Céus! Elas já estão aí!

qui, 28/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Música

Sabe aquela sensação esquisita de quando você começa a ver o shopping que você frequenta da noite para o dia decorado para o Natal – e você confere no calendário e ainda faltam várias semanas para a data festiva? Por acaso, a cada ano, você tem essa sensação cada vez mais cedo? Você, claro, não está sozinho. Eu também já me senti assim várias vezes. Em 2013, porém, talvez por ter tido tanto tempo nesses últimos dias para circular por um shopping center, eu achei que estava protegido deste impacto de fim de ano – mas ele acabou me atingindo forte no meu (forte) ponto fraco: a música.

Na semana passada, fui até o site da Rough Trade – uma das lojas de disco que mais marcaram a minha vida. Tudo que eu queria era lembrar do “velho” endereço na Talbot St., em Londres, para indicar a um amigo, mas o “banner” do alto da página imediatamente pediu minha atenção: “Os melhores álbuns de 2013″! Como assim? Ainda estávamos no meio de novembro, e a Rough Trade já tinha organizado a sua lista? Será que eu estava tão atrasado assim? Tinha me organizado para fazer a minha tradicional seleção de música boa que você “não” ouviu este ano lá pela segunda semana de dezembro… Será que eu deveria adiantar a minha programação?

Fui conferir na minha outra grande “bússola musical”, o site da Other Music. Ufa! Eles ainda respeitam o mês de dezembro – o “update” da loja com a escolha do pessoal que trabalha lá listando os melhores lançamentos e relançamentos do ano é uma ordem de compra para mim, mas ainda não saiu. No Pitchfork, o “best of” também ainda não chegou, mas fiquei ligeiramente desconfiado das recomendações para a “lista de compras do Natal”… E será que no Flavorwire tinha alguma coisa? Não: o mais próximo de uma lista de fim de ano é uma relação dos “álbuns mais tranquilos de 2013″, para você relaxar no meio dessa loucura de fim-de-ano (entre eles o do Eluvium, “Nightmare ending”, e um da mãe de Nick Drake, Molly Drake!). O que significa, claro, que a Rough Trade está ligeiramente à frente do seu tempo (e não no sentido com que sempre respeitei a loja…).

Não que eu tenha achado ruim. Num ano em que deixei impiedosamente a música de lado (sim, foi um ano corrido, caro leitor, cara leitora), pegar carona numa recomendação confiável para me atualizar quanto ao que ouvir para entrar bem informado em 2014 é até saudável. E por isso resolvi explorar a lista dos discos do ano da Rough Trade. E qual não foi minha surpresa quando o primeiro da seleção é de um artista que eu mesmo tive o prazer de apresentar aqui, neste espaço. Ele é John Grant, com seu “Pale green ghosts” – e se você procurar por um certo post de abril deste ano sobre uma exposição de David Bowie em Londres vai encontrar ali no “Refrão nosso de cada dia” a indicação para “GMF”, de John Grant. Que é, diga-se, uma música que me “assombra” até hoje.

Esbarrei neste disco quando estava em Reykjavik, na Islândia, no último mês de abril. Como contei então, logo que voltei de lá, uma das coisas que fiz na cidade foi explorar a melhor loja de discos do círculo polar ártico (ok, estou tomando uma certa “liberdade poética”, reconheço), a 12 Tónar. Ali, num ambiente agradável, que quase nos faz esquecer o frio intenso aliado à chuva da primavera islandesa, pedi várias recomendações musicais a um funcionário da loja. Procurava artistas locais – ciente de que Björk não é um caso único na rica relação entre os islandeses e a música – e no meio de uma pequena pilha de CDs veio também o de John Grant.

Jan Frode Haugseth/Wikimedia Commons

Não o reconheci imediatamente, mas não tive trabalho em perceber que não se tratava de um artista local – geralmente com nomes bem menos comuns que John (pense em Aðalsteinsson, Oddgeir, Sigurjón, Friðþjófsdóttir ou Diðrik, para citar apenas alguns…). Quando perguntei ao atendente porque ele havia me indicado Grant, ele disse apenas que o artista passava metade do ano na Islândia, e que já era considerado um “tesouro nacional”. Só mais tarde quando, já no hotel, fui procurar mais informações sobre ele é que descobri que se tratava de um dos fundadores de uma obscura banda americana chamada The Czars (que eu sempre associei erroneamente à Escócia por ter comprado o primeiro disco deles quando visitei Edimburgo, mas eu divago…).

De fato, conforme fui pesquisando, entendi que ele tem uma forte relação com a Islândia – a ponto de ter gravado “Pale green ghosts” em Reykjavik, com músicos locais (entre eles Birgir Þórarinsson, que era de uma divertida banda dos anos 90 que sobrevive até hoje, Gus Gus). Mas independente disso, gostei do álbum – que é parte sombrio, parte bem-humorado, e até parte dançante. Tem um punhado de faixas boas – a do título, por exemplo, além de uma que eu adoro chamada “Sensitive new age guy” (por falar em ironia…). Mas o problema é que o refrão de “GMF” é uma espécie de buraco negro para nossos ouvidos: é escutar e não querer ouvir mais nada. As letras do título se referem à abreviação de um corriqueiro (ainda que não menos ofensivo) palavrão em inglês, mas Grant canta com uma poesia que faz com que pareça música dos anjos. E mais: ele está falando dele mesmo – ele é que é o “traste” (para suavizar o palavrão) a quem a letra se refere, e assim tudo fica no universo da auto-ironia e da diversão.

Esse foi um bom sinal de que, mesmo distante da música, como eu já falei que estive este ano de 2013, eu não deixei de estar alinhado com o que está acontecendo de bom – pelo menos na opinião da Rough Trade. Mas o que mais eles tinham no cardápio de “melhores do ano”? Será que eu tinha acertado “Pale green ghosts” apenas por acaso? Resolvi ver o resto da lista.

Entre os dez melhores, eu também conhecia bem o número 2: “Silence yourself”, do Savages – que curiosamente também já havia indicado aqui, junto com o último do Daft Punk (inexplicavelmente número 66 na “parada” da Rough Trade). Mais um ponto para minha intuição! A questão é que, dali em diante, as coisas começaram a desandar. No número 3, encontrei um disco que escutei – cheguei a comprar – e não gostei: “Big inner”, de Matthew E White. E na posição de número 8, tem um CD que comprei em Paris e não abri até hoje: “II”, do Moderat (alemão e eletrônico!). O resto? Thee Oh Sees, Jessica Pratt, Parquet Courts, Daniel Avery – eu não tinha ideia de quem eram essas pessoas!

O número 11 me ofereceu um alento: Jagwar Ma, com seu “Howlin”, que gostei bastante (ia até entrar na minha lista, a ser publicada em duas semanas). Mas depois, corri todos os títulos até o número 100 – e encontrei muitos desconhecidos (lembrando que por “conhecidos” quero dizer discos que, mesmo de artistas que já são íntimos de longa data, como Nick Cave and The Bad Seeds, eu nem cheguei a registrar). As consolações? Alguns poucos artistas que experimentei este ano, quase todos por acaso:

- London Grammar (17)
- Arcade Fire (23)
- Haim (24)
- Daughter (25)
- The National (45)
- Vampire Weekend (46)
- Atoms for peace (47)
- Bill Calaham (55)
- Money (59)
- David Bowie (62)
- Palma Violets (65)
- The Knife (71)
- The Asphodells (88)
- Pantha du Prince (90)
- James Blake (97)

No total, meus ouvidos mal chegaram perto de 20% dos melhores artistas de 2013, segundo a Rough Trade. Será grave doutor? Ou, numa pergunta mais metafísica: será que só eu estou sofrendo disso?

Não me canso de celebrar aqui o poder que essas listas têm sobre nós, pobres amantes de música – e de livros, e de filmes, e de tudo! A capacidade da internet de gerar essas compilações cresce na mesma proporção que o nosso desespero de não conseguir acompanhá-las. Só que eu achei que estava imune a essa “maldição”, mas parece que 2013 vai ser o ano em que eu finalmente joguei a toalha!

A ironia é que nunca foi tão fácil ter acesso à música do mundo inteiro. 2013 é também o ano em que eu mais baixei música – oficialmente, antes que você pergunte – no meu smartphone, quando eu finalmente me rendi à facilidade do processo (e à ansiedade de querer ouvir, por exemplo, a última música do Beck AGORA, sem ter que esperar todo um trâmite de importação). Mas por que então estou me sentindo tão… vazio?

Não vou mais reclamar da minha falta de tempo aqui – não quero que isso vire um refrão chato da minha nova rotina de trabalho (que, pelo visto, não vai mudar tão cedo). Mas deixo claro que começo agora uma investigação sobre o que não está funcionando na maneira como eu organizo meu tempo: mais especificamente, quero me aprofundar na questão “por que eu estou ouvindo menos música?”. E vou ver se faço isso rápido! E começo a escutar umas coisas bem inusitadas.

Afinal, se a Rough Trade deu uma de “shopping center apressadinho”, daqui a umas duas ou três semanas todas aquelas outras listas de fim de ano que ainda não saíram vão começar a jorrar na minha caixa postal – e eu não quero nem saber como eu vou fazer para administrar a frustração de não ter (ainda) ouvido tudo. Mas eu chego lá – e tomara que você chegue também!

2014 ainda demora a chegar…

O refrão nosso de cada dia: “Early days”, Paul McCartney - não deixa de ser uma ironia eu indicar uma música de um veterano como Paul McCarteny num post que fala só sobre música nova. Mas essa é justamente a questão! “Early days” é uma das melhores faixas de “New”, o álbum que o ex-Beatle lançou há pouco tempo, e que eu tenho quase certeza de que você não ouviu. Eu mesmo só o ouvi porque outro dia saí de casa sabendo que ia enfrentar um congestionamento e achei que essa seria uma boa música para relaxar. Para minha surpresa, “New” é bem melhor que isso. Como você já deve ter lido em várias resenhas, nesse álbum McCartney retoma descaradamente o lado artesanal das composições dos Beatles, mas sem saudosismo. O resultado é variado – muitas canções acabam ficando parecidas. Mas “Early days” é sensacional. Primeiro pelo acorde de violão que abre a faixa e serve de base para toda a música. Depois pela ótima letra – que, nem que ele quisesse, deixaria de ser autobiográfica. Ainda: o refrão é mesmo muito fácil e vai ficar imediatamente na sua cabeça. E por fim, pela levada geral, que faz a gente celebrar sim esse grande cara que um dia teve uma banda chamada The Beatles…

O Rei e a plebeia – ou o estranho caso de Roberto Carlos e Anitta

seg, 25/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Música

“How much of you is repetition?”, Rodriguez em “Crucify your mind”

Alain de Botton tem um novo livro – e é sobre o poder da arte como terapia. Sei que se você começou a ler este texto por causa do nome de Roberto Carlos no título – ou mesmo por causa do nome de Anitta – esta primeira frase pode parecer estranho. Fofoqueiros da internet mais desavisados (se é que existe alguém “avisado” nessa categoria) talvez até tenham entrado aqui achando que iam poder espalhar “a última aventura amorosa do Rei” – desatentos, como sempre, para o fato de que se eu fosse anunciar um relacionamento amoroso eu escreveria sobre “o caso de Roberto Carlos COM Anitta”. Mas eu divago, e está muito cedo para isso. Vamos em frente, pois já vou mostrar como Alain de Botton me inspirou a falar de RC – e de Anitta.

Como sempre, seu novo livro é uma espécie de “auto-ajuda”. Desde que escreveu “Como Proust pode mudar sua vida”, De Botton se especializou em mostrar como a chamada “alta cultura” tem tudo a ver com a nossa vida cotidiana, e pode inclusive nos ajudar a nos sairmos melhor nela. Numa breve recapitulação – para não cansar quem já leu muito sobre o escritor e filósofo aqui mesmo neste espaço (sim, sou fã declarado dele) -, depois disso vieram (cito apenas alguns) “As consolações da filosofia”, “A arte de viajar”, “Desejo de Status”, “Religião para Ateus” – e até mesmo um curioso volume chamado “Como pensar mais sobre sexo”. Sua última investida é no mundo da arte – a “grande arte”, um universo tão rico, que permite que De Botton navegue por todos os lugares, dos mais respeitados museus às obras de arquitetura mais esplendorosas (ou, como no caso de alguns dos exemplos de seu último livro, as mais bizarras).

“Art as therapy” ainda não foi lançado em português, mas as livrarias mais antenadas por aqui já tem o volume em suas estantes (ricamente ilustrado, ele custa cerca de R$ 120). Quando o vi em exposição na mesa de uma das livrarias mais belas de São Paulo (que deve fechar até o ano que vem, em mais uma etapa do triste processo de extinção desses últimos templos dos nossos dias – um assunto que quero voltar a falar mais detalhadamente por aqui), não resisti: comprei-o imediatamente e li em menos de 48 horas – uma façanha, se você considerar a correria das minhas últimas semanas.

É o “bom e velho” Alain de Botton nos lembrando como as soluções para as mazelas da vida estão ao nosso redor – e tudo que a gente precisa é parar para olhá-las de uma maneira diferente. Resumindo, segundo ele, a arte deve servir para resolver problemas práticos, como nos ajudar a retomar a esperança, afinar nossa memória, balancear nossas emoções, colaborar no autoconhecimento, acolher na dor etc. Esse é o ponto de partida de “Art as therapy”, mas De Botton, claro, sempre vai além.

Na segunda metade do livro, ao discutir a relação entre gosto e dinheiro, ele faz a seguinte consideração, ao nos lembrar que geralmente nos sentimos incomodados ao ver como as pessoas gastam dinheiro com coisas (produtos) “erradas” – “feias”, de “mau gosto”, e até mesmo “nocivas” (lembrando que a tradução é minha, e, para variar, apressada):

“Existe um outro tipo de ‘errado’: uma sensação de que esses produtos não estão alinhados com o mais alto potencial da humanidade, que a paixão por um determinado tipo de comida, de hotel de lazer ou de programa de TV é um insulto ao que somos capazes como seres humanos. (…) Pode parecer maldoso apontar as preferências de pessoas decentes e possivelmente não privilegiadas com indignas. Temos medo de sermos vistos como elitistas ou esnobes, embora no fundo de nossos corações nós geralmente não achamos que somos uma coisa ou outra”.

Li isso no domingo pela manhã, logo depois que acordei de um sábado animado: gravei dois programas incríveis (com Rodrigo Lombardi e Paolla Oliveira, que você poderá assistir nos próximos dias) e saí direto do estúdio para outra gravação, a do especial de fim de ano de Roberto Carlos – um evento que marcava os 40 anos dessa presença do Rei na casa dos brasileiros todo fim de ano.

Estava exausto – já brinquei mais de uma vez que não estou fazendo um programa novo, mas sim um “novo esporte radical”. Mesmo assim, eu sempre arrumo energia para ver esse show. Nos últimos anos, tive a honra e o prazer de ser convidado algumas vezes para a gravação – e só não vou se estiver mesmo viajando a trabalho. Desta vez deu certo: e lá estava eu, sentado na primeira fila para ver Roberto Carlos… de novo!

Uma crítica fácil ao show é que ele se repete todos os anos. E a princípio parece isso mesmo. Tem “Emoções”? Tem! Tem “Detalhes”? Tem! Tem “Como é grande o meu amor por você”? Claro que tem! Mas tem também pequenos detalhes (sem trocadilho!) que tornam a apresentação diferente todos os anos – e que são esses detalhes que me divertem a cada vez que vou. E eu diria que eu nunca me diverti tanto como no sábado passado.

Espera aí! Eu? Divertindo-me num show do Roberto Carlos? E sobretudo num com a participação de Anitta? Foi aí que Alain de Botton veio me ajudar!

As novidades do show de Roberto este ano incluem Tiago Abravanel – fazendo um saudoso link com o passado do Rei, quando ele convivia pelas ruas do Rio de Janeiro com seu amigo Tim Maia (sabia?); uma brigada de DJs que remixaram grandes sucessos de RC (a versão para “O portão” ficou sensacional!), entre eles Mau Mau e Felipe Venâncio; Lulu Santos, claro, lembrando que Roberto também tem sangue de “blues”; e Anitta! Anitta gente! O que o Rei estava fazendo com Anitta no palco? Cantando “Show das poderosas”! Ou melhor, Anitta cantando “Poderosas” e Roberto cantando “Se você pensa” – num dueto que eu diria que foi o mais inspirado que eu vi nos últimos tempos nesses shows de fim de ano.

Na sua trajetória de mais de 50 anos, Roberto Carlos conquistou uma espécie de patamar que está acima de qualquer crítica e comentário. De ídolo pop, passou a ser cantor popular, para depois ser reconhecido como o grande compositor poeta que é – sobretudo graças ao aval dos tais “grandes nomes da MPB”, que a crítica mais medrosa sempre fica aguardando para ver o que eles acham para depois abraçar a mesma opinião. O problema é quando ele tenta sair do óbvio – e aí ele fica vulnerável. O caso de Anitta ilustra bem isso, ao levantar, entre os mais teimosos, a pergunta óbvia: “O que o Rei está fazendo com essa garota?”. A resposta é simples: Roberto está experimentando. E, pelo menos comigo, ganha pontos por isso.

Não sou tão ingênuo assim. É claro que a presença de Anitta é menos a realização de uma vontade de RC do que uma tentativa de atrair também um público jovem para a audiência do programa – que será exibido no dia 25 de dezembro. Mas que mal há nisso se o resultado é bom – ou, no mínimo, divertido? O roteiro foi bem esperto ao introduzir Anitta como a “verdadeira voz” de Tatá Werneck, que se oferece para cantar com Roberto – mas, como fica evidente, precisa ser dublada (e por Anitta!). Depois disso, veio “Olha” (“Olha”!), e em seguida o duelo “Poderosas x Se você pensa”. Foi o delírio!

Mas não posso deixar de imaginar que teve gente que torceu o nariz para o “mau gosto” de misturar os dois artistas – e é justamente aí que Alain de Botton vem nos ajudar com suas palavras sábias. Como ele nos lembra, não gostamos de pensar que somos “elitistas” ou “esnobes”. Mas ao mesmo tempo temos uma resistência natural em aceitar uma coisa diferente. (Acredite: estou vivendo a felicidade de apresentar um programa totalmente diferente e, além da ótima recepção que ele teve, não faltaram os que acharam que eu estava alegre demais na apresentação – como se alegria fosse algo a ser “moderado”… mas eu divago, e pela segunda vez…).

Gostei de Roberto e Anitta pelo simples fato de o Rei ter topado fazer uma coisa diferente – aliás, não só com ela, mas com os DJs, e mesmo com Lulu! E me lembrei de uma outra referência recente que toca elegantemente no assunto: a música “Crucify your mind”, do obscuro cantor e compositor americano Rodriguez, cuja história foi contada no excelente documentário “Searching for Sugar Man”, e Malik Bendjelloul (o Oscar deste ano nesta categoria foi para ele). Que eu saiba, o filme nunca teve um lançamento oficial no Brasil, mas eu insisto que você o confira de qualquer jeito (encomendei meu DVD numa loja virtual americana). Resumindo em uma linha, ele é uma espécie de “Bob Dylan que não aconteceu” – um cara megatalentoso, que gravou dois discos entre o final os anos 60 e começo dos 70, mas que por um mistério do pop, nunca estourou. A não ser na África do Sul, onde mais de 30 anos depois, dois fãs resolvem buscar pistas sobre o que tinha acontecido com esse “artista misterioso”.

Mais, não posso contar – para não tirar o prazer de quem ainda não assistiu. Mas posso dizer que a música de Rodriguez é incrível – um tesouro a ser (re)descoberto. E que em uma de suas canções ele diz o verso que usei lá em cima, no início do texto de hoje: “How much of you is repetition?”. Ou, em português: “O quanto de você é repetição?”. Bem, Roberto Carlos pode orgulhosamente dizer que ele está acima disso. Eu mesmo posso, modestamente, afirmar que estou fazendo um programa totalmente diferente do outro (sem perder a identidade principal da atração). E para todo mundo que se dedica a um trabalho criativo, eu deixaria aqui a humilde dica de cantar para si mesmo a música de Rodriguez.

Se você acha que eu preciso me estender mais em explicações, é sinal de que a sugestão não é para você…

O refrão nosso de cada dia: “I wonder”, Rodriguez

Quem viu “Searching for Sugar Man” sabe que é praticamente impossível escolher uma única música deste artista inacreditavelmente esquecido para representá-lo. Mas vou pegar carona no próprio documentário para escolher uma: foi “I wonder” que, como o filme mostra, entrou no inconsciente coletivo dos sul-africanos e fez dele um artista “mais famoso que Elvis”. Descubra Rodriguez com essa primeira canção – e depois vá em frente. Sendo sempre diferente…

Foto: TV Globo / Renato Rocha Miranda

Distúrbio de déficit de atenção: duas abordagens

qui, 21/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Qualquer pessoa que tentou conversar com outra e foi interrompida quando uma das duas partes desviou o olhar para ver se tinha chegado uma nova mensagem no celular vai concordar que o distúrbio de déficit de atenção (DDA) é um dos males do nosso tempo. A epidemia, temo acrescentar, é irreversível. A quantidade de informações que nos bombardeiam a cada instante torna nossa capacidade de nos concentrar em um assunto, em uma conversa, em uma mensagem, cada vez mais difícil. Como “fazer barulho”, cativar a atenção, num mundo de estímulos tão fragmentados? Bem, esta semana eu me deparei com duas abordagens bem interessantes (e diferentes) para esta questão.

O primeiro deles é a versão para videoclipe de “Like a rolling stone”, o clássico de Bob Dylan – que apareceu esta semana no site do próprio cantor. Você com menos de 40 anos talvez tenha dificuldade de localizar esta canção na sua memória – ou talvez nem tenha esbarrado nela ainda. Mas mesmo que você a conheça de cor, vale a pena ver o clipe, nem que seja para admirar a engenhosa solução que a diretora Vania Heymann deu para este raro artefato – e cada vez mais raro hoje em dia: uma música que pede para você prestar atenção na sua letra.

“Like a rolling stone” não se tornou uma referência do pop e do rock de graça. Sobre uma música que, como Paul McCartney teria dito, “parece continuar até o infinito”, Dylan colocou um de seus poemas mais poderosos (“Qual a sensação de ficar sem um lar? Como alguém anônimo? Como uma pedra rolante” – diz o refrão que cometo o crime de traduzir aqui apressadamente). E assim criou uma das canções mais emblemáticas dos anos 60 – mas que, na verdade, tem uma mensagem tão atemporal que seduz novas gerações até hoje.

O próprio mérito maior de “Rolling stone”, porém, agora joga contra a música: quem tem paciência para ouvir tudo? Quase sete minutos? Fala sério! No entanto essa é uma das letras mais belas e importantes de toda a história do rock. A solução? Fazer um clipe que é uma fiel reprodução da maneira como as pessoas assistem à TV hoje em dia: zapeando a cada punhado de segundos. Melhor: o vídeo é interativo – quem quiser pode “controlar” em que canais prefere assistir alguém cantando a música. As opções são réplicas exatas de programas que inundam o menu das TVs a cabo: de “game shows” com prêmios milionários ao circo da previsão do tempo; de “reality” de sonhos imobiliários ao noticiário esportivo – e, eventualmente, até mesmo uma imagem do próprio Bob Dylan cantando sua música num filme de arquivo (transmitida, provavelmente, por um canal a cabo especializado em “relíquias” musicais). Em todas as versões, você sempre vai encontrar pessoas dublando “Like a rolling stone”. Com a ferramenta interativa (o próprio teclado do seu computador), você pode selecionar qualquer um dos 16 canais para assistir – ou simplesmente ficar pulando de um para o outro, como já é de hábito…

Reprodução

 

Pode ser que a estratégia não funcione sempre – afinal, estamos num nível de DDA que raramente nos obriga a ouvir (e assimilar) o que estamos vendo. Nem por isso deixo de celebrar aqui esta ideia brilhante – dessa diretora cujo trabalho vou passar a acompanhar. (Só lembrando, o vídeo surgiu para promover uma nova coletânea de trabalhos de Dylan, “The complete album collection, vol. 1″, que fãs de todas as idades devem acrescentar à lista de presentes de Natal que querem ganhar.)

A outra interessante abordagem para o DDA que vi esta semana vem de uma escola menos radical, numa linguagem bem menos moderna do que a do videoclipe: o cinema. É, aliás, uma abordagem bem antiga – mais antiga do que os próprios filmes. E também bem simples. Trata-se do velho truque de contar uma boa história.

Falo, claro, de “Blue Jasmine”, o novo filme de Woody Allen – que os distribuidores no Brasil tiveram o bom senso de deixar com o título original, sem cair na tentação de traduzir para “Jasmim azul”. Depois de dois filmes que eram uma espécie de cartão postal das cidades onde foram filmados (“Meia-noite em Paris” e “Para Roma, com amor” – o primeiro brilhantemente elaborado e o segundo mais para uma colagem de vinhetas engraçadas), Allen retoma o poder da narrativa que foi a força de outro grande sucesso recente: “Ponto final – Match point”. Ao adaptar livremente a tragédia de Blanche DuBois – a icônica protagonista criada por Tennessee Williams em “Um bonde chamado desejo” – o diretor nos deu não só uma bela parábola sobre vingança, como, de quebra, conseguiu novamente sequestrar nossa atenção por preciosos 90 minutos. O que, em tempos de DDA, equivale a uma eternidade.

Reprodução

 

Não sei se só eu reparo nisso, mas no escuro de uma sala de cinema vejo, com uma frequência que aumenta assustadoramente, mais e mais pessoas que não se aguentam e conferem seu celular em regulares intervalos de tempo para saber se têm algum novo WhatsApp ”importantíssmo” que elas “precisam” responder naquele momento, bem no meio do filme – ou no começo dele ou no seu final. A “falta de cerimônia” com o que está sendo mostrado na tela beira o absurdo e contraria o próprio princípio do cinema como entretenimento, que é te tirar do seu cotidiano e te mergulhar num mundo de fantasia (algo que o próprio Woody Allen ilustrou brilhantemente em “A roda púrpura do Cairo” – que é, sem dúvida, um dos meus 5 filmes favoritos do diretor, mas eu divago, algo que sempre acontece quando o assunto é Allen…).

Sei que corro o risco de parecer rabugento, mas não chamo atenção para este “fenômeno recente” porque me sinto incomodado com o “novo hábito”. Quando estou envolvido com um filme no cinema, pouco me importa o que as pessoas estão fazendo em volta de mim (desde que elas não estejam passando por uma DR em voz alta ou ainda respondendo verbalmente uma das mensagens “importantíssimas” que acabaram de chegar). O que lamento é que os filmes talvez estejam perdendo a capacidade de envolver o espectador a ponto de fazer com que ele esqueça de tudo e se entregue para o que está acontecendo na tela. Mas nem tudo está perdido.

Na sessão que fui conferir de “Blue Jasmine”, na última terça-feira, a sala estava surpreendentemente lotada – e ninguém sequer pensou em pegar o celular! O mérito, claro, é todo de Woody Allen – ou melhor, dele e de Cate Blanchett, que faz o papel principal de Jasmine. O filme conta com um elenco estupendo – algo que a gente já se acostumou a esperar de um filme do diretor: eu tenho uma queda especial pelo trabalho de Sally Hawkins (que já havia trabalhado com Allen em “O sonho de Cassandra”, e é uma espécie de musa do diretor Mike Leigh, que a colocou como protagonista do aflitivamente brilhante “Simplesmente feliz”); fico encantado como Alec Baldwin consegue fazer pequenas variações sobre o tema “canastrão” (uma delas com o próprio Allen, com quem trabalhou em “Para Roma, com amor”); Andrew Dice Clay, uma “criatura dos anos 80″, foi corajosamente ressuscitado neste filme; Bobby Cannavale, que eu não conhecia direito, está excelente também; e até o suave Peter Sarsgaard (lembra de “Educação”?) está bem aproveitado. Pergunto (sem medo de divagar): como Woody Allen consegue reunir um elenco tão perfeito?

Mas de que adiantaria tudo isso se ele não tivesse uma boa história para contar? A sorte é que ele tem essa boa história. Tudo bem, ela está escorada em uma personagem comprovadamente carismática da dramaturgia do século – Blanche DuBois, uma trágica figura que perde tudo e enlouquece (e passa, na sua famosa frase, a depender da “bondade de estranhos”). Mas a ela, Allen acrescenta um pouco mais de tudo: um pouco mais de comédia, um pouco mais de drama.

Quando o marido de Jasmine perde tudo ao ser preso pela polícia federal por conta de seus negócios escusos (um argumento razoavelmente contemporâneo), ela tem que se despedir da vida glamurosa que levava em Nova York e de seus próprios bens “preciosos”: joias, peles, casas na praia… Tudo que lhe resta é um punhado de roupas de grife, que ela joga numa mala com destino a San Francisco, onde mora sua irmã adotiva Ginger (Sally Hawkins). Dura, divorciada, com dois filhos para criar, mas relativamente feliz (ela tem um namorado novo e um emprego razoável), Ginger recebe Jasmine de braços abertos – uma atitude que alguns bons flashbacks revelam que nunca foi recíproca (quando Ginger resolveu passar uns dias em Nova York, Jasmine viveu um pesadelo). A situação é extremamente desconfortável para a mulher acostumada à vida boa de Manhattan, mas Jasmine não tem opção – e tem que se virar com o que tem.

E o que ela tem? Um emprego horrível num consultório de um dentista; um curso de computação; uma tensão permanente com o novo namorado de Ginger, Chili (Bobby Cannavale); e uma frágil esperança de que as coisas vão melhorar. Só que não melhoram. Pelo contrário, a mágica da sedução de sua personagem é nos arrastar com ela na tragédia que é, como sugeri acima, o fruto de uma vingança. Com quase 80 anos (ele completa 78 agora em dezembro), Allen ainda consegue passar mensagens poderosas em seus filmes, sem ser didático – e essa de agora parece mandar, ainda que de longe, um recado para sua ex-mulher Mia Farrow: se você quer jogar aquilo no ventilador, prepare-se porque vai espalhar para tudo quanto é lado…

Como em todos os seus filmes recentes, o acaso tem um papel fundamental no desfecho de sua história. Ao contrário desses mesmos filmes, porém, desta vez ele, o acaso, chega não para resolver tudo de uma maneira feliz – como em “Tudo pode dar certo” ou “Igual a tudo na vida”, onde o “Natureza shakespeariano” é um bálsamo -, mas para complicar ainda mais a vida de Jasmine. “Educado” por sua filmografia recente, eu esperava até os último minutos, um final feliz. Mas a vida – como eu já deveria ter aprendido com o próprio Woody Allen – é imprevisível. E para os dois lados: o bom e o ruim.

A “brigada do spoiler” já vai querer implicar comigo achando que eu “entreguei” o desfecho trágico de “Blue Jasmine”. Mas como poderia ser diferente uma história inspirada em Blanche DuBois – e ela é citada em quase todas as resenhas do filme que eu li, aqui em fora do Brasil? O valor de mais esse trabalho do diretor, como sempre, não está somente na sua conclusão, mas no efeito geral que passar uma hora e meia com suas histórias produz: o de sair de uma experiência de imersão numa história bem contada.

O placar? Woody Allen 1 X 0 DDA!

O refrão nosso de cada dia: “Hard out here”, Lilly Allen – se você gosta mesmo de pop, deve estar ligado na pequena polêmica que Lilly Allen (uma das minhas artistas favoritas deste começo de século) se envolveu ao lançar seu último vídeo – este que indico aqui hoje. Ela foi acusada de tudo – de racismo a misoginia! Eu prefiro indiciá-la pela fina ironia e bom humor. Mas você não precisa entrar em nenhuma dessas questões para gostar de “Hard out here”, claro…

Bastidores de um bastidor

seg, 18/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Eu tentei disfarçar. Pensei: “vou ser elegante e não vou falar de uma certa estreia que acontece hoje na TV…”. Acontece que, mesmo que eu quisesse, eu não conseguiria pensar em mais nada nas últimas 48 horas a não ser no novo “Vídeo Show” – que eu passo a comandar a partir de hoje. Estou possuído por ele – no melhor dos sentidos. Eu e mais uma equipe genial estamos nos desdobrando nos últimos dias para oferecer um programa que corresponde exatamente ao que a gente queria desde o princípio: diferente, criativo, animado, surpreendente, aconchegante (para quem assiste e para o artista convidado) – enfim, um programa vivo! Que pulsa! Que contagia!

Acredito que ele está pronto. Agora é com você, meu leitor, minha leitora fiel – com quem eu sei que posso contar. E justamente para agradecer a parceria, mando hoje algumas fotos especiais – que você não viu publicadas em nenhum jornal, em nenhuma revista, em nenhum site. E com um olhar especial. O conceito todo do novo “Vídeo Show” é colocar você, telespectador, telespectadora, nos bastidores da TV Globo. Assim, toda a programação visual tem a ver com isso – vai ser como se você estivesse acompanhando tudo muito de perto, “de trás das coxias”, como a gente costuma falar. Nem quero ir muito além nisso – prefiro que você assista para “pegar o espírito da coisa”… Mas é só para explicar que as fotos que vêm a seguir são justamente dos “bastidores de um bastidor”!

São fotos feitas sem nenhuma pretensão de divulgação – fotos que tiramos sem compromisso. Mas que, justamente por isso, dão o clima exato da alegria que está presente nas nossas gravações. Ou pelo menos parte dela… O resto você vai ver na TV!

Quinta-feira seguimos com nossos assuntos de sempre – ou você acha que eu ia aguentar não escrever sobre o novo filme de Woody Allen? Mas por ora, seja bem-vindo, bem-vinda, à intimidade de um projeto apaixonante!

O refrão nosso de cada dia: “Big fun”, Inner City - exausto como eu estava no sábado à noite, depois de muitas gravações, peguei um carro, subi do Rio até Juiz de Fora, e segui para Ibitiboca – tudo para dar um beijo em uma amiga querida que fazia aniversário. Fizemos uma festa improvisada e deliciosa à beira de uma cachoeira, com bolo, champanhe – e música boa. De repente, em um “playlist” do meu iPod, entrou esta música que eu adoro – e que às vezes passo anos sem ouvir. Quando eu morei em Nova York, em 1989, ela era meu “hino”- ouvia… todo dia! E quando ela tocou na madrugada já de domingo, todo mundo veio dançar – e foi uma celebração geral. Enfim, eu achei que tinha tudo a ver com o clima da estreia do programa de hoje, com essa fase da minha vida, com o que eu quero que todas as pessoas sintam hoje e sempre também: “Big fun”!

Quem tem tempo para vender?

qui, 14/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Música

Estou comprando! Pago um bom dinheiro! Preciso de tempo para fazer as coisas que eu gosto – e ainda estrear um bom programa na próxima segunda-feira! Ou melhor, programa eu garanto (eheh!) – e vou tentar não falar mais sobre ele hoje, senão já vão sair dizendo que eu estou fazendo “merchan”… Mas o que eu quero é tempo para distrair minha cabeça. Esse anda escasso!

Já me acostumei a brincar com quem me pergunta como está o novo projeto – que está mais para um esporte radical do que para um programa de TV. As gravações, divertidas como são, transformam-se em verdadeiras maratonas físicas, que um “senhor” de 50 anos deveria julgar melhor se tem a resistência suficiente para enfrentar… Mas possibilidade de piadas à parte, ando sem tempo para nada que não seja trabalho. E estou um pouco exasperado com isso.

Com um certo sacrifício, consegui ver esta semana o novo filme de Tom Hanks, “Capitão Phillips” – que é sensacional. Tenho que segurar para não me alongar demais sobre ele aqui agora – estou sem tempo, lembra? -, mas não posso ir adiante sem fazer minha recomendação expressa para que você vá vê-lo. Agora! Não me venha com essa história de que já viu o trailer e já sabe o que vai acontecer: aquela amostra mal dá conta da metade do suspense do filme – que tem um desfecho de você assistir abraçado nos seus joelhos, de tão tenso. Por conta de “Phillips”, Hanks já está cotado (em novembro!) como um nome para o Oscar de 2014 – e por isso mesmo, quando eu for falar dessa “corrida” espero poder discorrer um pouco mais sobre essa performance incrível. Mas agora…

Em horários para lá de alternativos, consegui terminar a primeira temporada de “Homeland”. Eu sei… Estou atrasadíssimo! Mas pode me esnobar se você já está afinado com a terceira temporada, esperando a quarta. Ainda estou vivendo os arrepios daqueles episódios iniciais – e não paro de me perguntar: como esses caras conseguem contar histórias tão boas? E já que estou falando de TV, fui fisgado – ainda que perifericamente – pelas novidades no formato de uma certa novela chamada “Além do horizonte” (que marca pontos comigo por sua ousadia).

Seguindo no entretenimento, como você acompanhou aqui mesmo, fui capaz de ouvir com atenção os novos trabalhos do Arcade Fire e de Lady Gaga. E – não sei bem como – estou avançando em boas leituras (entre elas, a tradução do elogiado “A arte do jogo”, de Chad Harbach, lançado aqui pela editora Intrínseca). Não tem sido, insisto, tarefa fácil, mas persevero nela! Só que aí vem a internet – mais precisamente essas malditas “newsletters” que a gente assina – e me enche de novas tentações que eu simplesmente não consigo satisfazer!

Por exemplo, a lista recente que o site “Flavorwire” me mandou com os 50 melhores primeiros “singles” do pop – ou seja, as 50 melhores músicas que serviram para lançar a carreira de um artista. E eu me pergunto… Quando vou ter tempo de ouvir tudo isso? Claro que conheço boa parte deles – de Kate Bush (“Wuthering heights”) a Neneh Cherry (“Buffalo stance”), passando por M.I.A. (“Galang”), Azealia Banks (“212″) e Radiohead (“Creep”). Mas e o primeiríssimo single de Missy Elliot, “The rain” – que eu já não me lembro mais? Ou “Virginia plain”, do Roxy Music? Confesso aqui nunca ter ouvido “Piss factory”, de Patti Smith… Nem “It’s yours”, de T la Rock e Jazzy J… Sem falar nas canções que tenho saudade e queria ouvir novamente agora: “Birthday”, do Sugarcubes; “Radio free Europe”, do R.E.M.; “Motown junk”, do Manic Street Preachers… Você tem tempo? Então vai lá e ouve por mim!

Mas esse não foi nem o link mais tentador que eu recebi esta semana. Minha tristeza de não conseguir fazer tudo que eu quero se instalou mesmo quando o site “Vulture” – que é o “braço” de cultura da revista “New York” – me mandou algo que com o nome de “O último guia cultural que você precisa ter”. Essa sim, foi uma punhalada!

O que essa lista tem de tão interessante? Bem, um monte de coisa para ver, ouvir, ler… dos últimos 60 anos! A proposta “terrorista” do “Vulture” é resgatar obras antigas que não são óbvias e te provocar para dar uma chance a elas. Nos filmes, por exemplo, entre as pérolas que o site aposta que você nunca viu estão títulos que eu nem sei se existem em português, como “The file of Thelma Jordan” (1950) ou “David Holsman’s diary” (1969); um filme esquecido de Brian de Palma (“Pecados de Guerra”, de 1989); um bom filme turco (“Yol!”, de 1982); e até mesmo “Let it be” – esse mesmo que você está pensando! E tudo com links para você procurar na própria internet!

E quem disse que o assunto se esgota por aí? Num canto mais obscuro ainda da lista, você encontra “20 filmes não disponíveis comercialmente que você pode ver online (se você souber onde procurar)”… Um documentário sobre Karen Carpenter feito com bonecas Barbie, o musical favorito da venerada crítica de cinema Pauline Kael (“Pennies from heaven”), o “Nosferatu” de Werner Herzog… Quando? Quando? Quando eu vou poder assistir a tudo isso?

Não vou nem me alongar aqui na lista deles com seriados de TV – que você também pode encontrar online – nem na seleção de leituras de obras menos óbvias de autores óbvios (sem falar nas bibliotecas e coleções de textos virtuais que eles indicam). Só vou dar mais alguns detalhes dos discos “preciosos” que eles destacam desde os anos 50 – no item “60 grandes álbuns que você provavelmente nunca ouviu”! Como o da artista gospel Irmã Rosetta Tharpe (“Gospel train”, 1956); o obra-prima do “boogaloo”, “Riot!”, de Joe Bataan (1968); “África Brasil”, de Jorge Ben (1976) – sim, eu também fiquei surpreso!; o mais que dançante “Foundation”, do Ten City (1989); um favorito meu (também esquecido), “Fantasma”, do músico multi-instrumentalista japonês Cornelius (1997); e um certo Calle 13, com o título irresistível de “Los de atrás vienen conmigo” (2008). E isso é só uma amostra…

E uma amostra, aliás, que eu espero que você tenha tempo de desfrutar – já que eu…

Mas isso não vai ficar assim… Mesmo com o relógio me cobrando a cada segundo, vou deixar no post de hoje uma espécie de “contra-ataque terrorista” aos incríveis criadores das listas da “Vulture”… É um “ensaio de guerrilha”, uma lista curta, com dez discos que eu ouço com carinho, e que eu tenho certeza de que eles não ouviram… E com um pouco de sorte, nem você! É uma bobagem. Mas faço questão de apresentá-la aqui, nem que seja pra provar que, escondido no fundo da mente de um jornalista e apresentador ocupado sempre mora um fã de música alternativa (leia-se música que você não tem ideia de que vai sequestrar os seus ouvidos!).

Preparado? Preparada? Aqui vai uma proposta de “caça aos tesouros musicais”… Segunda a gente fala mais – mas por enquanto… Ouve isso:

 

“Veraneio”, Eddie

 

 

 

 

 

“The story of Ethio Jazz 1965-1975″, Mulatu Astatke

 

 

 

 

 

“Listen”, Urban Species  

 

 

 

 

 

 ”Oh vanille”, Diane Cluck

 

 

 

 

 

“Anokha – Talvin Singh presents Soundz of the Asian Underground”

 

 

 

 

 ”The platinum collection”, Mari Wilson

 

 

 

 

 

“So… How’s your girl?”, Handsome Boy Modeling School

 

 

 

 

 

“Loss”, Mull Historical Society 

 

 

 

 

 

“Mustaphas play stereo”, 3 Mustaphas 3 

 

 

 

 

 

“2000″, Mathieu Boogaerts

O problema de escrever sobre “Artpop” é…

seg, 11/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Música

Muitos anos atrás, quando eu visitava uma amiga editora numa redação de jornalismo, em Nova York, eu a perguntei sobre uma brasileira que trabalhava com ela da última vez que eu havia passado por lá, mas que eu ainda não tinha visto pelas mesas da sala em que estávamos. “Eu tive de demiti-la”, respondeu minha amiga. E completou: “Ela tinha ideias demais”. Fiquei um pouco perplexo, não apenas com o “sumiço” da jornalista – que era ótima – mas também com a justificativa, que tinha um tom de “é difícil lidar com gente muito criativa”. Semanas depois, já de volta ao Brasil, procurei a tal jornalista, ofereci uma posição a ela, trabalhamos juntos por pouco mais de um ano, e depois ela foi seguir outros caminhos – alguns mais ousados, outros mais convencionais, mas todos brilhantes, onde ela podia (e pode até hoje) exercer esse seu dom divino de ter ideias.

Lembrei-me dessa história da minha colega (e amiga) quando estava ouvindo “Artpop”, o novo álbum de Lady Gaga – lançado na semana passada. Você já me conhece e pode imaginar que eu comecei a escutá-lo já com as mais honestas intenções de comentar o disco por aqui. Mas quando “Aura”, a faixa de abertura, começou a tocar – e fiz minhas primeiras  anotações mentais – eu senti que minha tarefa não seria das mais simples: em pouco mais de um minuto, aquela música já me apresentava tantos elementos, sons, propostas, instrumentos, nuances, que eu pensei que seria capaz de escrever um post só sobre ela!

“I’m not a wandering slave, I am a woman of choice”, declara Gaga no primeiro verso de fato cantado de “Artpop” (não sem antes abrir a própria “Aura” com uma boa gargalhada). Em português, numa tradução livre minha (e sempre apressada), é como se ela dissesse: “Eu não sou uma escrava errante, mas uma mulher de escolhas”. O recado assim, está dado logo de cara: “Sim, cheguei com mais um trabalho, extremamente autoral, onde eu vou fazer exatamente o que eu quero e você vai ouvir, e vai prestar atenção, e vai me adorar em um bom punhado de momentos, me odiar em alguns outros, mas eu não vou deixar você sossegado com minhas ideias, pois foi você que abriu a caixa de Pandora lá atrás quando me escolheu como sua diva, então estou dando em troca exatamente o que você pediu – vire-se!”. E o que Gaga quer dessa vez – e o que nós vamos aprender a idolatrar – é uma exuberante enxurrada de ideias. Diante disso, você pode fazer como minha amiga editora de Nova York – demitir Gaga da sua vida. Ou você pode fazer como eu fiz com a “jornalista cheia de ideias”: seguir acreditando nela.

Eu, claro, escolhi a segunda opção – o que me colocou então diante do problema que esboço no título de hoje: como encontrar um foco para escrever diante de um turbilhão de ideias? A solução foi ouvir “Artpop” repetidas vezes e selecionar algumas delas que me chamaram a atenção. Conseguirei fazer um bom retrato, uma avaliação completa desse seu último disco? Provavelmente não. Mas aqui vai uma boa tentativa (e aos leitores que estão comigo hoje apenas para saber se eu gostei ou não do álbum para seguir adiante na sua dispersão virtual diária, desculpe decepcioná-los… vão ter que ir comigo por mais alguns longos parágrafos para tentar chegar a algumas conclusões).

Antes mesmo de “Artpop” ter sido lançado, muita coisa já tinha vazado na internet – e ouvir isso era uma tentação a qual resisti bravamente, a não ser pela inevitável sedução de “Applause”. Essa era a primeira música que Gaga apresentava depois de um período relativamente turbulento em sua carreira. O enorme sucesso de seus primeiros álbuns parecia ter desorientado a cantora temporariamente – ou pelo menos desorientou temporariamente seus fãs, que não sabiam muito bem como responder ao que estavam ouvindo. “Born this way” – o álbum – chegou como um trabalho extremamente ambicioso e confuso. Misturava incríveis notas pessoais (“Hair”), com refrescantes artilharias pop (“Judas”). O disco todo era de uma verborragia impressionante até mesmo para Gaga – e essa vontade de falar foi justamente o que encontrei quando eu a entrevistei pela segunda vez, há mais de dois anos (e dividi aqui com você). Para tentar fazer um pouco de sentido em tudo que estava querendo dizer, Gaga saiu pelo mundo numa poderosa turnê, que teve um de seus pontos altos aqui mesmo no Brasil, exatamente há um ano, na memorável noite do Rio de Janeiro, quando ela então chorou.

Para onde ela poderia apontar depois disso? Para o infinito, claro – se “Artpop” pode nos dar alguma resposta.

Quem quiser achar neste novo trabalho de Gaga aquela faixa fácil que vai dominar instantaneamente as pistas de dança, vai ter que penar. Ela está lá – aliás, elas estão lá: “Artpop” tem bem mais do que uma só música com potencial de se instalar no nosso “hard disk” – assim como “Pokerface”, “Paparazzi”, “Alejandro”, “Born this way” (entre outras) já fizeram. Mas você vai ter que abrir os ouvidos para assimilá-las bem, pois cada uma delas vem com tantas e tantas camadas de produção, que por pouco não chegam a nós já sufocadas. Às vezes, como em “G.U.Y.” – que eu acho de um grande potencial dançante – parece que essa camuflagem musical é colocada ali quase de propósito, para fazer com que as pessoas esqueçam que Gaga tem esse dom incrível da composição (invejado por artistas do calibre de Elton John). Mas, pensando um pouco com a cabeça de Gaga, ela não saberia fazer diferente: é a tal exuberância criativa. São tantas ideias, que ela acaba às vezes exagerando. O que não é um problema para seus fãs – que foram criados numa dieta de deliciosos excessos.

Mas nem tudo é assim. Em outras faixas, percebe-se nitidamente esse “artesanato musical” de Gaga, e o melhor exemplo disso está em “Gypsy” – talvez minha faixa favorita de “Artpop”. Ela está lá, quase no final do disco, colada em “Applause” (que “fecha os trabalhos”). Chegar até lá, para quem se propõe a ouvir o álbum inteiro de uma vez (como eu me propus) é quase um esporte radical: exige um excelente preparo. Mas antes de nos apresentar “Gypsy”, Gaga dá um tiro certeiro na nossa atenção: chama para uma pausa daquele ritmo frenético que só vinha aumentando a cada música, e nos oferece uma belíssima balada (talvez a mais bela de todas que ela já compôs), “Dope”. A letra é fortíssima (“Eu vou seguir procurando respostas, porque eu preciso de você mais do que das drogas” – na minha tradução, como já disse, apressada), o piano mais ainda, e a cantora solta sua voz como eu só havia visto no palco (nas gravações de estúdio ela parece sempre estar aquém do seu potencial, graças à superprodução – mas eu divago…). Assim, uma vez que você está numa espécie de estado de graça, “Gypsy” começa quase sem interrupção – na verdade, parece mais um verso de “Dope”. Mas em meros 40 segundos, a canção já está virando outra coisa e… espera um pouco, quem é que está cantando mesmo? Donna Summer?

“Gypsy” me lembra de um daqueles clipes dos anos 80, em que um artista começa cantando sozinho numa sala escura e aos poucos tudo vai se iluminando, as pessoas vão entrando, as bolas de cristal descem do teto e tudo vira uma enorme pista de dança. Sim, Lady Gaga pode. E você pode se divertir com isso. De bônus, vem um refrão para lá de poderoso, e um coro que eu desafio você a resistir cantar junto às duas horas da manhã depois de não mais que duas cervejas na balada. Em algum lugar da Califórnia, Katy Perry está se perguntando: como eu não pensei nisso antes?

Mas um disco, para funcionar, não pode depender de apenas algumas faixas notáveis. E por isso, mesmo extremamente satisfeito com as músicas que já citei, perguntei-me: o que mais tem de bom em “Artpop”?  Certamente as participações de T.I., Too $hort e Twista em “Jewel’s N’ drugs” (eu diria que Gaga está finalmente aprendendo a escolher parceiros de hip-hop tão bem quanto Nicki Minaj). Ou ainda, R Kelly, que andava meio esquecido, e volta com tudo em “Do what U want”. “Swine” (“Suíno”) é de uma grosseria colossal – e eficiente: “Você desagradável, é só um porco em um corpo de humano”, dispara Gaga sobre um poderoso ritmo dançante (e aí está mais um potencial sucesso nas pistas – um coro gritando “suíno!” nunca soou tão glamuroso!). “Venus” tem um daqueles refrões tão contagiantes que nos remete justamente ao início da carreira de Gaga – numa metarreferência, é como se ela lembrasse da ordem que ela mesma deu nos idos de 2008: “Just dance”. (Numa nota curiosa, descobri recentemente que esse “single” foi lançado nos Estados Unidos exatamente no dia do meu aniversário, há cinco anos – seria um presente que o destino tinha reservado para mim, ou eu divago mais uma vez?). E “Sexxx dreams”, apesar de voltar a temas bem conhecidos do repertório da própria artista, ganhou também minha atenção – em parte pela referência à masturbação (algo que sempre me diverte no pop – veja “o refrão nosso de cada dia” de hoje, logo abaixo), em parte pelo charme da interrupção da música, quando, quase aos três minutos, tudo para e Gaga diz num tom íntimo: “Eu não acredito que eu estou te contando essas coisas, mas eu tomei uns (bons?) drinques e… oh meu Deus…”.  Essa é a frequência na qual eu gosto de ouvir de Gaga! E por isso, agora vou ficar um bom tempo com essa lembrança.

Faixas como “Manicure”, “Donatella” e “Fashion!” – ou mesmo a elaborada “Mary Jane Holland” – não me cativaram tanto, mas eu não diria que isso é um defeito de “Artpop”. Nessa abundância criativa que é o disco – algo que já reforcei desde o início deste texto – uma certa “taxa de desperdício” é até aceitável. E, também nessa mesma abundância criativa, sua parceria com o artista plástico Jeff Koons – um dos mais importantes do nosso tempo (ou, pelo menos, um dos artistas vivos mais caros, com obras negociadas em leilões por milhões e milhões de dólares) é um complemento perfeito para “Artpop”.

Baixei o disco (oficialmente) no meu desktop e, pela primeira vez, dei atenção ao “digital booklet” que vem junto com uma compra dessas. Entre as resistências que pessoas da minha geração têm em se despedir dos CDs, está justamente o “fetiche” que aprendemos a ter com relação aos “livrinhos” que vinham (vêm ainda) encartados naquelas horrendas caixinhas de acrílico. Pois bem, eu declaro que “Artpop” me ajudou a superar esse trauma: mergulhei de cabeça nas letras das músicas do “caderninho digital”, nas informações extras sobre o disco, e sobretudo nas imagens de Koons e Gaga. Como tive a sorte de visitar a exposição do artista em Nova York, onde ele mostrava esses novos trabalhos, me senti especialmente conectado à mensagem que eles queriam passar – mas já estou divagando de novo, pela terceira vez…

Eu poderia me perder aqui em mais alguns parágrafos discorrendo sobre a relação entre arte e música – começando por um paralelo delicioso entre Andy Warhol e Velvet Underground, até a gente chegar em Koons e Gaga. Mas vou deixar sua própria inteligência vagar por essa possibilidade enquanto eu ouço “Gypsy” mais uma vez – e lamento que, pelo menos até a estreia do meu novo projeto (no próximo dia 18), eu não terei nem o tempo nem a energia para me entregar às possibilidades dançantes dessa nova fase de Lady Gaga. Mas em breve a gente se esbarra numa pista – eu sei…

O refrão nosso de cada dia: “I touch myself“, Divinyls – um dos melhores (e certamente o mais engraçado) hino à masturbação do pop. Em 1991, essa música apareceu em uma fita que havia chegado da MTV americana e não tive dúvidas: sugeri que ela entrasse em altíssima rotação na nossa antiga MTV. A canção é uma deliciosa bobagem: uma mulher declarando que quando seu homem não está por perto, ela não aguenta e… tem que se tocar. Com versos “líricos” como “Quando eu estou por baixo, eu quero você em cima de mim” (não estou inventando!), essa música (se você ainda não a conhece) vai te conquistar imediatamente! Nem que seja pelo jeito que a vocalista Chrissy Amphlett (que morreu este ano por consequência de um câncer de mama e esclerose múltipla) pronuncia “túch máselll…” com seu adorável sotaque australiano. Se você estiver sozinho lendo isso e ouvindo “I touch myself”, aqui vai um alerta: mantenha as mãos no teclado! Depois não diga que eu não avisei…

Imagem: Capa de ‘Artpop’, de Lady Gaga/Divulgação

A maldição da ‘Escrava Isaura’

qui, 07/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Seja na versão de 1976 (a que eu acompanhei), na versão de 2004 (que novas gerações puderam acompanhar) ou nas inúmeras versões em várias línguas (que permitiram que o mundo inteiro acompanhasse), “Escrava Isaura” não deixa ninguém indiferente. A adaptação de um livro de 1875, escrito originalmente pelo mineiro Bernardo Guimarães, é uma das histórias mais populares da teledramaturgia nacional – ou até da internacional (se você dúvida, pergunte a um chinês quem é “Isôra”!).

Lançado em plena febre abolicionista no Brasil, “Isaura” já nasceu um sucesso. Entre vários livros que somos condenados a ler sem contexto algum na escola (quantas obras-primas desperdiçadas foram empurradas a alunos que não tinham ainda capacidade para absorver suas letras em toda sua generalidade? – pergunto eu já ciente de que divago…), o de Bernardo Guimarães é um vibrante oásis – um “novelão”, muito antes de a TV inspirar essa expressão, que cativa logo no primeiro capítulo. Adaptá-lo como telenovela, numa época em que o próprio formato buscava uma identidade distinta, foi ao mesmo tempo uma ideia óbvia e ousada. A história da escrava mestiça, que lutava por independência das mãos de um cruel sinhozinho (o terrível Leôncio) é não só cativante como causa social, mas também fala direto ao coração. E a “fórmula infalível” provou ser também extremamente contagiante.

Justamente pelo enorme sucesso que teve, “Escrava Isaura” parece ter criado uma barreira invisível na dramaturgia brasileira – como se o assunto tivesse se esgotado ali mesmo, como se tudo que você precisasse saber sobre escravidão no Brasil (e mesmo sobre os desdobramentos desse passado terrível) estivesse contido naquela trama. Essa é uma (incômoda) ideia que comecei a desenvolver desde que vi, no final da década de 70, a série de TV americana “Raízes”. Além de oferecer incontáveis oportunidades de trocadilho para minha turma adolescente com o nome do personagem principal (Kunta Kinte), fiquei completamente hipnotizado por ela, não sem levantar! porém! uma questão: a escravidão que ela mostrava era bem diferente daquela que eu tinha lido e visto em “Isaura”. Era certamente mais gráfica – pode perguntar para qualquer pessoa com cinquenta anos ou mais sobre uma cena memorável da TV dessa época e a resposta certamente vai ser o espancamento de Kunta Kinte. Mas, a julgar apenas pelas obras de ficção, a “coisa” lá nos Estados Unidos tinha sido muito mais feia… Ou será que não?

De vez em quando volto a pensar nisso: em como o Brasil se relaciona mal com seu passado escravocrata – sobretudo nas artes. É raro encontrar um livro tão sensível (e contemporâneo) sobre o assunto quanto “Um defeito da cor”, de Ana Maria Gonçalves – frequentemente citado por mim aqui. (Outro livro que comecei a ler agora, “Em breve tudo será mistério e cinza”, de Alberto A. Reis, Companhia das Letras, promete nessa área – mas você terá de esperar para ler sobre ele aqui). Ainda mais raro é ver o tema tratado com a transparência necessária para uma “limpeza de alma nacional” na teledramaturgia recente – a novela “Lado a lado”, ainda fresca na memória, tentou tocar no assunto, mas apostando mais no lirismo do que na realidade histórica. E o assunto praticamente inexistente na filmografia brasileira contemporânea.

Ok, você vai lembrar de “Cidade de Deus”? “Tropa de elite – 1 e 2″? Mas pense bem: o que está exposto ali, e com a maestria de diretores como Fernando Meirelles e José Padilha (respectivamente), é menos um problema racial do que social. As origens desse problema, não há como negar, são raciais. Mas nossa sociedade inexplicavelmente faz vista grossa para encarar essa diferença entre negros e brancos no Brasil, e faz questão de tratá-la como uma questão menor – quase inexistente. Para quê colocar o dedo numa ferida que ninguém quer reabrir – sobretudo a população branca -, uma questão que tem um culpado tão definido (essa mesma população), tão historicamente inegável, quando é muito mais fácil “jogar a culpa” num inimigo abstrato: a questão social? (E, veja bem, não uso “abstrato” como algo que não existe – a questão social existe sim e é bem real -, mas algo que é tão gigante e distante que é quase impossível de definir).

Não, esses filmes não são sobre a questão racial no Brasil mais do que “Faroeste Caboclo” é sobre um amor impossível. Há pouco tempo escrevi sobre este filme aqui mesmo neste espaço, arriscando bancar que ele seria uma versão brasileira de “Django livre” (mais sobre esse filme daqui a pouco), mas, como sugeri na época, ninguém quer pensar nele sob esse ponto de vista. Porém se você quiser saber mesmo que produção nacional recente chegou perto de tocar no assunto – ainda que de maneira brilhantemente disfarçada – eu diria que o sensacional “O som ao redor” merece esse crédito: raríssimas vezes vi em nossas telas a herança dos senhores de engenho tão bem representada (mas eu divago, e pela segunda vez…). Mas estamos falando de um nível de sutileza que não deveria nem entrar nessa discussão.

Voltei a pensar nessas coisas, começando de novo lá na “Escrava Isaura”, na última segunda-feira, quando saí de uma sessão de “O mordomo da Casa Branca”, o novo filme de Forest Whitaker – dirigido pelo inquieto Lee Daniels (lembra de “Precious”?). Não é grande coisa – e eu diria até que se fosse uma produção brasileira deixaria todo mundo muito decepcionado. Mas fiquei emocionado assim mesmo.

Preciso me explicar melhor: quando digo que “Mordomo” não é grande coisa, é no sentido de ele não ser um filme inovador. Sua narrativa, que sai da infância de Cecil Gaines (Whitaker) nos campos de algodão, passa por boa parte dos presidentes americanos que ele serviu, e termina no seu encontro com Barack Obama, é bem linear – beirando quase o ingênuo. Os paralelos da carreira de Cecil e da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos são fáceis demais – ainda que baseados em fatos reais (tanto da história do país quanto da do filho Cecil, Louis). Mas justamente por isso tudo, senti que o roteiro desperdiçou a chance de contar uma grande história como essa. Whitaker está impecável. Oprah também – no papel da mulher de Cecil, Gloria. Até Mariah Carey (que já tinha brilhado com Daniels em “Precious”) está bem. E Cuba Gooding Jr – em quem eu já tinha perdido as esperanças… Mas nem com tudo isso, “Mordomo” é um grande filme.

No entanto, toca no assunto “escravidão” como nenhum filme brasileiro jamais ousou tocar. Ou ainda, eu diria que nenhuma produção nacional teve esse ousadia até agora, porque antes disso tem que vir a vontade de falar do assunto. Desde o ano passado, com “Django livre”, tenho me perguntado se existe no Brasil um espaço – ou mesmo um público – para um cinema que exponha questões raciais. A julgar pela popularidade de “Django” por aqui, parece que o interesse existe. Mas por que ninguém está fazendo um filme assim então?

“O mordomo da Casa Branca” é só a ponta do icebergue. Daqui a pouco vamos ver o novo filme de Steve McQueen, “12 years a slave” (que ainda não tem um título em português – será que estão com medo de usar a palavra “escravo” e afugentar a bilheteria?). E sei que vou me perguntar de novo onde estão os cineastas querendo mostrar histórias assim no Brasil? Esperando seus roteiros ganharem um concurso para um financiamento? Emperrados numa disputa (tão moderna) sobre autorização de biografias para ser adaptado (e lá escravo tem esse direito? – perguntarão os mais cínicos…)? Dentro da cabeça de artistas que ainda vão amadurecer? Ou abandonados para sempre, num país que tem vergonha de dizer que tem um problema com a escravidão?

Não tenho essa resposta. Só sei que essa pergunta martela cada vez mais forte na minha cabeça. Mas pelo menos agora eu a dividi com você. Quer continuar a conversa?

O refrão nosso de cada dia: “Think (about it)”, Lyn Collins – digamos que esse clássico soul, que até hoje não falhou em nenhuma pista de dança que toquei, é a provocação perfeita para a discussão que propus aqui hoje. Se você, claro, estiver a fim de pensar…

(Crédito das fotos: Cedoc/TV Globo e Divulgação) 

Mas voltando a falar de música…

seg, 04/11/13
por Zeca Camargo |
categoria Música

Algo muito estranho aconteceu quando comecei a ouvir “Reflektor”, o novo álbum do Arcade Fire – que acaba de ser lançado: eu achei que não era um álbum do Arcade Fire.

Leitores regulares deste espaço, sobretudo os que se interessam por posts que falam de música pop, devem se lembrar que a última vez que escrevi sobre a banda aqui não foi de uma maneira, digamos, simpática. Entre vários problemas que eu encontrava no então novo trabalho da “aclamada” banda canadense, eu apontava logo no primeiro parágrafo o mais grave deles: não tinha surpresa alguma. Imagine qual não foi o meu susto então quando, em menos de um minuto dessa primeira faixa – que tem o mesmo título do álbum – eu não fui tomado pela sensação exatamente oposta daquela que eu tive quando escutei “The suburbs”: a de que eu teria uma surpresa atrás da outra!

E assim foi em cada canção de “Reflektor”. Eu tinha ouvido muito pouco sobre esse álbum. Na verdade, eu estava, digamos, ligeiramente afastado da música. Um projeto profissional (completamente excitante e absorvente) misturado à euforia de diversões mundanas que eu estava redescobrindo (leia-se “um cineminha no fim-de-semana”), mais um renovado encantamento pela possibilidade de ficar quieto em casa e assistir a séries completas de TV (finalmente embarquei em “Homeland”, que espero comentar aqui em breve) – tudo isso, sem querer, tinha me afastado de uma das minhas inspirações favoritas: algo tão simples quanto ouvir música.

Eu estava distante dela, ouvindo coisas antigas por pura preguiça de pesquisar algo novo – quando não simplesmente cometendo o “crime” de passar um dia inteiro sem ouvir música que não fosse periférica – algum som que esbarrasse em mim na rua ou que chegasse aos meus ouvidos pela trilha sonora de um filme que eu estivesse vendo. A última vez que parei para escutar alguma coisa a sério – e inevitavelmente dividir com você – foi quando, há pouco mais de um mês, me apaixonei por “6 feet beneath the moon“, de King Krule. Mas aí uma amiga me mandou o link com o clipe de uma nova faixa do Arcade Fire, “Afterlife” – que, usando imagens do antigo filme “Orfeu negro”, criou uma associação de ideias sensacional e inédita, que até hoje eu não sei se é mesmo “oficial”. E uma nova esperança se renovou no meu coraçãozinho ligeiramente cansado de ouvir tanta bobagem em 2013: tudo indicava que o Arcade Fire viria com algo realmente poderoso.

Não como da última vez, quando “The suburbs” chegou com tanta expectativa, que quem quer que ousasse destoar do coro de aprovação para aquele disco – que, mesmo hoje, depois de ouvi-lo novamente para poder escrever o próprio texto que você lê agora, ainda acho apenas mediano – seria recebido com severas reprimendas. Acredite: eu vivi isso na pele. Mas não, a expectativa desta vez não estava em um frívolo “hype”, mas numa música de fato boa, diferente, excitante e até mesmo pop – e que me desculpem os fãs mais roqueiros da banda se eu os ofendo com esse adjetivo (para mim, não pode haver um elogio maior…).

A suspeita de que o Arcade Fire viria com um disco bom, capaz de criar uma excitação como aquele primeiro álbum, lá atrás – “Funeral”, de 2004, lembra? – foi logo confirmada então já na introdução de “Reflektor”. Mas, é bom que se diga, as qualidades deste trabalho mais recente são bem diferentes das que fizeram aquele álbum de estreia ser um clássico instantâneo. Se, há quase dez anos, o Arcade Fire chamou a atenção (pelo menos a minha) com uma refrescante mistura de sons introspectivos e climáticos, a tônica de “Reflektor” está mais para, hum, a festa!

Isso mesmo: desde os primeiros acordes da faixa-título, até a mini obra-prima que é “Afterlife” – passando por canções genuinamente divertidas, como “You already know” – é como se a banda, que ameaçou ser a última esperança dos neo-góticos há quase dez anos, flertou com a pretensão em “Neon bible” (2007), e quase se diluiu no tolo revivalismo do rock americano no início desta nossa década, finalmente tinha encontrado uma voz original. E essa voz estava mais para Cindy Lauper cantando “Girls just wanna have fun” do que para Echo and the Bunnymen do outro lado do ringue ensaiando “The killing moon”. (Eu exagero, eu sei, mas se não for assim, não fica divertido).

“Reflektor” já é, para mim, um dos discos de 2013 – e não só porque é um convite à dança inteligente em tempos de lúgubres invasões de “boy bands” clonadas. O que me encantou mais no disco foi justamente a ousadia do Arcade Fire de jogar os estereótipos e clichês que a mídia – e mesmo alguns fãs – insistiam em atribuir à banda, e simplesmente se reinventar. Em vários momentos, lembrei-me do Talking Heads bem lá no início de carreira, quando eles pareciam jogar fora uma brilhante trajetória “pós-punk” em troca de um pequeno devaneio musical por ritmos africanos. (A história certamente se encarregou de mostrar quem estava certo, David Byrne ou aqueles outros cantores que circulavam por Nova York no início dos anos 80 de quem você nunca mais ouviu falar…).

Mas o paralelo, veja bem, não é superficial. Não quero, com isso, dizer que a “grande sacada” do Arcade Fire agora foi beber na mesma fonte dos Heads – o Vampire Weekend faz isso desde seu primeiro disco, e muito bem (se bem que daqui a pouco seria interessante eles variarem um pouco, mas eu divago…). O brilho de “Reflektor” está não no seu olhar para trás, mas para frente. Tenho a impressão de que eles olharam primeiro para dentro do próprio som da banda, e depois lá para um horizonte, para então perguntar: como é possível hoje fazer um álbum que seja ao mesmo tempo sério, divertido – profundo e dançante? A resposta veio nessas treze novas faixas que eu não paro de ouvir há uma semana. (Em algum canto de Dublin, na Irlanda, um certo Bono e um certo The Edge devem estar coçando a cabeça, jogando fora rascunhos, e entreolhando-se como quem pergunta: “e agora?” – mas eu divago de novo…).

Se você ainda não ouviu nada de “Reflektor”, meu primeiro conselho é: tire um tempo para isso, com calma. Primeiro por que a maioria das músicas cravam mais de cinco minutos – quando não seis, sete, ou até mesmo onze! Depois, porque, apesar de quase todas as faixas terem aquele raro dom de te conquistar logo nos primeiros acordes, essa “isca sonora” é mutante: uma música de “Reflektor” raramente permanece a mesma ao longo de toda sua duração. Pegue “It’s never over (Hey Orpheus)”, por exemplo. (A referência ao mito de Orfeu e Eurídice que aparece no clip de “Afterlife” pontua o disco todo). Essa música a princípio parece uma releitura de uma noite “ácida” do início dos anos 90 (mais ou menos como Primal Scream na época de “Screamadelica”). Mas logo ela é interrompida por uma batida forte com um sotaque (sim) africano – e em seguida você pode achar que essa é uma faixa que ficou de fora do curioso disco “Hot space” (1982). Só que as vozes que entram aos poucos estão mais para os cantos de Edward Sharp and the Magnetic Zeros – que tão bem sintetiza os “neo-folk” desses últimos cinco anos. E no final, claro, é tudo festa! Tudo o que você quer é procurar uma pista para se perder cantando (e dançando) o refrão hipnótico ao longo de seis minutos e 43 segundos.

Ou veja o caso de “Porno”, que começa com uma base musical que tiraria o sono de Madonna na sua época mais “Erotica”. Mas logo vira um daqueles hinos sinistros que Michael Hutchence (INXS) dominava com perversa maestria – e lá no final dos seus (também) seis minutos, a rendição de um moderno U2 está completa. Mais um exemplo de camadas e mais camadas sonoras? “Here comes the nightime” abre com tambores que fariam Florence and the Machine ter um orgasmo – mas que não duram mais que alguns segundos. Eles dão espaço para um ritmo dançante seco, que é algo entre M.I.A. e Buraka Sound System. Uma curta frase musical na guitarra – “à lá” The Cure – entra para pontuar, e acho que ouvi até aquela percussão metálica do Caribe. Até que a velocidade aumenta e é como se um furacão entrasse no estúdio, varrendo tudo com eles – num efeito que o Coldplay só poderia invejar… (Mas não se preocupe: os estalidos caribenhos voltam no final para deixar tudo novamente em paz).

Mas se nada disso te convencer, tem “Afterlife”. Pegue tudo de bom e alternativo que foi feito nas últimas décadas, misture bem – e você vai ter uma ideia do que é essa faixa. Mas misture tudo mesmo: Blur, Supergrass, Arctic Monkeys (que também tem um ótimo disco novo – já ouviu?), Manic Street Preachers, Suede, Test Icicles, The White Stripes, Lightspeed Champion, uma pitada de Radiohead (sim!), Teenage Fanclub – e mais toda essa gente que eu já citei hoje (U2, M.I.A., Coldplay etc.). Está tudo em “Afterlife” – uma música que eu espero ouvir ainda por muitos anos.

Acima de tudo, “Reflektor” tornou-se minha trilha sonora pessoal de um recomeço. Há pouco escrevi aqui mesmo “reclamando” de que atravessava uma “entressafra” – mas as coisas parecem estar melhorando. Estou às vésperas de estrear um novo programa – o que é sempre bom. Leio não apenas um livro sensacional atualmente (“O ruído das coisas ao cair”, de Juan Gabriel Vásquez, editora Alfaguara), mas três (ou outros dois são “A naked singularity”, de Sergio de la Pava, e “Necessary errors”, de Caleb Crain – todos, claro, espero poder comentar aqui em breve). Vi bons filmes recentemente – como escrevi aqui na última quinta-feira. E agora, “Reflektor”!

É, as coisas estão realmente melhorando…

O refrão nosso de cada dia: “I won’t be long“, Beck – será que eu ainda preciso de uma desculpa para colocar Beck num canto deste blog? Bem, então aqui vai uma: essa é uma de suas novas canções, parte de dois EPs que ele lançou recentemente. (Também recomendo “Defriended” com gosto). E é mais um sinal de que tudo está melhorando.

Imagem: Capa do álbum “Reflektor”/Divulgação



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