Blog do Matheus Leitão

Por Sérgio Abranches


Hoje acordei com uma frase de O Leopardo, de Giuseppe di Lampedusa. Ela virou um meme antes da era digital. “Para que as coisas fiquem como eram, será preciso mudar.” Tenho a Itália em mente todos os dias, por solidariedade e como uma assombração no futuro próximo do Brasil. Existe a concreta probabilidade que vivamos o terror que ora a atormenta, em abril ou maio. A Espanha está passando por isto. Nova York também. O inimigo se espalha invisível, conquistando primeiro as maiores cidades, depois o resto do país. Quando se imagina tê-lo vencido, como fizeram os chineses, ele retorna nos corpos dos viajantes.

A crise é tríplice e inevitável, de saúde coletiva, econômico-social e política. Temos que evitar uma crise moral. Por todo canto do mundo, imaginava-se que jamais ocorreria uma pandemia como esta, que derrotaria logo de início os mais diferentes sistemas de saúde. Por isto, faltam leitos, equipamentos e pessoal. As exceções são raras e irreprodutíveis.

O dilema moral clássico se reproduz com regularidade inquietante por todas as equipes médicas, de todos os países, a partir do momento em que o número de pacientes graves supera a disponibilidade de tratamento intensivo. Escolher entre duas pessoas, em estado igual de gravidade é um dilema clássico e sem solução ótima. Se os médicos demoram em escolher, os dois morrem. Terá que apontar um deles para tentar salvar e o outro para deixar por conta própria. Decidirá em situação de máxima tensão, sob a pressão do tempo e do desespero no olhar dos morituri e de todos que os cercam. Pode errar em qualquer um dos casos. Se escolher um jovem, por sua promessa de contribuição mais longa à sociedade, ou porque ainda tem mais a viver e experimentar, e o jovem morrer, o médico sempre se perguntará se o mais velho teria sobrevivido. É uma decisão irrecorrível, em tempo real, inevitável e muito pesada para quem a toma. Imaginem o grau de estresse quando ela se repete para os mesmos médicos centenas de vezes. É uma decisão divina, tomada por mortais extenuados, atemorizados e pressionados pelo tempo e pela escassez.

O dilema dos médicos é um verdadeiro pesadelo moral. A escolha entre as vidas e a economia não é. Transformá-la em escolha trágica, não passa de cinismo. No plano moral não cabe dúvida: primeiro a vida humana, depois a economia, um artefato inventado pela humanidade para atender a suas necessidades. Não sou ingênuo, sei que as economias foram há muito capturadas por elites cobiçosas e há muito já não se dedicam a atender as necessidades coletivas. Mas isto só agrava o cinismo de quem diz que parar a economia também provocará a morte de muitos. É o raciocínio pelo limite presumível. A escolha dos médicos que retratei acima é entre um ou outro ser humano, aqui e agora. Nem preciso apontar a diferença entre estar a morrer e poder vir a morrer caso ocorra um desabastecimento brutal com a parada econômica.

Auxiliares do presidente Donald Trump o aconselham a descerrar o cenho e mostrar empatia. Ele saiu da negação para assumir a pandemia como uma operação de guerra. É o que sabe fazer. Mas, um homem com mentalidade autoritária, misógino e racista, de índole belicosa pode demonstrar empatia? O que Trump pode fazer e está fazendo bem é combater um inimigo de punhos e cenho cerrados. Em questão de dias, o liberalismo moderado dos Democratas e radical dos Republicanos foi abandonado. Decidiram por inédito volume de gasto público a descoberto. Trump avisou que tirou da prateleira, onde mofava esquecida, legislação da época da guerra que permite ao governo estatizar o comando das empresas para que produzam o que ele determinar. Ameaçadas por esta possibilidade, muitas empresas apressaram-se a reprogramar suas fábricas para produzir respiradores e outros equipamentos e artefatos médicos em falta. Na opinião pública, Trump parece redimido por determinar o uso de um teste falho e atrasar o isolamento social, que contratou para o país o posto de epicentro da pandemia.

Morreu Albert Udezo, desenhista do imortal Astérix. Nós vivemos no Brasil o inverso da estória daqueles bravos gauleses. Ela começava sempre dizendo, “toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda ? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor.” Todos os países se renderam ao bom senso e ao consenso médico. Todos? Não! Num triste país tropical chamado Brasil, um presidente obtuso resiste ao bom senso e ao consenso.

Os brasileiros, além de saberem, na sua maioria, que viverão em breve a tragédia que outros países vivem hoje, é refém do cinismo e desprezo de seu presidente. Para ele, não há dilema moral algum. “Infelizmente algumas mortes terão (sic). Paciência”, disse ele para justificar a recusa ao isolamento efetivo, a que chamam de lockdown. Como Trump, ele também é incapaz de empatia. É intolerante, autoritário e belicoso. Mas, ao contrário de Trump, não aprendeu, nem na vida militar, nem na pública, a comandar uma operação de guerra para resgatar vidas. Até quando Bolsonaro tripudiará da paciência do povo brasileiro, que sofrerá as consequências do seu desatino?

O ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que até recentemente era voz sensata, quase inverossímil no governo, que seguia e explicava as orientações médicas, resolveu fazer um compromisso com a desrazão presidencial. Hipotecou a confiança no dia em que disse que só deveríamos recorrer ao confinamento quando a doença atingisse um patamar mais alto. Entrou na contramão dos conselhos médicos. O confinamento como reação a patamares já intoleráveis de mortandade da doença é um ato desesperado. Busca diminuir a pilha caixões. A prescrição é de isolamento generalizado como preventivo, para evitar este patamar de virulência incontrolável.

Nós brasileiros estamos por conta própria. A maioria dos governadores e prefeitos está reagindo melhor. Mas, com suas finanças arruinadas, o sistema de saúde precário, após anos de penúria fiscal, têm limites. O Brasil hipercentralizado em Brasília está nas mãos das autoridades federais, no momento em que é o exemplo solitário de incompetência e indiferença no topo do comando político.

Ontem, vi nas redes, num “ABL em casa”, o programa da Academia Brasileira de Letras para tempos de isolamento, o poeta Antonio Carlos Secchin ler um poema de Carlos Drummond de Andrade, escrito nos tempos da ameaça fascista, “A noite dissolve os homens”. Transcrevo alguns versos, para fechar este artigo soturno, com uma luz de esperança.

“A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate, nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão... A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais cender e dos bens que repartirás com todos os homens... Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã e o sangue que escorre é doce, de tão necessário para colorir tuas pálidas faces, aurora.” Ah, o que seria de nós, não fossem os poetas.

A longa e tenebrosa noite mudará nossas vidas de muitas formas. Umas, irremedíaveis como a morte. Outras passageiras como as emergências. Sairemos mais tristes e melhores. As democracias que resistirem, voltarão mais fortes. As economias se recuperarão como festa. O sol nascerá e o inimigo não estará mais entre nós.

* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN. É colaborador do blog com análises do cenário político internacional

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