Blog do Luciano Trigo

Por Luciano Trigo

Escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. E pai da Valentina.


Capa do livro "O templo" de Stephen Spender — Foto: Divulgação

A história do romance “O templo” (Editora 34, 240 pgs. R$ 56) é, de certa forma, mais interessante que a obra em si. Quando, aos 19 anos, Stephen Spender concluiu a primeira versão do manuscrito, no começo da década de 30, a legislação britânica ainda punia severamente a homossexualidade, de forma que, recusado pelo editor, o romance autobiográfico – e, para a época, escandaloso e pornográfico – foi prudentemente engavetado e esquecido.

Spender seguiu em frente, consagrando-se como poeta e consolidando sua amizade com alguns dos mais importantes escritores ingleses de sua geração, como C.S.Lewis, W.H.Auden e Christopher Isherwood. Em 1962, enfrentando dificuldades financeiras, ele decidiu vender o manuscrito de 297 páginas para a Universidade do Texas. Mais de vinte anos depois, uma carta de um pesquisador reacendeu seu interesse pela história, e Spender decidiu mudar a estrutura e reescrever parte do romance, que foi finalmente publicado na Inglaterra em 1988.

Fortemente baseado nas experiências vividas pelo autor em uma viagem de verão, “O templo” relata os anos da juventude do poeta Paul Schoner, que, em 1929, decide trocar Oxford por Hamburgo. Não há propriamente um enredo, apenas um registro dos relacionamentos (explicitamente ou implicitamente) homoafetivos do protagonista com outros jovens de perfil social e psicológico semelhante ao seu. Os diálogos, que consomem boa parte do texto, são contaminados por um certo tom de afetação e pedantismo aristocrático, e a narrativa, em geral, parece um pouco desequilibrada. Ainda assim “O templo” sustenta ainda hoje o interesse do leitor, no mínimo como documento de uma época conturbada, o entre-guerras europeu.

Sensível e sonhador, Paul vai para a Alemanha da República de Weimar em busca da liberdade sexual da qual carecia no ambiente opressivo da Inglaterra. Em Hamburgo, passa as noites em bares gays, em uma celebração festiva da literatura e da beleza. Esse paraíso hedonista, contudo, duraria pouco: a crise econômica já provocava os primeiros tumultos políticos que abririam o caminho para a ascensão do Nazismo – processo registrado na segunda parte do livro, “Rumo à escuridão”, menos interessante que a primeira. Na frustração subsequente do narrador-protagonista, há a sugestão, pouco aprofundada, de uma relação paradoxal entre o culto ao corpo – o corpo masculino como templo – da hedonista juventude alemã e a ascensão do novo regime.

Pouco lido no Brasil, Spender só pode ser compreendido e apreciado no contexto da sua geração, da sua época e do círculo literário ao qual pertenceu – círculo para o qual as questões ligadas à sexualidade tinham particular relevância. Nesse sentido, “O templo” vale mais pelos seus aspectos biográficos e documentais do que por seus méritos propriamente literários e ficcionais, sendo recomendada, para quem tiver interesse, a leitura de “World within world”, o livro de memórias do autor, publicado em 1951.

Curiosamente, depois de viver várias aventuras com homens na juventude, à medida que amadurecia Spender passou a se interessar por mulheres. Já em 1936 ele se casou com Inez Maria Penn, e seu segundo casamento, em 1941, com Natasha Litvin, parece ter marcado o fim de seus relacionamentos homossexuais. Nas décadas seguintes, até sua morte, em 1995, Spender dedicou algum tempo a retocar suas poesias, eliminando alusões homoeróticas. Um ano antes de morrer, o escritor processou seu colega David Leavitt, por ter usado trechos de suas memórias como inspiração direta para o romance “While England Sleeps”. Os dois fizeram um acordo, e Leavitt aceitou suprimir diversas passagens do texto.

Merecem citação o capricho da edição brasileira – que traz um encarte com fotografias de Herbert List, amigo de Spender, tiradas em Hamburgo no verão de 1929 (incluindo a fotografia da capa) – e a qualidade da tradução, assinada pelo diplomata Raul de Sá Barbosa.

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