Dave Eggers escreveu um livro para você

qui, 30/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Literatura

Imagine um mundo onde todas as suas opiniões se resumem a uma carinha sorrindo ou uma carinha enrugada – como se estivesse contrariada. Melhor ainda! Sensores de movimento facial identificam se você está fazendo a primeira cara ou a segunda e conseguem transmitir, na sua rede social, exatamente o que você está, hum, “sentindo”. Espera, que fica melhor! Neste mesmo mundo, quando você sente uma grande paixão, não é preciso perder tempo com essas bobagens que a gente chama de palavras: é só se declarar com uma dessas mesmas carinhas, só que com os olhos substituído por corações! Não é uma maravilha?

O quê? Este mundo já existe? As pessoas já estão se comunicando assim? Será possível? Mas esse é o mundo da ficção, criado por Dave Eggers no seu novo livro “The Circle”! (Ainda inédito no Brasil, mas com lançamento anunciado para o segundo semestre, pela Companhia das Letras). Não pode ser? Já chegamos neste nível?

Claro que não. Mesmo para um ser na era mesozoica como eu, que até hoje se recusa a ter uma conta no Facebook (e, é bom lembrar, também não tenho no Twitter nem no Instagram – se você está me seguindo em alguma dessas redes sociais, tem alguém te enganando) – enfim, mesmo para alguém tão fora do “círculo” como eu, dá para saber mais ou menos como as pessoas estão se comunicando. E acho que talvez ainda não chegamos no estágio que Eggers – autor de tantos livros bons, entre eles um dos 20 melhores títulos que eu já li em toda minha vida, “O que é o quê?” (Companhia das Letras) – descreve tão bem em “The Circle”. Mas já vamos chegar. Pode esperar…

A empresa que é a personagem central de seu novo livro é, intencionalmente, muito parecida com a Google – e é, claro, de propósito. Mas, num futuro não muito distante, é como se a Google tivesse dado um passo além – ou ainda, como se ela tivesse se tornado obsoleta com o surgimento de uma outra empresa, “The Circle” – que vou passar a chamar aqui de Círculo (provavelmente o nome que será usado na tradução para o português). O “truque” do Círculo foi ter conseguido convencer as pessoas a assumirem uma identidade verdadeira na internet. Todos os “circlers” – como são chamados os membros dessa comunidade virtual – entram para a rede com seus dados da vida real. Não há pseudônimos, perfis falsos, emails de mentira – mais ou menos como é agora (onde, só insistindo no assunto, já que “apareceu” um Instagram com o nome Zeca Camargo recentemente, e vários amigos vieram perguntar se era eu mesmo, é possível qualquer mané criar um perfil meu – ou seu – e enganar um monte de pessoas). Com isso, não existem mais fraudes na internet, todas as pessoas pagam suas contas, suas multas, todo mundo é responsável por tudo que faz.

Seduzidos por essa “maravilha da transparência”, as pessoas deixaram suas redes sociais antigas e migraram para o Circle – e vivem feliz, sonhando um dia, quem sabe, poder trabalhar nessa empresa tão legal. Mae, a personagem principal que conhecemos logo na primeira página do livro, acaba de realizar este sonho. Graças a um contato com uma amiga da faculdade – que agora pertence ao círculo mais superior e exclusivo de executivos da empresa -, ela agora faz parte desse time de 12 mil pessoas privilegiadas. Não sabemos exatamente onde fica essa sede do Círculo, ou mesmo em que época se passa a história que estamos lendo. Mas os paralelos com nosso mundo de hoje são inevitáveis. E, à primeira vista, sedutores. E nem um pouco improváveis…

Na qualidade de quem acompanha de longe as migrações nas redes sociais, foi engraçado ver, nesses últimos anos, o entusiasmo com que as pessoas abraçavam primeiro uma coisa chamada Frienster, depois MySpace (alguém ainda tem banda com site lá?), Orkut (lembra de Orkut?), e finalmente Facebook – que pelo que li recentemente, os adolescentes já estão achando que é “coisa de velho”. (É bom lembrar essa cronologia, especialmente para quem acredita que certas empresas são insubstituíveis…). Assim, o surgimento de uma “nova” rede social, ainda que na ficção, me pareceu razoavelmente verossímil. Mas as semelhanças entre a história de Eggers e a nossa vida real – se é que uma vida virtual pode ser chamada de real, mas eu divago… – não param por aí.

Excitada como está por finalmente ser aceita na empresa mais “cool” do mundo, Mae não consegue dizer não aos pedidos cada vez mais bizarros que seu chefes e colegas de trabalho fazem a ela. De início, ela é designada para trabalhar com atendimento ao consumidor – algo chato como o cão, mas uma espécie de batismo para quem quer se dar bem no Círculo. A tarefa é simples e enfadonha: atender a perguntas e reclamações com textos pré-redigidos (são inúmeros, conforme as consultas mais frequentes), acrescentando um toque pessoal a cada resposta. Ah! E cobrar uma avaliação do cliente – que nunca é menor do que 95 (numa escala de 0 a 100). O objetivo, claro, é ganhar um 100. Se o cliente dá um 96, ou mesmo um 99, o atendente deve responder a ele e ver o que pode ser feito para sua avaliação melhorar. Sim, é uma situação absurda – mas eu pergunto: você já passou por alguma coisa parecida? Hum… Sei… Só para saber…

Mae consegue se sair muito bem logo nos primeiros dias – com uma média de avaliação em torno de 98. Excelente para alguém que esta começando! – é o que todo mundo diz pra ela, inclusive a amiga que a contratou. De tão competente que é, Mae vai recebendo novas tarefas, cada vez mais exigentes. Como por exemplo, subir alguns pontos no raking de “comunicabilidade” da Circle – isto é, responder a tudo quando é “zing” (uma espécie de mensagem de texto ultra moderna, desenvolvida pelo Círculo), mandar carinhas com sorrisinho (tipo, hum, “like”, ou “curti”) para cada coisa legal que ela vê e quer dividir com os outros, e participar (com presença física e comentários posteriores) no maior número possível de eventos coletivos, campanhas humanitárias e seminários “educativos” que acontecem dentro do Círculo.

Disposta a sair da “sarjeta” – sua “posição social” nesses primeiros dias, está abaixo do número 10.000 -, Mae se desdobra para estar conectada o tempo todo. E nós, leitores, acompanhamos sua “escalada” com o entusiasmo de quem vê um esporte olímpico. No princípio ela acha tudo um pouco esquisito – como talvez você acharia (e eu, menos conectado ainda do que você, posso garantir, certamente acho). Mas depois de um episódio hilário, no qual ela é chamada na sala de seu chefe porque “magoou” o organizador de um encontro cultural sobre Portugal – o “sistema”, vasculhando todas as informações do computador de Mae, descobriu algumas fotos de Lisboa e imediatamente a “linkou” a um grupo de pessoas com “interesse em Portugal”.

O tal organizador não está bravo – está triste! Magoou! Mae realmente ofendeu seus sentimentos. Como alguém pode fazer parte do Círculo, “gostar” de Portugal, e não ir ao seu evento? Mae precisa estar mais conectada com outros, lembra seu chefe direto. E precisa pedir desculpas ao “pessoal de Portugal”. O que ela faz numa carta oficial, que é distribuída para todo mundo, com um tom de “Olha só galera: Mae se arrepende do que fez e gosta de Portugal”. Todo mundo, como já era de se esperar, manda uma carinha sorrindo para ela. E Mae segue na sua caminha rumo à popularidade máxima!

Mas os pedidos do Círculo não param. Com apenas algumas semanas de casa, ela ganha um “óculos retinal” (sim, que lembra muito o Google Glass), e com ele deve responder perguntas sobre preferências de consumo. Como tudo no Círculo, ela não é obrigada a nada, mas… Se responder a quase 100 perguntas dessas por dia, seu ranking de integração só vai subir. E claro que Mae logo está respondendo 100, 200, 300 perguntas “mercadológicas” por dia. E já que ela está tão bem assim, por que não apresentá-la ao “ranking de influência de compras”?

Funciona assim: você vê um produto, diz que gosta dele, manda para as pessoas da sua rede, um algoritmo calcula quantas pessoas gostaram dele também, e o quanto isso significaria potencialmente em compras para a empresa que o produz – o que imediatamente reflete no ranking de Mae. Em um piscar de olhos – quase que literalmente -, Mae passa a ser uma das pessoas mais influentes de toda a companhia. E por que parar por aí? Por que não ter um vida totalmente transparente, onde todo mundo pode saber o que você está fazendo, curtindo (ou não), vivendo?

As consequências de tudo isso na história de Eggers, como você pode imaginar, são desastrosas. Isto é, para quem não faz parte do Círculo… Mas se você é da “comunidade”, você vai achar isso tudo SUPERCOOL! E não podia ser diferente! Como não achar mega legal uma coisa que todo mundo participa, que todo mundo acha tudo bom, onde todo mundo tem uma avaliação de 99, e todos seus “amigos” gostam das mesmas coisas que você? Não é o máximo? Bem…

Como uma espécie de “grupo de controle”, Dave Eggers nos apresenta também os pais de Mae e um antigo namorado dela – que por instinto (e pela necessidade de uma boa ficção de ter antagonistas) não acham que fazer parte do Círculo é a coisa mais legal do universo. Seus pais até ficam encantados e orgulhosos de a filha trabalhar lá num primeiro momento – especialmente por que a empresa lhes oferece uma cobertura de saúde INCRÍVEL! Mas na medida em que Mae vai ficando mais envolvida com a empresa, ela também fica cada vez mais distante dessas pessoas. E o final de tudo isso… Bom, não quero tirar o prazer de quando você for ler o livro.

Eggers, mais uma vez, faz uma crônica impecável da vida moderna, que só tem uma falha: às vezes dá a impressão de ser escrita para um bando de imbecis. Sua narrativa é tão didática, e num certo sentido tão fabulosa (como nos contos de fadas), que em mais de uma passagem me senti irritado, como se aquele livro, pelo seu simplismo, não fosse para um leitor com ambições maiores. Mas aos poucos fui vendo isso como uma qualidade de “The Circle”: se Eggers quer que sua mensagem chegue para pessoas que estão acostumadas, já hoje em 2014, a se comunicar primordialmente com “emoticons”, é melhor ele manter a sua história bem simples – mas simples mesmo. Aliás, como um conto de fadas (e, no caso do Circle, de bruxas também!).

Pode-se até contra-argumentar, como Margaret Atwood sugere na sua brilhante resenha no “New York Review of Books”, que quem já está nesse estágio de conectividade (por exemplo, no Face!) certamente não passa nem perto de um livro como “The Circle”. E é verdade. Outro dia, apenas para ilustra, estava com um grupo de pessoas bastante esclarecidas, e um amigo de um amigo que estava lá. Na hora da “rodada clássica” da pergunta sobre o que cada um andava lendo ultimamente, esse cara respondeu na lata: “Olha, livro, livro mesmo… acho que eu nunca li nenhum”. Perguntei, por curiosidade a idade do garoto… 26 anos…

Mas eu não estou aqui para crucificar ninguém… Vai que eu faço isso e todo mundo me manda uma carinha franzida! Tudo que eu quero, modestamente, é sugerir uma boa leitura. Que possa te distrair enquanto você não está cercado – ou cercada – de amigos. Tridimensionais.

O refrão nosso de cada dia: “Nice weather for the ducks”, de Lemon Jelly – uma das bandas mais eletrônicas mais injustamente esquecidas do começo deste século, o Lemon Jelly tem bem mais de uma faixa hipnótica e genial. Se você não conhece, comece por aqui. Por que eu escolhi essa faixa? Porque de certa maneira o refrão que diz “all the ducks are swimming in the water” (“todos os patinhos estão nadando na lagoa”, em português), me fez lembrar os personagens do livro de Dave Eggers que fazem parte do Face – perdão, do Círculo…

 

Que semana! (e ela nem terminou)

seg, 27/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Música

Quarta-feira passada eu estava no Centre Georges Pompidou, em Paris (sou eu ali no reflexo do vidro desta imagem), vendo uma exposição sobre o surrealismo e o objeto (sim, o lugar onde eu tirei a foto que postei aqui mesmo na última quinta-feira). Ontem à noite eu estava sozinho em casa, indo ao delírio enquanto assistia ao Grammy – mais especificamente na performance de Stevie Wonder, Nile Rodgers, Pharrell Williams e Daft Punk tocando “Get lucky”. Só esses dois eventos por si só já teriam o poder de me tirar do chão, mas outras coisas interessantes aconteceram nesse meio tempo.

Na mesma quarta-feira que fui ao museu, jantei num dos restaurantes mais disputados de Paris, o Bones (e por “disputados”, é bom lembrar, não quero dizer “os mais caros”, uma vez que o que paguei por lá eu teria gasto facilmente numa pizza mais metida à besta aqui nos Jardins em São Paulo, ou na zona sul do Rio). Comi uma paleta de cordeiro memorável, mais um punhado de acompanhamentos que o chef James Harry (não, ele não é francês, mas australiano) gentilmente ofereceu ao meu grupo – uma cortesia, claro, graças a um amigo que temos em comum, David, o sommelier de outro disputado restaurante parisiense chamado Vivant.

Voltei feliz para o Brasil no dia seguinte de manhã. Sim, eu tenho uma preferência por voos diurnos – especialmente porque eu posso usar as mais de 11 horas de viagem não para dormir, mas para adiantar algumas leituras. No caso, passei boa parte do meu tempo no avião terminando “The circle”, de Dave Eggers – que ao que tudo indica será meu assunto aqui na próxima postagem. Cheguei um pouco “destruído” em São Paulo, mas na manhã seguinte já estava no Rio, dentro do estúdio, para gravar um programa especial de Carnaval com ninguém menos que Preta Gil (se você quiser e puder conferir, vai ao ar no dia 21 de fevereiro). Acredite: se existe uma coisa realmente eficaz para acabar com essa história de “jet leg”, ela se chama Bateria da Mangueira!

Não que o fuso horário fosse cruel – no momento, apenas 3 horas separam os relógios da França e do Brasil. Mesmo assim, o corpo dá sinais de que tem alguma coisa fora da ordem. Mas quem consegue ouvir o próprio corpo quando está no palco com a Bateria da Mangueira – e Preta? E meu dia estava apenas começando… Ainda gravaria mais dois programas antes de cair prostrado na cama para dormir pelo menos uma oito horas (o que geralmente é muito para mim). Quando acordei na manhã de sábado, celebrei que, pelo menos por enquanto, o fuso horário ainda estava a meu favor: pulei da cama com duas horas de folga antes de ir para o trabalho (sim, gravamos programas no sábado!) – ou seja, com tempo suficiente para ouvir algum CD que eu havia trazido da França. No caso, “Cupid Deluxe”, do Blood Orange – o segundo disco da mais recente encarnação do meu ídolo Dev Haynes. Ainda não eram nem 8h da manhã e eu já estava em estado de graça (o álbum, aliás, é genial – não perca!).

Mais alguns horas de estúdio e, quando vi, já era hora de ir para o show do Naldo. Naldo? Sim, Naldo – Naldo Benny. Sei que é nesse momento que boa parte das pessoas abandonam essa leitura – e que um subgrupo dessas mesmas pessoas esboçam a vontade de mandar comentários grosseiros para cá desafiando minha credibilidade como observador da cultura pop, quando não minha sanidade e/ou capacidade mental. Ainda bem! Porque assim, livres desses leitores e leitoras que carregam o viés de que só um tipo de música é bom, posso dizer sem culpa que me diverti imensamente vendo Naldo.

Fui ao show – que era lançamento do seu novo DVD gravado ao vivo (fico sempre admirado como no Brasil ainda existe mercado para DVDs de shows ao vivo) – como uma espécie de retribuição pela generosidade que ele teve de ir ao meu programa (que foi ao ar na última sexta-feira). Mas o que era apenas uma missão diplomática, tornou-se uma noite de muita diversão. O show em si está longe de ser perfeito – mais de uma vez fiquei pensando em nomes de diretores que poderiam dar uma amarrada melhor nos vibrantes números de Naldo. Mas quando ele está no palco, você acredita em cada gota de suor daquele artista – e no poder que ele tem de contagiar de alegria quem está na plateia.

Naldo é um tornado, faz levantar qualquer um que está no seu raio de ação. Ainda na primeira metade do show, por conta de uma troca de roupa, ele deixa o palco e mais de vinte bailarinos se esforçam para reproduzir sua vibração – mas não chegam nem perto de alcançar o que Naldo consegue sozinho no mesmo espaço (é impressionante como ele se arrisca, por longos números, a ficar completamente só no palco, bem na frente dele, mostrando não só carisma, como uma energia invejável). E o que todos estavam dançando e cantando? “Mão pra cima!” – claro. Não exatamente o que – aqui mesmo neste espaço eu reclamava que estava faltando na música popular brasileira. Mas era sábado à noite, todo mundo estava a fim de dançar, e ali naquele auditório, Naldo era o senhor do seu universo. E nós, felizes súditos.

(Falando na vontade de dançar daquela noite, enquanto Naldo não começava, um excelente DJ mantinha todos nós entretidos. No seu “playlist”, hits mais previsíveis como “Umbrella”, de Rihanna, e faixas surpreendentemente novas para este que vos escreve – e que não é exatamente frequentador de bailes funk. Não acreditei, por exemplo, na sensacional “Senta em mim”, do MC Magrinho – cuja letra é irreproduzível aqui, pelos próprios padrões deste blog; ou ainda, o próprio título “oficial” da música seria complicado de revelar. Mas se você tiver paciência de conferir o link acima, vai entender que minha admiração pela faixa vai bem além do que é cantado nela: raras vezes vi uma junção de funk com piano que funcionasse tão bem – na verdade, raras vezes vi uma junção de funk com piano, mas vá lá… É muito bom! A seleção do DJ também me proporcionou uma curiosa observação: a de que o, hum, “clássico no gênero” de MC Sapão, “Eu tô tranquilão”, levantou mais a galera do que um certo “Beijinho no ombro” que diz que parece que está fazendo sucesso, mas que geral aproveitou que estava tocando para pegar mais uma cerveja… Já sei, já sei – eu divago).

Enfim, voltando ao Naldo, em nome da transparência, tenho que registrar que nessa mesma noite de sábado fui chamado no palco por ele, que queria agradecer a atenção que recebeu quando foi ao programa. Fiquei genuinamente sem graça – algo que não é fácil de acontecer comigo. E tudo que eu conseguia pensar era que minha semana tinha começado com uma exposição sobre surrealismo…

Voltei para São Paulo na manhã de domingo – e, como você pode imaginar, estava ligeiramente sem energia. Uma situação perfeita para eu sentar numa poltrona e assistir, de uma só vez, duas temporadas completas de “Girls”. Foi a melhor coisa que eu poderia ter feito. Lena Dunham é “um gênio”. Um gênio sortudo, eu diria – já que ainda nos seus ternos 20 anos, conseguiu emplacar, em plena HBO, uma série tão ousada e corajosa como essa. Ao longo dos primeiros episódios, fiquei tentando imaginar ela “vendendo” o projeto para os executivos do canal americano. Tudo bem, ele é conhecido por apostar em projetos arriscados – “A sete palmos”, “Em terapia”, “Os Sopranos”, “Game of thrones”, “Curb your enthusiasm”. Mas um argumento com quatro jovens que moram em Nova York e não dão certo com seus namorados – duas delas (inclusive a protagonista, vivida pela própria Lena) feias? Que petulância…

Imaginei uma situação parecida na TV brasileira – e olha que não estou falando nem de TV aberta, uma vez que mesmo os canais a cabo daqui, que poderiam ousar muito mais na experimentação, teriam dificuldade de, primeiro, aprovar um projeto desses, e, segundo, de fazer com que ele fosse um sucesso… (Está vendo? Não é só aqui que eu divago!). Porém, mesmo com essas distrações, eu passei boa parte do domingo mergulhado nos dramas de “Girls” – que, diga-se, estão bem longes de serem os meus. Mas, como eu sempre falo, quando a historia é boa…

Teria até embarcado na terceira temporada – que já está disponível no meu serviço de assinatura de TV – se não fosse pelo Grammy, que começava a ser transmitido. Eu sei o que você vai dizer: que é uma das cerimônias de premiação mais chatas de todos os tempos! E eu concordo. Mas e os números musicais? Você acha que eu iria perder? Eu estava cansado – ainda. Mas a expectativa de ver aquelas atrações era maior.

Como já estávamos esperando, a maior parte da cerimônia foi um porre. Mas três momentos salvaram a noite. O primeiro deles, o mais simples mas não menos poderos: Taylor Swift cantando “All too well” ao piano! Quando há duas semanas, depois de ter assistido ao musical sobre Elis Regina, perguntei (provocando) onde estavam as “músicas populares brasileiras” que a gente vai querer cantar daqui a 30 anos, era mais ou menos isso que eu tinha em mente. Quem no Brasil está fazendo um pop que não seja para jogar fora? Uma canção que seja transcendental no amor (ou na dor) que anuncia? (“All too well” – pode torcer o nariz – faz uma curiosa ponte com “Atrás da porta”…). Não, não temos uma Taylor Swift, mas não a temos porque não a queremos! Recebo dezenas de CDs todo ano com vozes incríveis diluídas em repertórios medíocres – um potencial desperdiçado pelas rádios, produtoras, gravadoras, e, em última análise, pelo próprio público brasileiro. Mas isso é uma discussão tão apaixonante, que prefiro retomá-la uma outra hora.

Outro grande momento do Grammy deste ano foi o casamento coletivo de 33 casais – de todos os gêneros, gays e heterossexuais – ao som de “Same love”, de Macklemore & Ryan Lewis. Madonna me pareceu um pouco desconfortável – note que não digo deslocada, uma vez que se uma cerimônia como essa merece uma testemunha do mundo do pop, ela certamente é Madonna -, enfim, ela me pareceu desconfortável inclusive fisicamente (sim, por conta do acidente de esqui), no meio de toda a belíssima performance. Mas o que contou mesmo foi o discurso de Queen Latifah, que mais que emocionada anunciou: “Estamos juntos aqui para celebrar o amor de todos os tons, de todas as cores; olhando para a plateia, tenho o enorme prazer de ver os rostos de 33 casais que escolheram este momento para celebrar seus compromissos aqui conosco em Los Angeles, e com todo mundo nos assistindo pelo mundo como testemunhas”. Sim, você que estava assistindo também foi testemunha.

Performance de Same love/ ReutersAinda Latifah: “Tenho a distinta honra de agora pedir aos participantes que troquem os anéis como um compromisso de amor um pelo outro, juntos com a música do amor”. Você pode até achar que ela exagerou um pouco para o lado do brega, mas a emoção dela – e de todos ali naquele momento (e, imagino, de milhões de pessoas vendo a cerimônia pelo mundo) – era genuína. Sempre bem-vinda, Madonna entrou como uma espécie de cereja no bolo. E por alguns segundos, pareceu que preconceito e homofobia estariam definitivamente banidos da Terra. Novamente eu tentei fazer um paralelo entre a as TVs americana e brasileiras – mas achei melhor não…

Mas acima de tudo, o ponto alto mesmo da noite foi a inevitável colaboração do Daft Punk com Stevie Wonder. Na sua lista de melhores músicas de 2013, a “Entertainment Weekly” colocou “Get lucky”, claro, em primeiro lugar, com um elogio curioso: não importava onde vocês estivesse, mas quando ela começava a tocar, a sensação era a de que você havia entrado na festa mais “cool” no universo. E, na festa de ontem do Grammy, o lugar mais “cool” do universo era o pequeno palco que continha simplesmente Nile Rodgers, Pharrell Williams, Daft Punk e Stevie Wonder. O QUE ERA AQUILO?? Se não me engano esta é a primeira vez na história deste blog que eu uso uma frase inteira com maiúsculas – mas você vai me perdoar… Foram cinco minutos totalmente mágicos para quem gosta de música. E eu, mesmo cansado como estava, largado no sofá, me peguei sacudindo os braços e feliz de estar vendo uma reunião dessas na TV.

Daft Punk com Stevie Wonder/ ReutersPois é, esta está sendo minha semana – que comecei a contar a partir da última quarta-feira. Variada, como o pop deve ser – com baixa e alta cultura! Não me lembro de um janeiro tão animado assim há muitos anos! Arte, gastronomia, livros, trabalho, música, shows, TV, performances… Ainda falta cinema, mas isso a gente resolve hoje mesmo, de tarde: já comprei ingresso para ver “O lobo de Wall Street” e “Pais e filhos”.

Sete dias para não esquecer…

O refrão nosso de cada dia: “Same love”, Macklemore & Ryan Lewis – se você perdeu o Grammy ontem e quer entender porque esta música foi usada para celebrar a união de 33 casais diversos na cerimônia, faça como 106 milhões de pessoas já fizeram, e clique acima para ouvir essa música. Se algumas imagens do clipe te incomodarem um pouco, normal. Pode ficar só com o som da canção. Mesmo que você não entenda a letra (que tem o mesmo potencial das imagens para possivelmente te incomodar), aproveite a melodia. É bem bonita…

 

Onde eu estou?

qui, 23/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Fotografia

Oscar x Carnaval – parte 2

seg, 20/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Música, Todas
| tags ,

Então saíram as indicações ao Oscar deste ano – motivo, imagino, de vários discussões nas altas horas deste fim de semana. Eu mesmo entrei em algumas delas, ironicamente baseado quase que só em trailers, que é o que a gente consegue ver nessa temporada em que as distribuidoras brasileiras ficam esperando justamente essas indicações para decidir o que vão lançar nos cinemas. (Sim, reconheço que alguns tópicos já são justificados, como o fato de o Oscar ter esnobado Tom Hanks em “Capitão Phillips”, mas eu divago…). Sabemos, porém, que os debates só vão ficar mais interessantes mesmo quando a gente tiver visto boa parte dos indicados – o que deve acontecer nos próximos dias. Assim, vamos deixar isso para os próximos posts.

No entanto, não evoquei o Oscar à toa. Quis o destino que este ano a grande premiação do cinema americano caísse exatamente no mesmo dia – e, por conta do fuso horário, na mesma hora – que o primeiro dia dos desfiles das escolas de samba do grupo especial do Rio. Se você me acompanha aqui há um bom tempo, deve se lembrar que escrevi sobre esta mesma coincidência aqui neste espaço em fevereiro de 2009. O que propus na época era que o leitor ou a leitora se colocasse no lugar de um diretor de geral de programação de uma TV aberta que tivesse o direito de transmitir os dois eventos: o Oscar e os desfiles da Sapucaí. O que você faria?

Se me lembro bem, tivemos um dos debates mais quentes da história deste blog. Não é uma estatística confiável, mas a julgar pelos comentários – foram mais de 400! – as opiniões estavam bem divididas! Boa parte vestia a camisa da “cultura nacional”, com um argumento que de maneira geral achava um absurdo que um espetáculo “gringo” desbancasse uma tradição brasileira. Do outro lado, os amantes do cinema acusavam os desfiles de serem um ritual decadente, distante de suas origens, que só era exibido por inércia (e, claro, interesse comercial).

Insisto: foi um dos debates mais interessante que tivemos. Por isso mesmo, quando percebi que o calendário nos proporcionou a mesma situação, pensei: será que as pessoas ainda pensam do mesmo jeito? Será que alguma coisa mudou? Nos últimos cinco anos, a maneira como as pessoas assistem à TV mudou bastante – algo que eu acompanho bem de perto. Não só os telespectadores são mais e mais independentes da grade de programação de uma emissora, como a própria fonte do que as pessoas querem ver já não é mais exclusivamente a TV.

Por exemplo: aposto que tem gente que, no lugar de enfrentar as nem sempre divertidas três horas do Oscar, prefere ser informada pelo Twitter das premiações. Bem como um bom folião pode muito bem sair para brincar seu Carnaval e assistir no celular a sua escola na avenida só pelos vídeos que seus amigos que estão na concentração estão postando no YouTube (ou mesmo no Instagram). Será que você é uma dessas pessoas?

A mulher que inventou o beijinho no ombro

qui, 16/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Música, Todas

Janeiro de 2044. O Rio de Janeiro para por conta de uma grande estreia no palco da multi arena recém-inaugurada sobre o arquipélago das Cagarras, na frente do que era a praia de Ipanema – hoje, o maior complexo de entretenimento que a cidade já viu. O musical, anunciado como o mais incrível evento de entretenimento desta metade de século (ou quase isso), custou cerca de meio bilhão de reais, e promete contar a saga da cantora que revolucionou a música popular brasileira lá pela década de 2010. Os ingressos são disputados a tapa – afinal, quem não quer saber a verdadeira história de Valesca Popozuda, a grande agitadora cultural que apresentou ao mundo o “Beijinho no ombro”?

Essa era uma das várias ideias perversas que povoavam minha cabeça pouco depois de eu sair do incrível espetáculo “Elis – a musical” (não, o artigo feminino não foi erro de digitação, mas uma esperta brincadeira dos criadores do show), atualmente em cartaz no Rio. Sábado à noite é o momento da semana em que, nessa minha nova rotina de estúdio, eu brinco com os amigos que vou para uma CTI e fico internado por 24 horas até recuperar a energia de ter gravado seis programas. Mas estimulado pelos elogios entusiasmados de pessoas cujo gosto eu confio plenamente – um comentário típico nas rodas de conversa deste começo de ano no Rio era a pergunta quase acusatória: “Você ainda não foi ver o musical da Elis?” – resolvi superar meu cansaço e enfrentar as mais de três horas de duração de “Elis”. O que acabou sendo o melhor antídoto para minha exaustão.

Embalado não só pelas músicas estupendas (mais sobre isso daqui a pouco) como por um elenco inacreditavelmente afinado e impecável, consegui, ainda que sentado ali numa cadeira da plateia, repor todas as energias para a semana seguinte. Porque é assim que acontece quando você vai ver algo que gosta muito não é? Você se enche de alegria, exerce sua admiração por pessoas cheias de talento, e renova sua esperança de que a arte tem mesmo um poder restaurador. Tudo isso acontece quando você vê “Elis – a musical”.

Primeiro de tudo, temos de falar de Laila Garin, a baiana mais gaúcha que o teatro brasileiro já viu. Gaúcha, claro, porque ela está fazendo o papel de Elis, mas numa conversa rápida depois do espetáculo descobri que ela tem vários sotaques e nacionalidades dentro dela (seu sonho era fazer o papel de Edith Piaf!). Todo mundo fica impressionado com as performances musicais de Laila – e não tem como concordar de que são não apenas fiéis às originais, mas também transcendentais. Mas o que mais me deixava atordoado era sua atuação como Elis – ela mesma: conversando, discutindo, rindo, e eventualmente xingando! A “encarnação” é tão perfeita que, durante todo o primeiro ato eu fiquei curioso para saber se ela usava uma prótese para reproduzir aquele sorriso de Elis (como logo descobri, ela não usa nada).

Escrito por Patricia Andrade e Nelson Motta (e dirigido por Denis Carvalho), o musical escapa da armadilha fácil da estrutura “esquete/música/esquete/música” – que já está virando quase um clichê nesta bem-vinda onde de musicais brasileiros – para dar uma coerência um pouco maior a uma personagem da vida real tão complexa como era Elis. No lugar de uma mera colagem de momentos, vemos “janelas” do comportamento quase sempre imprevisível daquela que é talvez a maior estrela da música que o Brasil já teve. Se eu quisesse muito achar um defeito, eu diria que a narrativa é linear demais, mas claro que a opção por uma cronologia ordenada é sempre a que vai mais facilitar a vida do público. Isso, porém, é detalhe.

Do momento em que Elis deixa Porto Alegre rumo ao Rio em busca de uma carreira que ela praticamente já sabe que tem pela frente, as coisas começam a ficar realmente interessantes. O caminho, como sempre, é o da música – e, neste sentido, Elis teve uma sorte danada: cantou e gravou o que havia de melhor naquela que já foi chamada de “época de ouro da MPB”. Mas será que foi só sorte mesmo? Pelo que a Elis de Laila nos deixa perceber, a “Pimentinha” sabia muito bem o que queria, que som estava procurando, o que exatamente ela deveria cantar. De um breve momento de insegurança no início de sua carreira, ela já passa à frente assumindo o controle da sua imagem e da sua voz – ainda que, como descobrimos já na segunda metade do espetáculo, ela não se sentisse assim tão dona de seus talentos, uma vez que seus dois casamentos foram com produtores musicais (Ronaldo Bôscoli e César Camargo Mariano) que, de certa maneira, deram um rumo a sua música. Esse “drive” de Elis, essa busca pelo novo, pelo bom, pela qualidade, era sim uma de suas marcas. O que nos leva novamente à Valesca Popozuda, mas eu estou adiantando as coisas.

Tenho que falar ainda de todo o elenco – todo o elenco mesmo. De Felipe Camargo fazendo o papel de Ronaldo Bôscoli. De Caike Luna como Miéle. De Ícaro Silva como Jair Rodrigues (que remelexo é aquele?). De Claudio Lins como César Camargo Mariano. De Danilo Timm como Lennie Dale. De Leo Diniz como Tom Jobim. De todos, na verdade – todos os nomes que estão ali no palco ajudando a contar uma história que ninguém será capaz de superar. Primeiro por conta da própria personalidade de Elis. Não a conheci pessoalmente – sua morte veio muito antes de eu sequer pensar em trabalhar com jornalismo cultural. Mas todas as entrevistas e todos os materiais que descubro sobre ela – vários deles numa exposição itinerante que cruzou o Brasil – indicam que ela era realmente uma pessoa difícil, no melhor dos sentidos: aquele que faz com que alguém use sua energia para canalizar um talento criativo. Tendo a achar que foi isso que a fez “esbarrar” em tanta gente boa, que só acrescentou ao seu trabalho.

O período em que ela amadureceu sua carreira é, sem dúvida, um outro fator. Eu tenho certeza de que, mesmo hoje, tem gente fazendo boa música popular brasileira. O problema é que isso não é o que as pessoas querem ouvir – estou novamente tentado a falar de Valesca, mas peço paciência ao meu leitor, a minha leitora. O que Elis cantava – no rádio, na TV, nos palcos – era não só “o fino da bossa”, mas o fino da nossa história musical. Era essa música que tocava nas rádios, na TV e nos palcos. E levava as pessoas ao delírio – não porque era “melhor”, “mais sofisticada”, mas porque era boa, bem feita, bem construída, bem arranjada. E bem interpretada, claro.

“Arrastão”. “Upa neguinho”. “Águas de março”. “Canção da América”. “Como nossos pais”. “O bêbado e a equilibrista”. Junte aqui qualquer outra música que você lembra que Elis interpretou – eu mesmo perdi a conta no espetáculo, mas acho que são quase 40! Desafio qualquer um a contestar que esse conjunto é um dos melhores de todos os tempos. E, como bônus, é um repertório que ainda nos remete – às vezes direta, às vezes indiretamente – a própria história que vivíamos no nosso país. Quem hoje em dia pode bater no peito e dizer que faz algo parecido? O cenário do nosso país é outro, mas não menos “cantável”. Se não há a censura, que obrigava nossos compositores a serem ainda mais poetas, há sempre a mentira, que merece ser cantada. E os talentos para compor tais músicas não faltam – vemos sinais deles espalhados cá e lá em discos que são sempre quase bons, mas que nunca vão além de um conjunto bonitinho de canções.

Terão mudados os ouvidos então? É sempre mais fácil – muito mais fácil – acusar os ouvintes do “pecado da música ruim”. Outro alvo fácil é o termo genérico “a mídia”, que qualquer um que escreve adora apontar como grande vilã – como se ele ou ela, ao escrever, não estivesse justamente fazendo parte desta mídia. Mas quem quer olhar mais fundo, como eu tento fazer de vez em quando para entender o que está acontecendo, não encontra resposta para uma pergunta tão simples: por que nossa música popular não é mais “música”, é só “popular”?

Qual é o acervo musical que estamos criando para vermos, daqui a uns 30 anos (Elis morreu em 1982, num episódio que também foi resolvido elegantemente no musical) – enfim, para vermos daqui a 30 anos um espetáculo da altura deste que está fazendo o maior sucesso (e deve excursionar o país a partir de março, começando por São Paulo)? Será que podemos pegar uma das músicas mais executadas neste verão de 2014 e fazer essa projeção? Foi exatamente isso que eu fiz brincando no início do texto de hoje. Já imaginou? Um musical baseado na vida e obras de Valesca Popozuda?

Se você é uma das 2.763.661 pessoas que já acessaram (até agora, quando escrevo isto) o vídeo de “Beijinho no ombro”, não fique chateado ou chateada comigo. Eu também fui lá, umas duas vezes – a primeira, por mera indicação, quase que por reflexo, depois que alguém me mandou o link; a segunda, por pura fascinação, quando assisti aos mais de sete minutos dessa superprodução com um encantamento que, para explicar melhor, eu tenho que recorrer a “Atrás da porta”, uma das músicas que Laila/Elis canta no espetáculo que hoje comento: vi “Beijinho no ombro” novamente porque estava o “adorando pelo avesso”.

É impressionante o circo montado em volta da música para mostrar quem late mais alto – a começar pela longuíssima introdução de mais de um minuto (queridos, desculpe, isso não é “Thriller”!). A música, como pop, está longe de ser ruim – ainda que eu implique com o segundo verso que, como vários outros, não cabe muito bem na música (“Pra que elas vejam cada dia mais nossa vitó…” – o “ria” fica sempre sobrando). Em alguns momentos ela chega a esbarrar no surreal – como não aplaudir “Keep calm e deixa de recalque” (ou mesmo a parnasiana “Aqui dois papos não se cria e nem faz história”). Mas no final, é, como diria o bardo, muito barulho por nada.

Um fuzuê incrível para dizer que você está mandando mandando bem, passando por cima de quem é medíocre, e apostando no seu próprio talento e arte? Desculpe, mas eu aconselho ouvir de perto uma certa Elis Regina, que muito antes de todos, e sem precisar fazer o gesto, já tinha mostrado ao mundo o que é um verdadeiro beijinho no ombro…

Vá ver “Elis – a musical”. E sinta pena das “invejosas de plantão”.

O refrão nosso de cada dia: “Listen to the music”, The Doobie Brothers, é o recado perfeito para o post de hoje. Eles são dos anos 70, da Califórnia. E atualmente tem cerca de 300 mil acessos a menos no YouTube do que Valesca e seu “Beijinho”. Não quer ajudar a mudar isso?

Imagem: Divulgação

Num certo sentido

qui, 09/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Todas

É provável que você esteja lendo isso enquanto ao seu redor os termômetros estão marcando mais de 30 graus centígrados. Vivemos uma espécie de calor intenso – e eu me divirto com as manchetes na linha “o verão mais quente desde…”, como se o fato de sobrevivermos a uma estatística pudesse nos refrescar, ou mesmo atenuar nosso desconforto. Este é o Brasil, e este é o verão, e se você estiver se sentindo muito mal, tem sempre Buenos Aires – que parece ter sido escolhida, oficialmente, como uma sucursal do inferno (no que diz respeito à temperatura). É só ir por lá…

Boa parte do país está em férias (merecidas), aproveitando a temporada perto de um refúgio aquático. Outra parte, porém, está tocando sua rotina normalmente – trabalhando, indo para casa, tentando se divertir um pouco numa cidade que ignora as estações. Não é fácil, posso garantir. A vontade que se tem durante um tempo livre nesses dias é a de ficar parado, sem fazer nada. Literalmente olhando para o teto. E eu estava exatamente assim, na última terça-feira, em São Paulo – uma cidade particularmente cruel nesta época do ano: deitado num mezanino que tenho em casa, olhando para cima e para as janelas que, misericordiosamente, jogam um pouco de verde (e de sombras) para dentro do meu espaço. Não queria ir para a internet, nem ligar a TV, muito menos ter de me deslocar para procurar refúgio em um cinema (o último filme que fui ver, “Azul é a cor mais quente” – um título já em si incômodo para esses dias abafados -, era numa sala na Paulista, que avisava já na bilheteria que o ar-condicionado da sala estava “sob manutenção”, e quando eu perguntei se teria um desconto no preço do ingresso, já que o valor cobrado inclui os custos com a refrigeração do espaço, recebi uma “delicada” resposta na linha “a gente está avisando, se quiser, compra, se não quiser, volta outra hora”, mas eu divago… e isto não é nada saudável com esse calor…).

Então estava lá eu, no chão, quase inerte, quando, ao virar a cabeça para o lado, vi que ali estava uma pilha de CDs novos (lembra? CDs?) que tinha acabado de trazer de uma passagem rápida por Londres. Dos quase 20 títulos, tinha ouvido apenas 3 – ou seja: 17 possibilidades de entretenimento estavam ali esperando por mim. E resolvi escutá-los – no mais puro sentido do verbo.

Não estou sendo pedante. Não sou chegado a um preciosismo nem sou esnobe. Mas ali, largado como um refém do calor, me ocorreu que fazia um bom tempo que eu não parava para, de fato, escutar um trabalho – um CD inteiro, ou mesmo uma música. Note bem: eu disse “escutar” – só isso: parar para ouvir alguma coisa. Sejamos honestos, quem é que tem o tempo e/ou a paciência para fazer isso hoje em dia?

Claro que estamos sempre ouvindo música – acidentalmente. No rádio, na internet, no telefone, na academia, na TV. Mas mesmo quando nos dedicamos a ouvir um artista ou uma banda, será que conseguimos fazer só isso: escutar? Tente lembrar das vezes recentes em que você comprou (ou baixou) um álbum e foi ouvi-lo. Você parou para fazer isso? Ou o escutou enquanto fazia uma série de coisas – tomou um banho, cozinhou, arrumou mala, trocou mensagens no celular, dirigiu, leu um livro, fez aquela limpeza no armário, lavou o carro, ou até mesmo escreveu um post para o seu blog? Pense bem: quando foi a última vez que você se dedicou exclusivamente a esse sentido tão precioso que é a audição?

Fiz a mim mesmo esta pergunta enquanto estava deitado no chão da minha casa, e não sabia responder. Estamos sempre muito ocupados, claro, e parar para “ouvir” uma música é algo que não nos ocorre mais – ou, quando ocorre, é um pensamento logo afastado, afinal, temos sempre tantas coisas a fazer, não é mesmo? Dedicar alguns minutos – que dirá algumas horas – a simplesmente prestar atenção a uma música ou a um disco inteiro é um luxo quase supérfluo. Os shows concertos, talvez, sejam uma razoável exceção nessa relação que a vida moderna nos impõe com a música – mas mesmo assim, um ambiente de uma casa de espetáculos, ou mesmo de um estádio, está longe de ser o ideal para se experimentar música no seu sentido mais despojado.

Percebi então que eu estava na situação perfeita para retomar esse exercício de simplesmente ouvir: imobilizado pelo calor, ligeiramente anestesiado dos outros sentidos, com um punhado de CDs novinhos à distância do meu braço – por que não começar a ouvi-los ali mesmo? Sem interferência nenhuma – que tal? Só eu, meus ouvidos, e aquela música? Será que eu apreciaria mais o que estava ouvindo? Será que retomaria sensações antigas, quando, conforme o humor que eu estava, ia para o meu quarto, trancava a porta, punha um LP (procure o que é na Wikipédia) no meu “moderno” aparelho que tocava os dois lados do vinil sem que eu precisasse “virar o disco”, que rodava na vertical – uma maravilha da tecnologia! -, e esquecia o que estava acontecendo lá fora? Vamos ver…

Comecei pelo novo disco de M.I.A. – que é sensacional! “Matangi” levou um bom tempo para ficar pronto, e agora que foi finalmente lançado, devo declarar que é tudo aquilo que ela vinha prometendo desde, hum, 2011 – e um pouco mais. A já clássica “Bad girls”, que apareceu há quase dois anos, está lá – bem como uma verdadeira enxurrada de batidas e sons do mundo inteiro (embora o funk carioca, que já foi uma inspiração para a cantora cingalesa, não marque presença neste último álbum – pelo menos não de maneira óbvia… e olha que eu estava prestando atenção!). Como foi o primeiro disco que ouvi neste experimento, fiquei extremamente atordoado com ele. Estamos acostumados a ouvir M.I.A. nas pistas de dança ou como trilha sonora de imagens supostamente modernas. Mas quando você para para escutar, sente aquilo tudo – todo o trabalho que ela colocou em estúdio por trás de cada faixa. E é incrível!

Animado com esse começo, decidi seguir na mesma linha: por um terreno conhecido, mas nem tanto. Coloquei para tocar o “novo” álbum do My Bloody Valentine, uma das bandas irlandesas mais influentes dos últimos 30 anos. Não, o U2 não foi a única que saiu de Dublin para mudar tudo naquela época – mas ao contrário de Bono & cia., o My Bloody Valentine, até o ano passado, só havia lançado dois álbuns de estúdio, os dois clássicos: “Isn’t anything” (1988) e “Loveless” (1981). Nunca foram esquecidos, é verdade. Mas o anúncio, no final de 2012, de que eles poderiam vir com um novo trabalho causou frisson nos amantes da boa música. Conferi uma ou outra coisa na internet, ao longo de 2013 – mas sempre, como já assinalei acima, enquanto estava fazendo outras coisas, sem dar muita atenção. Só que agora eu tinha o “m b v” ali, só para mim. E foi o melhor presente que eu dei a mim mesmo neste Natal. Não falo de nostalgia aqui: o novo som do MBV lembra sim o melhor que eles fizeram no passado. Mas vem com um verniz atual que faz com que até os modernos do XX parem e pensem.

Para dar uma quebrada, depois de “m v b ” escolhi duas bandas que eram totalmente novidade para mim, Hookworms e Merchandise. Talvez porque estivesse vindo de duas experiências incríveis (M.I.A. e MBV), fiquei um pouco decepcionado. Hookworms me lembrou o Godspeed You! Black Emperor, mas sem aquela verve toda – “Pearl mystic” é um disco bom, que a cada uma das suas longas faixas te convida à entrega total. Mas não me senti totalmente seduzido. Há um bom clima, bastante hipnótico em vários momentos, mas nada que me fizesse perder o fôlego. E quanto ao Merchandise, nota 9 pelos esforços, e 6 para os resultados. “Total nite” (grande título, aliás) é um saco de coisas misturadas, mas que não aponta exatamente em nenhuma direção. E não venha me dizer que eu não ouvi direito: eu continuava lá, praticamente estático a cada audição, usando apenas aquele sentido esquecido…

Tive mais sorte na escolha seguinte. O segundo disco da Unknown Mortal Orchestra seria exuberante – se esse adjetivo não fosse um tanto deslocado para uma banda tão “low profile” (isto é, que faz tão pouco barulho, se me permite o trocadilho). Mas essa exuberância da banda (cujo primeiro álbum me escapou e eu já estou correndo atrás!) está na inventividade das faixas – e na façanha de conseguir tanto, com tão pouco. Cada música de “II” é uma pequena e elaborada composição de câmara – e eu tive de resistir à tentação de ouvir o disco novamente desde o início (para uma boa amostra da Unknown Mortal Orchestra, veja abaixo “O refrão nosso de cada dia”). E dei-me ainda melhor no disco que peguei na sequência: “The bones of what you believe”, do Chvrches. Eu sei, eu sei: eu mesmo já cheguei a indicar a banda aqui mesmo neste espaço durante o ano passado. Mas confesso que eu não tinha ouvido o álbum todo ainda – e agora que tive essa chance, confesso: deveria ter feito isso a mais tempo. A voz de Lauren Mayberry, a vocalista do Chvrches, é um verdadeiro bálsamo, que vai curar todos seus traumas recentes com experimentações que você andou ouvindo na “dance music”. Sim, porque “The bones” é um bom disco para dançar – ainda que muitos fãs da banda de Glasgow talvez torçam o nariz para este comentário.

E já que eu estava nesta veia dançante – apesar de continuar imóvel no chão do meu mezanino, uma vez que o calor não dava tréguas -, decidir “pegar pesado” no gênero: coloquei o CD do Factory Floor (o nome da banda e do álbum) para tocar. E foi aí que minha viagem realmente começou. Parece estranho eu sugerir que é possível aproveitar uma boa “dance music” deitado sem se mexer, mas acredite: talvez seja até mais divertido do que uma pista. Afinal, quando você está na balada, dançar é quase uma consequência do que você está ouvindo (quando não um ato deliberado de sedução). Mas ao ouvir um disco com batidas, ritmos, contrastes e mistérios tão poderosos quanto o do Factory Floor sozinho, sem ninguém em volta e sem esboçar nenhum movimento, seu cérebro entra num agradável estado de confusão. Como se ele perguntasse: o que devo fazer com toda essa informação? Eu sei bem o que o meu fez: codificou tudo não como impulsos para os braços e as pernas, nas como ecos de ritmos internos do corpo – e eu fui quase ao êxtase com essa experiência.

Ou ainda, eu achei que tinha chegado ao êxtase com Factory Floor – até que eu resolvi terminar meu dia ouvindo o novo álbum do The Field, “Cupid’s head”. Em dezembro de 2011, cheio de entusiasmo, incluí “Looping state of mind”, o anterior da banda, na minha lista com os “melhores álbuns que você não ouviu” naquele ano. “Não recomendo que você escute ‘Looping’ durante uma atividade que peça concentração – dirigindo, por exemplo”, escrevi na época. Pois ali, naquele final de tarde de terça, eu tinha descoberto como ouvir The Field de uma maneira ideal: esparramado no chão sem fazer nada! O princípio de “Cupid” é o mesmo de “Looping”: a repetição. Mas o sueco Axel Willner está cada vez melhor na tarefa de sequestrar qualquer pensamento seu pelos longos e longos minutos que duram suas faixas. E ainda fazer você querer mais.

Depois disso, levantei-me em estado de graça. Foram pouco mais de cinco horas ali, no mesmo lugar, só escutando… E eu tenho que fazer isso de novo – para o bem dos meus ouvidos e da minha mente. Não quer tentar também?

O refrão nosso de cada dia: “So good at being in trouble”, Unknown Mortal Orchestra – uma pequena (pequeniníssima) amostra do que foi minha experiência de usar só os meus ouvidos – e nenhum outro sentido – por algumas horas. Será que você consegue fazer o mesmo, nem que seja com uma só música? Mas, claro, se você gostar da Unknown Mortal Orchestra (e eu tenho quase certeza de que você vai gostar), não pare por aí…

Il chiacchiericcio e il rumore

ter, 07/01/14
por Karina Trevizan |
categoria Todas

Eu poderia assistir ao filme “A grande beleza” umas três vezes seguidas – não fosse pelo fato de ter escolhido vê-lo na última sessão do dia. Falo de uma sensação rara, que não vivia há tempos no cinema – coisa que nem um espetáculo deslumbrante como “Gravidade”, de Alfonso Cuarón, foi capaz de provocar (talvez se tivesse uma boa história, mas eu divago, e ainda é cedo – no texto e no ano…). A sensação de não querer sair da sala, de entregar-se novamente ao fio de uma história (ou no caso, aos caminhos aleatórios de um personagem fascinante), de conferir novamente algumas cenas – talvez todas. Enfim, de não sair do barco que lentamente navega pelo Tibre, atravessando Roma nas primeiras horas da manhã, numa tomada que é um convite irresistível – entre tantos que o filme oferece – a se perder como se estivéssemos vivendo “La dolce vita”.

Desafio qualquer pessoa que vá ver “A grande beleza” a não lembrar de Fellini – não como uma referência fácil, mas inevitável. Afinal, estamos desfilando pelas mesmas ruas, pelas mesmas festas, pelas mesmas caricaturas que o grande mestre do cinema italiano mostrou ao mundo. Meio século já se passou desde que “Dolce vita” foi lançado, é verdade. Mas será que a Roma de Fellini e a de Paolo Sorrentino (que dirige “A grande beleza”) são tão diferentes assim? Ou, ainda, será que o aborrecimento e o tédio da sociedade mudou tanto em apenas 50 anos? São coisas como essas que nos fazem pensar – e, novamente, aqui está outro feito raro que o filme de Sorrentino conseguiu alcançar.

Saí ao mesmo tempo inquieto e deslumbrado do cinema – e comecei a fazer um estranho e inesperado paralelo entre “A grande beleza” e um outro filme que me escapou em 2013, mas que, uma vez que apareceu em boa parte das listas de “melhores do ano” que eu respeito, acabei assistindo no último domingo: “Spring breakers” (que no Brasil, talvez para atrair um público adolescente – de todas as idades – que ainda não descobriu a pornografia na internet, recebeu o subtítulo de “Garotas perigosas”). Dirigido pelo sempre alternativo Harmony Korine, “Spring breakers” foi lançado há quase um ano nos Estados Unidos – justamente para coincidir com o “sprink break”, que é em março/abril e funciona como uma espécie de “semana de recesso” daquelas que os estudantes têm por aqui, só que com um pouco mais de excessos (e sem a vigilância dos pais…). Passou rapidamente por nossas telas no segundo semestre do ano passado – e logo foi parar em DVD e nos serviços de filme para baixar direto na sua TV (foi assim que eu o conferi).

Quis o acaso (sempre ele) que eu visse “Spring breakers” apenas um dia antes de “A grande beleza” – e, embora os dois filmes não pudessem ser mais diferentes no estilo (a começar pelas cores, fosforescentes nas lentes de Korine, douradas nas de Sorrentino), consegui achar curiosas conexões entre os dois trabalhos. Não se trata de julgar aqui qual é o filme “superior” – os cinéfilos mais esnobes certamente vão optar pela produção italiana, enquanto os mais “independentes”, que costumam sair no meio de sessões que exijam mais de uma sinapse ao mesmo tempo, certamente darão seu voto ao filme americano. O que é interessante é ver como a preocupação com a estupidez de uma vida burguesa (e olha que uso esse adjetivo sabendo que ele está totalmente fora de moda) não está resolvida no nosso tempo. Pelo contrário, só tende a piorar.

Se Sorrentino nos oferece Roma, Korine vem com um lugar não muito definido na Flórida – o estado americano do eterno verão. Para as madames cheias de botox italianas, “Breakers” vem com jovens de peitos estufados e bundas que não resistem ao “quadradinho de oito” quando mostradas em câmera lenta. A cocaína – quem diria? – é uma constante nas festas dos dois lados do Atlântico. E se a burguesia romana se apresenta de maneira mais óbvia, desfilando Armanis, Versaces, Gabbanas, Guccis e Cavallis (e jóias que chegam a envergar a coluna das senhoras caquéticas que as usam), os símbolos de status na Flórida só mudam de formato – armas, carros -, mas são ostentados da mesma maneira, e com o mesmo propósito: jogar na cara de quem passa a ideia de que “eu tenho e você não” (se isso fica um pouco mais difícil de perceber em “Spring breakers”, dê uma conferida novamente no discurso que James Franco, na pele do macilento Alien, faz com duas metralhadoras nas mãos, de pé, em cima de sua cama coberta de notas de 100 dólares).

Jep Gambardella – o suave personagem interpretado (aparentemente sem dificuldade alguma) por Toni Servillo – tem, talvez, inquietações mais profundas do que os personagens de “Spring breakers”, além de dizer coisas ligeiramente mais interessantes: o discurso em que ele desbanca sua amiga de 53 anos que se acha uma mártir política e familiar (uma vitoriosa na “missão de ser mãe e mulher”, como ela mesma coloca) é uma obra-prima do desconforto social: nunca palavras tão ácidas foram colocadas com tanta elegância, a ponto de me lembrar de Patrick Melrose, o genial personagem dos livros de Edward St. Aubyn (lá vou eu divagando novamente…). Mas não se esqueça de que as meninas de “Spring breakers” ligam constantemente para suas mães e avós com um discurso que, ainda que de longe, poderia ser adaptado das palavras de Jep. Se este está preocupado em encontrar “a grande beleza” (ele escreveu um único livro de sucesso décadas atrás, e desde então não consegue sequer começar um outro por conta dessa busca), as meninas também querem um sentido maior para suas vidas – “eu realmente quero acertar dessa vez, mãe”, é uma frase típica.

O problema é que, como diz Jep quase no final de “A grande beleza”, tudo está sedimentado em “tagarelice e ruído” – ou, como no original (de onde pequei emprestado o título para o post de hoje): “È tutto sedimentato sotto il chiacchiericcio e il rumore “. Esse blá blá blá… Essa cacofonia besta que nos rodeia e nos soterra – e aí já não estou falando mais de Roma, ou da Flórida, mas desse seu (nosso) dia-a-dia miúdo e sem significado, cuja falta de graça só não percebemos porque o volume de tudo em volta está alto demais – e os “likes” e avisos de mensagem não param de chegar. É uma vida sem graça sim, que mais e mais só faz sentido se alguém curte o que você curtiu – ou ainda, se alguém curte o que você postou porque achava que aquilo ia fazer com que muitas pessoas curtissem você. (Estou lendo o novo livro de Dave Eggers, “The circle”, que toca exatamente nesta ferida, mas para não divagar pela terceira vez, vamos deixar essa conexão para uma outra hora). Nem “A grande beleza” nem “Spring breakers” fazem referência alguma às redes sociais – mas nem precisavam. Elas, de fato, pouco vieram acrescentar à nossa vocação de nos perdermos numa vida enfadonha.

Jed tenta fugir dela, mas é como se a cada noite, a cada festa, desistisse um pouco mais deste propósito. Seu grande momento no filme é quando conhece a filha de um velho amigo seu da noite. Ramona (Sabrina Ferilli) é uma “stripper” quarentona, com uma tatuagem de João Paulo II no braço, cuja dependência de seus cílios postiços só não é maior do que a das aplicações de botox. Improvavelmente, ela forma com Jep um belo par – e é para escapar de mais uma festa chata (onde uma criança de 10 anos faz uma “performance” pintando um quadro às lágrimas) que o casal nos leva a uma das mais belas sequências de “A grande beleza”, quando, com a ajuda de um “mestre das chaves”, eles visitam espetaculares coleções de arte iluminadas à luz de velas (ao som de Ravel, mas eu divago, acho que já pela quarta vez…). Mas até Ramona passa – e Jep segue sem a certeza de que está, aos 65 anos, perto de conhecer “a grande beleza”.

“Está vendo esta gente? Esta fauna? Esta é a minha vida. E não é nada”. Assim suspira Jep a certa altura, exatamente no momento em que a mulher ao meu lado no cinema recebia uma mensagem de texto. A tela de seu smartphone intrometidamente tentando quebrar a magia do que a grande tela nos oferecia. Aborrecida talvez com o que via, ela então respondeu sua mensagem (sem desligar o som de seu celular) e inconsequentemente tentou voltar sua atenção para o filme – mas já era tarde. Ela nem se deu conta, mas era a própria fauna a que Jep se referia. E eu era também. Somos todos.

Há um perverso prazer em ver atrizes como Selena Gomez – uma das carreiras mais perfeitamente fabricadas por Hollywood/Disney – cheirando cocaína e arriscando uma caminhada pelo lado selvagem da vida (como diria o saudoso Lou Reed) no intenso “Spring breakers”. Mas será que somos muito diferentes delas – ou, já que estamos sendo honestos, será que somos muito diferentes dos convivas que frequentam o nobre terraço de Jep (que tem uma cinematográfica vista para o Coliseu)? Fazemos todos parte da mesma festa, dançando a mesma música – e a única salvação talvez, já que não moramos em Roma (uma cidade que, sob pena de ser apedrejado aqui, confesso que não é uma das minhas favoritas no mundo), é olharmos tudo isso com certa candura.

Numa outra noite no terraço de Jep, uma convidada explodindo de êxtase declara: “Eu adoro os trenzinhos!” – referindo-se ao momento catártico de uma noite em que todo mundo que na pista de dança se entrega àquela coreografia desencontrada (e divertida) formando uma fila desconjuntada e feliz. Jep, que tudo observa, completa: “São belos os trenzinhos que fazemos nas festas, não é verdade? São os mais belos do mundo, porque não vão a lugar algum”…

“A grande beleza” é também um grande trem que não tem bem seu destino definido. De uma revoada de flamingos à girafa que desaparece nas termas de Caracalla, são várias as estações que Sorrentino nos oferece como escala, com sua câmera que parece saber equilibrar exatamente movimento e estática. Mas os passageiros mais sensíveis logo descobrem que a tal beleza não está no ponto de chegada, mas no próprio passeio. E é por isso que eu vou voltar e voltar a este filme. Não poderia ter começado meu ano no cinema de uma maneira melhor…

O refrão nosso de cada dia: “Sing to the moon”, Laura Mvula - já que é para começar bem o ano, aqui está o que talvez seja uma descoberta tardia. Mas é que só esbarrei em Mvula – que foi uma das indicadas para o prestigioso prêmio Mercury de 2013 – agora, na minha passagem recente por Londres. Seu disco de estreia, cuja faixa-título indico aqui hoje, é extremamente sofisticado nos arranjos, o que a coloca num patamar que ninguém está neste momento. Talvez Lorde – mas esta eu tenho certeza que você já ouviu bastante (eu mesmo já perdi a conta de quantas vezes já escutei “Royals“. Mas o ano está começando… É tempo de descobrir coisas novas, concorda?



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade