Blog da Yvonne Maggie

Por Yvonne Maggie

Antropóloga. Professora emérita da UFRJ. Autora dos livros 'Guerra de orixá' e 'Medo do feitiço'


Mistério e computador — Foto: Arquivo Pessoal/Luiz Alphonsus

Durante muitos anos me correspondi por e-mail com um amigo que mora nos EUA. Nos conhecemos na juventude, mas naquele tempo tivemos pouco contato. Éramos muito diferentes. Ele comunista e eu meio hippie embora já professora e antropóloga iniciante. A internet facilitou nossa conversa, troca de ideias e apoio emocional. Conversávamos sobre assuntos pessoais e discutíamos temas de interesse comum: livros, filmes e vida. O que nos uniu mesmo foi a questão das cotas raciais.

Dediquei-me muito ao debate público sobre o tema, de 2001 até 2012, quando as cotas foram consideradas constitucionais pelo STF. Ao longo desses onze anos e talvez um pouco mais, nossa correspondência foi intensa. Com sua experiência nos EUA e sendo brasileiro ele tinha muito a contribuir. Escrevia em jornais e revistas estrangeiros e lia muito sobre o dilema americano no tocante à questão racial comparando-o com o nosso ideal da famosa "democracia racial". Tínhamos opiniões semelhantes em muitos aspectos. Sentia-me bem trocando minhas impressões sobre esse tema tão sensível com alguém vivendo outra realidade e quase vinte anos mais novo. Outra geração, outra formação, e um profissional com uma posição importante no mundo acadêmico.

Um dia me deu uma paranoia. Estava sendo muito atacada publicamente e sofria agressões pela internet e até ameaça de morte e de ataque por feitiçaria. O debate era cruel e fui bem desrespeitada inúmeras vezes. Contava tudo nessas mensagens. Falávamos abertamente sobre o tema das agressões e citávamos nomes. Perguntei aflita a meu amigo nos EUA: Você acha seguro conversar assim? Não é possível alguém invadir nossas máquinas? Ele me tranquilizou argumentando sobre a superproteção dos computadores.

Com base nesta suposição de segurança nossa correspondência foi intensa até 2013 quando fomos surpreendidos pelo caso Edward Joseph Snowden, ex-agente da CIA, ao revelar assuntos secretos do governo dos EUA. Nossos dados não tinham a mínima importância diante do tamanho das revelações do ex-agente da CIA. Éramos um grão de poeira no mar da espionagem política descortinada. Porém, mesmo sendo nossas mensagens absolutamente singelas, passamos a considerar nossos computadores frágeis meios de comunicação e, a partir daí, nos ativemos ao essencial.

Descobrimos que nossos celulares podem ser invadidos e podemos ser chantageados, como aconteceu recentemente com o filho de um amigo cujos dados foram roubados e os arquivos só devolvidos mediante pagamento alto em bitcoins. A ideia do universo democrático da internet e sua invulnerabilidade em comparação a cartas, telegramas ou fax foi por água abaixo.

Recentemente fomos acordados com revelações fulminantes sobre um juiz e alguns procuradores da operação Lava-Jato, ação judicial que, pela primeira vez na nossa história, prendeu importantes engravatados de colarinho branco. Ainda sem provas definitivas, foram noticiadas por um jornalista estrangeiro conversas e combinações de estratégias entre o juiz e procuradores. De repente os mocinhos viraram bandidos e os bandidos mocinhos, ou ao contrário, conforme nosso lado no coro da tragédia. Ai de nós!

Tenho saudades do tempo das cartas e também dos ladrões de galinha da minha infância. Escrevi muitas cartas ditadas por pessoas iletradas que começavam assim: "Venho por meio desta saber notícias de todos...". Os roubos conhecidos na minha infância eram pequenos furtos. Lembro de um praticado pelo mágico do circo instalado em um terreno baldio em frente à casa onde morávamos: o artista abriu todas as gavetas das mesas de cabeceira dos meus nove irmãos e ninguém acordou.

Hoje, os roubos revelados pela operação Lava-Jato foram feitos magicamente, mas não por ilusionistas de circo e sim por partidos políticos, por agentes públicos, por empresários. O tamanho dos roubos e furtos é extraordinário, impensável e destruidor e encheu malas, cuecas, apartamentos e contas em paraísos fiscais. Deus me livre, mas afanar assim o bem público merece prisão. Afinal, muito dinheiro já foi devolvido e isso prova fraude à nação, ou não?

Saudade das cartas inocentes e dos ladrões de galinha, mesadas ou mesmo relógios de pulso importados da Suíça.

Como disse certa vez o economista Pérsio Arida: "O mal é presença ubíqua e poderosa".

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!