selo Luaka Bop - que mostrou, entre outros, nosso Tom Zé para o mundo - lançou esta pérola em 2017, ressuscitando a carreira pra lá de marginal da "senhora Coltrane", a segunda mulher de um dos maiores saxofonistas (e compositores) de jazz de todos os tempos, John Coltrane. Gravado de maneira ultra independente nos anos 80, essa obra era privilégio de amigos e conhecidos de Alice - e Byrne mais uma vez empresta sua genialidade para redescobrir um tesouro escondido. Com forte sotaque indiano - ouve-se uns bons mantras cá e lá - esse foi o disco que mais me fez viajar este ano. E que viagem boa que foi...
     

    Survivor

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    8) "Survivor", Tshegue - lá vem mais um EP... Mas que culpa tenho eu se as pessoas nem esperam mais lançar um álbum? Na verdade, Thsegue entraria nesta lista mesmo com uma faixa só - a própria "Thsegue": um canto hipnótico e sedutor. A dupla por trás desse duo é francesa - parisiense. Mas é claro que as raízes desta música estão bem fincadas na África, com alguns galhos enredados no punk. Se "Suvivor" é um pouco "étnica demais", "When you walk" e "Muanapoto" fazem a reputação da banda crescer na experimentação. Você vai se apaixonar por elas também - isto é, se conseguir tirar o coro "Êh... Tshegue" da cabeça. Se alguém pegar esse refrão e samplear no nosso verão, acho que vai dar samba...



    Moses

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     



     

     

     

     

     

     

     


    9) "Aromanticism", Moses Sumney - vamos então falar de música, como ela deve ser feita. Há sempre o que a gente chama de "elemento espontâneo" em qualquer criação musical. Mas aí tem também os "trabalhadores da música", que parecem construir cada melodia com camadas e camadas de um talento absurdo, aplicadas umas sobre as outras com a delicadeza de um ourives. Moses Sumney está exatamente nessa categoria - e teria ganho o título de "álbum mais cheio de texturas" se Björk não estivesse no páreo este ano (seu "Utopia", claro, não está nesta lista porque você certamente já o ouviu várias vezes, como eu). "Plastic" é de longe a melhor faixa, num curioso paralelo com uma faixa com o mesmo nome (ou quase), do próximo álbum da lista...

    Sampha

     
     
    10) "Process", Sampha - ... e falando em "Plastic", Sampha abre seu trabalho incrível com uma faixa quase homônima. E dali pra frente é só alegria - se bem que uma alegria bem sutil. Aos som de harpas - ninguém usou melhor este instrumento no pop desde Björk - Sampha vai introduzindo aos poucos sua voz e seus ritmos, de maneira que lá pela meio do disco você já está completamente encantado com um novo universo musical. Sim, a lindíssima "(No one knows me) Like the piano" dá uma boa quebrada nesse encanto, tocando partes da sua emoção que nem Alicia Keys já foi capaz de alcançar com seu piano. O álbum todo é como uma grande oração - e Sampha mergulha nas suas inquietações para oferecer um conjunto musical nada menos que eterno - eu certamente quero ouvir "Timmy's prayer", por exemplo, até o fim dos dias...
     
    Dado Villa-Lobos

     
    11) "Exit", Dado Villa-Lobos - num ano em que eu estive tão envolvido com o Renato Russo (fazendo os textos para o catálogo da maravilhosa exposição que estreou no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo), seria apenas natural que um novo trabalho de Dado Villa-Lobos chamasse minha atenção. Mas eu acabei gostando de "Exit" - e gostando demais - não por essa proximidade com a presença/ausência de Renato, mas justamente pela distância dela. Começando com um tom ácido e forte em "7 x 1", o álbum traz belezas diferentes a cada faixa. Bom ver que o talento que Dado empresta a tantas bandas que produz está, em "Exit", canalizado para o próprio artista desta vez, com resultados tão sublimes como "Então vem" - que deveria ser o hino oficial da chegada de 2018...

    Sweet Broken Dates
     

    12) "Sweet as broken dates: Lost Somali tapes from the Horn of Africa", Vários Artistas - muitos lamentam o fechamento da Colette, a loja mais legal de Paris, pela ausência que vai fazer no mundo da moda. Eu fico triste porque vou perder uma "bússola musical". Sempre que ia à Colette, chegava lá no fundo e via o que eles sugeriam de música na temporada. Estive lá em novembro para uma última consulta ao oráculo e trouxe coisas inacreditáveis - a mais especial delas, esta compilação de "sucessos perdidos" em fitas K-7 da Somália! Eu sei... Tudo parece um pouco exótico demais mas deixe seu preconceito de lado. Isso é música boa - e inesperadamente boa. Eu queria, por exemplo, um certo Ali Nuur pra animar uma festa minha com sua faixa que nem tem nome. Ou a Sharaf Band ( que também está na playlist "Habib Funk") para me embalar numa noite preguiçosa... Uma viagem em todos os sentidos.
     Kelly

     
    13) "Kelly Lee Owens", Kelly Lee Owens - a quarta faixa deste trabalho de estreia chama-se "Lucid". E é quase uma ironia, uma vez que lucidez é a última coisa que lhe resta depois de ouvir esse álbum maravilhoso. Toda a atmosfera é de sonho - eu sei que esse é um elogio preguiçoso, mas ouça a própria "Lucid" três vezes seguidas e me diga como você se sente. O que essa inglesa fez com a música eletrônica é impressionante. Seu disco saiu em março e eu fiquei tão maluco com ele que queria escrever essa lista logo naquela altura do ano. Felizmente o entusiasmo passou - e no lugar dele surgiu um elogio consolidado. Como bônus, procure também por sua faixa "Arthur", que ela gravou como um tributo ao grande mestre da música eletrônica, Arth ur Russel...



     
    14) "Ash", Ibeyi - você deve estar achando que a lista deste ano tem uma forte tendência africana -  certíssimo. Parece que essa inspiração, que sempre é forte, foi retomada com gosto em 2017, mas com nuances tão brilhantes como as da dupla Ibeyi. Essas duas irmãs - gêmeas! - têm um pé na África Yorubá e outro no moderno pop francês... e um "terceiro pé" em Cuba. O resultado? Uma mistura completamente original e moderna. Se fosse um disco todo a capella, já seria extraordinário, uma ver que a combinação das duas vozes é contrastante e complementar. Com os sons de uma produção moderna então... E num belíssimo hino à afirmação feminina, "No man is big enough for my arms" ainda acertou na temperatura dos movimentos sociais deste ano. Em algum canto dos EUA, Lauryn Hill está sorrindo...
     
    King Kruge

     
    15) "The OOZ", King Krule - desde que coloquei "6 feet beneath the moon", o álbum de estreia de King Krule nesta mesma lista em 2013, eu esperava por esse momento: reconhecer que este cara não era só uma novidade. "The OOZ" não chega a ser uma partida radical daquele primeiro trabalho. Se Krule deu alguma polida no seu talento foi no acabamento de algumas faixas - aquelas primeiras, como você talvez se lembre, pareciam gravadas de qualquer jeito. Agora os sons vêm talvez um pouco mais claros, mas não menos assombradores. E para um ano que, como eu mesmo mostrei aqui, muita gente não avança além de um EP, King Krule oferece um banquete de 19 faixas, fechando com uma ode à madrugadas bêbadas chamada "La luna". Esperar agora pra ver em ano ele volta pra essa lista - 2018, talvez?

     

    Penguim Cafe


    16) "The imperfect sea", Penguin Café - anos (décadas) atrás, quando meu orçamento como correspondente em Nova York só para comprar um CD na finada Tower Records, eu investi numa banda que tinha o nome de um lugar que eu gostava de frequentar: o Penguin Café Orchestra. E fiquei obcecado com esses caras. Sempre instrumentais, violinos e sanfonas conversando freneticamente com um piano, o Penguin Café era o som da felicidade para mim. Sumiram, claro, como tantas coisas dos anos 80, mas Arthur Jeffes, filho de um dos criadores da banda (Simon Jeffes) retomou o projeto, tirou o "Orchestra" do nome - mas não da alma da sua música. Que maravilha reencontrar essas sonoridades, sem saudosismo, mas com o frescor de uma redescoberta.

    Bedouine

     

    17) "Bedouine", Bedouine - você também talvez tenha reparado que a lista deste ano está bem, digamos, tranquila... Mas isso é quase uma consequência natural das turbulências que encontramos tanto pelo calendário de 2017... "Nice and quiet", a primeira canção de "Bedouine" é o antídoto perfeito para todas as loucuras que enfrentamos este ano - e para tantas outras que ainda virão! Que venha 2018 exatamente neste tom. No momento eu quero a voz de Azniv Korkejian pra me acalmar - ou quem sabe me levar para uma década onde tudo era mais simples, até mesmo uma música folk... Não perda a faixa "bônus" "Louise" - e tente entender, sem recorrer ao Google, em que língua ela canta essa coisa linda...
     
    Outro tempo

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     



     18) "Outro tempo: Electronic and Contemporary Music from Brazil, 1978-1982", Vários Artistas - onde eu estava quando Piry Reis lançou seu samba espacial, "O sol na janela"? Ou quando Maria Rita (não essa que você está pensando) saiu cantando "Kamairá" entre flautas e sintetizadores? Não faço ideia, mas felizmente essas lacunas do meu acervo pop brasileiro foram preenchidas graças a um colecionador chamado John Gomez, que juntou 17 raridades da música eletrônica brasileira nessa compilação surreal. Os únicos artistas que eu conheço são Os Mulheres Negras, presente com a ótima "Mãoscolorida". Mas que prazer navegar nessas águas totalmente desconhecidas - ainda que aqui na nossa própria costa...

    Moritz von Oswald & Ordo Sakhna


    19) "Moritz von Oswald & Ordo Sakhna", Moritz von Oswald, Ordo Sahkna - de um lado, um dos melhores produtores de música eletrônica do século 21. Do outro, um bando de músicos de Bishkek, no Quirguistão. Mistura improvável, concordo. O que, claro, só poderia dar música boa. A própria trupe do Quirguistão já é uma mistura danada, com influências de todos os cantos da Ásia - e pode por música chinesa e indiana também nessa conta. E Moritz pega esses tons e faz com que eles transcendam suas origens, em labirintos de "loops" e estranhas reverberações. Não há uma faixa sequer parecida com a outra - "Koirong ku" parece um duelo de cordas, "Tushumdo" é um lamento a capella e "Drums", bem, só percussão. Nunca foi tão bom se sentir desorientado com uma cascata musical como essa.
     
     
    Jackie Shane

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     
    20) "Any other way", Jackie Shane - e o pop nunca deixa de surpreender a gente... Primeiro tenho que agradecer a desbravadora série Numero Uno, que sempre me traz um ou dois lançamentos inesperados por ano (num cálculo conservador). Mas dessa vez eles se superaram. Eu nunca tinha ouvido falar de Jackie Shane até ter uma resenha desse lançamento, alguns meses atrás, celebrando "Any other way" como um marco na história do pop LGBT. Como assim? Bom, aparentemente Shane passou toda a carreira, ao longo dos anos 60 e começo dos 70, cantando como mulher, quando na verdade era um homem montado de drag. Ou mais ou menos isso... Tudo é um mistério na biografia desse artista - menos a qualidade da música: um soul impecável recuperado nessa antologia imperdível - com um disco inteiro só de performanc es ao vivo.

    Good For You

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    21) "Good for you", Aminé - provavelmente a capa mais repugnante do ano. Ou ainda, a imagem do rapper sentado numa privada lendo um jornal nem é tão terrível assim - é só gratuita. Exatamente o contrário do seu conteúdo. No compasso de vários trabalhos que entraram na lista este ano, "Good for you" é meio "lo-fi". Mas no fundo Aminé é bastante original - e se deu bem com a ótima "Caroline". Mas o álbum não é de um sucesso só. Tem uma despretensão em "Spice girl", por exemplo que é bem divertida. E "Slide" tem o "loop" mais cativante de todo 2017. Insito: esqueça a capa, entre na música.
     
    MuraMasa

     
    22) "Mura Masa", Mura Masa - geralmente quando a gente sabe que um álbum reuniu um elenco de estrelas, dá até preguiça de ouvir... Mas não tenha receio de encarar as colaborações de Alex Crossan (de apenas 21 anos) com nomes da linha de Damon Albarn, Christine and the Queens, A$AP Rocky e Charli XCX. Esse rodízio de talentos virou a trilha sonora de uma festa perfeita - e que é também uma cápsula do tempo. Se daqui a alguns anos alguém quiser saber como era o pop em 2017, é só colocar Mura Masa pra tocar. Minhas faixas favoritas são "Nuggets" (com Bonzai), "Blu" (com Albarn, incrivelmente sedutor) e "helpline" (com Tom Tripp). Mas literalmente só tem coisa boa neste disco. Não quero nem pensar no que Crossan possa fazer um pouco mais velho...
     


     
    23) "Capacity", Big Thief - em 2016 eles vieram com "Masterpiece". Eu mal me recuperei desse suave furacão e o Big Thief veio com "Capacity"... Que coração que aguentaComo resistir a essa mistura perfeita de folk, indie, punk e... até um pouco de bossa nova? Um pouco de Alanis Morrisette, um pouco de PJ Harvey, e uma pitada de Aimee Mann - eu fico tentando achar referências, mas desisto. A faixa de abertura, "Pretty things" é tão poderosa - no seu despojamento - que eu mal conseguia avançar dali na primeira vez que ouvi. Mas aí vem "Shark smile", "Capacity", "Coma", "Objects"... Bom, essa é a promessa de que eles não vão ficar quietos no futuro - tomara! - porque ele é mais que promissor...
     
    Ok Computer

     
    E o melhor álbum de 2017 que você não ouviu é... de 1997: "OK Computer OKNOTOK 1997-2017". Doce ironia... É quase uma covardia, comparar qualquer disco que foi lançado este ano com essa obra-prima do passado. Mas quem disse que o mundo é justo? Não só as faixas originais de "OK Computer" sobrevivem intocadas, mas as "inéditas" (as aspas são porque muitas delas já eram conhecidas de performances ao vivo do Radiohead) são tão frescas como se estivessem sido compostas na semana passada. Como aliás, tudo que o Radiohead faz. Por ser um relançamento, duvido que muita gente tenha dado atenção, além dos fãs "hardcore" como eu (e talvez você) - por isso fiz questão de exaltá-lo nesta lista. E também pra sair um pouco do sério - que se não fica tudo muito chato... Um 2018 mais divertido pra todos nós!

  • O sucesso dos totalmente desconhecidos

    Está claro que os maiores sucessos de 2017 virão de pessoas totalmente desconhecidas – de quem você não vai se lembrar nem o nome (talvez o rosto, mas nada do seu trabalho) quando 2018 despontar. Esta é minha previsão, depois de uma análise minuciosa do que realmente está acontecendo na nossa cultura pop.

     

    A “profecia” de Andy Warhol – com esteroides! Com um requinte de crueldade: as pessoas vão ser famosas por 15 minutos não porque as coisas estão acontecendo rápidas demais, mas porque isso é tudo que elas querem. Poucas coisas me deixam mais perplexos em perfil de Instagram quanto a epígrafe que já almeja a fama efêmera. Você já viu – tenho certeza: “Débora Carneiro (nome fictício), futura YouTuber”. Sério? Eis o admirável mundo novo – talento, opcional! O que você precisa, isso sim, ainda mais na loteria da internet, é um pouco de sorte – e uma torcida forte para que quem faz alguma coisa com conteúdo despareça de vez.

     

    O único problema com essas previsões de fim de ano é que elas geralmente dão errado... Mas enquanto a música estiver tocando alta  - nos decibéis de um vitupério twittado por Trump, por exemplo – todo mundo se diverte. Pelo menos enquanto houver um meme... Mas lembre-se: mesmo para essa forma de, hum, comunicação tão contemporânea é preciso um mínimo de esperteza – que parece estar em falta. Tanto que o melhor meme de 2016, pra mim, ainda é um de 2015. E você há de concordar comigo: ninguém teve uma ideia melhor do que aquela imagem do Mussum respondendo à pergunta de como foi o último ano com uma simples foto do astro de “Matrix”... Será que esse ano que você está desejando pros outros que seja feliz vai ser novo mesmo?

    YouTube FanFest Brasil 2016

    YouTube Fanfest no Brasil, em 2016 (Foto: Divulgação/YouTube)

     

  • 'Heal the pain'

    “I went back home, got a brand new face, for the boys on MTV”. Eu era um deles – um dos caras da MTV. O ano era 1991, George Michael estava no palco do Maracanã naquela segunda (e não menos histórica) edição do Rock in Rio. E eu cantava aquela música tão forte que era como se fizesse parte do “backing vocal” – o coral que sempre acompanham grandes artistas em grandes shows. E esse era um grande show, de um grande artista – uma memória estupenda da passagem pelo Brasil da estrela maior que perdemos ontem, em pleno Natal.

    Vou poupar você do triste balanço musical de 2016 – outros obituários certamente já terão feito isso. Bowie, Prince, Cohen, George Michael – uma lista dolorosa (e que é ainda maior do que essa), um testamento musical de um ano que foi terrível de mais de uma maneira... Mas enfim, deixe-me concentrar no ídolo que se despediu ontem – ao que tudo indica, pelas notícias que foram liberadas, morreu de maneira tranquila, em sua casa em Londres, a cidade onde eu tive o privilégio de entrevistar George Michael uma vez.

    Como já contei aqui mesmo neste espaço, foi encontro no outono (londrino) de 1998. George, que depois do sucesso estratosférico no final dos anos 80 da sua carreira solo (que já vinha de outro sucesso estratosférico com o Wham! ao longo daquela década) e início dos 90, desapareceu da mídia – muito em função do “escândalo” de ter sido preso num banheiro público em Los Angeles. A entrevista, concedida a apenas três televisões no mundo – Reino Unido, Japão e Brasil –, seria uma espécie de retorno do cantor.

    A essa altura ele já estava preparado para discutir abertamente sua homossexualidade – e o Brasil certamente foi escolhido para ser um dos países com os quais George Michael queria falar em consideração a seu companheiro brasileiro, com quem ele viveu um forte romance, que terminou em 1993 quando ele morreu por complicações relacionadas à Aids. Mas sobretudo ele queria falar de música, da vida sobre os holofotes, de família e de amor. E eu, claro, mal podia acreditar que estava finalmente diante de um ídolo.

    Enquanto esperava por ele, inevitavelmente me lembrei da minha primeira tentativa de entrevistá-lo – justamente em 1991, quando era então um dos “garotos da MTV”. Nada havia sido marcado. George Michael era sim um dos maiores artistas do planeta e nem a MTV americana – que muito nos ajudou naquele festival (foi por conta dela que conseguimos falar com vários superstars da época, como Axl Rose, por exemplo) – estava conseguindo falar com ele.

    Lá fui eu então, naquela manhã, fazer uma tímida tentativa na piscina do hotel Copacabana Palace. Visivelmente tímido, tentei me aproximar de George Michael – que tomava seu sol ali na pérgola – com uma modesta camiseta da nossa MTV para presenteá-lo e quem sabe assim convencê-lo de falar com a gente. Preciso dizer que não cheguei nem a dez metros de distância dele? Dois – talvez três – seguranças vieram em minha direção e me interceptaram sem cerimônia, dizendo que “Mr. Michael” não gostaria de ser incomodado, mas que eles certamente fariam com que aquela camiseta – hoje, um clássico a ser resgatado: branca com a bandeira do Brasil inserida no logo da MTV – chegaria até as mãos do cantor. Até parece...

    Sete anos passariam até que finalmente eu pudesse encontrá-lo – e ter o prazer de conhecer de perto a mente fascinante que criou tantos sucesso. Eu não era mais um “garoto da MTV”, claro, mas “o cara do ‘Fantástico’ ” – um dos programas mais populares da TV no Brasil, o país do grande amor de sua vida.

    Num hotel que era um dos mais caros e bonitos de Londres na época (The Hempel), tínhamos uma suíte enorme toda montada para o “circo” da mídia. Câmeras, luzes, diretores, assessores de imprensa – todo aquela parafernália com a qual eu me acostumei ao longo de tantos anos cobrindo show businesses. O tamanho de todo o aparato, porém, contrastou drasticamente com a simplicidade do cantor – a ponto de deixar este experimentado repórter que vos escreve ligeiramente desarmado.

    Seu romance com o brasileiro foi um dos primeiros assuntos – como se ele quisesse falar logo sobre isso, mostrar o quanto sentia saudades de seu companheiro, quanto era grato pela família dele que o acolheu, o quanto toda essa história significou para ele. Assim, ele poderia abrir caminho para que a conversa se concentrasse sobre o que realmente o interessava: a música e o bizarro mundo da celebridade.

    Esta entrevista está em algum lugar dos arquivos do “Fant” – e espero um dia poder revê-la aqui na internet (minhas buscas para encontrá-la até o momento em que escrevo isso foram em vão). Mas sentei-me hoje cedo para escrever este texto – quem nem é exatamente um obituário – não para lembrar de tudo que falamos “verbatim”, ou seja, palavra por palavra. O que quero que fique registrado é o fascínio de ter estado perto de um artista que... bom, desculpe o clichê, daqueles que parece que não surgem mais hoje em dia: daqueles capazes de jorrar músicas originais e brilhantes, imediatamente reconhecíveis em qualquer lugar do mundo, com um dom de produzir letra e canção que se alojam de maneira “indeletável” da sua memória. Quantos artistas que apareceram no século 20 são capazes disso – não apenas de cantar sucessos, mas de compor cada um deles, com a precisão de um joalheiro?

    Sim, Lady Gaga – é a resposta óbvia. Mais de uma vez citei essa artista maior (em vários textos) como a verdadeira sucessora de astros como Elton John e George Michael. Outros intérpretes brilhantes – de Beyoncé a Justin Timberlake – explodem em sucessos, mas que são, muitas vezes, esforços coletivos, um subproduto do fragmentado universo pop que habitamos hoje (o que não diminui nem um pouco o valor desses “hits”, mas são, você há de reconhecer, uma outra espécie de composição).

    Mas com essa despedida de George Michael – e, sim, de Bowie, de Prince, de Cohen – a gente fica sem mais um artista daqueles verdadeiramente originais. Que estava tranquilo com sua trajetória – nem parecia que estava a fim de estender sua carreira muito além daquele período áureo. Naquela entrevista de 98, ele me disse que talvez só tivesse mais um ou dois álbuns originais para oferecer – antes que encerrasse sua carreira, numa modéstia rara de se ver no show business... Ao mesmo tempo, parece que ele estava trabalhando em cima de algum material inédito para ser lançado em 2017... Quem sabe?

    Fato é que, com um conjunto da obra como a de George Michael, nada praticamente precisa ser acrescentado. O “garoto da MTV” sabe quase todas de cor – como milhões de pessoas no mundo todo (você inclusive). E de tantos versos e coros sensacionais que ele então deixou, eu resgato este da música que dá título ao post de hoje, pra encerrar não sem uma nota de tristeza essa homenagem:

    “Do something for me

    Listen to my simple story

    And maybe we'll have something to show”

    Sim, está no primeiro verso de “Heal the pain” – uma das minhas músicas favoritas de George Michael. Que, tenho certeza, não vai sair da minha cabeça pelas próximas horas, num passeio gelado que vou dar pelas ruas da cidade fria que estou agora – longe do Brasil, mas perto de uma comunidade muito maior que a gente geralmente se refere apenas como “pop”, mas que hoje, sei lá por qual motivo, eu quero chamar de “música dos anjos”…

  • Os 20 (+1) melhores discos que você não ouviu em 2016

    Aqui estão eles, meu tesouro – meus discos que eu sempre acho que só eu que ouvi e ninguém mais... O que não é verdade, claro. Por mais que aquele artista por quem você se apaixonou seja “seu segredo”, tem sempre uma “alma solitária” que o encontrou por aí também – algo fácil de se descobrir, ainda mais em tempos tão conectados. O que só pode ser um bom sinal: a promessa de que nunca vai nos faltar a boa música.
     
    Estou ciente de que se você só ouve o que nossas rádios tocam a impressão é outra: parece que nunca vamos sair do loop de vozes clonadas representando corações machistas pedindo perdão por ter chifrado a namorada (mais uma vez). Sim, existe muita música melhor que essa sendo feita – no Brasil e no mundo.
     
    Por isso, como sempre, nossa lista anual viaja por nosso território nacional, mas também pelo Irã, Tunísia, Argentina, Tailândia, Sri Lanka, França, Austrália – e, claro, Estados Unidos e Inglaterra! Viaja também por vários períodos no tempo – muitas vezes de uma vez só, como é o caso do grande álbum no ano que você não ouviu, lá no fim da lista. (Lembrando que ela não é em ordem de preferência, os números estão lá apenas por uma questão de ordem).
     
    Para quem está chegando agora, é importante que você esteja atento ao “não” no nome da seleção. Grandes artistas nos deram trabalhos geniais este ano – de David Bowie a Beyoncé, de Rihanna a Kanye West, de Drake a Metallica. Mas estes, claro, são artistas que dominaram nossos ouvidos. E cá estou eu no fim de ano, mais uma vez, para sugerir um mapa alternativo do pop em 2016.
     
    Que você se divirta nessa rota – sempre errante. Como disse o mais elegante chefe de nação que conheci no meu período nesta Terra – aquele que infelizmente está deixando o cargo este ano –, Barack Obama: “We zig and zag”. Ele se referia, claro, aos caminhos da democracia (diante de um sucessor que ameaça voltar várias casas no tabuleiro do infindável jogo da civilização). Mas podemos dizer o mesmo do nosso surrado pop.
     
    Assim como nenhum governo é permanente – pergunte isso a Fidel... –, não há moda que perdure para sempre na música. Logo vem um novo sopro mostrando que sabemos sim fazer um bom pop. Aqui estão então algumas dessas brisas que senti em 2016. Abram as janelas!
     
    Whitney 1) “Light upon the lake”, Whitney – abro a lista com talvez o primeiro trabalho que eu separei este ano como um dos melhores de 2016. Lá em junho, ouvi “Light upon the lake” e achei que tinha apertado uma tecla de flashback. Quem faz música como essa hoje em dia? Bem, Whitney faz! “No woman” é a canção de amor que você sempre quis cantar e nenhuma banda veio te ajudar até então... Mas não pare por aí – avance para ouvir a melhor rendição de Belle and Sebastian desde... bem, quem liga pra datas?

    Mahmundi2) “Mahmundi”, Mahmundi – melhor álbum brasileiro 2016? Sei que vou arrumar briga se der esse prêmio a Mahmundi. Mas assumo que ela foi sim a melhor descoberta nacional do ano – eu sei, tem Jaloo, mas “R#1” é oficialmente de 2015 (já falamos mais dele). Conheci Mahmundi numa “esquina” do último Lollapalooza – e fiquei encantado. O álbum (seu segundo) veio logo depois. E veio com vontade de mudar. Mas quem é que está ouvindo? Bom, eu tô – e você vai ouvir também...
     
    Hopelessness3) “Hopelessness”, ANOHNI – “4 degrees” é a música mais desesperada deste ano. E isso é um elogio. Porque “Hopelessness” é um disco urgente. E brilhante.

    Por trás desse nome, você sabe, está uma das vozes mais inesperadas de toda a história do pop: Antony Hagerty – venerado por uma lista de artista que vai de Björk a Kanye West, com talentos que ultrapassam a galáxia do pop. A urgência de ANOHNI é pela natureza ameaçada, mas seu grito ecoa outro pedido de socorro: o da boa música. Nós te ouvimos Antony!
     
    Opoch4) “Un torrent, la boue”, O – nem tente achar este álbum no Spotify: é missão impossível! Também, quem mandou Olivier Marguerit dar simplesmente o nome de O para seu mais novo projeto? Eu mesmo tive de busca-lo num bom e velho CD! Quem conhece o pop francês sabe que os dedos de Olivier estão por todos os lados naquele cenário.

    E agora, nesse projeto solo, você pode conhecê-lo por inteiro: uma mistura geral de sons e estilos – que é exatamente o que o pop está precisando. Corra atrás dele, começando por esta faixa no YouTube, “La rivière”.
     
    Soft Hair5) “Soft Hair”, Soft Hair – imagine um Pet Shop Boys debochado. Sim, eu sei que o Pet Shop Boys já nasceu (mais de três décadas atrás) bastante debochado – mas o Soft Hair é mais. Sem contar Sam Eastgate e Connan Mockasin que são músicos ligeiramente mais sofisticados que Neil Tennant e Chis Lowe. Mas deixemos essa competição de lado: a proposta do Soft Hair é seduzir pela exuberância sonora – e para isso vale tudo: de “proto disco” alemão dos anos 70 ao “pós nada” do atualíssimo James Blake. Tá tudo lá – e é sublime!

     
    MIA6) “AIM”, M.I.A – “Bird song”, música do ano. Não vou discutir – é o melhor sampler e o melhor remix. Pronto.

    Dito isto, vou defender que o álbum que contém essa pérola é também sensacional – e se M.I.A. fosse um pouco menos teimosa ela teria emplacado melhor este ano.

    Só ela tem a capacidade de achar o sample certo pra mensagem certa – e não usar esse clipe de música como uma muleta fácil, mas transformá-lo numa paisagem musical.

    Se “Bird song” não lhe basta, tente “Go off” – ou qualquer outra faixa de “AIM”. Caso encerrado.

     
    Bum Lam Plhoen7) “Essential hongthong dao udon”, Bum Lam Plhoen – lançada no final do ano passado no Japão, essa compilação é essencial para quem mergulhar fundo no pop tailandês. Eu sei, você nem sabia que existia um pop tailandês... Mas em mais uma viagem a Bangcoc este ano, numa loja de discos chamada 1979 Vinyl, encontrei esse CD e... Bom, sabe quando os terrestres ficam tentando se comunicar com os e.t.s em “A chegada”? Pois é, você tem que inventar um novo dicionário (musical) para entender isso – e se maravilhar...

     
    Car seat 8) “Teens of denial”, Car Seat Headrest – devo estar ficando velho porque toda vez que ouço uma banda nova, fico procurando referências de coisas que já ouvi... Car Seat Headrest, por exemplo?

     

    Como não achar nessa banda genial uma pitada de Strokes, outra de Clash – e até um dedinho de The Jam?

    Pegue a receita que você quiser – o fato é que eu te desafio a achar em 2016 um punhado de faixas com mais energia do que a desses caras aqui. Nada mal pra quem tá na estrada desde 2010! Sem falar que o nome do álbum é genial...

     
    Tam9) “Tam... Tam... Tam... – Reimagined”, Gilles Peterson – quase chorei quando vi que um dos melhores produtores contemporâneos resolveu fazer uma releitura de um álbum que eu achava que só eu ouvia... O “Tam... Tam” original é um disco brasileiro, de 1958 – a trilha de um musical bizarro que o “Brazil” resolveu exportar para a Europa naquela época.

    Esse álbum foi relançado em 2014 – e comecei uma pesquisa em cima dele, quando de repente eu vejo que Gilles Peterson também se interessou pelo disco – e repensou essa obra-prima. Uma audição essencial pra quem quer sair da zona de conforto...

     
    Kuorosh 10) “Back from the brink: pre-revolution psicheldelic rock from Iran 1973-1979”, Kuorosh Yaghmaei – este álbum foi lançado cinco anos atrás. Mas cheguei nele por um outro disco de Kuorosh que saiu em 2016: “Malek Jamshid”. Gostei, mas quando fui pesquisar no passado desse artista, gostei ainda mais!

    Assim, como introdução a esse ídolo psicodélico iraniano, eu sugiro que você comece pelos anos 70. Coisa boa imaginar que do outro lado do mundo, enquanto o rock embarcava no punk, alguém fazia música assim...

     
    Danny Brown11) “Atrocity exhibition”, Danny Brown – como nada que você ouviu este ano. Esta é a melhor maneira de definir esse – que é o quinto álbum do rapper de Detroit, e seu melhor. Mas vá preparado.

    Logo na primeira vez que você escuta, você se vê diante de duas opções: sentir-se repelido por toda aquela esquisitice; ou seduzido por seus mistérios. Preciso explicar que caminho escolhi? “Lost” é a “melhor música de outra planeta” do ano – e a prova de que Danny Brown é genial.

    Jaloo12) “#1”, Jaloo – faço logo o mea culpa: eu mesmo deveria ter “descoberto” este disco quando ele saiu – no final do ano passado. Mas eu devia estar envolvido com outras coisas – ou então abduzido! Fato é que eu “comi barriga” e deixei “#1” passar... O castigo por esse pecado? Ouvir Jaloo todos os dias de 2016. O que para mim não foi nenhum sacrifício. Há quem diga que ele é o Ney Matogrosso do século 21 – mas eu discordo: Jaloo é atemporal, etéreo, lindo e leve, é pop. Quem escreve algo como “Tô tão contente, delay, tô pra trás/and I get lost every once in our eyes” só poder ter meu respeito e admiração.

     
    Pollice13) “Pollice Verso”, Pollice Verso – sim, uma banda brasileira cantando rock em inglês vale muito a pena ouvir – especialmente se ela for a Pollice Verso.

    Eles são de Curitiba – e eu diria que o povo de lá tá se saindo bem no pop, certo Karol Conka? Dizer que um grupo brasileiro que canta em inglês é “competente” é “tapinha nas costas”.

    Pra mim o Pollice Verso é uma boa alternativa pra gente procurar novos horizontes – um caminho até mais difícil do que o daqueles que cantam em português. Mas só pela coragem – e “competência” eheh – já chamaram minha atenção nesse simples EP.

    Cashmere14) “Cashmere”, Swet Shop Boys – eu já tenho um pé ali na Índia, não é segredo. Mas justamente porque ouço tanta coisa que tem a ver com esse canto do mundo, tá cada vez mais difícil de me surpreender.

    Nesse quesito o Swet Shop Boys se saiu com louvor: com samplers de fazer inveja a M.I.A. (veja acima), cada faixa é um pequeno universo – parte Eminem, parte Cornershop. E lá vou eu com as minhas referências de novo...

    Não liga pra elas – ouça “Cashmere” do começo ao fim como uma grande viagem. Que é exatamente disso que estamos minha gente, eu tô falando...

    Casa15) “Casa del Viento”, Karina Vismara – uma lista dessas sem um artista argentino não rola né? Você já conhece as regras eheh! Mas Karina não está aqui apenas pela nacionalidade no seu passaporte. Ouvir seu disco é lembrar de tantas mulheres fortes que já passaram pelo pop – de Joan Baez a Lhasa.

    Ela bebe em tantas fontes, que chamar sua música de “neo-folk” é de um reducionismo cruel. Ainda não decidi se prefiro ouvi-la cantar em inglês ou castelhano... Talvez na sua língua nativa – só por causa de “Que fácil es hablar”...
     

    Childish16) “Awaken, my Love”, Childish Gambino – enquanto todo mundo no hip-hop só se ajoelha para Kanye West (que fez o ótimo “The life of Plabo” este ano – e que todo mundo ouviu, logo, está fora desta lista), Donal Glover segue ainda abaixo do radar... Sempre achei que Gambino fosse só uma brincadeira de Glover, um projeto a mais desse artista multi talentoso. Mas “Awaken, my love” é o disco de hip-hop mais interessante que ouvi em 2016, com um pé no passado (soul circa 1970) e vários no futuro. Desculpa Kanye...

     
    Barbara17) “Barbara - Fairouz”, Dorsaf Hamdani – uma cantora tunisiana cantando o melhor do reportório de uma dama da canção francesa e o de uma diva libanesa? É emoção demais pro coraçãozinho deste fã de músicas do mundo todo – aquelas sem barreiras, que falam todos idiomas e ao mesmo tempo um só... Mas sem divagações, este é um encontro feliz de dois universos – que na voz de Dorsaf nem parecem tão distantes assim.

    Cantando em francês e em árabe, vemos que a proximidade entre Barbara e Fairouz é enorme. É a música ganhando dos mapas – é um presente pros nossos ouvidos.

     
    Glass Animals18) “How to be a human being”, Glass Animals – é dessa festa que eu quero participar neste final de ano, ou qualquer outra festa que esses caras forem tocar. Modernos, misturados, misteriosos – divertidos, enfim.

    Como alguém ainda não fez um remix de 2 horas de “Season 2 episode 3” pra quem quer passar uma madrugada sem dormir? Uma verdadeira inspiração para nossos tempos de mesmice – ainda bem que tem gente louca fazendo música. E não só em Oxford...

     
    Blood Orange19) “Freetown sound”, Blood Orange – a essa altura, quem frequenta este espaço já sabe que sou devoro de Dev Hynes, em todas suas encarnações. Blood Orange é a mais esotérica delas – e talvez a que eu mais goste até hoje.

    Seus outros álbuns já entraram nesta lista em outros anos, mas “Freetown sound” não está aqui só por inércia. Essa é uma coleção de criações de um músico inquieto, provocador, capaz de produzir joias pop para outros cantores, mas para si mesmo prefere os caminhos mais difíceis. Eu também eheh.
     

    Tove Lo20) “Lady wood”, Tove Lo – num ano em que as grandes divas – Rihanna, Beyoncé, Gaga –  resolveram fazer álbuns “ligeiramente” experimentais (e sublimes) sobrou pra Tove Lo reinar na sua inteligência pop. “Habits” era só o começo. Depois que ela tomou coragem para gravar as músicas dela mesma – e não compor para os outros, seu trabalho ficou ainda melhor. Por isso fecho essa lista com ela – Tove Lo deveria ser mais ouvida! E não vou nem comentar o atrevimento de fazer uma capa que é um clone (ou seria homenagem?) a “Like a prayer”, de Madonna?

     
    E o melhor álbum do ano que você não ouviu é... “Wildflower”, The Avalanches. Nenhum disco desse ano, independente de quem o tenha produzido, tem a sofisticação de “Wildflower” – e não digo essa sofisticação besta, esse virtuoso musical que muita gente gosta de exibir. O segundo álbum do Avalanches – que levou “só” 16 anos pra ser feito – é uma peça de joalheria pop, camada sobre camada de música delicadamente colocada um sobre a outra, com o cuidado de um artesão. Mas falando assim tenho medo de arruinar com elogios tolos um disco que é sensacional – único! E se o próximo do Avalanches demorar o mesmo tempo pra sair – nossa, eu vou ter 66 anos! – assim seja! Vou estar esperando com a mesma alegria com que eu acordo cantando, todo dia, “Sunshine”...
     
    Avalanches

  • How does it feel?

    O músico americano Bob Dylan em foto de abril de 1965, em LondresPodemos ir além da discussão menor sobre se está certo ou não o prêmio Nobel de literatura ter laureado este ano um músico, poeta e compositor – no caso, um certo Bob Dylan? Como disse bem Jon Pareles no seu comentário no “The New York Times”, a única pergunta que cabe ser feita ao comitê que decidiu isso em Estocolmo é: por que demorou tanto?
     
    Mas mesmo esta questão, agora que já digerimos e comemoramos o Nobel de Dylan, me parece secundária. Talvez os suecos já quisessem dar esse prêmio há alguns anos – muitos levantaram a questão que não há nada recente escrito (ou cantado) por ele que justifique uma premiação “quente”. Mas as coisas acontecem na hora que têm de acontecer – e ele, o prêmio veio enfim. E eu queria que o teletransporte já fosse uma realidade para eu poder ver de perto o que ele vai falar quando subir ao palco esta noite no seu show em Las Vegas.
     
    É provável – mestre do “nos sequitur” que é – que ele não fale nada. Não é de hoje que Dylan “decepciona” nos seus shows ao vivo. As aspas no verbo estão lá, que fique bem claro, para ressaltar que ele não faz ou deixa de fazer alguma coisa no palco porque o público quer que ele aja assim ou assado. Quem conferiu sua passagem pelo Brasil em 2012 sabe bem do que eu estou falando... Mas, como todo bom artista, ele faz o que acha melhor. E quem quiser que o acompanhe.
     
    Não faltam seguidores – aliás, nunca faltaram. Mesmo naquele ponto seminal da sua carreira, em meados dos anos 60, no auge da sua popularidade, quando ele resolveu contrariar os fãs e tocar do jeito que ele bem entendesse – mesmo depois de algumas vaias, lá estava todo mundo acompanhando ele de novo. Estou me referindo, claro, ao show seminal que ele deu em Newcastle, na Inglaterra, em 1966 – e que foi resgatado pelo brilhante documentário de Martin Scorcese sobre o artista: “No direction home”.
     
    Sou tão apaixonado por este filme que, nos primórdios deste blog, nos idos de 2007, dediquei nada menos do que três posts a ele – de certa maneira juntando Dylan e Racionais MC (você tem que ler para entender direito Parte 1 / Parte 2 / Parte 3). E uma das cenas que mais me fascinaram foi um registro feito depois deste show, onde um casal de fãs pede um autógrafo pela janela da limusine onde ele está e, depois de Dylan recusar a gentileza, eles perguntam como que esbravejando: “What’s your problem Bob?”. Uma pergunta que, aliás, pode ser feita até hoje – mesmo depois de tanto reconhecimento e diante de tanta inquietude que ele ainda demonstra aos 75 anos, a gente sente vontade de perguntar: “Qual seu problema Bob?”.
     
    Capa de 'Highway 61 revisited'Bem, digamos que o problema não é Bob, mas as coisas que Bob vê – e que não param de lhe incomodar, machucar, e fazer ele refletir. Os fãs mais moderados talvez só se lembrem dos clássicos. Mas quem se dispuser a ouvir suas composições mais recentes – por exemplo, “Long and wasted years”, de “Tempest” (2012), vai ouvir alguns de seus mais belos lamentos, como:
     
    “We cried on a cold and frosty morn,
    We cried because our souls were torn
    So much for tears
    So much for these long and wasted years”
     
    Este é um disco curioso, onde, numa primeira audição, o que a gente parece que ouve são lamentos de amor. Uma alma cansada, sem dúvida, mas que não se entregou nem às decepções que uma vida de paixões acumula. Mas ouvidas repetidas vezes, as canções se revelam mais profundas. Ainda a essa altura da sua carreira, ele não desiste de nos mostrar como podemos ser únicos e miseráveis – infelizes talvez, mas nunca conformados. Quase derrotados, mas inexplicavelmente altivos. Ou pelo menos tentamos ser assim.
     
    Citei há pouco os clássicos de Dylan com um tom que pode parecer de um certo desdém – algo que apenas os fãs mais “superficiais” lembram numa hora de homenagem como essa de agora. Mas se passei essa impressão, quero me corrigir rapidamente. Ali estão algumas das letras – e, consequentemente, das poesias – mais poderosas que a música pop já ofereceu ao mundo. Versos que inspiraram gerações – e não só nos Estados Unidos.
     
    Ouvindo o que as rádios desesperadas por audiência tocam hoje em dia é difícil acreditar que um dia o brasileiro não foi obrigado a engolir versos que não cabem na música, rimas que só acontecem porque o cantor troca a sílaba tônica de uma palavra, e concordâncias verbais que nunca se ensinaram na escola. Sim, houve um tempo em que o melhor do nosso pop podia se orgulhar de vir de uma linhagem direta de inspiração “dylanesca” – aliás, quantos compositores podem se orgulhar de terem virado um objetivo? (Mas eu divago...).
     
    Nesse tempo – que não faz tanto tempo assim – ouvíamos Gilberto Gil traduzindo Bob Marley numa sutil referência a Dylan. Música em questão: “Não chores mais” – ou vai dizer que “ob-observando estrelas” não é uma declinação inspirada de “knock-knock-knocking on heaven’s door”? Você pode até dizer que eu estou por fora ou então que estou inventando – para citar outra letra de um ícone musical brasileiro que talvez não existisse: “Como nossos pais”, de Belchior, imortalizado por Elis Regina. Mas pense em Caetano. Pense em Rita Lee. Pense em Renato Russo – de quem sentimos saudades já há 20 anos...
     
    Foi lendo o já citado artigo de Jon Pareles que me dei conta de que há uma estranha conexão entre “Isis” – uma música de Dylan de 1976, que tem um diálogo no meio de seus versos – e o estilo solto de “Eduardo e Mônica” de Renato com o Legião Urbana. Mas ao mesmo tempo em que junto esses pontos, estou ciente que estamos num tempo onde a palavra vale muito pouco na música – quando a maioria dos refrões que nos cercam só não incomodam mais porque são virtualmente idênticos uns aos outros, feitos para os meninos poderem ser perdoados das suas traições pelas meninas... meninas essas que estão bem menos interessadas nessa pobre poesia do que na possibilidade de uma selfie de uma distância razoável do palco para provar pro seu grupo de whatsapp que aquele que está ali com um microfone na mão estava cantando só para ela...
     
    Dylan também passavam essa sensação – mas num contexto ligeiramente diferente. Quando a cantora maior do gospel americano pergunta para a câmera de Scorcese, em “No direction home”, como um “branco” pode escrever uma letra que diz “quantas estradas um homem tem que percorrer até que ele possa ser chamado de homem?” – isso significa uma conexão absoluta entre a mensagem e quem a escuta. Nos turbulentos anos 60, quando os Estados Unidos passavam por revoluções sociais que mudaram todo o mundo, ele estava falando diretamente com um monte de gente na plateia. Mas digamos que com uma mensagem ligeiramente mais interessante do que as peripécias do amor que ecoam infinitamente nas nossas ondas sonoras de hoje...
     
    Com poucas chances de um dia serem lembradas por uma consagração tão importante quanto o Nobel, é verdade. E por isso mesmo o prêmio anunciado hoje nos dá esperança. De que a arte sempre vai ser reconhecida. De que a palavra sempre vai significar uma coisa maior. E de que por isso mesmo, se você as junta numa pergunta realmente importante elas podem um dia voltar para você. E é nesse espírito que, se eu estivesse hoje no camarim com Bob Dylan, lá em Las Vegas, mesmo que ele se mostrasse relutante em comentar a honra de ter levado no Nobel de literatura de 2016, eu não resistiria e perguntaria na cara dura: “So Bob, how does it feel?”...

  • 'Justiça' para todos

     Rose (Jéssica Ellen), Vicente (Jesuíta Barbosa), Fátima (Adriana Esteves) e Maurício (Cauã Reymond) em 'Justiça'
    Há quanto tempo você não assiste a uma coisa na TV e fica realmente interessado em saber o que vai acontecer com aquelas personagens? Abro este texto com esta pergunta porque, preparando-me para encarar mais uma fase de “Justiça” - que estreou na segunda-feira passada e já havia me conquistado antes de a semana terminar -, depois de ter passado o sábado e o domingo discutindo mais ou menos o mesmo assunto com as pessoas que encontrava, senti necessidade de celebrar esse momento hoje raro de comunhão entre a TV e o telespectador. Aliás, senti uma nostalgia de “Avenida Brasil” no ar… Mas vamos desenvolver melhor.

    Parece que todo mundo já entendeu que estamos sempre contando as mesmas histórias. “Não há nada de novo sob o sol”, reza o velho ditado - e isso vale mais ainda para o universo da ficção. Mas felizmente há sempre uma maneira de renovar aquilo que se conta. O melhor livro que li este ano - ainda sem tradução no Brasil - é “What belongs to you”, do americano Garth Greenwell. Tem coisa mais batida do que se apaixonar por alguém para quem você está pagando para fazer um programa? Pois Greenweel transporta essa relação surrada para um outro patamar - e ainda te leva junto para uma das reflexões mais profundas e lindas com a qual me deparei ultimamente da (também surrada) relação entre pais e filhos. Sua divagação sobre o que acontece com a capacidade de nos tocarmos é tão cativante que se começar a falar sobre ela agora, divagarei eu mesmo - e não quero repetir erros passados eheh.

    Ainda nos livros, foi com alegria que vi (finalmente) nas prateleiras brasileiras a tradução da obra máxima de David Mitchell, “Atlas de nuvens” (Companhia das Letras) - mais uma prova de que contar as mesmas histórias vale a pena se você inventar uma maneira nova de apresentá-las. No caso, a própria “fórmula” de Mitchell em “Atlas” é conhecida - aquela de “um livro dentro do outro” -, mas o contraste entre os estilos, a curiosa escolha de períodos da história para centrar suas seis narrativas, e mais o retorno a cada uma das “pontas soltas” da primeira metade do livro, não são nada menos que um brilhante convite à leitura. Você sente no seu corpo que precisa ir adiante porque o autor conseguiu criar em você a necessidade de retornar sempre a esses personagens.

    Que é exatamente o que nos leva então a “Justiça”. Depois de ver os quatro primeiros episódios - confissão: o terceiro e o quarto, não aguentei esperar para ver na TV aberta e assista a eles antes da exibição, no GloboPlay - eu fiquei totalmente obcecado pelo destino daqueles personagens. O que, repito, tem siso um acontecimento raro - mesmo no universo da TV.

    Justamente pela profusão de séries - que a abertura do cabo e do “streaming” trouxe nos últimos anos -, acabando nos “acostumando mal” a querer sempre histórias cada vez com mais qualidade - e nível sempre alto de atenção e envolvimento. “Aprendemos” o que é uma narrativa de qualidade, o que significa “desenvolvimento de personagens”, a importância de um bom gancho - e mais: repetindo… o poder de uma história bem contada. Evoluímos muito! Eu sou do tempo em que uma audiência desesperada só tinha uma pergunta na cabeça: “Quem matou Salomão Ayalah?’. Eheh! Hoje… sorte do telespectador que tiver só uma dúvida depois de acompanhar vários capítulos de uma novela - ou mesmo um punhado de episódios de uma série. É com isso que os bons autores estão preocupados agora: com essas várias conexões possíveis de serem feitas - e que, claro, funcionam sempre no nível pessoal.

    Para citar exemplos recentes de tramas que “não me pegaram”, só fui adiante de “Breaking bad” - que assisti com um certo sacrifício até o fim - por insistência de amigos, que sempre vinham com aquele velho conselho: “depois da segunda temporada melhora” (o mesmo que ouvi, por exemplo quando comecei a acompanhar, com relativo atraso, “Game of thrones”). De certa maneira desta vez 0 arquétipo do “homem derrotado que aposta tudo ou nada” - tão discutido recentemente em dramaturgia televisiva (especialmente a americana) e que funcionou tão bem pra mim em “Mad men” - não me encantou. Para um personagem tantas vezes chamado de “shakespeariano”, Walter White me pareceu bastante linear. Seu “parceiro” Jesse, apesara de mais interessante e mais bem interpretado, idem. Mas criticar “Breaking bad” - que tem ótimas qualidades, sobretudo de direção - é mexer em vespeiro… Vamos deixar por aqui, dizendo simplesmente que não me “hipnotizou”.

    O mesmo vale para outra série - esta, original da Netflix: “Jessica Jones”. Mesmo no universo dos estranhos heróis da Marvel (que geralmente eu gosto), a “menina misteriosa” não falou comigo. Depois do quarto episódio, desliguei a TV sem a menor preocupação do que iria acontecer com ela - e olha que foi bem aí que o “manipulador” da sua mente começou a ficar mais presente…

    Por outro lado, cruzei com séries no último ano que não foi preciso nem eu chegar ao fim do episódio para estar totalmente seduzido pelos seus personagens principais - e em alguns casos já até pelos secundários. Se você está pensando em “Mr. Robot”, acertou - a TV raras vezes conheceu alguém tão carismático quando Rami Malek no papel do hacker revolucionário. (Vale notar que a princípio poucas coisas me parecem menos interessantes do que uma série sobre um hacker - o que só torna o mérito de “Mr. Robot” ainda maior). E aí tem “The night of”.

    the night of - blog legendadoTalvez esta série - que é “das antigas”, ou seja, daquelas que a gente tem que esperar uma infindável semana para ver o capítulo seguinte… - ainda não tenha passado pelo seu radar pop. O que pode ser bom se você estiver com seus dias muito ocupados, uma vez que “The night of” é uma daquelas histórias que te consomem tanto a ponto de fazer você esquecer de caçar pokemóns!

    É mais uma história de crime hediondo onde o suspeito é um rapaz com cara de inocente sem antecedentes criminais, vítima de uma noite em que ele simplesmente ia pra uma festa. Só que não… Tudo - absolutamente tudo - dá errado naquela madrugada para Naz (Nasir - o ótimo Riz Ahmed). E para complicar tudo, especialmente numa Nova York pós 11 de setembro, sua família é paquistanesa (ele mesmo é nascido em solo americano). Quem se interessa pelo seu caso é o advogado de defesa Jack Stone (John Torturro no que o clichê da crítica adora chamar de “o papel da sua vida”, que, diga-se, na origem do projeto era pra ser de James Gandolfini) - um “coitado”, que quando consegue tirar alguém da porta da cadeia por 250 dólares tá no lucro.

    É desesperador assistir à trama se desenrolando, ou melhor, se complicando cada vez mais - e não vou dizer mais sobre “The night of” (que até o momento em que escrevo isso só tem sete episódios disponíveis na HBO do Brasil). Citei a série aqui não apenas por ser fã, mas porque ela é mais um argumento na minha linha de raciocínio do início deste post de hoje: quando você conta uma história - seja num livro, na TV, num podcast - a única coisa que realmente importa é… eu quero realmente saber o que vai acontecer com esses personagens?

    Voltemos para “Justiça”, que entra hoje na sua segunda semana. Eu quero saber quem é aquela menina que grita “papai” quando Vicente (Jesuíta Barbosa) sai da prisão por ter matado a filha de Elisa (Debora Bloch) num crime passional? Sim. Quero saber onde foram parar os filhos de Fátima (Adriana Esteves), que volta pra sua própria casa só que abandonada? Claro! Quero também saber que futuro terá a amizade de Rose (Jéssica Ellen) e Débora (Luisa Arraes) depois que a primeira foi presa com drogas numa festa na praia que estavam juntas - especialmente depois de perceber que o companheiro de Elisa, Marcelo (Igor Angelkorte), condena essa relação. Óbvio! E quero saber como Maurício (Cauã Reymond) pensa em se vingar de Antenor (Antonio Calloni), que atropelou sua mulher, que ficou tetraplégica no acidente e pediu para o próprio marido matá-la no hospital? Precisa perguntar?

    E veja que eu estou falando apenas dos personagens ditos principais. Também estou interessado na degradação do “sargento” Douglas (Enrique Diaz), que prendeu Rose e colocou droga na casa de Fátima pra incriminar a vizinha que matou seu cachorro. E no esquema criminoso cujo chefão parece ser Celso (Vladimir Brichta). E no destino do marido de Fátima - o motorista de ônibus Waldir (Ângelo Antonio). E não é possível que Vânia (Drica Moraes) não tenha um papel mais importante na vida de seu marido Antenor, que agora é um político em campanha…

    Eu mencionei que todas essas histórias estão interligadas? Que Fátima trabalha na casa de Elisa? Celso tinha um caso com Rose? Waldir era motorista de ônibus na empresa do pai de Vicente, que levou um golpe do seu sócio, Antenor? Que Maurício era advogado dos mesmos empresários? Eu fico só entusiasmado só imaginando as outras conexões que ainda vão aparecer…

    Vou segurar os elogios aqui - ou melhor, vou resumir numa só palavra o que cabe a cada um desse elenco, mas também à direção geral (José Luiz Villamarim, e toda sua equipe) e ao texto de Manuela Dias, que é a prova final que queria apresentar sobre a questão de contar a mesma história de maneiras diferentes para surpreender e encantar: são todos geniais.

    A primeira referência que me vem à cabeça é a suprema contista canadense (ganhadora de um Nobel), que nunca apresenta uma coisa só. Nos seus - por vezes curtíssimos - contos, Munro parece sempre ter escolhido uma narrativa linear. Mas de repente a personagem que já te seduziu tem um segredo, que te remete a um caso do passado, que devolve para uma figura secundária do presente - e que altera toda a nossa expectativa de desfecho.

    “Justiça” parece ter bebido nessa fonte saudável - uma cartilha de que fato ensina, acima de tudo, a respeitar o leitor; ou, no caso da série, o telespectador. E que talvez recorra a malabarismos - estéticos e narrativos (todos justificados) -, mas com um único (e honesto) objetivo: olharmos para nós mesmo e nos colocarmos na situação daquelas pessoas cujas histórias agora fazem parte da nossa própria vida.

    Todos merecem “Justiça” - ninguém mais que aquele telespectador que quase (eu disse “quase”) se acostumou a ser chamado de ingênuo e ouvir de produções quiçá preguiçosas de que: 1) ele sempre quer ouvir a mesma história (correto); 2) ele quer ouvir essa mesma história contada sempre do mesmo jeito (errado). Essa nova série está aí para demonstrar que essa é a verdade.

    E caso encerrado.

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.