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  • Namorada Invisível

    Invisible girlfriendProvavelmente em algum momento da sua vida você também já deve ter querido morrer ao se perceber, num almoço de domingo, como alvo preferencial de uma mesa repleta de parentes futriqueiros, tendo que responder a perguntas indiscretas, tais como “e o(a) namorado(a), cadê?”. Encurralado como o gladiador cara a cara com o leão numa arena da Roma Antiga, ciente de que a plateia, ávida por entretenimento, não aceitará um “não tenho namorado(a)” como resposta, você entra no jogo e recorre à alternativa mais fácil ao responder “não pode vir hoje, mas no próximo almoço vai estar aqui com certeza!”.

    A estratégia adotada, sem dúvida, evitou uma série de questionamentos intermináveis e vexatórios sobre sua vida afetiva, que poderiam rapidamente o qualificar como uma pessoa problemática ou solitária, mas, como diz o conhecido ditado, a mentira tem pernas curtas. E eis que, de uma hora para a outra, você se vê obrigado a sustentar uma farsa perante as pessoas que mais estima, apenas porque ficou com preguiça – ou mesmo porque não convinha contar a verdade. Tendo por inspiração casos como o citado, na semana passada foi disponibilizado ao público nos Estados Unidos um serviço que promete dar um fim definitivo a esse martírio: a Invisible Girlfriend (namorada invisível).

    Como o próprio nome sugere, a partir de uma assinatura mensal que começa em  R$65, a plataforma oferece pacotes de interações virtuais programadas – "apenas conversando", "ficando sério" e "quase comprometido" são algumas das opções – com uma mulher de carne e osso, que fingirá ser a companheira dos seus sonhos e, de acordo com a descrição no site do produto, “o ajudará a criar histórias críveis para mães, amigos e colegas curiosos”.

    Ao se inscrever, é possível escolher nome, idade, foto, interesses e traços de personalidade da sua alma gêmea, assim como se é loira ou morena, alta ou baixa e até mesmo a forma como vocês supostamente se conheceram. Aprovado o débito em seu cartão, o primeiro sms é enviado e... Voilá!

    Por trás do conceito de amor perfeito, capaz de causar inveja a todos que antes atiravam olhares desconfiados aos potenciais clientes, esconde-se uma realidade nada romântica: a namorada invisível não é uma única, mas sim várias mulheres que se cadastraram para, em troca de alguns centavos, realizar pequenas tarefas na web, tais como organizar catálogos de livros digitais, identificar números em imagens distorcidas, decifrar textos ilegíveis e, é claro, enviar para desconhecidos mensagens apaixonadas passíveis de serem socialmente comprováveis.

    Apesar das múltiplas interlocutoras, a coerência da conversa se mantém a partir da consulta a dados cadastrais e ao registro das conversas anteriores, sempre lembrando que o objetivo não é despertar sentimentos nos que pagaram pelo serviço, mas sim ajudá-los a convencer amigos e parentes de que efetivamente possuem uma namorada. De acordo com seus criadores, apenas durante o primeiro dia no ar, a plataforma recebeu mais de 5 mil inscrições, números que por si só sustentam a previsão de que, em breve, estarão disponíveis outras modalidades de interação, como cartas escritas à mão e mensagens de voz.

    Impossível não fazer a associação imediata com “Ela”, filme de Spike Jonze em que Theodore, personagem interpretado por Joaquin Phoenix, se apaixona por um sistema operacional customizado para se materializar como sua cara metade. Seria a Invisible Girlfriend de hoje o primeiro passo em direção a um inevitável futuro em que relações amorosas reais e virtuais não se distinguem? E quem aí ousaria duvidar que já já vai ter um bando de marmanjo carente e solitário aos prantos porque não têm mais dinheiro para namorar as mulheres que eles próprios criaram? Sinal dos tempos.  

    Crédito: Divulgação

  • A Fórmula do Amor (em 36 etapas)

    Fórmula do amorO senso comum determina que relacionamentos amorosos duradouros se estabelecem a partir de anos de convivência, prazo imprescindível para que a intimidade, o carinho e a confiança se estabeleçam. O sucesso deste longo projeto estaria, portanto, vinculado à uma espécie de afinidade predestinada dos envolvidos e, quanto a isto, pouco ou nada há a fazer senão confiar no imponderável. Foi assim com nossos avós e pais, como assim também será um dia com nossos netos e os netos deles.

    Mas e se alguém provasse que o amor é um processo pró-ativo, cujos aspectos determinantes podem ser provocados, acelerados e manipulados entre as duas pessoas que desejam se apaixonar a partir de uma série de perguntas que não tomam mais do que 40 minutos?

    Loucura? Pois esse foi o tema central do trabalho de Arthur Aron, psicólogo e professor da Universidade de Nova Iorque, que em 1997 desenvolveu um experimento que agora vem se espalhando feito fogo em palha na web, a partir da recente publicação de um artigo entitulado “To Fall in Love With Anyone, Do This”, em livre tradução, “Para apaixonar-se por qualquer um, faça isso”.

    Segundo a teoria, existe um processo estruturado capaz de gerar intimidade entre dois indivíduos quaisquer em curto prazo de tempo, contanto que ambos estejam pré-dispostos a isto. Para comprovar sua hipótese, Aron criou dois grupos distintos de pessoas que deveriam conversar, aos pares, durante 45 minutos. O primeiro interagiu de maneira livre, sem qualquer intervenção do pesquisador, já ao segundo foi sugerido seguir um roteiro contendo 36 perguntas que gradativamente se tornavam mais e mais íntimas.
    E quem se surpreenderia com o fato de que, ao final do questionário, os integrantes do segundo grupo declararam-se mais conectados uns aos outros? Um dos pares, inclusive, ainda era um casal seis meses após se conhecerem na ocasião do experimento.

    A desconfiança em relação à real eficácia do controverso método foi o que estimulou Mandy Len Catron a escrever o tal artigo que ganhou notoriedade semana passada, este em que narra sua tentativa de aplicar o conjunto de perguntas criado há 18 anos num laboratório como estratégia para se aproximar de uma garota num bar. Em seu relato, o jornalista afirma não ter se dado conta da rapidez com que se colocou num nível de vulnerabilidade incomum para um primeiro encontro: “Eu não percebi que tínhamos entrado em território íntimo até já estarmos lá. Esse é um processo que normalmente poderia levar semanas, ou até meses."

    Embora reconheça a fragilidade de atribuir ao experimento apenas o fato de ter conseguido "se dar bem", Catron reconhece que, ainda que não tenha feito brotar do nada uma paixão, o questionário ao menos serviu para que ele e sua pretendente pudessem rapidamente transpor as habituais barreiras que retardam o início dos relacionamentos amorosos: “Eu passei a achar que o amor é uma coisa bem mais maleável do que pensamos ser. O estudo de Arthur Aron me mostrou que é possível – e até mesmo simples –  gerar confiança e intimidade, sentimentos indispensáveis ao amor”.

    Bom, para quem ficou curioso, aí vão as 36 perguntas que supostamente fazem qualquer casal se apaixonar quase que de forma instantânea. Ideal para testar com o(a) ficante-pretendente-a-namorado(a):

    set 1

    1. De todas as pessoas do mundo, quem você gostaria de convidar para jantar?

    2. Você gostaria de ser famoso? De que maneira?

    3. Você já ensaiou o que ia dizer antes de fazer uma ligação telefônica? Por quê?

    4. O que seria considerado um dia "perfeito" para você?

    5. Quando foi a última vez que você cantou para si mesmo? E para outra pessoa?

    6. Se você vivesse até os 90 anos e pudesse manter ou o corpo ou a mente de alguém com 30, o que você escolheria?

    7. Você tem algum palpite de como irá morrer?

    8. Nomeie três coisas que você e seu parceiro(a) parecem ter em comum.

    9. A que você se sente mais grato na vida?

    10. Se você pudesse mudar alguma coisa sobre a maneira como foi criado, o que seria?

    11. Conte em 4 minutos ao seu parceiro(a) a história de sua vida com o máximo de detalhes possível.

    12. Se você pudesse acordar amanhã tendo ganho qualquer qualidade ou habilidade, qual seria?

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    13. Se você pudesse, através de uma bola de cristal, conhecer a verdade sobre si mesmo, sua vida, o futuro ou qualquer outra coisa, o que você preferiria saber?

    14. Existe alguma coisa que você já sonhou por um longo tempo fazer? Por que você não fez isso?

    15. Qual foi a maior realização da sua vida?

    16. O que você mais valoriza em uma amizade?

    17. Qual é a sua lembrança mais querida?

    18. Qual é a sua lembrança mais terrível?

    19. Se você soubesse que iria morrer dentro de um ano, mudaria alguma coisa sobre a maneira com que está vivendo agora? Por quê?

    20. O que a amizade significa para você?

    21. Que papel exatamente o amor e o afeto têm em sua vida?

    22. Alternadamente, compartilhe 5 características positivas que você enxerga em seu parceiro(a) e vice-versa.

    23. O quão unida e acolhedora é a sua família? Você sente que sua infância foi mais feliz do que a da maioria das outras pessoas?

    24. Como você se sente a respeito do seu relacionamento com sua mãe?

    set 3

    25. Façam cada um três declarações que envolvam o pronome "nós". Por exemplo, "Nós dois estamos nesta sala sentindo _______."

    26. Complete a frase: "Eu gostaria de ter alguém com quem pudesse compartilhar _______."

    27. Se você estivesse caminhando para se tornar um grande amigo do seu parceiro(a), compartilhe o que seria importante ele ou ela saber.

    28. Diga ao seu parceiro(a) o que você mais gosta sobre ele; seja muito honesto, citando aspectos que não deveriam ser mencionados por pessoas que acabaram de se conhecer.

    29. Compartilhe com seu parceiro(a) um momento embaraçoso de sua vida.

    30. Quando foi a última vez que você chorou na frente de outra pessoa? E sozinho?

    31. Diga ao seu parceiro(a) algo que você já gosta dele(a).

    32. Existe alguma coisa que é muito séria para se brincar a respeito?

    33. Se você fosse morrer esta noite e não tivesse como se comunicar com ninguém, o que você mais se arrependeria de não ter dito a alguém? Por que você não disse?

    34. Se sua casa pegasse fogo, depois de salvar entes queridos e animais de estimação, que item você escolheria resgatar? Por quê?

    35. De todas as pessoas de sua família, qual destas a morte lhe seria mais perturbadora?

    36. Compartilhe um problema pessoal e peça um conselho ao seu parceiro(a). Na sequência, peça o para te dizer como você aparenta estar se sentindo em relação ao problema escolhido.

    Se alguém resolver experimentar a eficácia das perguntas, por favor, não esqueça de compartilhar o resultado...

    Imagem: Montagem/Bruno Medina

  • O buraco é 5 graus acima

    Calor de 41º em São Paulo
    Como é comum a todo início de ano, 2015 também chega de mansinho mostrando a sua cara, com aquele jeitão de primeira visita à casa da sogra, onde as duas partes – para não restar dúvidas, no caso, nós somos a sogra e 2015, o genro – se estudam e se cercam de gentilezas para evitar pisar no calo alheio e causar má impressão logo na largada.

    Apesar de todo zelo, no entanto, nestes primeiros dias, nosso ilustre convidado não tem conseguido evitar a gafe de estar associado a uma desagradável peculiaridade sua que, até então, tem se traduzido como uma espécie de assinatura; para os mais pessimistas como eu, o prenúncio de um longo e tenebroso verão, este que já vem sendo chamado de “O Verão da Sensação Térmica”.

    Sim, todos nós sabemos que esta época do ano pode ser particularmente quente em grande parte do Brasil e, a bem da verdade, nem mesmo a tal sensação térmica como fator de multiplicação de frio ou calor chega a representar uma novidade, mas, ao menos aqui no Rio, a impressão que dá é a de que nunca antes ela foi tão determinante em nossos destinos.

    Posso até estar enganado, mas, vai ver que devido a precariedade dos instrumentos de medição, até bem pouco tempo 38°C era 38°C mesmo, não tinha muito o que inventar; agora, com essa nova moda, o pobre do sujeito tem dois desgostos, se espantar com a temperatura oficial e, depois, mais ainda com a sensação térmica.

    Na prática, trata-se de um daqueles casos em que a ignorância parecia ser um santo remédio, afinal, de que me serve saber que um ser humano no aconchego de seu próprio lar pode estar sendo lentamente cozido na poltrona da sala a uma temperatura real de 48°C? Não só eu como muita gente nem sabia que os termômetros podiam chegar a esses patamares e, francamente, éramos mais felizes assim, acreditando, quando crianças, que a música “Rio 40 Graus” da Fernanda Abreu fora inspirada pelo ápice de calor que alguém poderia vir a sentir na vida.

    No mais, acho que essa história de sensação térmica pra lá e pra cá acaba arranhando a credibilidade dos termômetros, que correm sério risco de se tornarem meros indicadores de um parâmetro incompleto que, por si só, não quer dizer nada. Por outro lado, não posso também deixar de constatar a irônica beleza que existe no fato desse conceito combinar tão bem com a nossa cultura, onde quase sempre o que prevalece é a informalidade e 2+2, às vezes, é 5.

    Se há leis que pegam e outras não, o oficial e o paralelo, o “mas é só pra inglês ver”, o “faça o que eu digo, mas não o que eu faço”, por que não botar aí nessa lista a temperatura “do termômetro” e a “sensação térmica”, né? Pensando bem, essa aparente dissonância entre duas realidades distintas e complementares pode se revelar uma boa metáfora para traduzir uma série de situações do dia a dia.

    Exemplificando: antes de chegar à festa, você manda um whatsapp para o amigo perguntando se ele acha que depois da meia noite pode rolar “uma sensação térmica” ou se vai ficar todo mundo “no termômetro” mesmo. Ou então, ao brigar com o marido, a esposa liga aflita para o filho e pergunta a “sensação térmica” da bronca do pai em comparação a “do termômetro”.

    Não seria, portanto, nenhum absurdo imaginar que, no futuro, 2015 pode vir a ser lembrado por duas coisas especificamente: ter abrigado um verão quente pra cacete e, mais uma vez, ter nos relembrado de que o buraco é mesmo sempre mais embaixo, ou melhor, 5°C acima ...

    *Foto: Nelson Antoine/Fotoarena/Estadão Conteúdo

  • As mentiras que nunca cansaremos de contar

    Natal do Bruno MedinaNo exercício de tentar recuperar alguma história curiosa do Natal na minha infância que desse pano para a manga de um bom post, cheguei a surpreendente conclusão de que não me recordo em absoluto da circunstância em que evidenciou-se para mim o fato de que Papai Noel não existia.

    Por mais que nem todo mundo tenha tido o desprazer de identificar os traços familiares do rosto de um tio por trás da barba mal feita de algodão, de acordar de madrugada e testemunhar a própria mãe colocando os presentes em torno da árvore ou de ser vítima de um primo estraga prazeres em fase de autoafirmação, a verdade é que este costuma ser um marco significativo para muitos, na medida em que consiste em desvendar a primeira de várias mentiras que ao longo da vida pessoas queridas contarão para você – a segunda é “você é a criança mais inteligente que já conheci”.

    Assim sendo, fiquei pensando cá com meus botões se eu não seria uma espécie de aberração, alguém que, diferentemente de todo o resto da civilização cristã, não sentiu nada em especial ao se dar conta de que um dos ícones mais incríveis da infância se tratava de uma grande farsa, ou, pelo contrário, se sou como a maioria das pessoas, que superaram o mito do Papai Noel sem muito alarde, no hiato entre um filme da Sessão da Tarde e uma partida de videogame.

    Olhando para a mesma situação, agora sob a perspectiva dos meus filhos, percebo o privilégio que é poder embarcar na fantasia de que existe um velhinho bonzinho que passa o ano cercado de duendes no Polo Norte fabricando presentes para todas as crianças do planeta, os quais ele mesmo vai entregar pessoalmente na noite de Natal, à bordo de um trenó voador puxado por renas.

    E basta um "ho, ho, ho" no hall do elevador, 3 batidas consistentes na porta e um saco de cetim vermelho cheio de presentes largado no chão pra sustentar perante aos potenciais desconfiados a história mais inverossímil que um dia se pode conceber, mas que, ainda assim, é passada adiante há centenas de anos, geração após geração.

    Frente à evidência tão clara, não é preciso de muito para perceber que a tradição só se tornou viável porque, apesar de se direcionar a crianças, é entre nós, os adultos, que se respalda, possivelmente porque, através da alegria dos pequenos, revivemos a nossa própria, esta que se perdeu para sempre numa tarde qualquer, quando nem tínhamos ainda todos os dentes definitivos na boca.            

    É bem provável que hoje à noite na minha casa aconteça tudo do mesmo jeito, "ho, ho, ho" batidas na porta, saco de presentes no chão, e assim será por mais uns poucos anos, até o dia em que, orgulhosos, meus filhos virão me contar o que descobriram sobre Papai Noel. Se ainda assim, na iminência de ver a melhor parte da infância escapulindo pelos dedos deles, eu tiver o reflexo de negar, a tese será derrubada com os óbvios argumentos cabíveis, sem qualquer chance de réplica da minha parte.

    Aí então a mim só caberá reconhecer a mentira deslavada, forjar um sorriso e dizer, da maneira mais convincente que eu puder, que eles são as crianças mais inteligentes que já conheci.

    Sendo ou não criança, acreditando ou não em Papai Noel, feliz Natal para todos nós!

    Foto: Bruno Medina, aos 5 anos, desconfiando que há algo de muito estranho no ar

  • A cenoura e o burro

    Montagem
    "Reconfortado" é, sem dúvida, a palavra que melhor descreve meu estado de espírito ao constatar que, enquanto boa parte da população do ocidente se descabela em busca de presentes para seus entes queridos, posso me dar ao luxo de manter a serenidade, respaldo pela constatação de ter cumprido meu dever ainda na primeira semana de dezembro. A verdade é que as compras de Natal seriam um tema absolutamente superado para mim não fosse um pequenino detalhe que me impede de encerrar em definitivo este breve e enfadonho período que separa a primeira parcela do 13° das rabanadas: os R$ 22 em notas fiscais que me faltam para ter direito a um cupom no sorteio de 6 carros do shopping.

    Preciso admitir que tenho tido até certa dificuldade para dormir ao lembrar que os R$ 488 em créditos acumulados com sacrifício serão jogados no lixo se nos próximos dias eu não forjar, de alguma maneira que ainda não sei, a coragem necessária para imergir naquela Sodomo e Gomorra do consumismo – onde, a essa altura, pobres almas se esbofeteiam por camisas polos listradas, necessaires, caixas de bombom e brinquedos dos quais mal conseguem pronunciar os nomes – e fazer justiça à minha sorte.

    Pois eu, que nunca joguei na loteria, comprei uma rifa (sem ser coagido por terceiros) ou participei de concursos para concorrer ao que quer que fosse, simplesmente não consigo deixar para trás a chance de ganhar um carro que, pensando bem, nem quero. Eis o que esses marqueteiros perversos fizeram comigo: onde antes não havia sequer a aspiração, agora há um sentimento de perda, só que de algo que eu nunca quis de fato, exatamente como quando se coloca uma cenoura na ponta de um galho para estimular o burro a andar para frente. Ainda que não esteja com fome, ele não resiste a um lanchinho aparentemente tão ao alcance. Comovido com meu drama particular, o pragmático leitor pensa em me consolar através da seção de comentários deste blog, alegando que a probabilidade matemática de levar o prêmio é desprezível, afinal, quem aí conhece alguém que já ganhou um carro no shopping, né?

    Eu conheço. E o pior é que não era qualquer carro não, foi uma dessas SUV top de linha que a pessoa vendeu antes mesmo de pegar na concessionária, sem ao menos se dar ao trabalho de anunciar. Não fosse esta genuína materialização da oportunidade desperdiçada, há ainda o desafio de atingir apenas a soma necessária para ter direito ao bilhete sem deixar uma grana como crédito a ser completado (sob risco de reiniciar o ciclo), ou você acredita que atualmente dentro de um shopping existe alguma coisa que custe menos do que R$ 50?

    No afã de resolver o impasse e alcançar a almejada paz de consciência, sondei quem se dispusesse a apresentar os benditos R$ 22 em notas fiscais e atrelá-los ao meu CPF, quem sabe quando este sujeito caridoso fosse enfrentar a fila para levar as suas próprias. Ledo engano. Em todas as abordagens o favor foi encarado com estranhamento semelhante ao evidenciado quando se pede uma escova de dentes emprestada, em resumo, uma daquelas coisas que, por mais intimidade que se tenha, não se pede a ninguém. Bem, ao que tudo indica, as alternativas que me restam são duas: esquecer de uma vez essa história toda e torcer para que a benção da sorte recaia sobre alguém que a mereça mais do que eu ou me atirar de cabeça num shopping lotado faltando uma semana do Natal, imaginando que este sacrifício por si só me habilite perante aos céus como merecedor do prêmio...

    *Fotos: Montagem/Bruno Medina

Sobre a página

Bruno Medina é músico da banda Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Nascido no Rio de Janeiro, formou-se em comunicação pela PUC-RJ, mas a música nunca permitiu que chegasse ao mercado publicitário. Começou a tocar piano e escrever histórias ainda criança, sendo que as duas aptidões o acompanham desde então.