• Um encontro com o cavaleiro do apocalipse: um dos homens que jogaram a bomba atômica em Hiroshima, ‘o ato mais violento da história da humanidade’

    O último tripulante do Enola Gay, o avião que jogou a bomba atômica em Hiroshima, na segunda Guerra Mundial, morreu aos noventa e três anos, neste final de julho, nos Estados Unidos. Vai ser enterrado no dia cinco de agosto.

    Vasculho os arquivos das andanças deste repórter. Eis o relato de um encontro com o homem que participou diretamente de um ato devastador - que dividirá para sempre as opiniões:

    Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.

    Enquanto saboreia a pera que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.

    A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado voo, na madrugada de seis de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.

    Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.

    A missão que Theodore Van Kirk cumpriu em 1945 mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” - diz Bob Greene, autor do livro-reportagem “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” - um jornalista que, desde criança, era fascinado pela Missão Hiroshima.

    Que fantasmas povoam hoje os dias calmos do homem que colhe peras no pomar?

    Se ele não tivesse embarcado para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.
    É o que faço agora. Van Kirk nos recebe - a mim e ao cinegrafista Sherman Costa - com um sorriso largo, uma pergunta bem-humorada (“Vocês conseguiram chegar? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento!”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.

    Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no voo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:

    - A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o voo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.

    Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:

    - Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolas para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.

    Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki - obrigou o Japão à rendição incondicional. Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.

    Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?

    Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:

    - Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!

    A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir - por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens, mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem - uma bomba atômica.

    O avião Enola Gay levanta voo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantaneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145 mil no final de 1945.

    “Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em "Hiroshima", texto clássico sobre a hecatombe.

    “Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso ter causado tanta destruição (...) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos.”

    A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:

    - A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia....

    Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer - entraria para a História da humanidade:

    - Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o voo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk. – Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria....”. A turbulência durou pouco. O voo de volta pôde continuar.

    O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida, em última instância, em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.

    “Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores".

    A visão era bonita? – pergunto ao navegador.

    “Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.

    Adiante, ele aprofunda a descrição:

    - Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.

    O que é que a palavra Hiroshima significa para este homem?

    “Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz. É uma mensagem que vai para todo o mundo”.

    Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?

    - Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.

    Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem, então, lançar uma segunda bomba atômica. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro

    Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:

    - Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.

    Faria tudo de novo?

    - Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. – Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem: um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as Forças Armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.

    Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?

    - Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.

    Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não: Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.

    Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos "soldados" de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações desse tipo.

    - Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar: que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra, mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria. Nunca. Nunca.

    Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive com a mulher - parcialmente inválida.

    Em seus momentos de solidão, Van Kirk se lembra das vítimas da bomba?

    - Eu hoje me lembro das vítimas com menos frequência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.

    Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima: o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.

    É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouvi-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios - como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.

    ( A entrevista foi gravada em 2003, para o Fantástico)

  • Aviso aos jornalistas: é hora de louvar Nossa Senhora do Perpétuo Espanto

    Oração a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, a "padroeira" dos jornalistas:

    "Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
    Que eu possa manter os sentidos atentos para perceber o novo
    e a memória viva para preservar o passado.

    Senhora do Perpétuo Espanto, aconselha-nos.
    Que me espante aquilo que é espantoso,
    que eu ignore o que é banal
    e valorize o que que tem valor.

    Senhora do Perpétuo Espanto, iluminai-nos.
    Que meu coração sofra com o sofrimento do meu irmão,
    alegre-se com sua alegria e inquiete-se com sua indiferença.

    Senhora do Perpétuo Espanto, nos dê forças.
    Que eu encontre a palavra certa para dividir minhas dores
    medos e alegrias, pois a arte requer comunhão.

    Senhora do Perpétuo Espanto, guiai-nos;
    Que eu saiba mais ver do que aparecer,
    mais ouvir do que falar.

    Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
    Que eu tenha a ira para não aceitar o inaceitável,
    a tolerância para perdoar o que merece perdão
    e a sabedoria para distingui-los.

    Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
    Que eu creia sempre no valor da verdade
    e esteja atento ao perigo das certezas.

    Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
    Que, onde houver certezas, eu leve a dúvida.

    Senhora do Perpétuo Espanto, protegei-nos"

    Eu poderia dizer que a história da Oração à Nossa Senhora do Perpétuo Espanto é esta:

    Aconteceu no século XVII: era uma vez um peregrino que foi acusado de ser um saqueador.

    A acusação logo se espalhou por Florença: de acordo com o "Notícias Florentinas", o forasteiro que dizia estar procurando, na cidade, um exemplar da Bíblia de Gutemberg que tinha sumido de uma biblioteca da Baviera era, na verdade, um impostor - um reles saqueador que atacava viajantes noturnos.

    A notícia publicada pelo jornal, no entanto, não passava de um boato, nascido numa roda de bêbados que frequentavam diariamente uma taverna vagabunda, numa transversal da Piazza della Signoria.

    Por azar, o peregrino tinha estado na taverna, uma semana antes, em busca de pistas sobre o exemplar perdido na Bíblia. As perguntas que ele fez aos frequentadores da taverna deram origem ao boato absurdo. Publicada a notícia, ele foi escorraçado por frequentadores – bêbados e sóbrios – quando voltou à taverna. Teve de fugir, às pressas, em busca de um lugar minimamente seguro para se abrigar.

    Terminou acolhido por monges da igreja de Santa Maria Novella. Ficou escondido por uma noite no chão do confessionário – onde ninguém poderia vê-lo.

    Quando, pela manhã, os monges o procuraram, para tentar entender aquela fantástica teia de boatos, delírios e incompreensões, ele tinha sumido para sempre – mas deixou, no chão do confessionário, o rascunho do que viria a ser a Oração a Nossa Senhora do Espanto.

    Os monges, a princípio, não deram importância especial ao manuscrito, mas, diante da onda de boatos sobre o peregrino, resolveram guardar aquelas anotações no cofre da igreja, porque elas poderiam ser úteis numa possível investigação. Mas o caso foi logo esquecido.

    Duzentos anos depois, no início do Século XIX, uma comissão de notáveis do Instituto do Patrimônio Histórico de Florença foi encarregada de avaliar o conteúdo do cofre – mantido sob a guarda de gerações sucessivas de monges. O manuscrito foi minuciosamente estudado.

    O estabelecimento do texto definitivo da oração exigiu um grande esforço de calígrafos, convocados para decifrar uma grafia marcada por letras trêmulas, rabiscos aparentemente sem sentido e palavras superpostas umas às outras.

    Terminado o trabalho de decifração, os calígrafos asseguraram ao Instituto do Patrimônio Histórico de Florença que conseguiram traduzir o original com cem por cento de fidelidade. É provável que o peregrino tenha escrito a oração durante as horas de insônia, no chão do confessionário, à luz de um candeeiro, o que explicaria os solavancos na grafia.

    Jamais se soube do nome do peregrino – mas ele nos presenteou com este pequeno, mas valiosíssimo legado: a Oração que escreveu sobre quais devem ser os credos do jornalista.

    Nossa Senhora do Perpétuo Espanto deveria ser entronizada nas redações como guia e padroeira dos jornalistas – que, todo dia, antes de sair de casa, deveriam fazer um juramento íntimo: jamais deixar de se espantar diante do Grande Espetáculo da Vida. Porque este Espetáculo – que acontece, neste exato momento, nas ruas, nas favelas, nas florestas, nos parlamentos, nos palcos, nos desertos, nos sertões, nos estádios – pode ser, sim, espantoso, surpreendente e arrebatador. Movidos por este credo, os jornalistas poderão oferecer aos leitores, ouvintes, telespectadores e internautas um jornalismo igualmente espantoso, surpreendente e arrebatador – e não um jornalismo burocrático, chato, vaidoso, cinzento, sonolento, pretensioso e sem graça.

    *****

    A história da Oração à Nossa Senhora do Espanto poderia ser descrita assim, se eu fosse um candidato a roteirista ou ficcionista. Não sou. Em nome da fidelidade aos fatos, então, devo confessar que a história da Oração é muitíssimo mais prosaica.

    Num depoimento que gravei para o documentário que o cineasta Jorge Furtado estava fazendo sobre jornalismo ("O Mercado de Notícias", a ser lançado nas próximas semanas), lembrei que um escritor americano chamado Kurt Vonnegut uma vez citou, num livro, uma santa que jamais existiu: Nossa Senhora do Perpétuo Espanto.
    Propus, no depoimento, que ela fosse eleita padroeira dos jornalistas, pelo que o nome evoca: espanto, espanto, espanto. É o que os jornalistas jamais deveriam perder. Mas, lastimavelmente, perdem – com espantosíssima frequência.

    Jorge Furtado simpatizou com a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Num momento de grande inspiração, escreveu a Oração. Não satisfeito, mandou imprimir "santinhos" com o texto – que será distribuído aos espectadores do documentário.

    Pedi que Jorge lesse o texto da Oração para a plateia que assistiu, esta semana, a uma sessão especial do filme, no Midrash Centro Cultural, no Leblon.

    (estavam no auditório lotado Caetano Veloso e o jornalista Jânio de Freitas).

    Nossa Senhora do Perpétuo Espanto foi entusiasticamente aplaudida.

    Bom sinal. Que tenha, então, vida longa.

    Tomara que Nossa Senhora do Perpétuo Espanto inspire jornalistas – novatos ou dinossauros – a "mais ver do que aparecer", a "mais ouvir do que falar", a "não aceitar o inaceitável", a "sofrer com o sofrimento" do próximo, a "inquietar-se com a indiferença", a "ignorar o que é banal", a "manter os sentidos atentos para perceber o novo" e a "memória viva para preservar o passado".

    Se conseguir espalhar inspiração, ela merecerá que as chamas de mil velas ardam em louvor a ela nas redações do Brasil.

  • A 'Lista de Ouro' de Suassuna: criadores que merecem o trono da cultura brasileira

    É hora de repassar as palavras de Ariano Suassuna. Durante quarenta anos (!), o locutor-que-vos-fala incomodou Ariano Suassuna com questionários sem fim. E ele nunca deixou de atender a um pedido de entrevista. Ainda bem.

    (Pequena divagação: que outra coisa pode fazer um repórter, além de tentar passar adiante - da maneira mais fiel e mais atraente possível - o que ouviu e viu? É pouco, pouquíssimo – mas pode ser útil como contribuição, mínima que seja, para "produção de memória". Guardei o que Ariano Suassuna disse nessas entrevistas todas - é claro. Um dia, quem sabe, consigo reunir todo o material num "livro de papel" ou num território virtual como este. Daria um painel interessante. Faço uma pequena expedição aos meus arquivos não tão implacáveis: as primeiras entrevistas com Ariano Suassuna foram feitas em torno de 1974. Tinha meus dezessete para dezoito anos. Suassuna não tinha, ainda, um fio de cabelo branco. Dou um suspiro de espanto e incredulidade: quanto tempo!)

    Ariano tinha sempre muitíssimo a dizer sobre a literatura e o Brasil. Não se trancafiava numa redoma literária. Fazia questão absoluta de intervir no debate cultural brasileiro. Ao longo do tempo, arrebanhou devotos e desafetos. Vai continuar dividindo opiniões.

    Uma vez, em meados dos anos 1990, pedi a ele que fizesse uma lista dos nomes da cultura brasileira que, para ele, representavam melhor o Brasil.

    Ariano me deu uma lista com exatamente 20 nomes. Tratou de corrigir um equívoco que, segundo ele, cercava suas investidas em defesa da arte popular: o que ele estava defendendo não era a valorização de algo rústico ou primário. Pelo contrário, dizia que há, em manifestações da arte popular brasileira, exemplos espantosos de qualidade literária.

    Eis a íntegra da entrevista:

    Autor de um dos mais belos livros publicados nas últimas décadas no Brasil, o imerecidamente pouco conhecido ''Romance d´A Pedra do Reino'', o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna vem se dedicando a uma grande tarefa. Em nome da defesa da cultura brasileira contra a infiltração do ''lixo cultural'' despejado goela abaixo em países satélites, como o Brasil, Ariano vem se dedicando a uma cruzada solitária em defesa de manifestações da criatividade popular.

    O cruzado Ariano se esquece até de que tem horror a viajar. Há pouco tempo, foi parar no Rio Grande do Sul para dar uma ''aula-espetáculo'' – uma façanha digna de registro, na biografia de um homem que se contenta em ver aviões em fotografias. Segunda tarefa: conhecido como autor do ''Auto da Compadecida'', texto teatral que virou até filme dos Trapalhões, este sertanejo da Paraíba radicado há décadas no Recife pretende lançar em breve um livro em que simplesmente recria e reescreve tudo o que já produziu na vida. A tarefa se arrasta há anos. Não é para menos. Nesta entrevista, além de acusar de ''equivocados'' os que defendem a abertura dos portos ao ''lixo cultural'' estrangeiro, ele faz uma lista dos artistas e escritores que, segundo ele, realmente representam o Brasil.

    O chamado ''gosto médio'', a que o senhor se refere com desprezo, é "pior do que o mau gosto''. Quais são, na produção cultural brasileira de hoje, os piores exemplos da vitória do ''gosto médio'' sobre a qualidade artística?

    ARIANO SUASSUNA: '' O gosto médio a que me refiro é ligado àquele mesmo lixo produzido pela indústria cultural de massas. É fácil identificar na produção cultural brasileira de hoje quem segue tais padrões ou com eles se acumplicia''.

    Há quem diga que quem defende a preservação da chamada ''arte popular'' defende, na verdade, a manutenção da pobreza. Porque, se conseguissem vencer a pobreza e se tivessem acesso à educação, os artistas populares certamente deixariam de produzir obras formalmente rústicas e primitivas. O que o senhor diz a estes críticos?

    ARIANO SUASSUNA: "Digo, em primeiro lugar, que se realmente a opção fosse esta, eu não teria dúvida: seria melhor que a injustiça desaparecesse, mesmo que a Arte Popular desaparecesse com ela. Mas acontece que este é somente um sofisma, criado por pessoas que, na verdade, detestam as manifestações populares da nossa Cultura. Em segundo lugar, eu gostaria de refutar o lugar-comum segundo o qual as obras criadas no âmbito na Arte Popular são necessariamente rústicas e primitivas quanto à forma. Veja-se, por exemplo, a seguinte Décima que poderia ter sido escrita por Calderon de la Barca - e é do cantador Dimas Batista:

    'Na vida material
    cumpriu sagrado destino :
    o Filho de Deus, divino,
    nos deu glória espiritual.
    Deu o bem, tirou o mal,
    livrando-nos da má sorte.
    Padeceu suplício forte,
    como o maior dos heróis.
    Morreu pra dar vida a nós:
    a vida venceu a morte.'

    Ou então esta, que Mallarmé assinaria :

    'No tempo em que os ventos suis
    faziam estragos gerais,
    fiz barrocas nos quintais,
    semeei cravos azuis.
    Nasceram estes tafuis,
    amarelos como cidro.
    Prometi a Santo Izidro,
    com muito jeito e amor,
    leva-los, quando lá for,
    em uma taça de vidro.'

    Assim, caso os Poetas, hoje populares, recebessem educação universitária, o que poderia acontecer é que passassem todos a compor seus versos com o rigor das duas Décimas citadas. Não acredito que o Povo pobre do Brasil perdesse a força criadora caso melhorasse de vida. Melhorou, na China – e nem por isso o Teatro nacional e popular chinês desapareceu ou piorou. Pelo contrário. Ou, para falar em termos brasileiros: J. Borges é um grande gravador popular. Se tivesse tido formação ''erudita'', continuaria a ser o grande artista brasileiro que é, somente tratando seus universos pessoais e peculiares com o rigor formal de um Gilvan Samico''.

    Quem é, afinal, para o senhor, o artista que, em qualquer área de produção cultural brasileira, melhor representa o Brasil?

    ARIANO SUASSUNA: ''Artes plásticas: Aleijadinho, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Artes cênicas: Antonio José da Silva, o Judeu; Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Literatura: Euclydes da Cunha, Augusto dos Anjos. Música: José Mauricio Nunes Garcia, Villa-Lobos, Guerra Peixe, Ernesto Nazaré, Capiba e Antônio José Madureira. Vídeo e cinema: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Vladimir Carvalho, Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho''.

    O senhor reclama de que ''o patrocínio de multinacionais nos eventos é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais''. Quais são os patrocínios ou promoções que o senhor considera exemplos de ''tentativas de suborno''?

    ARIANO SUASSUNA: ''Recusei indicações para o Prêmio Shell e para o Sharp. Recusei-me a participar da Bienal Nestlé de Literatura. Não fui eu que passei a notícia das recusas para os jornais, porque não fiz isto para me exibir nem para incorrer em falta de fraternidade com escritores e artistas que não têm as mesmas ideias nem as mesmas condições que eu tenho. Tais condições me deixam à vontade para recusar. Por isso, peço licença para, de uma vez por todas, encerrar aqui este desagradável assunto''.

    Se a cultura é inevitavelmente afetada pela economia, não é ingenuidade querer que manifestações culturais brasileiras sejam preservadas numa espécie de redoma à prova de influências externas, numa época em que as relações econômicas sofrem um processo radical de internacionalização?

    ARIANO SUASSUNA: ''Colocar a Cultura Brasileira numa redoma, além de ser uma coisa impossível, é algo de absolutamente indesejável. Faz muito tempo que venho fazendo afirmações em tal sentido. Por exemplo: no dia primeiro de dezembro de 1963, publiquei no jornal ''Última Hora'' um artigo no qual dizia que ''a Arte que se tornasse uniforme não se tornaria mais pura, tornar-se-ia, isto sim, mais pobre''. Depois, em 1974, ao reunir as ideias centrais do Movimento Armorial, eu afirmava que, ao valorizar o tronco negro, indígena e ibérico da nossa Cultura, não estávamos esquecidos de outras etnias e manifestações culturais que também são importantíssimas para o Brasil. Tomávamos tal posição por estarmos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga e nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece.

    O que não posso aceitar é que brasileiros equivocados queiram que, em nome de nossa bela e fecunda diversidade, aqui seja acolhido também o lixo cultural que é subproduto da indústria cultural americana espalhado pelo resto do mundo como se fosse coisa tão importante – e até mais importante – do que os romances de Faulkner. Ou seja: não tenho nada contra Melville. Mas não é possível que queiram exigir que eu ache que Michael Jackson e Madonna têm a mesma importância que Melville ou Euclides da Cunha. Quero deixar claro que tenho pelo ''lixo cultural'' brasileiro horror igual ao que tenho por qualquer outro''.

    Se tivesse de escolher entre passar um fim de semana passeando com Woody Allen pelas ruas de Manhattan ou cavalgando com um vaqueiro pelos morros do sertão da Paraíba, com qual dos dois o senhor ficaria?

    ARIANO SUASSUNA: ''Passear por Manhattan, com Woody Allen ou com qualquer pessoa de tal tipo, é coisa que, para mim, não representa qualquer atrativo. Nunca saí do Brasil, mas, já que estamos no terreno das hipóteses, por que você, que é meu amigo, não pensa em alguém melhor e num lugar melhor? Quanto à outra alternativa, não tenho mais a resistência para sair por aí afora cavalgando pelos morros do sertão da Paraíba''.

    O senhor não acredita que manifestações culturais e artísticas de um povo possam absorver criativamente influências externas? Um violeiro que vê televisão não pode se enriquecer com as novas informações que recebe?

    ARIANO SUASSUNA: “Qualquer um de nós pode se enriquecer com as novas (e boas) informações que recebe. Eu leio jornais e vejo televisão. Os cantadores e violeiros nordestinos também. Nenhum de nós perde, com isso, a garra brasileira e o senso crítico e satírico. Pelo contrário. Ouvi recentemente o cantador nordestino Edmílson Ferreira comentar assim, num Martelo-de-Seis-Linhas, as desventuras conjugais da família real inglesa:

    'Na Inglaterra, as coisas andam feias,
    todo mundo por lá endoidecendo.
    Toda dia é uma princesa sem marido,
    ou um príncipe que, só, fica vivendo.
    Ou a carne de vaca fez efeito,
    ou o chifre do boi está fazendo.”

    Qual é a pior doença e qual é a melhor cura para o Brasil de hoje, às vésperas do ano 2000?

    ARIANO SUASSUNA: ''Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do Povo, o do ''Quarto Estado''. As maiores doenças nossas têm origem no Brasil oficial e a cura só lhe pode vir do Brasil real. As pessoas que sustentam ideias diferentes das nossas parecem pensar: ''O Brasil oficial é o problema; na Europa e nos Estados Unidos está a solução''. Eu acho que o Brasil oficial é o problema, no Brasil real é que está a solução. Ou, um pouco à moda de Unamuno: ''Brasil é o problema, Brasil é a solução''.

    O senhor ainda reclama das guitarras elétricas. Isto não é uma discussão superada desde os anos 1960?

    ARIANO SUASSUNA: ''Vou mais longe, até: esta é uma discussão que não tem o menor interesse – e desde muito antes. Nem nos anos 1960 ela fez parte das minhas preocupações. Em música, gosto de Monteverdi, Vivaldi, Scarlatti, Stravinsky, Erik Sati, José Mauricio Nunes Garcia, Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Villa Lobos, Guerra Peixe ou Antonio José Madureira. Quando vão me entrevistar, fazem-me pergunta sobre guitarra elétrica, Michael Jackson e Orlando Silva. É por isso que apareço falando sobre assuntos ou pessoas sobre as quais não tenho o menor interesse. Nunca me viriam à lembrança se não me fizessem tais perguntas''.

    O senhor diz que não tem interesse pela obra de compositores da MPB, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque eles são influenciados pela ''massificação cultural americana''. O senhor não reconhece na obra de compositores como estes nenhuma contribuição para a modernização da música popular brasileira?

    ARIANO SUASSUNA: ''Por iniciativa minha, jamais fiz qualquer referência a Caetano Veloso e Gilberto Gil. As pessoas que me entrevistam é que fazem perguntas a respeito deles e de outros. Depois, na maioria dos casos, quando publicam as matérias, ficam me acusando de radical e intolerante por causa das respostas que dou, porque não costumo esconder nem disfarçar o que penso. Quanto a mim, não gosto de estar falando mal de nenhum companheiro de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas que antes estavam do nosso lado e depois passaram a emprestar seu talento ao outro''.

    O senhor, secretário do governador Miguel Arraes, que se declara intransigentemente nacionalista, gostaria de ser ministro de um presidente neo-liberal?

    ARIANO SUASSUNA: ''Sou amigo do governador Arraes, mas só concordei em ser secretário porque acho que ele representa, no campo da política brasileira, o mesmo que eu procuro ser no campo da cultura. O convite foi honroso. O cargo tem me trazido muitas e ardentes alegrias. Mas está me obrigando também a fazer coisas que detesto – como, por exemplo, viajar. Imagino o que aconteceria como Ministro, motivo pelo qual não gostaria de exercer tal cargo com nenhum Presidente, neo-liberal ou não. Eu teria até de me mudar para Brasília, o que, para mim, seria uma verdadeira catástrofe. Felizmente, pertenço à oposição. Não existe qualquer perspectiva a tal respeito; de modo que não vou me preocupar com a possibilidade colocada na pergunta''.

    Como se chama e do que tratará o livro que o senhor vem escrevendo há anos? Que impacto o senhor gostaria que este livro tivesse no meio literário brasileiro?

    ARIANO SUASSUNA: '' O livro, ainda sem título, é um romance que, se for concluído como pretendo, será uma espécie de revisão e recriação de tudo o que escrevi. Terminará a história que comecei a narrar com ''A Pedra do Reino''. Quanto ao ''impacto'', não tenho nenhuma originalidade: gostaria que o livro tivesse boa aceitação de público e de crítica. Mas, infelizmente, tenho consciência de que sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. Já me darei por muito feliz se meu corajoso editor não tiver prejuízo''.

    Se um violeiro procurasse o senhor com uma guitarra, o que é que o senhor faria?

    ARIANO SUASSUNA: ''Um violeiro com uma guitarra na mão seria aquilo que, em Lógica, se chama uma contradição em seus próprios termos : ele não seria mais um violeiro e sim um guitarrista. E provaria, com a nova opção, que nem como violeiro ele prestava. Mas só estou respondendo porque, como se diz nos depoimentos judiciais, com grande alívio meu e dos leitores, chegou a hora do "nada mais disse nem foi perguntado''.
    ----------------
    ( 1996 )

  • Suassuna: 'A literatura é uma forma de protestar contra a morte'


    Ó meu Deus judaico-tapuio e mouro-sertanejo! Considerai que qualquer coisa é bastante para me tirar a vida! Uma gota de salmoura que desça ao coração entupindo uma artéria, uma veia importante que rompa em meu peito, uma sufocação de tosse, uma forte pressão interna, um fluxo impetuoso do meu sangue, uma cobra coral que me morda, uma febre, uma picada,um corisco de pedra-lispe incendiada, um raio, uma pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso, uma pedra que se despenque de um serrote - tudo isso e qualquer coisa pode me cortar o Nó do sangue, roubando-me a vida em dois tempos!".

    A "veia importante" se rompeu. O que Ariano Suassuna escreveu neste trecho de "Romance d'a pedra do reino" terminou acontecendo nesta quarta-feira.

    Suassuna tinha palavra - em todos os sentidos. Quem não o conhece como escritor deve devorar o "Romance d'a pedra do reino". É um grande livro. Ali, ele realiza o sonho de todo escritor: erguer uma bela catedral com palavras. A catedral de Ariano era um Brasil que ele inventou: sertanejo, belo, ensolarado, épico e,ao mesmo tempo, despojado. Os que o conhecem apenas pelo eventual histrionismo das aulas-espetáculo (de fato divertidas e instrutivas ) podem estar perdendo a chance de descobrir, nas páginas da "Pedra do reino", um grande escritor. É só o que interessa: um grande escritor.

    Ao longo de quarenta anos (!), fiz "n" entrevistas com Ariano. (Assista acima a uma das entrevistas feitas pelo colunista)

    Durante um certo tempo, horrorizado com os pecados que os repórteres cometiam ao transcrever o que dizia, ele se dava ao trabalho de responder as entrevistas por escrito - ali, "ao vivo", diante do autor das perguntas. Queixava-se de que, ao publicar suas declarações, repórteres descuidados com o texto botavam no papel cacos da linguagem falada - como "né?". Aquilo doía nos olhos de Ariano - um escritor que tratava a língua com reverência jamais escreveria um "né?".

    Guardo, em meus arquivos, não tão implacáveis, uma pequena coleção de manuscritos de Ariano - aquela letra pequena e bem desenhada. Depois, ele abandonou o hábito de responder por escrito aos questionários. Não teria tempo para tanto.

    Vivi uma cena que mostra o que era a palavra de um sertanejo (Ariano nasceu, na verdade, em João Pessoa, mas se criou no sertão ). Uma vez, ele me disse que Glauber Rocha, antes de ficar famoso como cineasta, o entrevistara longamente. A entrevista tinha sido publicada, no início dos anos sessenta, no Diário de Notícias, no Rio. Quando recebeu o jornal, Ariano viu que Glauber tinha atribuído a ele declarações que ele não tinha feito. Não teve dúvidas: antes de guardar o exemplar em seus bem cuidados arquivos, Ariano fez anotações à margem do recorte, para "corrigir" o texto. Fiquei curioso para ler. Pedi a ele para ver o jornal. Ariano disse: "Vou procurar, depois lhe dou".

    Pois bem: passaram-se pelo menos seis anos. Ariano vem ao Rio para tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Em meio ao tumulto de abraços e cumprimentos pela posse, ele me diz: "Espere aí. Vou pegar um negócio que trouxe para você".

    Procura numa pasta um recorte. Era a tal entrevista que dera a Glauber. Fiquei surpreso e comovido com a lembrança - qualquer um ficaria.

    Aquilo, sim, era cumprir uma promessa! Ariano não se esqueceu de que tinha prometido ao repórter - que o "perseguia" há anos - um velho recorte de jornal. Ali, no mais improvável dos lugares, em meio a uma festa de posse na Academia, ele "cumpriu a palavra". O homem era assim.

    Um pequeno trecho corrigido por Ariano:

    Ariano: "Fui criado no protestantismo, mas, depois, ao reler os evangelhos, vi que o verdadeiro cristianismo é o catolicismo".

    Glauber: É católico enquadrado?

    Ariano: "Não. Católico enquadrado é santo. Vou à missa, de vez em quando me confesso, mas bom católico é católico safado" (aqui, Ariano emendou o recorte com uma frase escrita à mão: "Eu nunca disse isso!").

    Aqui, numa das entrevistas que fiz com ele para a TV ( outras tantas foram para jornal), ele falava de seus sonhos brasileiros:

    GMN: Todo escritor, em última instância, escreve para ser lembrado. Isso é que motiva o senhor a escrever?

    Ariano Suassuna: "A literatura é uma forma de protestar contra a morte. Em minha visão, a literatura - e a arte, de modo geral - é uma forma precária, mas, ainda assim, poderosa de afirmar a imortalidade. O homem não nasceu para a morte: o homem nasceu para a vida e para a imortalidade.

    GMN: Como é o Brasil dos sonhos de Ariano Suassuna?

    Ariano Suassuna: "Eu sei que é um sonho- mas sem sonho a gente não vive. É necessário, ao ser humano, um sonho - lá na frente para que a gente não se acomode e procure aquele ideal. O Brasil com que sonho, então, seria um regime no qual a gente realizasse, pela primeira vez na história humana, a fusão de justiça e liberdade".

    GMN: O senhor já disse que considera a Disneylândia o maior monumento já erguido a imbecilidade humana. Qual é o grande monumento erguido à imbecilidade no Brasil?

    Ariano Suassuna: "A réplica da Estátua da Liberdade que construíram na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ainda não estive lá, mas já estou com raiva da estátua - porque não gosto nem do original - quanto mais de uma réplica de segunda classe feita no Brasil!".

    GMN: A quem o senhor daria - de bom grado - o título de representante número um do lixo cultural?

    Ariano Suassuna: "Em primeiro lugar, já que estamos falando no tempo de hoje, eu daria a Michael Jackson. Mas já estou com pena de Michael Jackson - porque os americanos inventam um mito falso como ele e depois destroem". .

    GMN: Em que situação o senhor compraria um disco de uma artista como Madonna ou Michel Jackson?

    Ariano Suassuna: "Numa situação de extrema penúria intelectual, econômica, moral e mental. Se você me vir comprando qualquer coisa desse tipo, pode me internar, porque não estaria no meu juízo perfeito".

    GMN: Ao reagir contra manifestações da cultura de massa, o senhor não teme ser considerado um grande dinossauro?

    Ariano Suassuna: "Eu "temo", não: já fui chamado! E já fui chamado de "Dom Quixote arcaico", por viver, segundo diziam, esgrimindo contra os moinhos de vento da globalização. Não me incomodo".

    GMN: Qual é a maior obra de arte já produzida no Brasil?

    Ariano Suassuna: "Em artes plásticas: o Santuário de Congonhas, onde estão os 12 profetas esculpidos em pedra sabão pelo Aleijadinho. Em música, a obra de Villa-Lobos. Em literatura, Os Sertões - de Euclides da Cunha".

  • 'Estou trabalhando nos livros desde que nasci. Eu só sei escrever'

    GMN: Você compraria um livro usado de um político?
    João Ubaldo Ribeiro: Querer transformar os políticos numa casta de pessoas especialmente boas ou especialmente ruins é uma bobagem. Os políticos são parte de nossa sociedade. Não é político nem motorista de táxi nem médico nem nada: somos nós. Como sociedade, somos nós que produzimos esses políticos, esses motoristas de táxi, esses médicos, esses advogados - e esses escritores.

    GMN: O Brasil é um país que vive uma crise crônica de identidade. Escrever livros como Viva o Povo Brasileiro é uma maneira exorcizar esses crise?
    João Ubaldo: Você já coloca uma premissa sobre crise de identidade. Acontece que não acho que o Brasil viva uma crise de identidade permanente. Não sei se vive. Mas não penso nessas questões. Quando uma pessoa escreve algo que repercute, há sempre o impulso natural de enquadrar a obra em categorias pré-fabricadas ou pré-moldadas. Mas a realidade é que as coisas não acontecem assim. Não escrevi pensando em identidade nacional nem em coisa nenhuma. Escrevi - simplesmente. Não sei o que é. Viva o Povo Brasileiro  não é uma tentativa de entender o Brasil. O que fiz foi escrever um livro. Eu poderia mentir a você abundantemente sobre o que resultou - a partir do que os outros escreveram e pensaram. Mas Viva o Povo Brasileiro é só um romance.

    GMN: Você pode viver exclusivamente de literatura. Acabou a fase romântica dos escritores que escreviam "por amor"?
    João Ubaldo: Escrever por amor provavelmente todo mundo sempre escreverá. Não é um problema de amor - a não ser no sentido cósmico da palavra. Dá para viver de literatura. Depende do tipo de expectativa de vida que você tem. Se você é uma pessoa que não tem grandes exigências e não é "transeira", então dá. Vivo decentemente com minha família. Agora, estou escrevendo um livro chamado "O Sorriso do Lagarto". É um romance. Só vou saber como vai ser depois de acabar. Há dois meses trabalho neste livro - mas não sou um burocrata. Os livros se trabalham o tempo todo. Em termos mercadológicos, eu diria que estou trabalhando há dois meses - Mas a verdade é que estou trabalhando nos livros desde que nasci.

    GMN: Você tem a imagem de um escritor que vive feliz num ambiente paradisíaco. É a encarnação do baiano bem-humorado e contente. Mas, nos seus livros, você termina transmitindo uma imagem dilacerada e dolorida do povo brasileiro. Você admite que há um choque entre estes dois João Ubaldo?
    João Ubaldo: É invenção! Sou escritor. Você pode extrapolar a partir daí  milhões de coisas. Pode achar que sou um privilegiado, um iluminado, um maldito ou qualquer outra expressão que se possa arrolar para designar quem faz um livro. Mas não penso em nada assim - Nem sou mais feliz do que ninguém, a não ser pelo fato de que, por ser uma pessoa sadia, sou mais feliz do que os que não são sadios....Tenho o que comer. Sou mais feliz do que os que não têm o que comer. Mas o fato de morar em Itaparica e andar sem camisa não quer dizer coisa nenhuma. Qualquer um poderia viver assim - se não houvesse tanto tipo de problema.

    GMN: O que é que mais envergonha o escritor João Ubaldo Ribeiro no Brasil?
    João Ubaldo: A vergonha é tão circunstancial...Pode-se ficar envergonhado com o time do Vasco da Gama ou com os tipos de políticos que existem. Não se trata de uma questão de vergonha, mas de aspiração a uma condição condigna para todo mundo. Ficar falando "o que mais me envergonha no Brasil" é me colocar numa posição superior a tudo o que acontece quando, na verdade, sou um brasileiro como todos nós outros. Não posso ficar numa posição olímpica e arrogante.

    GMN: De qualquer maneira, o ambiente cultural e literário do Rio e de São Paulo não lhe faz falta...
    João Ubaldo: Não. Mas não é que eu esteja dizendo: "Eu estou fugindo!". De vez em quando, eu até sinto falta de conversar com as pessoas. Não tenho uma posição monástica. Não estou vivendo em Itaparica para me isolar. Não tenho raiva desse "ambiente corrupto" ou qualquer outra coisa que pudesse dizer. Não é uma revolta. Não é nada: é apenas uma maneira de viver.

    GMN: O que significa exatamente para, para você, a figura de Jorge Amado? A figura onipresente de Jorge Amado na Bahia já foi, em algum momento, algo opressivo para você, como escritor?
    João Ubaldo: Jorge Amado é um grande escritor brasileiro, uma figura importantíssima na nossa história. Por acaso, é baiano, meu amigo, meu compadre. Temos envolvimento emocional. Somos amigos. Nossas famílias são amigas. Nunca foi figura opressiva coisa nenhuma! Quanto a comparações, as pessoas ficam vendo as coisas como se tudo fosse um campeonato de futebol: quem é o melhor jogador, quem é o melhor não sei o quê. É tudo maluquice. Não tem nada a ver com nada!.

    GMN: Um personagem de "Terra em Transe" diz que a poesia e a política são demais para um homem só. A política e a literatura são demais para um homem só?
    João Ubaldo: Há os que são capazes de cumprir carreiras simultâneas. Podem ser políticos e literatos. Mas não sei fazer as duas coisas simultaneamente. Só sei fazer o que estou fazendo, o que não impede outras pessoas de administrarem seus talentos de várias formas.

    GMN: Qual foi o maior desafio que você enfrentou ao fazer a tradução de Viva o Povo Brasileiro para o inglês? A intimidade com o texto criou algum tipo de embaraço?
    João Ubaldo: Pelo contrário: a intimidade até facilita. O texto já existia em português. E você não pode tentar reescrever ao traduzir. É um fenômeno especial. Penso que este tipo de problema -  o próprio autor fazer a tradução - deveria ser discutido em um seminário e não num mero depoimento. É uma questão complicada, porque envolve vários tipos de problemas. O fato de o próprio autor traduzir o livro e a convivência do autor-tradutor com as duas línguas com que ele lida são uma coisa complicada. Não é simples.

    GMN: O que é que levou você, então, a enfrentar o tarefa da tradução? A falta de confiança nos tradutores americanos?
    João Ubaldo: Eu já tinha feito a tradução de Sargento Getúlio. Era o meu primeiro livro fora. Fiquei preocupado com a tradução, porque seria difícil fazê-la com americanos que não conhecessem aquela linguagem semi-dialetal. Fiz a tradução, portanto, porque Sargento Getúlio era o meu primeiro livro lançado fora do Brasil. Eu estava tão ansioso que saísse uma coisa boa que me ofereci para fazer a tradução depois que ficou constatado que os tradutores que foram arranjados nos Estados Unidos não tinham condições. Demorei um ano meio traduzindo Viva o Povo Brasileiro. Para escrever o livro, demorei um ano e dois meses. Escrever demorou menos tempo!.

    GMN: O João Ubaldo Ribeiro mestre em Ciência Polìtica e Administração Pública pela Southern University of California já se decepcionou com a Nova República ou mantém a esperança?
    João Ubaldo: Temos de manter a esperança. Se não mantivermos, temos de morrer no dia seguinte. Tenho um desalento grave com o Brasil de hoje e com tudo o que acontece. Mas tenho de manter a esperança. Caso contrário, tenho de desistir. A esperança de que alguma coisa aconteça é, talvez, um dado irracional da conduta humana - mas indispensável para que a vida se mantenha.

    GMN: O "desalento grave" que você acaba de confessar se manifesta no que você produz?
    João Ubaldo: Uma das coisas mais chatas, quando se trabalha num ramo como este em que trabalho, é você, além de escrever, ter de explicar. Não sei explicar o que escrevi. Você escreve. Quem lê acha o que quer. Se o livro é bom, eu posso ser ruim. Meu livro é meu livro - e não tem nada a ver comigo. Podiam nem me conhecer; eu poderia nunca dar entrevistas. Mas livro existe. É uma entidade em si.

    GMN: Que reivindicação você faz à Constituinte em relação a problemas ligados à atividade do escritor no Brasil?
    João Ubaldo: A Constituinte deve ser o arcabouço básico de princípios. Não acredito, então, que a Constituinte deva resolver - como se pensa no Brasil - questões como o tamanho do bigode, quantas relações sexuais se devem ter por semana e como deve se tratar uma pessoa negra, coreana ou japonesa.

    GMN: O intelectual deve querer falar em nome do povo?
    João Ubaldo: A pergunta é mal colocada, porque ninguém fala em nome de ninguém. Todas essas coisas envolvem uma opção filosófica e ideológica. Você pode ser um escritor de um grande vezo populista e achar que dá voz ao povo  - e, no entanto, este pode ser um gesto de uma profunda megalomania. Ou não. Você pode achar também que o escritor e o artista é aquele que transmite as aspirações. Mas estas são questões secundárias. Quem se preocupa em produzir uma obra artística não fica pensando nestas questões - que só surgem depois, a posteriori, portanto.

    GMN: Você faz questão de dizer que não parte de nenhum projeto preconcebido antes de fazer um livro...
    João Ubaldo: Não parto!.

    GMN: E se recusa a teorizar sobre a obra depois de produzida...
    João Ubaldo: Sim, porque não é o meu caso. Eu só sei escrever.  

    (Entrevista gravada em novembro de 1987)

  • OITO DE JULHO, NÃO: 11 DE SETEMBRO!

    O calendário enlouqueceu: para a Seleção Brasileira, definitivamente, hoje é 11 de Setembro - não é nem pode ter sido um mero oito de julho!

    (Em 2000, cinquenta anos depois de 1950, publiquei a primeira edição de "DOSSIÊ 50" - uma reportagem com os 11 jogadores brasileiros que entraram em campo no Maracanã para enfrentar o Uruguai na Copa de 50. Deixo para algum neto a tarefa de - daqui a cinquenta anos - publicar um "DOSSIÊ 2014" ).

    Quando o Brasil perdeu para a Itália, em 1982, Carlos Drummond de Andrade terminou assim a crônica no Jornal do Brasil:

    "A Copa do Mundo acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora - o sol de nós todos".

     

    Quem somos nós para desdizer o poeta?

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O blog apresenta reportagens orientadas pela fórmula ideal do jornalismo: quando entrevistava um personagem, Geneton fazia, a si mesmo, a pergunta sugerida por um editor inglês: "Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim?". Esta coleção de posts, com entrevistas memoráveis, fica como um arquivo e uma homenagem do G1 a um jornalista apaixonado pela profissão.