Por Kevin Lima, Beatriz Borges, Luiz Felipe Barbiéri, g1 — Brasília


  • Em uma derrota para o governo Lula, o Congresso derrubou nesta quinta-feira (14) o veto presidencial à tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas

  • O texto aprovado pelo Legislativo estabelece a data da promulgação da Constituição como marco para a demarcação de terras indígenas

  • Com a derrubada do veto, valerá regra que diz que os povos indígenas somente terão direito à demarcação de terras que já eram ocupadas por eles em outubro de 1988

  • Apesar da derrubada do veto, parlamentares da base e da oposição avaliam que o trecho poderá ser novamente questionado no STF

  • Em setembro, a Corte barrou, por 9 votos a 2, a aplicação da tese do marco temporal na demarcação de terras indígenas

  • A proposta aprovada pelo Legislativo, que foi vetada por Lula, representou uma reação dos congressistas à decisão dos ministros do Supremo

Congresso derrota governo e retoma marco temporal para demarcação de terras indígenas

Congresso derrota governo e retoma marco temporal para demarcação de terras indígenas

O Congresso Nacional derrubou, em sessão conjunta nesta quinta-feira (14), o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao trecho de uma proposta que estabelece a data da promulgação da Constituição como marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

O placar entre os deputados foi de 321 votos a 137 pela rejeição do veto. No Senado, 53 votaram pela derrubada, e 19, a favor da manutenção.

Com a queda do veto, o texto vai à promulgação. Passará, portanto, a valer a tese que estabelece que os povos indígenas somente terão direito à demarcação de terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Segundo a proposta, áreas sem a ocupação de indígenas ou com a ocupação de outros grupos neste período não podem ser demarcadas (saiba mais aqui).

Indígenas durante ato, em setembro, contra a tese do marco temporal — Foto: Getty Images

A derrubada do veto representa uma derrota ao Palácio do Planalto, que, sem sucesso, tentou, nos últimos dois meses, costurar acordo para a manutenção da decisão de Lula de outubro.

Nesta quinta, o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), repetiu, durante a sessão, a defesa da continuidade do veto.

No entanto, o restabelecimento do trecho vetado pelo petista já era dado como certo. Defendida pela bancada do agronegócio, a pauta reuniu apoio entre parlamentares de partidos da base aliada ao Planalto e de oposição, em uma espécie de sinalização ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Ao justificar o veto, em outubro, Lula replicou o entendimento firmado pelo Supremo e afirmou que o marco temporal aprovado pelo Congresso incorria em “vício de inconstitucionalidade” e contrariava o “interesse público por usurpar direitos originários” (relembre no vídeo abaixo).

Apesar da derrubada do veto, parlamentares da base e da oposição avaliam que o trecho ainda poderá ser questionado, no Supremo, por entidades ligadas à causa indígena.

Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas afirmou que acionará a Advocacia-Geral da União (AGU) para questionar a medida no STF.

No texto, a pasta diz que a derrubada do veto "vai totalmente na contramão dos acordos climáticos que o Brasil vem construindo desde o início deste ano para o enfrentamento à emergência climática que também coloca em risco os direitos dos povos indígenas e de seus territórios".

Marco temporal

O trecho retomado pelo Congresso afirma que serão consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), eram simultaneamente:

  • habitadas pelo povo indígena em caráter permanente
  • utilizadas para suas atividades produtivas
  • imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar
  • e necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições

A ausência de comprovação da presença da comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 invalida o direito à demarcação da terra. A exceção é se for comprovado o chamado renitente esbulho — um conflito pela posse da terra, que pode ter sido iniciado no passado e persistente até 5 de outubro de 1988.

O Congresso também derrubou o veto ao dispositivo que abre brecha para o garimpo, instalação de equipamentos militares e expansão de malha viária sem consulta aos povos indígenas ou ao órgão indigenista federal competente.

Atualmente, a exploração em terras indígenas demarcadas só pode ocorrer após autorização do Congresso Nacional.

Também foi resgatado, com derrubada de veto, um trecho que permite aos povos indígenas firmar contrato para turismo nas áreas demarcadas.

Os parlamentares mantiveram, porém, os vetos do presidente Lula ao plantio de transgênicos em terras indígenas. Também foram mantidos vetos aos trechos que flexibilizavam o acesso a indígenas isolados.

Discussão

A sessão do Congresso que derrubou o voto foi acompanhada pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e representantes de povos indígenas.

Integrante da bancada indígena na Câmara, a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) disse que a tese do marco temporal é “anticivilizatória”.

“Por muito tempo, eu escuto nesta Casa as pessoas dizerem que nós povos indígenas somos atrasados. Atrasado é um Congresso Nacional que demorou 165 anos para eleger o primeiro deputado indígena do Brasil, Juruna Xavante. Atrasado é um Congresso Nacional que demorou 195 anos para eleger a primeira mulher indígena, Joenia Wapichana. Atrasado é um Congresso Nacional que demorou 200 anos para ter a primeira presidente da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, da qual eu faço parte”, disse.

Um dos fiadores do texto, o senador Marcos Rogério (PL-RO), que foi relator da proposta no Senado, afirmou que o marco temporal confere "segurança jurídica" a proprietários de terras.

”Nós não podemos viver em um país que desrespeita a tradição, que desrespeita a tradição jurídica. E aqui digo porque moro num estado onde nós temos várias áreas indígenas e eu conheço essas populações. Não é de mais terra que a população indígena precisa. O que a população indígena precisa é de mais assistência, é de mais cuidado, é de mais proteção, é de mais oportunidade, é de mais liberdade, porque tem terra, mas não pode produzir; tem terra, mas não pode gerar o seu próprio alimento”, declarou.

Outros vetos

Entre outros, o Congresso derrubou o veto de Lula a trecho do Marco Legal das Garantias e retomou trecho que autoriza credores a tomar veículos, em caso de inadimplência, sem autorização da Justiça.

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!