A vida em Marte
Tem sido uma adaptação lenta, é verdade. Mas aos poucos estou reaprendendo a me divertir num fim de semana. No último sábado, veja só, fui ver dois filmes da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – um evento que ajudou na minha formação cultural, mas que eu não costumava conferir há quase duas décadas (mais sobre o que fui lá conferir daqui a pouco). Um deles tinha até projeção numa sala do Museu da Imagem e do Som – onde não apenas acontecia a disputadíssima exposição sobre os trabalhos do diretor Stanley Kubrick, como também uma rave, em plena luz do dia. Enquanto tomava um mojito no restaurante do MIS, e olhava o frisson que acontecia a apenas alguns metros de onde eu estava, de repente percebi que ainda não estava acostumado com esse ritmo de vida, no qual as pessoas trabalham por cinco dias e, enfim, divertem-se no sábado e no domingo.
Estaria eu pronto para retomar este ritmo com o resto da humanidade? Depois de quase 18 anos trabalhando intensamente nos fins de semana, eu confesso que me sinto um pouco resistente a abraçar esses “novos” costumes. A nova rotina de preparar um novo “Vídeo Show” tem, pelo menos por enquanto, hábitos bastante mundanos. Uma reunião de “brainstorm” aqui, uma manhã esboçando pilotos acolá, uma leitura de roteiros no Rio, um conferência por skype em São Paulo – mas tudo dentro dos limites do que convencionou-se chamar de “dias úteis”. Claro, uma vez ou outra troco com algumas pessoas da equipe um whatsapp sobre uma ideia repentina no fim de semana, mas a maior parte do trabalho está concentrada nesse período de “segunda a sexta”. O que me deixa então o sábado e o domingo livres – uma possibilidade, por enquanto, apavorante.
Meu sábado começou com uma ida ao supermercado – uma atividade que sempre deixo para as primeiras horas do dia, e nunca me arrependo. Porém, anteontem, também fui cedo às compras, mas… era sábado! E o que vi entre as prateleiras de “matinais”, “congelados”, “hortifruti”, “limpeza” e “higiene pessoal” foi um quadro de guerra. Famílias inteiras enchiam seus carrinhos para o fim de semana (possivelmente até para uma viagem para a qual sairiam dali mesmo, do supermercado); senhoras zelosas empurravam suas compras, bem mais exageradas que seus apetites, ostentando os melhores penteados; pais divorciados presenteavam a companhia do filho no seus dias de visita com pacotes e mais pacotes de guloseimas; domésticas dedicadas acompanhavam suas patroas apontando artigos de primeira necessidade que a “madame” nem fazia ideia de que eram necessários para sua casa funcionar; e vários consumidores sem companhia não disfarçavam que suas compras eram apenas uma boa desculpa para tentar achar alguém tão solitários quanto eles.
Não que eu não cruzasse tipos assim quando ia ao supermercado numa segunda ou quarta – que era a minha rotina até poucas semanas atrás. Mas me parece que no sábado de manhã todas essas pessoas estavam juntas no mesmo lugar – e em quantidades surpreendentes. Até mesmo o assédio a uma pessoa pública – no caso, eu! – era mais intenso. Estou acostumado com isso no dia-a-dia – e gosto de perceber essa aprovação das pessoas. Mas, naquela manhã de sábado, a frequência era impressionante – desde pessoas gentilmente curiosas para saber como anda meu novo projeto, até os mais desavisados que insistem dizer que não deixam de me assistir todos os domingos (sendo que eu já não apresento o “Fantástico” há pelo menos três fins de semana). Não cheguei a ficar assustado – acho que “surpreso” é uma palavra melhor. Mas meu sábado estava só começando.
Com a geladeira cheia, fiz um almoço em casa mesmo e, logo no começo da tarde, fui conferir o lançamento do livro (infantil) escrito por um grande amigo na Livraria da Vila – no caso, a Vila Madalena, um bairro que eu sempre achei que conhecia como a palma da minha mão. E conhecia mesmo, mas tinha desaprendido o que significava circular pela Vila num sábado à tarde. Feiras livres, mais o movimento dos restaurantes com várias mesas nas calçadas, tornavam a travessia de apenas algumas quadras num trecho da Transamazônica! Moro num bairro nada distante da Vila Madalena, mas para chegar à livraria levei o mesmo tempo de um voo entre Rio e São Paulo – para usar uma referência habitual do meu “antigo” fim de semana.
Uma vez lá, fiquei encantado em ver mais amigos – e outras pessoas – num ambiente relaxado, de tranquilidade de confraternização. Normalmente, no meio da tarde de sábado, eu já estaria me preparando para entrar no estúdio e gravar as chamadas do programa, alheio ao resto da humanidade que se divertia lá fora. Um pouco desnorteado pela descontração no lançamento do livro do meu amigo, ousei sugerir uma continuação da tarde com dois outros amigos. Eu queria ver o filme da Mostra que iria passar às 17h30 no MIS, um outro amigo estava com fome, e outra amiga queria ver a exposição do Kubrick – por que não irmos todos para aquele espaço que, do que eu me lembrava, era um oásis de tranquilidade nos fins de semana?
Não demorou para eu descobrir que as coisas tinham mudado – e muito – nos últimos 17 anos… Na calçada, uma fila enorme não se intimidava com o sol: uma pequena multidão esperava cerca de 90 minutos ali até ter a chance de conferir a mostra dos filmes de Kubrick. Minha amiga imediatamente desistiu do empreendimento, mas, enquanto fui ver se encontrava ingresso para o filme que queria ver – um indiano chamado “The Lunchbox” – o outro amigo a convenceu de enfrentar o movimentação e a música alta da rave (que já começava a rolar, por volta das 16h!) para comer alguma coisa ali no restaurante do museu. Fui com eles para matar o tempo até a sessão – que, num traço típico da Mostra (que eu havia esquecido), estava atrasada uns 40 minutos.
Dois outros amigos mandaram uma mensagem perguntando se eu ia ver este filme (como todos sabem, tenho um fraco por produções indianas…) e se eu não queria encontrá-los. Como já estava lá, comprei mais duas entradas e disse que esperaria por eles tomando um mojito ali mesmo. Antes mesmo de a jarra com a bebida chegar, recebo um ‘whatsapp’ de um casal amigo meu, ligadíssimo ao cinema brasileiro, me perguntando se eu tinha planos para a noite – e se eu queria assistir a “O lobo atrás da porta”, o novo (e elogiado e premiado) filme com Leandra Leal, que é uma amiga querida, e que estaria na sessão. Respondi que sim, servi meu copo com o perfumado líquido – rum, limão, hortelã – e fiquei olhando as movimentação lá fora. Então era assim que as pessoas se divertiam num sábado comum…
Pensei então em escrever este breve relato, já com esse título que coloquei acima. Afinal, o que eu sentia naquela tarde de sábado era ao mesmo tempo um conforto – de momentos tão mundanos que eu estava novamente redescobrindo – e uma estranheza: como se um terráqueo chegasse a Marte e observasse de longe como é a vida dos marcianos…
Depois de “Lunchbox” – que é um filme sensível sobre duas pessoas que se envolvem emocionalmente sem se conhecerem cara a cara (uma espécie de “Nunca te vi, sempre te amei”, só que com marmitas de deliciosos quitutes indianos, misturado com o clássico “Nunca te vi, sempre te amei”) – segui então para um shopping center, que além de salas de cinema (onde estão levando filmes da Mostra) havia também teatros. E me deparei com mais grupos incríveis de pessoas – isto é, incríveis para mim, que estava “redescobrindo” aquilo, mas que não passavam de tipos corriqueiros de um sábado à noite. Havia as pessoas mais arrumadas, no bom estilo de quem ainda se produz para uma noite no teatro – bom ver que essa espécie contraria qualquer previsão de extinção! E, misturada com essas, outros grupos de pessoas com uma certa “deselegância discreta” – se Caetano me permite a licença poética: aqueles tipos estudadamente desarrumados, que eu já via frequentar a Mostra lá nos idos dos anos 80. Pois é, certas coisas não mudam.
Em seguida, minha atenção foi totalmente roubada pelo incrível filme de Leandra – ou ainda, pelo filme de Fernando Coimbra, estrelado por Leandra Leal. “O lobo atrás da porta” só deve entrar em circuito comercial nos primeiros meses de 2014, mas quero deixar desde já minha recomendação para que você não o perca. Eu tinha uma vaga lembrança de que a história do filme era baseada num fato real, mas assisti a tudo como se fosse uma ficção e tive uma experiência fantástica. Quanto menos eu falar dele, pelo menos por enquanto, melhor (quem sabe na sua estreia oficial não o retomo por aqui?), mas só quero acrescentar que depois da sessão, tive chance de participar de um debate – um debate! – com o diretor, Leandra e Milhem Cortaz (que contracena com a atriz). Eu estava definitivamente de volta à rotina de fim de semana em São Paulo! E isso era algo a ser comemorado.
Será esse meu destino daqui para a frente? Será que é isso que eu posso esperar como diversão? Não quero parecer que estou esnobando um ritmo que 98% da humanidade segue – e com ele é feliz. Estou apenas questionando o quanto eu demoraria para voltar a viver nele – e o quanto eu tiraria prazer disso. Em vários outros momentos do fim de semana, fiz coisas da minha antiga rotina: vi meus seriados de TV (ainda não terminei a série “Orange is the new black”, mas estou quase!); cozinhei um jantar para poucos amigos na minha casa mesmo (já que é um dos meus hobbies favoritos); fiz um pouco de exercício (se bem que, no lugar de andar pela Lagoa Rodrigo de Freitas, como fazia todo domingo pela manhã, tive de considerar opções mais “caseiras” de exercício). Por outro lado, dormi numa manhã de domingo, como não fazia há anos – uma vez que acordar nesse dia era sempre o primeiro passo de um dia razoavelmente cheio e tenso de trabalho. Acho que tive sim um fim de semana bastante cheio e variado.
E hoje, na segunda – que, até bem pouco tempo atrás era “o meu domingo” – acordei já com um telefonema de trabalho, e uma programação de reuniões e gravações já praticamente organizada. Experimentei – como vários paulistanos, que me contavam isso com frequência – um corte de energia em boa parte do dia (o que explica eu ter publicado este texto tão tarde), como se não vivesse numa cidade dinâmica, moderna e poderosa, mas em Nova Déli, cenário parcial de um ótimo livro que estou lendo agora (“At the bottom of everything”, de Ben Dolnick). E fui a um “almoço de negócios”, para, de fato, começar a semana.
Acho que de agora em diante vai ser assim. E acho que vou me divertir com isso. Afinal, se os marcianos gostam, por que eu também não posso me adaptar?
O refrão nosso de cada dia: “Uncertain smile”, The the – talvez seja a nostalgia de “ter voltado aos anos 80″, com essa lembrança toda da Mostra Internacional de Cinema. Ou simplesmente um aniversário de um amigo dessa época, que foi comemorado neste domingo – uma ocasião que foi, inevitavelmente regada com lembranças da mesma época. Fato é que andei cantarolando muito essa música entre ontem e hoje, e quero recomendá-la hoje aqui para você. Ela tem um refrão meio disfarçado – uma dica: começa quando Matt Johnson canta “I’ve got you under my skin where the rain can’t get in” (quantas vezes eu repeti isso para ouvidos apaixonados?). E depois, nesta versão que indico, vem uma longa esticada instrumental, que vale cada minuto. Depois o pessoal reclama que eu falo demais dos anos 80… Mas ouça “Uncertain smile” e responda: quem anda fazendo uma música sequer parecida com essa hoje em dia?