Serendipidade

seg, 26/08/13
por Zeca Camargo |
categoria Literatura, Música

Eu conheci essa palavra primeiro em inglês: “serendipity”. Usei-a assim durante anos, sem nem tentar descobrir se ela tinha uma tradução para o português – o que sempre me pareceu improvável. Mas recentemente fui buscar uma tradução “oficial” e, em pelo menos um dicionário online de respeito (Michaelis) encontrei “serendipismo”. O problema é que eu não consegui encontrar “serendipismo” em um dicionário de português com a mesma credibilidade. O Houaiss, ironicamente, me encaminhava para a própria palavra em inglês – “serendipity”. Cuja definição me indicava a seguinte forma aportuguesada: “serendipidade” – que foi a que usei para o título de hoje.

Este início de texto meio labiríntico – quando não é? – tem um motivo. É fruto de uma improvisação. Hoje nem teria um post. Estou tirando alguns dias de férias das minhas atividades do dia-a-dia por conta de, entre outras coisas, me dedicar ao lançamento do meu novo livro: “50? Eu?” (E-galáxia). Mas diante do que vi no episódio de ontem do quadro “Vai fazer o quê?” – rapidamente, um homem negro, um branco, e uma mulher bonita tentando roubar uma bicicleta para ver a reação das pessoas – fui fazendo associações com o tema “racismo” e resolvi procurar aqui mesmo na internet uma música que não ouvia há tempos: “Racist friend”, do The Specials. Achei oportuno, diante do que foi mostrado no quadro, ouvir uma letra que elegantemente sugere: “Se você tiver um amigo racista, essa é a hora para terminar a amizade – seja sua irmã, seu tio, sua mãe, seu amante”.

Uma vez que o Specials é uma das bandas mais importantes – e talvez menos reconhecidas – do pop britânico (veja também “Ghost town”, Friday night, Saturday morning”, “A message to you, Rudy”, e claro “Free Nelson Mandela”) pensei em comunicar você que eu sairia de férias usando apenas esta música (“Racist friend”), sem me alongar demais. Mas aí a “serendipidade” entrou em ação – e aqui estou eu já terminando o terceiro parágrafo, e já pensando no quarto para explicar o que a tal palavra significa. Onde isso vai parar? Não sei – e essa é a beleza dessa palavra.

O próprio dicionário Houaiss ajuda nessa tarefa definindo que trata-se do “dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou de descobri-las por acaso”. Isso eu até mesmo poderia explicar, talvez com outras palavras, pela própria maneira como aprendi a usá-la em inglês: para descrever situações que iam se desenrolando, justamente, por acaso. Mas o Houaiss tinha mais – uma explicação possível de sua origem: teria vindo do antigo nome do Sri Lanka (um país da Ásia), de onde, segundo um antigo conto persa, vinham três príncipes que sempre “davam em coisas sem ter procurado por elas”.

Já viu onde isso vai dar, né? Na internet, claro! Isto aqui é o Reino da Serendipidade. Onde mais você pode se perder em informação, em associação de ideias, em caminhos soltos que sempre te levam a algum lugar? Aqui mesmo. Mais de uma vez escrevi sobre isso neste espaço – nesses quase sete anos de blog. E mesmo que não esteja sempre falando literalmente disso, a tal “serendipidade” sempre está presente na minha vida (e aposto que na sua também). Eu não brinco que minha religião é o acaso à toa…

Assim, do “Racist friend” do Specials, eu fui parar em outra canção com um título parecido: “Your racist friend”, do They Might Be Giants”. Na virada dos anos 80 para os 90 eu fui apresentado para um álbum dessa banda com o nome ligeiramente esquisito – que em português é algo como “Eles podem ser gigantes”. Era o disco “Flood” que eu ouvi umas 967.532 vezes, só no ano de 1990! Apesar de não ter escutado nenhuma faixa dele nos últimos 10, 15 anos. Por isso mesmo, no próprio YouTube comecei hoje de manhã a escutar várias canções de “Flood” – favoritos pessoais como “Istanbul (not Constantinopla)”, “Twisting”, “Letterbox”, “Minimun wage” (uma pequena obra-prima que eu faço questão de pedir 47 segundos da sua atenção para clicar aqui e ouvir o título dela, que significa “salário mínimo” e uma chicotada). E acabei a seleção com o “clássico” “Birdhouse in your soul” – que por acaso, era a mensagem gravada num cartão que eu havia escrito para um amigo meu, colega de trabalho, ontem mesmo.

Por conexões ainda mais misteriosas que as da minha memória, a lista de sugestões da própria página do YouTube para “Birdhouse” veio com uma música que eu não ouvia também há tempos – mas que esteve no meu “playlist” intensamente quando entrevistei sua cantora por causa de um lançamento de então. A canção era “Hands clean”, de Alanis Morissette. E quando o refrão veio, comecei a chorar:

“We’ll fast forward to a few years later
And no one knows except the both of us
And I have honored your request for silence
And you’ve washed your heads clean of this”

Por que as lágrimas? Por conta de uma entrevista que eu havia lido na manhã de domingo, com alguém que admirei havia algum tempo atrás – uma entrevista que li, entre outras coisas, pela paixão pelos livros que eu mesmo dividia com o entrevistado, a ponto de vibrar, tempos atrás, com seus comentários sobre um dos meus autores favoritos, Nick Hornby.

Ele, Hornby, está novamente em evidência por conta de um relançamento – pela Companhia das Letras – de seus livros mais queridos: “Febre de bola” e “Alta fidelidade”. Esse último em especial, é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que, como eu, é apaixonado por música e literatura – uma combinação interessante que sempre produz livros ótimos. Como este lançamento de um autor que só conhecia como colunista, mas cujo último trabalho estou louco para ler: “A maçã envenenada” (Companhia das Letras), com sua história que envolve a passagem do Nirvana pelo Brasil em 1993 (um episódio que, como qualquer pessoa que acompanhou meu trabalho na MTV no início dos anos 90 sabe, eu segui bem de perto). Ou este outro livro que terminei de ler ontem mesmo, “A morte do pai”, de Karl Ove Knausgård (também da Companhia das Letras) – e que achei misteriosamente hipnótico.

Knausgård – que cancelou na última hora sua participação na última Flip (a Feira Literária de Paraty) – vem sendo chamado de um Proust moderno, por seus livros monumentais que são (ou não) livremente biográficos. Não sei se é tudo isso, mas sei que é bom. “A morte do pai” é o primeiro desses volumes a sair no Brasil – traduzido do próprio original norueguês por Leonardo Pinto Silva – e me fisgou à relutância. Seu estilo por vezes ultradetalhista – com parágrafos que descrevem uma pessoa entrando no carro, colocando a chave no contato, girando-a e ligando o motor com mórbida precisão – é um obstáculo a princípio. Mas aos poucos você vai entrando na viagem da memória de Knausgård com resistência cada vez menor. Eu fui me surpreendendo com a maneira que minha leitura fluiu – em parte pela intimidade que o autor cria com o leitor (que a certa altura quase que passa a fazer parte da família Knausgård), em parte com a forte ligação que o protagonista (o próprio autor) tem com a música, e em especial com a música da minha geração.

Um trecho típico:

“Certa vez fomos até a casa de Asbjørn, eu me recordo, passamos três dias bebendo, Yngve pôs Pixies, então uma desconhecida banda americana, para tocar e Asbjørn ficou deitado no sofá se acabando de rir porque achou bom demais o som que ouvíamos. Isso é bom demais, gritava ele, por sobre a música no volume máximo. Ha-ha-ha! Ha-ha-ha! É bom demais! Quando fui a Bergen aos dezenove anos, ele e Yngve foram ao meu alojamento logo nos primeiros dias, e nem a foto de John Lennon, pendurada sobre a minha escrivaninha, nem o pôster de um milharal, com a pequena área gramada cintilando com uma intensidade milagrosa em primeiro plano, nem o pôster de ‘A missão’, com Jeremy Irons, passaram pelo crivo deles. Sem chance.”

Era estranho notar, página após página, como uma adolescência no interior da Noruega pode ser tão parecida com a de um garoto numa cidade grande do Brasil… Como eu disse, resisti incialmente a “Morte do pai”, mas saí extremamente recompensado da experiência, a ponto de achar que teria me arrependido muito se, um dia lá na frente, um amigo me recomendasse o livro de Knausgård e eu tivesse que admitir que ainda não tinha lido apenas por preguiça de me envolver com uma história que supostamente eu achava que não tinha nada a ver comigo.

E me lembrei de encomendar um outro livro na internet, cuja resenha me deixou incrivelmente excitado. Chama-se “Rewire: digital cosmopolitans in the age of connection”, de Ethan Zuckerman. Escrevendo sobre ele na “Bookforum”, Astra Taylor esclarece um ponto de vista do autor que não é exatamente novo, mas é sim brilhante:

“Nós procuramos por informação que já queremos ou achamos coisas novas com a ajuda de pessoas que já conhecemos, e uma vez que essas pessoas tendem a ser parecidas com nós mesmos, muita coisa no mundo acontece sem que a gente tenha conhecimento delas. Por exemplo, Zuckerman diz que nós americanos talvez não saibam muito do que está acontecendo na Zâmbia a não ser que a gente conheça alguém de lá. E na era de Google e Facebook, se seus hábitos de consumo de mídia são limitados, a culpa é de nós mesmos, não desses poderosos guardiões da informação. Por isso Zuckerman argumenta que ‘se quisermos que a conexão digital amplie a conexão humana, nós temos que experimentar’.”

E eu acho que esse é o problema de boa parte da nossa desinformação de hoje: a falta de curiosidade pelo que é diferente. Toda vez que vejo uma coluna de “as mais lidas” num site de notícia tenho vontade de apagar aquilo! A gente quer ler o que os outros lêem, os mesmo sites de sempre, sobre as mesmas pessoas – e depois a gente reclama que a vida é sem graça.

Pois eu digo: vá se aventurar. Quando você sai só um pouco do caminho, coisas impressionantes podem acontecer. Deixe a “serendipidade” entrar em ação. Eu não tinha ideia que este texto de hoje ia parar aqui. Passei por They Might Be Giants, Alanis, um chorinho, Nick Hornby, Knausgård, estudos cognitivos – e agora estou saindo de férias! Quem diria? Se você veio comigo até aqui – bravo! Já é um bom começo. É daqui para outros destinos ainda mais inesperados. Ou então tem uma lista de mais lidas aqui mesmo na primeira página do G1 – vai lá. No momento em que termino de escrever isso, a matéria mais procurada é a sobre o harém de colegiais que um livro diz que Khadafi mantinha numa fortaleza…

O refrão nosso de cada dia: “Vathala paakku”, Chitra  - só para seguir na linha do mergulho no desconhecido, ouça esses 23 segundos de uma canção surreal. E depois vá para onde você quiser…

1973

qui, 22/08/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Foi um bom ano. Bom o suficiente para eu me inspirar a escrever hoje sobre ele aqui.

Minha ideia inicial nesta quinta era fazer um paralelo entre o novo filme de Sofia Copolla, “The Bling Ring – a gangue de Hollywood”, e a nova onda que alguém mais afobado inventou que é o que está pegando no pop nacional: o rap de ostentação – aquilo que, como o Das Quebradas diria, toca “nas pista dos otário”. Fui ver “Bling Ring” ontem e a primeira coisa que me veio à mente quando a tal gangue começa a entrar na casa de mega celebridades para roubar roupas de grife, joias e eventualmente dinheiro não foi bem o paralelo dessa turma aqui no Brasil – São Paulo e Rio, por onde circulo bem, estão cheias dessa gente (e tenho certeza que outras cidades do Brasil também). Não. Entre uma Azealia Banks e uma M.I.A., o filme me remeteu ao clássico “Da ponte pra cá”, do Racionais MC – do disco “Nada como um dia após o outro”, que é (bom lembrar) de 2002! Se hoje o Menor da Chapa faz sucesso cantando “Olha o tamanho da mansão, a grossura do cordão” (em “Os invejosos vem“), sempre é bom lembrar que há mais de dez anos, Ice Blue mandava: “Vem de artes marciais que vou de Sig Sauer / Quero a sua irmã e seu relógio Tag Heuer” – uma mensagem ligeiramente mais contundente (e numa canção que cita de “Cidadão Kane” e “Errare humanun est”) do que qualquer rap de ostentação me mostrou até agora. Enquanto a galera descolada roubava na tela, eu só escutava Mano Brown cantando: “Vinho branco para todos, um advogado bom”…

Mas achei que o filme não era tão interessante assim para merecer essa discussão – e o próprio rap de ostentação, como a referência já citada do Racionais comprova, me pareceu longe de ser uma novidade… E além do que minha “homenagem” ao ano de 1973 está prestes a ser conhecida pelo grande público. Então resolvi focar nesse outro assunto. Afinal, domingo no “Fantástico”, você vai poder ver onde foram tiradas as fotos que postei aqui na semana passada – da mesma série que ilustram o post de hoje. Eu estava na casa que a equipe do programa montou como se fosse 1973 – onde convidamos, aliás, uma família moderna para passar um fim-de-semana por lá. As desventuras desse pai, dessa mãe e de seus três filhos – e da “vovó” também, que era a única que tinha convivido com tudo aquilo que colocamos na casa (toca-discos, máquina de escrever, fraldas que não são descartáveis, TV branco e preto…), você vai poder ver este domingo, no próprio “Fantástico”. Mas por que eu escolhi falar disso então?

 

Bem, como você que me acompanha aqui há sete anos sabe bem, raras são as vezes que trago meu trabalho da TV para este espaço. Desde 2007, só quando o que eu fazia esbarrava no universo deste blog (que, só lembrando, fala de cultura pop) é que eu me sentia à vontade para usar alguma coisa que fiz para a televisão como tema de um post. Por exemplo, uma entrevista com Paul McCartney. Ou Keith Richards. Ou qualquer outro bom artista do nosso tempo que você puder imaginar – de Courtney Love a Lady Gaga . Ou ainda, quando eu retomei um programa que foi uma espécie de mania nacional: “No Limite“. Ou quando fiz uma “dieta em praça pública”, no projeto “Medida Certa” . Mas de maneira geral, minha bússola aqui é a veia pop – e eu não misturo as coisas.

Acontece que nesses últimos dias eu estive bastante envolvido com este quadro do “Fantástico”, desde a sua criação até os “offs” que mandei hoje de manhã para a edição final – passando claro, pelas gravações surreais. No estilo “reality”, deixamos a família lá da noite de sexta a tarde de domingo, com câmeras gravando tudo que acontecia, e um mínimo de interferência nossa. Ficou divertidíssimo, como você vai poder conferir este domingo, 25 de agosto de 2013. Mas antes que você ache que eu estou simplesmente fazendo um “merchân”, vou tentar explicar aqui os outros motivos que, excepcionalmente hoje, me fizeram olhar para o programa que apresento.

O primeiro deles é o próprio ano de 1973. Afinal de contas, eu estava lá, lembro-me direitinho de ter assistido à estreia do “Fantástico”. Não me recordo do seu conteúdo exatamente, mas do barulho que o programa fez quando chegou. Lembro-me da cena com a família reunida diante da TV – ainda em branco e preto (a colorida só chegaria lá em casa na Copa de 1974) – e do enorme assunto que esse primeiro programa (e todos os outros que se seguiram) gerou no colégio na segunda-feira de manhã.

Eu estaria blefando se dissesse que assistia aos primeiros “Fantásticos” para ver as músicas, em versões ainda pré-históricas do que seria chamado na década seguinte de videoclipe – se bem que nunca vou esquecer o impacto de ouvir (e ver!) Jorge Ben, que na época ainda não tinha o “Jor”, cantando “Os alquimistas estão chegando” num certo domingo à noite, ou mesmo Raulzito soltando sua “Gita“. O que me cativava mesmo nesses primeiros anos era o humor de Chico Anísio – chegávamos a trocar falas do Azambuja antes de o primeiro sinal bater na sala de aula na manhã seguinte. E as impressionantes “grandes reportagens” – que eram quase sempre assustadoras, de Triângulo das Bermudas a plantas carnívoras!


Mas não evoco aqui o “Fantástico” dessa época por um saudosismo gratuito. Minha relação com o programa sempre teve altos e baixos. Por exemplo, como bom universitário, eu me revoltava não apenas contra o “Fant”, mas contra tudo que passava na TV – e por isso passei a primeira metade dos anos 80 sem praticamente chegar perto de uma televisão. Mais lá para a frente, quando comecei a trabalhar com jornalista, voltei a assistir muita TV – e o próprio programa que hoje apresento – como informação geral. Já no início dos anos 90, quando trabalhava então na MTV Brasil, encarava o “Fantástico” como um concorrente – que “roubava” grandes lançamentos (Madonna, Michael Jackson) de nós. E quando vi, em 1996, eu estava ali, ajudando a fazer o “show da vida”.

Comecei como repórter e editor-chefe do programa em São Paulo, dia 22 de julho de 1996 – e logo no final daquele ano apresentei meu primeiro programa na bancada. A experiência tornou-se mais frequente a partir do início dos anos 2000 – mais precisamente depois que eu voltei ao “Fant”, depois de alguns hiatos em que estava “emprestado” para o “No Limite”. E no meio da década passada, eu já estava direto na apresentação – como faço até agora. Lendo assim, concordo que essa trajetória parece muito burocrática, sem a vibração que esses anos todos significaram para mim. Preciso ir além na minha explicação.

Dos 40 anos que o “Fantástico” comemora este mês, eu já fiz parte então de nada menos do que 17 deles – quase a metade! E, como eu digo sempre que alguém, numa entrevista ou numa palestra, pergunta como é apresentar um programa que está há tanto tempo no ar: eu tenho a sensação de que a gente está estreando todo domingo. Para mim, a excitação é a mesma daquele dezembro de 96, quando eu olhava para a câmera totalmente travado – consequência, não tenho dúvidas, de um nervosismo de principiante. Bem mais solto, junto com meus atuais companheiros de apresentação – Renata Ceribelli e Tadeu Schmidt – estou (estamos) sempre num clima bom, mas nunca menos alerta do que como se fôssemos viver uma estreia. (Não muito diferente, aliás, do que era com outros colegas com quem já dividi as noites de domingo). Esta é uma das melhores sensações da minha vida – e eu hoje, sem pudor de você achar que eu estou querendo levantar a bola do programa (se essa é a sua opinião, eu diria que nem vale a pena você ir adiante nesta leitura), falo isso sem o menor constrangimento.

Só que a apresentação é uma parte das coisas que me deixaram feliz nesses últimos 17 anos. Pelo “Fantástico” dei não apenas uma, mas três voltas ao mundo. A primeira, em 2004, com a sua ajuda: num momento de insanidade, achei que seria legal pedir para você escolher os destinos que nós deveríamos visitar – e lá fui em, durante quatro meses, para 18 escalas incertas, numa das experiências mais fantásticas de toda minha carreira. Depois, em 2008, viajei por vários países visitando Patrimônios da Humanidade escolhidos pela Unesco – uma jornada de história, mas sobretudo de conquistas humanas que foi, no mínimo, emocionante. E em 2010, saí de novo pelo nosso planeta atrás das maiores cidades espalhadas por ele – das favelas de Daca, em Bangladesh, às pirâmides no Cairo, no Egito, visitei lugares fascinantes que me ajudaram ainda mais a ter certeza de que o lugar onde nascemos é uma mera casualidade: o que me separa de um ativista na praça de Tahrir ou de uma garota num bar de saquê em Shimokitazawa, o bairro mais boêmio de Tóquio, é simplesmente o acaso… Mas eu divago.


Como já mencionei, as entrevistas que fiz no “Fant” com alguns ídolos da música pop são também inesquecíveis. Na MTV eu tive o prazer de falar com gente de peso – de Axl Rose a Red Hot Chilli Peppers. Mas foi o “Fantástico” que me colocou cara a cara com Madonna (duas vezes), Mick Jagger (idem), George Michael, Oasis, Roger Waters, Sade, John Lyndon (sim, Sex Pistols), Björk, Lou Reed, Alanis Morissette, Donna Summer – você sabe como meu gosto é eclético… Também teve Naldo, Justin Bieber, Arctic Monkeys, Mariah Carey, Jennifer Lopez, N’Sync – tanta gente boa…

E se eu for lembrar de matérias que não eram nem de viagem e nem de música, aí a lista vai ficar realmente interminável – dos “Altos Papos”, que “inventamos” em 1998, à “viagem pelo pensamento” que propusemos em 2007, com “Novos olhares”. De pintura indígena na ilha do Bananal (TO) a “sorpatel” (de onde vem nosso sarapatel) em Goa (Índia), tive a chance de experimentar de tudo nesse Brasil e nesse mundo – e tudo isso graças ao “Fantástico”. Mas, insisto, não estou aqui para me gabar de tudo isso, muito menos para “tirar onda” que quem não teve a chance de experimentar essas coisas todas. Menos ainda para dizer como o programa ainda é relevante na minha – e na sua – vida (meu esforço, nesse sentido, seria irrelevante dentro do contexto deste tímido blog).

Defendo uma cauda maior: o prazer de ver seu trabalho chegando até os outros. Olhando para trás, nesses 17 anos, o que sempre me deixava recompensado era a oportunidade de dividir tudo que eu via e fazia com milhões de telespectadores que até hoje vêm ao “Fantástico” toda noite de domingo para se informar, para se divertir, e – por que não? – para pensar. Para ilustrar isso, eu gosto sempre de contar uma história que aconteceu mesmo em Siam Reap, no Camboja – uma das escalas da “Fantástica Volta ao Mundo”, de 2004 (o público escolheu que eu fosse para lá, e não para Luang Prabang, no Laos).

Eu já tinha visitado este mesmo lugar um ano antes. Fui de férias, e fiquei completamente passado com aquela paisagem – templos do século 16 que ficaram escondidos por séculos na mata, e hoje constituem uma das atrações turísticas mais bonitas do mundo. Pois bem, eu já tinha estado lá, mas em junho de 2004 eu retornava para essa reportagem. E a lembrança mais linda que tenho não é exatamente a de ter a oportunidade de ver Angkor Wot (ou as árvores enraizadas nas pedras do templo de Ta Prohm) de novo. Mas é a de saber que agora eu ia poder dividir aquilo tudo com as pessoas que iam acompanhar o episódio seguinte da volta ao mundo. Sério! Lembro-me de estar numa moto, atravessando Siam Reap com fitas gravadas na mochila, procurando um cyber café com uma boa velocidade de transmissão (era o ano de 2004…), e feliz da vida de saber que aquilo que eu mesmo tinha visto e me encantado ia ser mostrado para tanta gente.

E é assim com cada matéria que a gente faz – acredite. De uma discussão sobre gravidez na adolescência a um reprogramação do corpo, as coisas só fazem sentido de estarem no “Fant” porque elas têm uma consequência na vida das pessoas. Veja o “Medida Certa”: foi muito legal fazer (vem uma nova versão por aí, dia 01 de setembro), eu me diverti, me irritei, e ainda perdi 11 quilos! Mas você não entra num projeto desses só para ficar mais magrinho: o que a gente queria (e acabamos conseguindo) era mobilizar as pessoas que estavam paradas a fazer algum movimento, e adotarem hábitos de alimentação mais saudáveis. Se o que a gente mostra não tiver um impacto na sua vida, então não tem porque mostrar. E é com esse farol que eu me oriento nesses últimos 17 anos – e é isso que eu quero celebrar aqui hoje com você.

Sei que boa parte de quem me lê nem era nascida em 1973 – e eu lá, já assistindo ao “Fantástico”, sem nem imaginar que um dia eu iria apresentar esse programa. Mas mesmo assim eu te agradeço ter vindo comigo até aqui para esta celebração. Trabalhei (e trabalho) ali com gente incrível, tenho o privilégio de nadar num mar de boas ideias (a casa de 73 é uma delas), e ainda realizar boa parte delas – sim, você não vai nunca se dar conta de quantas boas ideias não vão adiante pelo simples fato de que não dá para fazer tudo! E, mais que isso, esse tempo todo tive a felicidade de contar com você – se não exatamente todo domingo, sempre que a gente conseguia chamar sua atenção. Para concordar ou discordar do que você via. Mas sobretudo para você se identificar com o show da vida. Que sem você, não poderia nem existir.

E vamos ver o que vem aí pelos próximos 40 anos!

O refrão nosso de cada dia: “The morning after”, de Maureen McGovern - na semana em que o “Fantástico” estreou, esta era a música que estava em primeiro lugar nas paradas nos Estados Unidos. Não tenho como saber se o Brasil acompanhava a tendência, mas lembro sim de ouvir essa música à exaustão na saudosa Rádio Difusora AM, mais ou menos por essa época. É baladão – e com um refrão que já abre o primeiro verso. Mas achei que seria divertido colocá-lo aqui como registo – bem ou mal, tem até a ver com a manhã de segunda, que sucede a noite de domingo do “Fant”. Porém, para você não ficar com uma má impressão do pop de 40 anos atrás, acho que vale a pena lembrar que o mesmo ano levou ao número 1 das paradas americanas nada menos que “Crocodile rock”, de Elton John; “Killing me softly with his song”, de Roberta Flack (não, a música não era originalmente do Fugees); “Superstition”, de Stevie Wonder; “My love”, de Paul McCartney; e por duas breves semanas (não consecutivas), uma música de um mestre do soul, que tem tudo a ver com este momento – e essa sim eu vou também dar um link para a gente poder olhar confiante para o futuro: “Let’s get it on”, de Marvin Gaye , para você celebrar 1973, 2013, 14, 15…

“Yeezus” X “Singles-45’s and under” – estudo comparativo

seg, 19/08/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

"Yeezus", recém-lançado albúm de Kanye West

Quis o destino que bem na semana em que recebi, como cortesia da gravadora Universal, uma cópia do CD “Yeezus”, o novo álbum de Kanye West, o altamente cativante site de listas Buzzfeed aparecesse com uma chamada no mínimo curiosa: “(O álbum) ‘Singles-45’s and under’ do Squeeze é possivelmente o disco mais viciante do mundo”.

Não resisti. Independentemente de qualquer coisa, eu já estava determinado a escrever aqui sobre “Yeezus”, considerado genial (a princípio pelo próprio autor).

Mas a provocação do Buzzfeed era boa demais para deixar passar – e, por isso, resolvi acrescentar este pequeno estudo comparativo.

Primeiro, porque o Squeeze é uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos – e posso provar isso: nada menos do que três de suas canções (todas incluídas no “Singles-45’s and under”) aparecem na minha lista, aqui publicada há longínquos cinco anos, das minhas mil músicas favoritas – mais sobre essas faixas daqui a pouco.

Depois porque toda a obra do Squeeze e esse álbum em particular (que não é uma obra original, mas uma compilação de “singles”) é um exemplo raro de composições pop que beiram a perfeição, daquelas que são capazes de, como diz a lista do Buzzfeed, viciar, grudar no seu ouvido desde a primeira vez que você as escuta.

Uma prova irrefutável do talento da dupla (Chris) Difford e (Glenn) Tilbrook, que mais de uma vez foi chamada por um ou outro crítico entusiasmado como os verdadeiros herdeiros de Lennon e McCartney.

E como eles conseguiram chegar nesse estágio? Seguindo uma fórmula muito simples: abertura, estrofe e refrão. Algo que Kanye West desistiu de fazer há uns dois ou três álbuns.

Quando seu “My beautiful dark twisted fantasy” saiu, escrevi um post e reclamei (ainda acho que com propriedade) sobre a ausência de bons refrões em boa parte das músicas que compõem esse álbum. A belíssima “Runaway” e a emocionante “Blame game” (a única música de Kanye que eu acho que ele realmente escreveu de coração aberto) eram dignas exceções num mar de exibicionismo, onde o tom era nunca menos que histriônico, e a música era uma mera desculpa para uma viagem de seu ego. Mas, como diz um amigo meu, as coisas podem sempre ficar piores.

Eu mesmo já não andava dando muita bola para Kanye – de longe, acompanhava o picadeiro em que se exibia com Kim Kardashian, a mãe de sua filha recém-nascida, North. Mas musicalmente ele me parecia cada vez mais distante do pop que um dia o jogou na fama: dos dois bons primeiros álbuns “The college dropout” e “Late registration”.

Passei longe de “Watch the throne” (que ele fez junto com Jay-Z) e apenas registrei com curiosidade o barulho em torno desse seu último lançamento. Nas poucas aparições promocionais que fez – entre elas uma entrevista surreal para o jornal “The New York Times” – ele parecia ter abraçado sua verdadeira “bela e retorcida fantasia tenebrosa”: tinha se tornado, enfim, uma caricatura grotesca de tudo de ruim que o pop deve ter. E pior: ele tinha chegado a esse estágio justamente achando que estava fazendo o contrário, flanando acima da mediocridade pop.

Delirante talvez e, nesse sentido, face ao bom comportamento geral dos artistas pop da atualidade, cheguei a elogiar sua, digamos, irreverência, aqui mesmo neste espaço. Tudo isso seria perdoado se “Yeezus” fosse, de fato, um disco à altura dos tambores que Kanye batia no próprio peito. Mas eu passei boa parte da manhã do último domingo ouvindo atentamente ao álbum e… lamento informar que a resistência dele ao refrão continua crônica. E mesmo depois de consecutivas execuções, o único som memorável entre todas as dez faixas de “Yeezus” é um ‘sample’ – “Strange fruit”, de ninguém menos que Nina Simone, usada (brilhantemente, diga-se) por West em “Blood on the leaves”.

Mas vamos deixar essa “grande obra” um pouco de lado para retomar a genialidade dessa banda chamada Squeeze. Para poupar seu tempo de pesquisa na internet, já vou esclarecendo que eles existiram fortemente, pra valer, entre o final dos anos 70 e o comecinho dos 80. Se você acreditar em Wikipédia, Difford e Tilbrook ainda estão juntos e animados para gravar novo material e ainda sair para a estrada.

Capa do albúm "East Side Story" do grupo britânico

Mas a época de ouro mesmo foi de 1978 a 1982, quando eles lançaram cinco álbuns que são cultuados até hoje: “Squeeze”, “Cool for cats”, “Argybargy”, “East side story” (meu favorito) e “Sweets from a stranger”. Do que veio depois, quase nada chegou perto do brilho dessas primeiras composições, mesmo assim, não perdi nenhum lançamento deles até hoje (acho que tenho realmente tudo deles, até o mais recente “Spot the difference”). Mas nunca mais encontrei um momento pop tão brilhante como a introdução de “Tempted”, a urgência de “Take me I’m yours”, a leveza de “Wrong side of the moon”, a estranheza de “Heaven”, ou o final de “Is that love?”. Para citar algumas poucas pérolas.

Na compilação que o Buzzfeed classifica como um disco que “uma vez que você o ouve, vai escutá-lo por toda a semana, possivelmente para o resto da sua vida”, nem tudo de bom foi incluído. Acredite: houve um tempo em que num álbum só cabiam 12 faixas (quando muito umas 14) e eles tiveram que escolher as “melhores”. Concordo com 80% da seleção – eu certamente senti falta de “Inquintessence”, “Picadilly”, “His house her home” (que até hoje me faz chorar), “Another nail in my heart”, “If I didn’t love you” etc. etc. etc. Mas ainda assim é uma coleção impressionante, que eu consigo lembrar de cabeça. Já “Yeezus” – bem, o que ficou da manhã em que eu o escutei pelo menos cinco vezes?

A percussão de “I am God”, com certeza. Os últimos 20 segundos de “Send it up”, com um canto lancinante que justifica aquela batida fantasmagórica da música. A levada quase dançante de “Black skinhead”. O canto ligeiramente robótico (mas não memorável) de “Hold my liquor” – um disfarçado tributo ao Daft Punk. E Nina Simone. “Blood on the leaves” é um momento musical tão raro que quase justifica todo o desperdício do resto de “Yeezus”: é daquelas músicas que falam de um assunto mal resolvido – a questão racial nos Estados Unidos – com uma força renovada.

Nesses casos, há sempre o perigo de cair em clichês. Mas West usa “Strange fruit”, de Simone, como pano de fundo de uma série de outras questões do universo da cultura negra americana (inclusive relações amorosas), num resultado que é não só poderoso, mas comovente. Seu rap final é impressionante – e não estou nem falando dos versos que (traduzidos) dizem: “Não estou nem aí se você falava com Jay-Z, ele não está com você agora, mas com Beyoncé, e você precisa parar de ser preguiçoso”. Genial mesmo é essa rima:

“She Instagram herself like #BadBitchAlert He Instagram his watch like #MadRichAlert”

Este é o ponto alto de “Yeezus” – ou ainda, o único ponto relevante de todo o álbum. Mesmo assim, West não para de dizer que fez um disco para o milênio, que vai (e deve) ser ouvido por gerações futuras como o melhor exemplo da música feita neste começo de século. Hummm.

Enquanto me esforço para lembrar alguma outra coisa relevante desse trabalho, espontaneamente minha memória começa a tocar o refrão de “I think I’m go-go” – outra do Squeeze:

“This world’s got smaller, I’m shaking lots of hands
Saying lots of things that no one understands
You can shake my tree but you won’t get me
Where am I? I think I’m go-go, go-go, go-go…”

A última vez que eu ouvi esta música deve ter sido há uns 20 anos. Ela certamente não toca muito no rádio – aliás, não toca nunca. E o ato de colocar um CD do Squeeze para ouvir é algo cuja lembrança remonta décadas. Mesmo assim, eu sabia de cor não só o refrão de “Go-go”, mas também algumas partes de seus versos de passagens, como o belíssimo: “Down the disco it’s clockwork time/Where’s the humour, where am I?”. De onde veio isso, essa capacidade incrível de ficar com uma música no seu “hard disk” por anos e anos? Do talento de uma dupla de compositores – de novo, Gifford e Tilbrook.

“Go-go” não está em “Singles-45’s and under”, mas entre as doze faixas da coleção existem pelo menos três que você tem que ouvir para entender o que é o bom pop. A mais inesperada de todas é “Pullin’ mussels (From the shell)”, uma música de letra estranhíssima e refrão irresistível que só agora, com o comentário do Buzzfeed, eu descobri que se tratava não apenas de uma ode a verões passados, mas também de um elogio à masturbação. Tudo, claro, com muita elegância. Afinal, não existe outro caminho senão o da fineza para colocar na mesma estrofe Harold Hobbins, William Tell, e onanismo…

Lição de pop número 2: “Take me I’m yours”. Há pouco, para descrever esta mesma música, falei de sua urgência – e não sei como encontrar uma definição melhor. A letra é delirante, mas não no sentido que usei essa palavra para falar de Kanye West há pouco. Tentando esmiuçar, a canção do Squeeze é neurótica, fremente, psicodélica, vibrante, onírica, visionária, vulgar, suplicante e dançante. “Para sempre vai existir o céu no seu beijo”, declara a banda – e nem tente discordar…

E aí tem a lição número 3: “Annie get your gun” – o último “single” do auge do Squeeze. Lançado em 1982, ele é um bom resumo de tudo que a banda sempre soube fazer bem: um ritmo cativante, um “timing” urgente, uma letra inesperada, um refrão irresistível, um desfecho que deixa você com vontade de ouvir mais. Ah! E tudo isso em pouco mais de três minutos.

Depois de uma introdução que mesmo os fãs displicentes dos Paralamas do Sucesso vão identificar como acordes muito próximos de “Vital e sua moto”, uma grande tragédia se desenrola. Apenas alguns segundos depois, tudo está pegando fogo. “Não puxe o gatilho”, implora Tilbrook – e você morde os lábios de aflição por uma cena que está para acontecer. Não dá para saber exatamente o que se passa entre o casal, parece que há um conflito e você está bem no meio do tiroteio! “Annie, não atire do cantor” – POR FAVOR!

“Annie get your gun” tem mais drama que a primeira meia hora de “Yeezus” – e sem um décimo do esforço que Kanye West não consegue disfarçar que colocou em cada faixa de seu último álbum. Ah! Tem também um refrão muito melhor do qualquer faixa do “maior artista da atualidade”. Por isso mesmo, acho que você não tem muitas dúvidas sobre qual dos dois discos eu vou ouvir de novo hoje na minha segunda-feira de folga. Enquanto isso, lá ao longe, pela janela do meu quarto, ouço um bando de crédulos que insiste em aplaudir West como se estivessem vendo a roupa nova do rei…

O refrão nosso de cada dia: “Is that love?”, Squeeze – já sei: se eu fizer mais um elogio à banda, você vai achar que eu ganho direitos autorais do Squeeze. Então não digo mais nada. Apenas convido você a ouvir os dois minutos e trinta e dois segundos de puro êxtase de “Is that love?”. Caso encerrado.

Menos sentenças, mais capítulos

qui, 15/08/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Foi James Wood, o principal crítico literário da revista “The New Yorker”, que me chamou a atenção para uma citação de Virginia Woolf sobre o ato de escrever. Resenhando “& Sons”, o novo livro de David Gilbert – um autor que gosto muito -, ele, para dar uma alfinetada no autor que está saindo com uma das obras mais comentadas da temporada nos Estados Unidos, lembrou que Wolff uma vez disse que “novelistas escrevem não em sentenças, mas em capítulos”. A observação me pareceu extremamente oportuna pelo fato de eu estar terminando um livro do qual, como se diz no meu querido Portugal, “gostei imenso”, justamente porque foi escrito “em capítulos”: “Beautiful ruins”, de Jess Walter (que, no Brasil, ganhou o título de “Ruínas do tempo”, e foi editado recentemente pela Versus).

De certa maneira, e por leituras certamente diferentes que as de Wood, estava eu aqui meio cansado de tantas frases bonitas. Estou exagerando, claro – a gente sempre gosta de ler algo bem escrito, que transpareça beleza, e ao mesmo tempo não revela que foi necessário um enorme esforço para se chegar lá. Mas de uns tempos para cá tenho notado justamente que boa parte de novos autores (e não só os de língua inglesa) parecem “suar a camisa” para nos entregar verdadeiras peças artesanais da composição – e das metáforas -, sem contudo nos entregar um “livro por inteiro”.

Como qualquer pessoa apaixonada por leitura, tenho o hábito de rabiscar suas páginas – ou, no caso de obras digitais, assinalá-las com marcadores coloridos (certamente uma atividade menos recompensadora e mais limitada do que escrevinhar nos espaços em branco dos volumes que se tem nas mãos, mas essa é uma discussão subjetiva – eu divago, e hoje, mais que nunca, tenho que manter o foco!). E tenho feito isso com bastante frequência – o que seria ótimo, não fosse pelo fato de que, ironicamente, quanto mais eu rabisco o livro, menos eu lembro do que eu li quando fecho suas páginas.

É um fenômeno curioso: eu me lembro de livros que li na minha adolescência, nos meus 20 anos, nos 30 – e até alguns que li aos 40. Não de frases geniais que li, mas da impressão geral que aquela obra, ou aquele(a) autor(a), me deixou. E isso me parece mais importante, em termos de conquistas literárias, do que a breve surpresa de uma frase bem escrita.

Lembro-me, por exemplo, de fechar “A tragédia da rua das Flores”, de Eça de Queirós – que li aos 14 anos – e ficar por mais de uma hora deitado na rede do sítio onde eu passava férias, chocado… Lembro-me de ter voltado para casa, depois de ter tido um voo cancelado para Nova York, e, depois de ter começado a ler “Leviatã”, de Paul Auster, não ter contado para ninguém que eu não tinha embarcado – pelo simples prazer de ficar em casa sozinho, mergulhado na leitura. Lembro-me de acordar no meio da noite, acampado na selva em Fiji, para ler, com a ajuda de uma lanterna, “Tudo se ilumina”, de Jonathan Safran Foer – e desejar que um dia eu vivesse o amor como a pequena vila de Trachimbrod, na Ucrânia, conheceu. Lembro-me de chorar com todas as maldades que o “senhor dos mendigos” aprontava em “Um delicado equilíbrio”, de Rohinton Mistry – a ponto de ter que me esconder para lê-lo. Lembro-me de outro choro – esse mais abrupto – em um dos capítulos finais de “Desonra”, de J.M.Coetzee. Lembro-me de puxar mais de um amigo do lado numa conversa para convencê-lo (ou convencê-la) a ler também “Uma historia do mundo em 10 1/2 capítulos”, de Julian Barnes. Lembro-me de faltar dois dias na faculdade para ler – e reler – “Se um viajante numa noite de inverno”, de Italo Calvino. Lembro-me, ainda garoto, de insistir com minha professora de literatura do colégio que eu queria montar uma adaptação de “Os velhos marinheiros ou o Capitão de Longo Curso”, de Jorge Amado. Ou lembro-me, há não menos de um ano de me martirizar por não ter descoberto os livros de Edward St. Aubyn antes, cada um ao seu tempo – no lugar de ter de ler os cinco volumes todos de uma vez, como fiz em encaloradas manhãs dominicais cariocas.

Tenho outras lembranças, claro. Mas não quero aborrecer você com elas agora – muito menos confundir essas reminiscências com a lista dos 100 melhores livros que já li (algo que vivo prometendo, mas ainda nem comecei a esboçar…). Citei esses livros apenas como evidências de que, embora o dom de escolher as palavras certas seja valiosíssimo, o que brilha mesmo é a capacidade de encantar com uma obra inteira, com a coerências de seus capítulos, com o arco de uma história, e a maneira como ele nos é apresentado. “Ruínas do tempo” – esse que eu acabei de ler – não tem um lugar garantido em nenhum cânone da literatura contemporânea. Mas eu fiquei impressionado com a habilidade que seu autor demonstrou em contar uma história surpreendente.

Nada de grandes lições de vida (embora quem quiser pode achar alguma coisa assim no livro), muito menos ambiciosos arroubos literários. Mas a inesperada visita de uma atriz americana a uma humilde pousada encravada num penhasco da costa italiana (que traz o sugestivo nome de Porto Vergonha) abre um leque narrativo de uma criatividade absurda. Novos e impressionantes detalhes da vida dessa atriz – que deveria ter sido coadjuvante nas filmagens de “Cleópatra” em Roma, em 1962 – vão surgindo a cada capítulo e arrastando você como bons “ganchos” de uma telenovela eficiente. Ah! E com o prazer de um texto bem escrito – e ainda divertido (as descrições das pessoas que encontram com Michael Deane nos dias atuais – ele, um dos homens mais importantes de um grande estúdio de Hollywood, agora decadente – são de provocar soluços de risadas).

Walter escreve sim em capítulos, e não em frases – retomando a citação de Virginia Woolf. E tê-lo encontrado nas prateleiras das livrarias brasileiras foi uma boa surpresa. Aliás, como várias que tive ao entrar nessas lojas nas últimas semanas. Talvez seja a Bienal do Livro do Rio – que se aproxima. Talvez seja o segundo semestre – onde o interesse cultural se aquece. Ou talvez seja simplesmente a boa vontade dos editores brasileiros que bravamente insistem em trazer novidades para esses leitores ávidos que temos aqui – você, tenho certeza, está entre eles. E por isso mesmo, sem entrar em grandes méritos, vou fazer uma pequena lista de boas coisas que vi que estão sendo lançadas agora no Brasil. Muitas delas são traduções de livros que já citei aqui – e que finalmente chegaram à língua portuguesa. Outros, novidades que nem esperava encontrar – mas que acho que posso recomendar sem susto. Assim, deixo você hoje com essa lista breve de sugestões de leitura – e segunda continuamos com mais (especialmente sobre as fotos que publiquei aqui no último post – que, sim, estão ligeiramente fora de época, mas é justamente sobre isso que eu queria falar…).

- “O polígamo solitário”, de Brady Udall (Editora Nossa Cultura) – Golden Richards é casado com quatro mulheres. Tudo bem, ele é mórmon. Aliás, tudo bem coisa nenhuma, pois esse é justamente a questão: como é possível ser solitário com quatro esposas? As coisas não vão bem na casa de Richards – e a morte de um de seus filhos nem é a pior coisa que está para acontecer com ele. “Polígamo” é quase engraçado em vários momentos, mas é também uma reflexão séria e bonita sobre solidão.

- “A evolução de Bruno Littlemore”, de Benjamin Hale (Intrínseca) – há mais de dois anos propus aqui uma brincadeira: o leitor escolheria que livro eu deveria ler para comentar no blog. Venceu “Ilusões perdidas”, de Sacha Sperling (Companhia das Letras). Mas uma das opções era a vida desse chimpanzé, Littlemore, que foi criado por sua dona como um menino até que… bom, desastres acontecem! Na época o livro só existia em inglês, mas agora ganhou uma bela tradução. Não perca.

- “Adam e Evelyn”, Ingo Schulze (Cosac Naify) – dois anos atrás, quando fiz um “retiro espiritual” em Papua Nova Guiné, levei um livro de Ingo Schulze para a viagem (“New lives”), e fiquei tão encantado que passei a ler tudo dele. Esta história de amor às vésperas da queda do muro de Berlim é uma bela – e intrincada e inteligente – leitura.

- “As relações perigosas”, de Chordelos de Laclos (Biblioteca Azul e Companhia das Letras) – perdi a conta de quantas vezes já citei o livro de Laclos aqui neste espaço. Mas sempre que falo de “Relações perigosas”, um clássico francês do século 18 sobre os perigos e armadilhas do amor, fico com medo de estar citando uma obra que ninguém consiga achar. A Biblioteca Azul resolveu este problema com uma edição belíssima de “Relações perigosas” este ano – e a versão da Companhia das Letras (dentro dos clássicos da Penguin) também é uma boa opção.

- “A piada infinita”, de David Foster Wallace (Quetzal) – sei que estou dando uma trapaceada aqui… Este livro só chegou às nossas livrarias, por enquanto, numa edição de Portugal. Mas para quem sempre ouviu falar da obra máxima de Wallace, mas nunca teve coragem de encarar suas mil e tantas páginas em inglês, essa é uma excelente oportunidade. Não que encarar as mil e tantas páginas em português seja menos tarefa menos exigente, mas vale o investimento.

- “O último minuto”, de Marcelo Backes (Companhia das Letras) – não deixe a capa e/ou a orelha do livro te enganar. Este não é um livro sobre futebol. Ou melhor, é. Mas não é indicado apenas para quem gosta de futebol. Esse é um livro de um cara, João, um criminoso que está na cadeia e quer falar sobre a sua vida – mas não sobre o seu crime. E aí ele começa a bater bola, mas de um jeito que você nem imagina. Um bom autor brasileiro – que, imagino, ficou fora daquela lista da “Granta” por mera questão de calendário…

- “Ithaca road”, Paulo Scott (Companhia das Letras) – outro ótimo autor brasileiro, de quem já era admirador desde “Habitante irreal” (Alfaguarra). Desta vez ele vem com uma história ainda mais enlouquecida, que mistura culturas (de Brasil a Nova Zelândia – e estamos falando de maoris!), aventuras e romances. Tudo sangrando, discretamente… Bônus: uma das capas mais interessantes também da temporada. Leia!

- “A questão Finkler”, de Howard Jacobson (Bertrand Brasil) – geralmente eu vou atrás de qualquer livro que leva o prêmio Man Booker, na Inglaterra. Mas quando este livro ganhou em 2010, li algumas sinopses e não me animei. Só agora com uma tradução em português resolvi arriscar – e vi que perdi um tempo enorme: deveria ter lido “Finkler” há muito tempo! Nem que fosse pelos diálogos hilários e espertos entre seus principais personagens, Julia, Samuel e Libor.

- “A livraria 24 horas do Mr. Penumbra”, de Robin Sloan (Novo Conceito) – outro que também já citei aqui há algum tempo, e que com seu lançamento em português, redobro a recomendação. Gosta de livros? Está preocupado com o que vai acontecer com eles? Quer um cenário fantástico para o futuro da leitura? Então entre na livraria do Mr. Penumbra…

- “Nada a invejar – vidas comuns na Coréia do Norte”, de Barbara Dermick (Companhia das Letras) – todos os livros que recomendei aqui hoje são de ficção. Mas tenho que abrir espaço para este, que é uma grande reportagem – até porque muitas dessas histórias terríveis são tão absurdas que só podem ser compreendidas se formos para o reino da ficção. Não faltam livros sobre relatos horrorosos da vida cotidiana dos norte-coreanos, mas os que Barbara juntou são os mais emocionantes que eu li. O que você acha de um romance que leva mais de uma década para rolar o primeiro beijo?

Tem mais coisas boas chegando às nossas prateleiras, mas por enquanto acho que você já tem um bom punhado delas. Daqui a pouco volto com outras.

O refrão nosso de cada dia: “I dont’ wanna show off”, Sutton Foster e o elenco de “The drowsy chaperone” – uma pequena homenagem indireta. Uma versão desse excelente musical da Broadway – que vi em 2007 – acaba de estrear no Teatro do Sesi, em São Paulo. A montagem é de Miguel Falabella, que adaptou a história para a São Paulo dos anos 30 – e colocou o título de “A madrinha embriagada”. Explicar tudo que acontece no palco aqui, rapidinho, seria uma loucura. Mas basta dizer que esse é um musical dentro de um musical – um cara pega um disco antigo e… toda a história começa a acontecer dentro do seu apartamento. E a história é um absurdo – de engraçado. Por exemplo, na véspera de seu casamento uma estrela decadente da Broadway tenta convencer a imprensa de fofocas que quer mesmo trocar o brilho dos palcos pela vida de casada (com um milionário). E para isso ela canta esta música. Não sei como Miguel a traduziu (ainda não vi ainda, mas é minha prioridade para semana que vem), mas o nome da canção em português é algo como: “Não quero mais aparecer”… Só que tudo que ela canta indica o contrário. Ri só de ouvi-la novamente agora – e de lembrar que no finalzinho ela dá um bis que ninguém pediu (isso porque ela não quer aparecer…). Ouça a música, e vá ao espetáculo – é de graça (infelizmente, por enquanto, só em São Paulo). Ainda, eu não deveria passar isso adiante… mas se você quiser ver o próprio número da Broadway numa gravação pirata… vá em frente…  (Tem tudo que você espera de uma “boa” gravação pirata: som ruim, fora de sincronia, imagem fora de foco – e legendas em japonês!).

Onde eu estou? Duas pistas

seg, 12/08/13
por Zeca Camargo |
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De “Hair” a “Tabu”

qui, 08/08/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Injustiças – tenho certeza de que as cometi. Mas sou humano – ou ainda, sou um amante do cinema humano. Hoje completo a lista que comecei na semana passada, com os 100 melhores filmes que eu já assisti no cinema – uma seleção cujo próprio nome tem uma pegadinha (para saber mais desde o começo, clique aqui). Cheguei a esta centena, partindo de uma lista maior, com quase 200 títulos – e se, no princípio, parecia fácil “limpá-la”, agora, na reta final, tive de reescrevê-la algumas vezes. Justamente porque não queria cometer injustiças – ainda que o único injustiçado seria eu mesmo, ou melhor: o meu gosto. Mas a esta altura, qualquer justificativa chega tarde demais. Vamos aos últimos trinta – e aguarde revisões posteriores. (Aguarde também a lista dos 20 melhores documentários que eu já vi na minha vida – em breve neste espaço!).

71) “Hair”, de Milos Forman (1979) – não apenas um musical, mas uma experiência de vida. Especialmente quando você tem 16 anos. Estava no cursinho, me preparando para o vestibular, e quando vi “Hair” pensei em jogar tudo para cima – o que acabei fazendo, mas só depois de ter terminado a faculdade. Tamanha é a influência do filme sobre mim que até agora, quando uma revolução se anuncia, é nele que eu vou procurar inspiração. Um filme adaptado de um grande musical da Broadway – que só vi numa remontagem recente -, mas que não ficou devendo nada ao original.

72) “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, de Pedro Almodóvar (1988) – pensou que eu ia encerrar essa lista sem mais um Almodóvar? Se tivesse espaço ainda incluiria mais uns dois aqui – “Tudo sobre minha mãe” e “Carne trêmula”, quem sabe? Mas como só cabia mais um, vai este, que vi num cinema em 1989, quando morava em Nova York, e fiquei completamente enlouquecido. Desde então, ele está no “hard disk” da minha memória – nem que seja para eu me lembrar daquela receita de gaspacho.

73) “Kids”, de Larry Clark (1995) – há quase 20 anos, Clark previu exatamente o que ia acontecer hoje: crianças entrando na adolescência sem a menor noção do que é intimidade sexual comportando-se de maneira mais libertina que o mais devasso dos adultos. Quando você vê a foto daquela “menina morta” (de tão bêbada) que foi levada para ser estuprada por meninos de Steubenville (EUA) em várias festas numa mesma noite, no início deste ano – ou mesmo quando você pega uma foto de sua filha “pagando peitinho” que ela mandou para o smartphone do namorado -, “Kids” só cresce no meu conceito. Um trabalho visionário – e, na época, inovador.

74) “Pixote: a lei do mais fraco”, de Hector Babenco (1981) – por falar em trabalho inovador para sua época, em tempos de “Tropa de elite” (1, 2 e o que mais vier), fica difícil imaginar que este filme tenha feito tanto barulho. O cinema nacional ainda era feito de chanchadas disfarçadas ou de produções mega pretensiosas e distantes do público. E aí veio Babenco, achou um Pixote de verdade, colocou ele para mamar no peito de Marília Pera, e tudo começou a mudar nas telas nacionais.

75) “Brazil”, de Terry Gilliam (1985) – enquanto isso, num outro “Brazil”, Gilliam imaginava um país de deliciosos absurdos visuais, que pouco tinha a ver com o nosso Brasil. Se você colocar uma arma na minha cabeça, não seria capaz de dizer qual era o tema principal do filme. Mas lembro daquele imaginário surreal (derivado do famoso Monty Python – mais sobre ele adiante) acariciando meus olhos, mesmo quando o que eles enxergavam era o rosto de uma mulher sendo puxado ao extremo numa cirurgia estética.

76) “A vida dos outros”, de Florian Henckel von Donnersmarck (2006) – Facebook e Twitter são tão ubíquos hoje em dia que uma geração inteira não consegue imaginar um universo onde era necessário montar um enorme aparto de espionagem para saber o que os outros estavam falando e fazendo. Mas era assim em Berlim Oriental nos anos 80 (e antes também). A bisbilhotagem, porém, é só o pano de fundo para uma retorcida história de amor. Vi esse filme em Londres, e saí tão atordoado que esqueci minha bolsa no cinema – ainda bem que era Londres…

77) “Três é demais (Rushmore)”, de Wes Anderson (1998) – haverá, em toda Hollywood, algum diretor mais afetado do que Wes Anderson? Confesso que já enjoei dele – a ponto de nem visto direito “Moonrise Kingdom” (só peguei alguns pedaços em algumas viagens de avião). Mas em “Três” suas ideias ainda eram frescas – e o absurdo de toda a história sai perdendo no final para um tom quase épico numa história ordinária (e apaixonante) de um adolescente no colégio. Terceiro filme da lista com Bill Murray – que o coloca empatado com Scarlett Johansson…

78) “Estranhos no paraíso”, Jim Jarmusch (1984) – nenhum filme consegue ser mais alternativo do que esse. E olha que há quase 30 anos não faltam diretores tentando tirar esse troféu de Jarmusch. Filmado em branco e preto, com uma textura bastante granulada, e aparentemente sem um roteiro definido, “Estranhos” é um “road movie” onde tudo parece ao mesmo tempo improvisado e profundo. Ou então um grande blefe. Não importa. Na sequência, Jarmuch ainda ofereceria “Daunbailó” (1986), mas o truque já parecia descaradamente forçado.

79) “Confiança”, de Hal Hartley (1990) – no começo dos anos 90, “existencialismo” era isso: uma vida sem rumo, mais atrapalhada ainda por uma gravidez inesperada e um “pé na bunda”. O socorro vem num encontro inesperado – e muita conversa. E põe conversa nisso! Mas era assim que a gente achava que os filmes iam mudar as coisas naquela época. Hartley foi meu ídolo durante toda aquela década – depois passou. Fica a lembrança e minha gratidão a ele por acreditar no poder de um texto.

80) “Quero ser John Malkovich”, de Spike Jonze (1999) – no pé da porta do século 21, a noção do que seria um filme alternativo já havia mudado bastante. Mas ninguém esperava algo como “Malkovich”. Se já é difícil imaginar como essa história absurda foi filmada na época, mais estranho ainda é tentar entender como esse filme fez tanto sucesso. Não foi gratuito, porém – eu pessoalmente me apaixono fácil por qualquer cena que se passe no sétimo andar “e meio” de um prédio. Na caretice que é o próprio cinema alternativo hoje, o trabalho de Jonze é um bálsamo!

81) “Arizona nunca mais” (“Raising Arizona”), de Joel Coen (1987) – você já deve ter percebido que estou batendo na tecla dos independentes hoje, e por isso mesmo não poderia faltar na lista um trabalho dos irmãos Coen. Nunca fui verdadeiramente fisgado pelo “Grande Lebowski” – e, apesar de achar “Fargo” genial, tenho minhas dúvidas se esse é mesmo o melhor filme dos irmãos. Prefiro ficar com “Arizona”, que, além de ser divertidíssimo, nos lembra como Nicolas Cage desperdiçou sua carreira…

82) “O segredo de Brokeback”, de Ang Lee (2005) – acho que todos concordam que Lee pode fazer qualquer tipo de filme – e fazer bem. Lutas marciais? “O tigre e o dragão”. Super-heróis? “Hulk”. Um clássico de Jane Austen? “Razão e sensibilidade”. Uma fábula indiana”? “As aventuras de Pi”. Comédia oriental? “Comer, beber e viver”. Uma história de amor gay entre dois caubóis, segura o suficiente para você levar seu namorado para ver numa sexta-feira à noite? “O segredo de Brokeback” – que talvez seja o melhor exemplo de que ele é mesmo capaz de “filmar o infilmável”, e te emocionar por caminhos que você nunca imaginou cruzar.

83) “A vida de Brian” (“Life of Brian”), de Terry Jones (1979) – quando vi “Monty Python em busca do cálice sagrado” já era em reprise – e achei menos engraçado do que “Brian” (provavelmente porque devo ter perdido algumas piadas de humor inglês). Nem poderia ter gostado mais de “Cálice”: quando o assisti, tinha, como ainda tenho, várias piadas de “Brian” frescas na memória – da cena no apedrejamento ao “musical” de encerramento na cruz. E nada podia competir com isso. “Absolutely brillant”!

84) “O Império contra-ataca” (“The empire strikes back”), de Irvin Kershner (1980) – não é fácil a vida do homem que faz listas. “Guerra nas estrelas” tinha que entrar, é claro! Mas tinha mesmo? O impacto de ter visto aquele primeiro filme, numas férias de verão no Rio, ainda estaria comigo até hoje se, três anos depois, toda a magia e a aventura criada por George Lucas não houvesse se superado nessa continuação, que prometia muito mais do que mera ação e efeitos especiais: vida eterna aos nossos heróis. Do que veio depois, só “Ataque dos clones” mexeu tanto comigo, mas não quero provocar a ira dos fãs da saga… Vamos esperar para ver o que J. J. Abrams traz por aí.

85) “Matrix”, de Andy e Lana Wachowski (1999) – você pode até ter achado a história complicada, pretensiosa e mal explicada. Tem gente que achou que ela era brilhante, profunda e perfeitamente coerente. Mas por que vamos brigar por esses detalhes. “Matrix” é – com o perdão do trocadilho – a própria matriz de todo filme de ação moderno. Ainda que nada fizesse sentido, a exuberância de todo aquele visual justificava qualquer balbucio incompreensível de Keanu Reeves que tivemos de decifrar.

86) “Mera coincidência” (“Wag the dog”), de Barry Levinson (1997) – como não vi “Todos os homens do presidente” no cinema – e mesmo assim, quando finalmente o assisti, achei que era uma história (jornalística) bem contada, mas nada de excepcional – posso afirmar que “Mera coincidência” é o melhor filme sobre jornalismo da nossa era moderna. Ou ainda, aquele que melhor ilustra o que passa por informação nesses nossos tempos. Em 1997, a internet ainda estava engatinhando, mas Levinson conseguiu antecipar a chegada do que hoje eu chamo de “verdadice” – um simulacro de verdade, geralmente uma notícia mal contada e mal apurada que nas redes sociais ganham peso de verdade. Ah, não sabe o que é isso?

87) “Apocalypse now”, de Francis Ford Coppola (1979) – dificilmente este filme precisa de uma justificativa para estar aqui. Mesmo assim, vale só a pena assinalar que me lembro da tarde em que faltei ao cursinho para assistir a “Apocalypse” – e por dois ou três dias depois disso, achei que não valeria mais a pena eu sequer prestar vestibular, uma vez que o mundo estava mesmo perdido. “O horror, o horror!”.

88) “Ratatouille”, de Brad Bird e Jan Pinkava (2007) – muita gente já esqueceu de “Ratatouille”, à sombra de tantos outros filmes de animação espetaculares que vieram na sequência – como “Up” e “Wall-e”, para citar apenas alguns. Mas eu não! Tenho a história do ratinho cozinheiro ainda em alta conta, não só nas conquistas da própria animação, como na história que, se não é das mais originais, pelo menos é capaz de te deixar tão ou mais emocionado do que a criança que você levou para o cinema.

89) “Madame Satã”, de Karim Ainouz (2002) – trata-se de uma biografia, claro, e de um personagem controverso: um travesti que circulava pelos “bas fons” do Rio de Janeiro em meados do século 20. Seria já em si fascinante apenas contar essa história, mas a opção de Karim foi ainda mais genial: ele fez um corte de um ano na vida de Madame Satã, e desse período criou todo o arco dessa personagem. Ah! E de quebra, apresentou a um público maior o trabalho de ninguém menos que Lázaro Ramos.

90) “Os picaretas” (“Bowfinger”), de Frank Oz (1999) – alguns podem achar estranho a quantidade de comédias nessa lista – e essa não é nem a última delas (nem a primeira de Frank Oz). Mas “Picaretas” (maldita tradução) merece um lugar aqui pelo total absurdo da situação que cria: a de rodar o filme com uma grande estrela, sem que ela saiba que está estrelando o filme. Steve Martin e Eddie Murphy em seus últimos suspiros de graça. Brilhante! Genial! Incrível! E se você não rir no final, com os trailers que passam com os créditos, não é que você não tem coração, ou senso de humor: você está morto!

91) “4 meses, 3 semanas e 2 dias” (“4 luni, 3 saptamâni si 2 zile”), de Cristian Mungiu – só para contrastar, depois de “Os picaretas” eu apresento um filme romeno sobre aborto. Você que vive reclamando da sua vida, experimente ter vivido em Bucareste em meados dos anos 80. Ou melhor, não precisa experimentar. Mungiu, com um elenco superior de desconhecidos (para nós), mostra como a vida pode ser horrível – e mesmo assim dar um excelente filme.

92) “Bem-vindo à casa de bonecas” (“Welcome to the doll house”), de Todd Solondz (1995) – eis um diretor que mereceria entrar na lista pelo “conjunto da obra”. Todos seus filmes, deste a “Histórias proibidas” e “Felicidade”, são especiais no mesmo nível – alguns mais pervertidos que outros, mas isso é detalhe. Já que tenho de escolher um, vamos de “Casa de bonecas”, pelo fato de ele falar diretamente com qualquer jovem – menino ou menina – que se sentiu esquisito pelo menos uma vez na sua vida. Ou seja, a população universal.

93) “Aperte os cintos, o piloto sumiu” (“Airplane!”), de Jim Abrahams, David e Jerry Zucker (1980) – vi esse filme três vezes seguidas, no mesmo dia. A segunda porque eu não tinha entendido metade das piadas da primeira (pois tinha ficado rindo sem olhar para a tela). E a terceira porque encontrei outros amigos na saída do cinema e eu não pensei duas vezes quando eles me chamaram para assistir de novo. Que piada você quer que eu cite? “John nunca vomita em casa”? O “problema de bebida” do piloto? A cena que reproduz “Os embalos de sábado à noite”? A participação de Ethel Merman? A freirinha que canta? A velhinha que ateia fogo em si mesma? “Go backen sidonna”? Pode escolher, sei todas de cor. Sem contar que foi o primeiro filme que me ensinou que vale a pena ficar até depois dos créditos para ver uma piada…

94) “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” (“You will meet a tall dark stranger”), de Woody Allen (2010) – ah, você achou que eu ia passar batido sem mais um fime de Allen para arrematar? Pois aqui está um dos menos favoritos dos próprios fãs, mas que fala especialmente comigo. Amor, traição, desejo (e a falta dele), família, superstição – e sobretudo o acaso, este soberano que manda em nossa vidas. Está tudo lá, do jeito que o diretor gosta. E nós também. Tem até mesmo uma história de virar o estômago (a do autor que rouba o livro do amigo que está morrendo) e um dos diálogos mais absurdos de toda sua filmografia (entre Naomi Watts e Antonio Banderas). E agora, o que eu faço com “Hanna e suas irmãs”, “Desconstruindo Harry”, “Manhattan”…? (A lista segue…)

95) “Psicopata americano”(“American Psycho”), de Mary Harron (2000) – o livro já era assustador, além de carregar o peso de um controverso clássico moderno. O filme é mais ainda, mesmo sendo menos gráficos em seus crimes do que as páginas escritas por Bret Easton Ellis. Christian Bale está mais denso do que os três Batman que interpretou juntos, e seu personagem – o tal psicopata – é tão contemporâneo que você às vezes esquece que não está vendo um documentário. Harron ainda faria filmes bem estranhos (como “Um tiro para Andy Warhol”), mas nada que supere esse.

96) “Paris, Texas”, de Win Wenders (1984) – nunca o revi, portanto, pode ser que minha lembrança do filme seja um pouco datada. Mas eram os anos 80, e eu e minha geração estávamos abertos a dramas silencioso, vagos e destrutivos como esse. E era Win Wenders! Você pode até argumentar que hoje ele “perdeu a mão” – é verdade, por exemplo, que “Pina” é cativante, mas mais por conta da coreógrafa do que do diretor. Mas se você não gostasse de “Paris, Texas” naquela época, você não era ninguém.

97) “Corra Lola Corra” (“Lola rennt”), de Tom Tykwer (1998) – um filme com finais diferentes? Era isso mesmo? Hoje, quando as pessoas votam para decidir sobre o desfecho de uma série de televisão, o achado de Tykwer parece menos singular. Mas lá em 98, foi o suficiente para sustentar inúmeras conversas de bêbados nas minhas noites paulistanas. “Lola” abriu um leque de possibilidades narrativas que o próprio diretor não soube aproveitar (haja visto seu trabalho em “A viagem”). Mas a ideia ainda está no ar.

98) “O segredo da cabana” (“The cabin in the woods”), de Drew Goddard (2012) – perdi a conta de quantos sustos já levei nesses anos todos de cinema. De “Exorcista” (que só consegui assistir depois da quinta tentativa – e com uma identidade falsificada) a “O silêncio dos inocentes” e toda a série de “Jogos mortais” – passando sim por tudo quanto é variação de “Sexta-feira 13″ e “Hora do pesadelo”. Mas quantos desses filmes me desafiaram a inteligência? Eu sei: filme de horror não é para isso – só que “O segredo” veio com esse ingrediente a mais, e me ganhou imediatamente.

99) “Uma vida iluminada” (“Everything is illuminated”), de Liev Schreiber (2005) – ok, reconheço que essa escolha da lista tem um viés: “Tudo se ilumina”, de Jonathan Safran Foer, que serviu de base para o filme, é um dos meus 5 livros favoritos de toda a minha vida. Eu já estava pronto para gostar de “Vida iluminada” desde que sua produção foi anunciada. Mas Schreiber, na sua estreia como diretor, foi capaz de fazer uma verdadeira homenagem à literatura de Foer, reproduzindo em vários momentos a incrível capacidade da obra de ao mesmo tempo nos fazer morrer de rir (com o guia de nosso protagonista pela Ucrânia, que aprendeu seu inglês com a ajuda de um dicionário) e sofrer de tanto chorar (ninguém esquece daquela casa cheia de caixas com lembranças da guerra). Um dia eu quero morar naquele campo de girassóis.

100) “Tabu”, de Miguel Gomes (2012) – o que mais posso dizer sobre “Tabu” que já não registrei aqui inúmeras vezes? Faça uma busca aqui mesmo pelo nome de um dos atores (Carloto Cotta, por exemplo) e você vai ver que, entre outros elogios, eu disse também que esse era o único filme que você realmente precisava ver este ano. Aliás, em todos os anos. A história de Miguel Gomes é para quem ama cinema. E se você me acompanhou essas duas semanas fielmente até este último parágrafo, é porque você é “um desses” ou “uma dessas”! A gente adora cinema – e sabe que uma lista de 100 títulos nunca vai ser capaz de conter todas as nossas paixões. Mas nem por isso a gente deixa de tentar…

De “Tootsie” a “Shrek”



seg, 05/08/13
por Zeca Camargo |
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Seguimos então com a lista dos 100 melhores filmes que eu já vi no cinema – na época do seu lançamento (os detalhes dessa seleção, para quem está chegando agora, podem ser conferidos aqui). Hoje ofereço mais 30 títulos que me ajudaram a me tornar esse amante do cinema que sou hoje. Antes dela, faço porém uma ressalva – a partir de mais de um comentário que ouvi de amigos que me cobraram onde estão os documentários. É claro que tenho um bom punhado deles na minha “educação cinematográfica” – de “Rogério e eu”, a “Tabloide”, para usar a mesma brincadeira que tenho feito nos títulos dessa minissérie. Mas achei que deveria fazer uma lista separada só com eles – e por isso assumo desde já o compromisso de dividi-la com você em breve. Dito isso, vamos continuar nosso passeio?

41) “Tootsie”, de Sydney Pollack (1982) – a lista de hoje vem carregada de comédias, e escolhi essa pra abri-la. É um dos melhores exemplos de como fazer um filme com um tema delicado (um homem se veste de mulher para conseguir emprego) sem apelo para baixaria nem estereótipos. Talvez precise de um ator como Dustin Hoffman e um diretor como Pollack para entregar uma encomenda assim – mas nem por isso um bando de atores e diretores menos competentes poderiam deixar de tentar.

42) “Para sempre Lylia” (título original “Lilja 4-ever”), de Lukas Moodysson (2002) – depois de uma excelente comédia de comportamento (“Bem-vindos”), por que não o filme mais triste do mundo? Tudo vai mal na vida de Lylia, uma adolescente abandonada no interior da Rússia. Mas aí ela encontra seu príncipe encantado – e as coisas ficam piores. Sabe aqueles dias em que você acha que a vida não vale a pena ser vivida? Esse é um filme para um dia assim.

43) “Thelma e Louise”, de Ridley Scott (1991) – duas trintonas (ok, quase quarentonas), botam o pé na estrada e decidem fazer tudo que não fizeram até então com suas vidas, sem olhar para trás. “Filme de mulherzinha”? Pense de novo. “T&L” criou uma pequena revolução no cinema e na vida de todo mundo que o assistiu. E quando um título vira uma espécie de adjetivo (elas estão muito “Thelma e Louise”), é porque se trata de um fenômeno cultural.

44) “Ed Wood”, de Tim Burton (1994) – outro diretor que não facilita a vida de um editor de listas na hora de escolher um só para representá-lo. Quase coloquei “Eduardo mãos de tesoura”. Depois pensei em “Marte ataca!”. E cheguei até a considerar “Alice”. Mas no que diz respeito à esquisitice, nada supera a biografia que Burton fez daquele que ficou famoso como o “pior diretor de todos os tempos”. Até a recriação de “Plano 9 do espaço sideral” (algo acho que não deveria ser tocado!) ficou incrível.

45) “O ultimato Bourne” (“The Bourne ultimatum”), de Paul Greengrass (2007) – tenho uma queda por escolher os terceiros filmes de uma trilogia (veja “Toy story”, por exemplo). Mas se você precisar mesmo de uma justificativa, vou dar a cena do tiro na estação de Waterloo, no metrô de Londres. Não é apenas uma aula de edição – é a fonte que todos os filmes de ação devem beber para até o fim dos dias. Segurar uma história tão maluca por três filmes e ainda assinar a despedida dessa maneira é, para mim, trabalho de mestre.

46) “Hunger” (sem título em português), de Steve McQueen (2008) – mesmo os fãs de “Shame” (que eu gosto, mas não tanto) passaram batido por “Hunger”, o filme de estreia de McQueen. Além do trabalho impressionante de Michael Fassbender – que perdeu muitos quilos para dar à greve de fome de um prisioneiro irlandês um aspecto brutalmente realista – , McQueen mostra um dos diálogos mais provocantes sobre a existência de Deus no cinema – por 17 minutos ininterruptos! Avassalador é pouco…

47) “Cidade de Deus”, de Fenando Meirelles (2002) – sempre que alguém cita “Cidade de Deus” parece que está fazendo média. Afinal, esse foi o filme que finalmente colocou o Brasil no mapa do cinema internacional. Mas o que Fernando Meirelles fez foi muito mais que isso: trouxe o próprio público nacional de volta para o cinema, quebrou a maldição de que um filme só daria certo com estrelas da TV, e inspirou uma geração inteira de outros cineastas a procurarem caminhos cada vez mais interessantes. E tem gente que acha que elogiar “Cidade” é fazer média…

48) “Segredos e mentiras” (“Secrets & lies”), de Mike Leigh (1996) – quem procura a verdade deve estar sempre preparado para o pior. Se você não acredita nisso, recomendo que assista a este que é um dos melhores trabalhos de um diretor que é espetacular. No caso, o diretor não está nem falando de uma grande verdade, de uma população inteira que foi enganada, mas de uma pequena tragédia familiar. E ao particularizar uma história tão emocionante, ele abriu uma ferida universal.

49) “Traídos pelo desejo” (“The crying game”), de Neil Jordan (1992) – nunca vou me esquecer de uma capa da “Entertainment weekly” com esse filme, que trazia a manchete: “O filme que todo mundo (não) está falando” – uma brincadeira com o barulho que o trabalho de Jordan estava fazendo, ao mesmo tempo em que ninguém podia contar nada sobre o filme para não estragar o prazer de quem fosse assistir. Se você já viu, sabe do que estou falando. Se ainda não viu, tenho que parar por aqui…

50) “A agenda” (“L’emploi du temps”), de Laurent Cantet (2001) – se a perspectiva de perder o emprego já era assustadora antes de a Europa mergulhar numa crise, imagine agora. Com estranha premonição, Cantet conta a história de um homem poderoso que é demitido, mas não conta para ninguém, nem para sua família. Ele sai de casa todos os dias e volta na hora de sempre, como se nada estivesse acontecendo. O dinheiro para de entrar, as despesas só aumentam. Tem visto algum filme de terror recentemente? Recomendo esse.

51) “Caçadores da arca perdida” (“Raiders of the lost ark”), de Steven Spielberg (1981) – puro entretenimento. Só isso. Mas longe de ser gratuito. Spielberg, que já havia dilacerado corações com “E.T.”, resolveu mostrar que também era capaz de fazer um bom filme de ação. Com menos efeitos especiais que uma simples cena de “ Os vingadores” (2012), ele conseguiu criar o “patamar” de ouro desse gênero – que ele mesmo só iria superar anos anos mais tarde com “As aventuras de Tintim”, mas eu divago…

52) “Três reis” (“Three kings”), de David O. Russel (1999) – “Guerra ao terror”, de Kathryn Bigelow, ganhou Oscar e ficou conhecido como o grande filme moderno sobre guerra. Mas “Três reis” chegou antes. Talvez não com o mesmo suspense, mas com uma trama inteligente, duvidosa – e, o mais, importante, com humor. Ou melhor, um certo humor. Uma sátira à própria presença americana na primeira Guerra do Golfo, “Três reis” tem uma das melhores performances da carreira de George Clooney, antes de ele virar uma caricatura de galã.

53) “Ponto final – Match point”, de Woody Allen (2005) – Scarlett Johansson flerta com Jonathan Rhys Meyers separados apenas por dois copos de vinho num restaurante em Londres. Essa é uma das cenas mais sexys de todos os filmes de Woody Allen – e talvez de todo o cinema do século 21. E os dois estão completamente vestidos e mal se tocam… Essa é a cereja do bolo de excelente meditação do diretor sobre uma velha questão: se eu fizer o mal, e ninguém descobrir, eu mereço ser castigado? Ou ainda: existe justiça neste mundo? A resposta é inconclusiva, mas “Match point” dá um show ao tentar buscá-la com tanto charme.

54) “Crimes e pecados” (“Crimes and misdemeanors”), de Woody Allen (1989) – uma excelente meditação do diretor sobre uma velha questão: se eu fizer o mal, e ninguém descobrir, eu mereço ser castigado? Ou ainda, existe justiça neste mundo? Como? Já leu isso antes? No parágrafo anterior? Talvez seja porque o filme, anterior a “Match point” fala sobre exatamente a mesma coisa. Com um outro elenco, onde a sensualidade vem, surpreendentemente, de uma atriz com seus 38 anos então: Anjelica Houston. Alan Alda interpreta uma caricatura mordaz de um cineasta pretensioso, Daryl Hannah faz a melhor ponta de sua filmografia, e o filme traz um discurso final dos mais metafísicos e belos de tudo que Allen já escreveu: “A felicidade humana não parece ter sido incluída no desenho do Criador”…

55) “Cloverfield – Monstro”, de Matt Reeves (2008) – é possível que você pare de ler esta lista depois dessa escolha. Mas tenho que ser honesto aos meus sentimentos numa sala escura. Eu fiquei absolutamente apavorado com “Cloverfield” – e às custas de muito poucos efeitos especiais. Ontem um texto da revista do “The New York Times” brincava com o fato de “Tubarão”, que é o “pai” dos filmes-espetáculo de desastres campeões de bilheteria, conseguir assustar sem quase mostrar o tubarão. Lembrei imediatamente de “Cloverfield”…

56) “Os safados”, de Frank Oz (1988) – não é uma estatística oficial, mas esse filme contém mais ou menos uma piada por minuto. E não estou falando de piada sem graça que um comediante força a barra com um palavrão – o que um grande humorista que conheço chama de “fazer gol com a mão”. Trata-se de dois excelentes atores, Steve Martin e Michael Caine, passando a perna um no outro. Sem parar, num perpétuo jogo de vingança, onde o único vencedor é quem assiste. Tive de ver duas vezes para recuperar algumas piadas que perdi da primeira porque estava rindo…

57) “A viagem de Chihiro” (“Sen to Chihiro no kamikakushi”) , de Hayo Miyazaki (2001) – “realismo fantástico” é um gênero que geralmente me dá arrepios. Fui assistir à “Chihiro” não com um, mas dois pés atrás. Em menos de 5 minutos de filme – ou, para ser mais preciso, de animação – eu já estava fisgado. E vi o filme mais duas vezes, ainda no cinema (fora outras sessões de DVD). Não se preocupe com a trama, deixe todo o trabalho com seus olhos, que certamente irão se deliciar como os meus diante de um banquete tão precioso.

58) “Felizes juntos” (“Happy together”), de Kar Wai Wong (1997) – achei que um filme de Wong na lista (“Amores expressos”) já estava bom. Dei-me até ao luxo de esnobar “Amor à flor da pele”. Mas “Felizes juntos” passou na peneira, primeiro pela incrível fotografia – que pintou a Argentina, e particularmente Buenos Aires, com cores que nunca achei que fossem possíveis lá (mesmo os cenários mais ordinários vibram de luz). Depois pelo enredo surreal de um casal, Yiu-Fai e Po-Wing, que saem de Hong Kong para um destino “exótico” e se desentendem até o limite da loucura. Perturbador – para dizer pouco.

59) “As patricinhas de Bervely Hills” (“Clueless”), de Amy Heckerling (1995) – se você não desistiu dessa lista depois de “Cloverfield”, aqui vai mais um teste. Eu trabalhava na revista “Capricho” quando esse filme foi lançado e me lembro de como me admirar com a maneira que ele conseguiu capturar perfeitamente as aflições (e os frissons) das meninas adolescentes de meados dos anos 90. Com um detalhe: com uma história baseada num livro do começo do século 19 – no caso, “Emma”. Incluí “Patricinhas” (que é, concordo, uma tradução absurda) pela possibilidade que o filme abriu de se adaptar qualquer coisa no cinema. Desde que essa “coisa” seja Jane Austen…

60) “O doce amanhã” (“The sweet hereafter”), de Atom Egoyan (1997) – quando li o livro em que esse filme foi baseado fiquei imensamente tocado com a história de um acidente de um ônibus escolar que matou várias crianças numa cidade do interior dos Estados Unidos. Gostei tanto que passei a ler tudo de seu autor, Russell Banks. Mas nunca achei que daria um bom filme. Quando soube que um dos meus diretores favoritos ia fazer a adaptação, me animei. E quando finalmente vi o filme, fiquei sem ação.

61) “Elefante” (“Elephant”), de Gus Van Sant (2003) – na minha lista inicial, com quase 200 títulos, tinha separado três filmes de Van Sant: este, “Gênio indomável”, e “Garotos de programa”. Mas na hora dos cortes, acabei ficando com “Elefante” pela sua elegância e sutileza. Raros são os filmes conseguem retratar os jovens sem cair no estereótipo e na caricatura, mas dessa vez Van Sant (que viaja com folga esse universo) fez mais que isso: um testamento da adolescência moderna, que deve durar até boa parte do século 21 (assim como “Juventude transviada” foi para o século anterior).

62) “Touro indomável” (“Raging bull”), de Martin Scorsese (1980) – se eu não incluísse um clássico como esse, provavelmente iria ser reduzido a pó, como um adversário de Jake La Motta (o personagem de Robert de Niro) no ringue. Mas, assim como expliquei no caso de “Cidade de Deus”, não estou simplesmente fazendo média. Ter visto “Touro” no cinema, no início do meu período universitário, foi uma experiência transformadora. Era um filme “de arte”, mas ao mesmo tempo uma história muito bem contada, e de uma maneira totalmente original. Nunca o revi, mas tenho esse registro permanente da minha memória.

63) “O vingador do futuro” (“Total Recall”), de Paul Verhoeven (1990) – que ninguém diga que eu tenho problemas com filmes de ação. Meu único pedido aos diretores que se dedicam ao gênero é que eles não tratem o público como se fossem um bando de imbecis que acham que o preço de um ingresso deve ser equivalente aos decibeis das explosões do roteiro. Verhoeven pegou o ator mais simbólico desses filmes (Arnold Swcharzenneger), uma história original mirabolante (de Philip K. Dick), e fez um clássico desse período – cuja refilmagem, no ano passado não chegou nem perto em termos de emoção e suspense.

63) “Tropas estrelares” (“Starship troopers”), de Paul Verhoeven (1997) – agora sim! Você engoliu “Cloverfield” e passou por cima de “As patricinhas de Beverly Hills”. Mas finalmente eu consegui fazer você achar que esta lista não é séria. Não me importa: eu acho este filme o máximo, com todos os seus exageros. Atuações deploráveis, insetos gigantes, narrativa truncada. E mesmo assim, isso é o que eu chamo de entretenimento. Fiz a dobradinha de Verhoeven aqui de propósito. Se “Vingador” é relativamente levado a sério, “Tropas” é o mais puro “trash”. E por isso mesmo deve ser celebrado.

64) “Ghost World – aprendendo a viver”, de Terry Zwigoff (2001) – o que era aquela abertura? Passeando pelas janelas de um subúrbio americano, Zwigoff já começa oferecendo um tapa na sua cara com um clipe musical de um filme de “Bollywood” (que vale a pena ser visto na sua totalidade: “Jaan Pehechaan Ho”). E dali para frente tudo fica ainda mais esquisito – e por vezes até melancólico. Dezenas de filmes tentaram, de lá para cá, mostrar o que é ser jovem e esquisito, mas nenhum fez isso tão bem quanto “Ghost world”. Este o terceiro título da lista que traz Scarlett Joahnsson. Curioso. Por que será?

65) “Precisamos falar sobre Kevin” (“We need to talk about Kevin”), de Lynne Ramsay (2011) – eu tenho uma teoria de que filmes recentes às vezes não ganham o destaque devido justamente por conta do peso da própria história do cinema. “Kevin” é um caso desses. Ramsey constrói climas ainda mais assustadores que o do livro original (de Lionel Shriver), com imagens impressionantes e atuações mais ainda. Tilda Swinton (a mãe de Kevin), por exemplo, me deu mais calafrios do que Erza Miller (o próprio Kevin). Sem falar que você não faz ideia do que está acontecendo nos primeiros 15 minutos do filme. Tempos atrás, isso seria chamado de inovação e ousadia. Mas hoje…

66) “A criança” “(“L’enfant”), de Jean-Pierre e Luc Dardenne (2005) – para equilibrar tantas comédias da lista de hoje, quis colocar não apenas um filme triste (“Lylia”), mas dois. Ao contrário do filme de Moodysson, porém, “Criança” vai te levando com uma certa emoção – e até letargia. Até que a história dá um salto e o seu estômago é arrancado sem você perceber. A criança mesmo você só conhece no final do filme, numa cena para lá de emocionante na prisão – mas cuidado para você não se reconhecer dentro dela.

67) “Saneamento básico, o filme”, de Jorge Furtado (2007) – enquanto “Cidade de Deus” levou o cinema brasileiro a outro patamar (como argumentei acima), sobretudo no que diz respeito à direção, “Saneamento” fez a mesma coisa mas num outro nível: o do roteiro. Neste sentido, ele é quase uma meta história: um filme sobre um filme com um roteiro sofrível mas que no final celebra a própria capacidade humana de contar histórias. Nem todo mundo aproveitou o legado de “Saneamento”, mas tenho fé que vem aí uma geração de roteiristas que saiba rir de si mesma e escrever tão brilhantemente como Jorge Furtado. Sem falar no prazer de ver um elenco de primeira (Lázaro Ramos, Camila Pitanga, Wagner Moura, Paulo José) divertindo-se como se fosse um mero passatempo, e não um de seus melhores trabalhos.

68) “A bruxa de Blair” (“The Blair witch project”), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez (1999) – eu estava em Nova York na semana seguinte à que o filme estreou – e briguei para conseguir uma entrada. Entrei na sessão como todo mundo: com a atitude de um bando de crianças que sabe que vai se excitar com uma nova atração do parque de diversões. E não saí decepcionado. Quer dizer, mais ou menos. “Blair” não assusta nem uma fração do que o “boca a boca” te sugeria, mas com sua produção simples (ultrassimples) e bons ganchos de suspense, você tinha uma diversão barata – e um atestado de que tinha participado de um “movimento cultural”. A “Bruxa” abriu as portas das possibilidades documentais – ainda que falsas – do cinema moderno. E sem custar quase nada…

69) “Best in show”, de Christopher Guest (2000) – por falar em “falsas possibilidades documentais” este filme pouco visto (não consegui achar registro de seu lançamento no Brasil) é uma preciosidade. Filmado como se fosse um documentário num concurso de beleza de cachorros, ele logo descarta as beldades caninas para se concentrar nos verdadeiros animais da competição: os donos dos bichinhos. O DVD está na estante de honra da minha casa, e sempre penso nele ao fazer a lista das coisas que eu tentaria salvar primeiro em caso de incêndio.

70) “Shrek”, de Andrew Adamson e Vicky Jenson (2001) – bom… “Shrek”, né gente? Lembra do passarinho que canta até explodir? Do Puss aumentando os olhos para conquistar compaixão? Da musiquinha que sai da caixa do reino encantado? Do romance entre o dragão e o burro? Lembra de tudo? Ok, algumas piadas ficaram um pouco datadas, por conta das próprias referências culturais que o filme escolheu – uma “muleta” que quase todos os filmes de animação (e muitas comédias) adotaram desde então. Mas desafio alguém a tirar o trono de “Shrek” como o padrão de ouro de um filme para a família inteira.

De “Zelig” a “Borat”

qui, 01/08/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Isto não é uma competição, mas preciso dizer que tem sido mais divertido para mim do que para você. Falo, claro, dessa lista dos 100 melhores filmes que eu vi no cinema. Rever – ainda que na memória – esses trabalhos incríveis foi um presente inesperado. Pelos comentários, percebo que você que em lê aprovou a ideia – quanto até não mandou também suas sugestões. Mas deste lado de cá, tenho que confessar que estou nas nuvens!

Eu sei, eu sei – tem um monte de coisas acontecendo no mundo pop: da espera por “ARTPOP” à onda recente de filmes de suspense (maior expectativa para a estreia de “The purge”!). Mas estou “sequestrado” pela ideia de selecionar estes filmes e dividi-los com você. Para quem chegou agora, comecei a lista na última segunda-feira, a partir de uma pauta da revista “Entertainment Weekly”. É aquela coisa de “melhores de todos os tempos, mas com um viés: estou deixando os “clássicos” de lado, e escolhendo apenas entre os filmes “da minha geração” – aqueles que eu tive a possibilidade de conferir na sua temporada oficial no cinema.

Mas vamos seguir com ela – você já vai entender. Hoje vou oferecer mais 30 títulos. Só lembrando, eles estão numerados por uma questão de ordem – não de preferência. E, mais do que da última vez, tentarei ser ainda mais breve na justificativa da minha escolha – sem detalhes técnicos ou históricos: apenas usando fragmentos da minha memória e emoção. E segunda continuamos!

11) “Zelig” – bem, eu avisei que ia ter muito Woody Allen na lista… (Só na de hoje tem mais dois!). Mas como deixar um filme que fala da cultura de celebridades – em 1983! Mas não é só por isso que ele está aqui. Muito antes de “Forrest Gump”, Allen misturou material de arquivo com sua ficção para criar um efeito mágico. Sem falar na mensagem final, algo sobre como todos nós queremos ser amados – que seria a coisa mais piegas do mundo se não viesse de um dos diretores mais sarcásticos da história do cinema…

12) “Irreversível”, de Gaspar Noé (2002) – em matéria de histórias contadas fora de ordem, nada talvez supere “Amnésia” (que já foi incluído nessa lista). Mas o diretor francês não usou esse truque apenas como uma muleta, mas como cabide de outras cenas ainda mais chocantes – como um estupro em tempo real e um assassinato com um extintor de incêndio (que é eu preciso ver o making of para achar que não foi real). Pior, a cena mais chocante de todas está no final – e não traz violência nenhuma, mas uma das notícias mais românticas que um casal pode ter. Se eu contar mais, vou estragar seu prazer de um dia ver o filme…

13) “Contatos imediatos do terceiro grau”, de Steven Spielberg (1977) – seres alienígenas só não estão mais baixo na minha escala de preferência do que vampiros e zumbis. Mas este é um filme que derruba qualquer preconceito contra “e.t.s” – e que inclusive abriu caminho para o “E.T.”… Ambicioso como tudo que o diretor faz, mas dessa vez ele tinha uma história à altura dessa ambição para contar. Sabe aquelas cinco notas musicais? Pois é… Elas nunca mais vão sair da sua cabeça.

14) “Sexo, mentiras e videotape”, de Steven Soderbergh (1989) – qualquer crítico de cinema vai te dizer que este filme foi um marco na escalada do cinema independente americano. Eu costumo achar graça desse argumento, justamente porque a genialidade do filme está na originalidade de seu roteiro – e não exatamente num despojamento compulsório de uma produção independente. Soderbergh disse que se aposentou como cineasta, mas eu revejo “Sexo” e só posso desejar que ele esteja brincando…

15) “Sid & Nancy”, de Alex Cox (1986) – é uma biografia romanceada, nem sempre muito fiel, como fãs do Sex Pistols debatem até hoje. Mas tem a força de um documentário. A espiral descendente de Sid Vicious (interpretado com brio por Gary Oldman) é tão convincente que você acha muitas vezes que está assistindo a um “reality” – um gênero que nem havia sido inventado ainda na época em que o filme foi lançado. Ninguém precisa gostar de punk – ou mesmo saber direito o que foi o movimento – para ficar totalmente hipnotizado por essa retorcida história de amor.

16) “O iluminado”, de Stanley Kubrick (1980) – eu teria colocado esse filme de Kubrick aqui nem que fosse só pelo trailer – aquele, do lobby do hotel vazia, que se inunda de sangue quando a porta do elevador abre. Mas o filme, claro, é muito mais do que isso. O diretor conseguiu inserir mais de uma cena memorável no nosso inconsciente coletivo – “redrum”, aquele triciclo, aquelas gêmeas, “Hereeeeeeere’s Johnny!”, aquele labirinto. Além de habitar para sempre nossos pesadelos.

17) “(500) Dias com ela”, de Marc Webb (2009) – acho esse filme obrigatório para todo garoto que já se apaixonou. E para todo garoto que nunca se apaixonou também. De maneira inteligente e fragmentada, somos apresentados ao arco de uma paixão, com toda a alegria (e decepção) que um coração pode nos oferecer. Como alguém pode viver uma coisa assim e depois disso ainda querer se apaixonar? O próprio filme traz a resposta – e faz você sair do cinema com um sorriso que dura mais ou menos uma semana.

18) “A separação”, de Asghar Farhadi (2011) – um casal se separa e todo mundo sofre com isso. Acontece com todo mundo. Acontece também no Irã, sabia? O olhar sincero desse diretor nos ofereceu recentemente um dos dramas mais verdadeiros do cinema neste século 21. Atuações sensacionais de artistas que você nem imaginava que existia. E mais um final que eu mesmo já discuti em inúmeras mesas de jantar – quanto mais tarde e mais vinho você tiver bebido, melhor. O mundo é fascinante – e o cinema também está aí para lembrar a gente disso.

19) “Veludo azul”, de David Lynch (1986) – um lábio carnudo do tamanho de uma tela de cinema já é, em si, motivo de reverência. Quando esses lábios são de Isabella Rossellini então, você sabe que está diante de um imagem inesquecível. Aliás, como todo o filme de David Lynch. Mesmo para quem já havia assistido à sua estreia – “Eraserhead” – e mesmo seu primeiro sucesso comercial – “O homem elefante” (veja mais abaixo) -, “Veludo azul” é um choque de inventividade, sensualidade, perversidade – e absurdo. E não vamos nem começar a falar da trilha sonora…

20) “A origem”, de Christopher Nolan (2010) – muita gente saiu desse filme pensando naquele peão que não parava de rodar. Eu saí encantado com aquela montagem de um sonho dentro do outro, cada um acontecendo num tempo diferente – o mais lento deles, aquela van caindo “frame a frame” da ponte. Não é pelos cenários oníricos (se bem que Paris dobrando sobre si mesma é fora do normal). Também não é pelos vários enigmas que o diretor espalha pelo filme (o peão é só o mais óbvio deles). É por tudo que Nolan é capaz de puxar fora dos limites do cinema. E que ele nunca pare de fazer isso.

21) “Os embalos de sábado à noite”, de John Badham (1977) – um jovem da periferia tem acesso ao mundo de seus sonhos pelas pistas de dança. Não era um jovem qualquer, claro – era Tony Manero, interpretado por John Travolta. E a pista de dança também não era tão ordinária assim: a música que tocava ali era dos Bee Gees, uma das mais criativas bandas de um gênero que, injustamente, demorou anos para ser levado a sério (pergunte ao Daft Punk se isso é verdade). O resultado é uma fábula suburbana que mexeu com a cabeça deste então adolescente – que vos escreve hoje já com 50 anos. E com a cabeça de milhões de outros jovens como ele pelo mundo.

22) “Os suspeitos”, de Bryan Singer (1995) – um frio na espinha é a reação mais frequente de quem um dia já ouviu o nome de Keyser Söze. Todo mundo gosta de um filme que tem um “segredo” no final – plateias espertas gostam se serem surpreendidas. Mas “Os suspeitos” vai além disso: seu desfecho praticamente te obriga a assistir ao filme mais uma vez – talvez duas – para você ter certeza de que toda a história faz sentido. Kevin Spacey está no papel mais espetacular de sua carreira – e com um roteiro genial para bancá-lo.

23) “Alien – o oitavo passageiro”, de Ridley Scott (1979) – medo. Muito medo. Eu sempre sou presa fácil de filmes de terror. Mas esse é um caso especial, onde o suspense nunca era gratuito, e o grotesco jamais era simplesmente bizarro. Você se lembra do “nascimento” do Alien? E da sua baba pegajosa? Ridley Scott bem que tentou se superar recentemente com “Prometheus”. Mas nada – nada! – será capaz de deixar o espectador mais grudado na cadeira do que a imagem da cauda do “oitavo passageiro” se desenrolando por um corredor por onde os outros tripulantes da nave acabaram de passar…

24) “Amores expressos”, de Kar Wai Wong (1994) – o diretor chinês ainda estava por fazer aquela que seria considerada sua grande obra-prima, “Amor à flor da pele”. Mas foi com “Amores” que eu conheci seu trabalho – e dele nunca mais me separei. “Flor da pele” é lindo, mas ligeiramente afetado. “Amores” é quase tosco, mas tão real, que mesmo que você não esteja na faixa etária daqueles protagonistas – os primeiros vinte anos, cruéis e já não tão inconsequentes assim quanto à adolescência – você vai se apaixonar por eles. Wong tem um outro filme ainda mais radical – mas vou deixar ele para frente…

25) “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho (1012) – como já contei um dia neste blog fui ver este filme por pura teimosia. Queria checar porque um crítico do “The New York Times” tinha o colocado entre os melhores do ano de 2012. Em menos de 10 minutos de projeção eu já estava dando razão ao jornal – e meu interesse só foi aumentando até o final. Como nada que você viu até hoje no cinema nacional – nem, desconfio, vai ver por um bom tempo…

26) “Harry e Sally – feitos um para o outro”, de Rob Reiner (1989) – sim, eu sei: a cena do orgasmo no meio de um restaurante. A velhinha assistindo à cena e pedindo para a garçonete: “Eu quero a mesma coisa que ela está tomando”. Todo mundo lembra disso. Mas “Harry e Sally” é muito maior do que a soma de suas piadas. A autora do roteiro, Nora Ephron (que morreu há pouco mais de um ano), faria escola em Hollywood – além de me ter convertido num fã devoto de seu trabalho. Raras são as comédias que podem ser chamadas de “clássico”, mas essa é uma delas.

27) “O escafandro e a borboleta”, de Julian Schnabel (2007) – outro filme sobre o qual já me dobrei aqui neste espaço. Tenho medo de me repetir sem querer. Então acho melhor me repetir “por querer” – aqui vai um trecho deste post: “Durante boa parte da primeira metade do filme, você acompanha tudo pelo ponto de vista da única “janela” de Jean-do: seu olho esquerdo – com todas as imperfeições e limitações que a visão de quem sofreu um derrame e ficou vinte dias em coma. Uma ideia simples – você logo pensa –, mas que traz um resultado sensacional para a tela, e seduz você – espectador – quase que imediatamente”. Tenho dito.

28) “Poderosa Afrodite”, de Woody Allen (1995) – Mira Sorvino e (ele de novo) Woody Allen? Quem diria? Bem, um coro grego completo diria. E nem era preciso ser uma Cassandra para prever que essa combinação daria certo. As referências ao teatro em sua forma mais antiga são inúmeras – a minha favorita: a aparição de um deus ex-machina que resolve tudo no fim das contas. “Afrodite” veio de um hiato de boas piadas do diretor, e explode de humor a cada nova cena. Mas a mensagem final, de que tudo se acerta e os homens seguem vivendo, é das mais enternecedoras de toda a filmografia de Allen. Nem que para a gente chegar lá seja preciso do tal deus ex-machina.

29) “Encontros e desencontros”, de Sophia Coppola (2003) – depois de uma estreia duvidosa (“As virgens suicidas”), a diretora arriscou ainda mais no seu trabalho seguinte. “Encontros” flerta o tempo todo com a pretensão, mas tem a sabedoria de ser salvo pela ironia e pelo questionamento sincero de seus personagens. Ninguém sabe muito bem o que está acontecendo consigo mesmo – e quem assiste é arrastado nesse éter sem muita direção. Tudo parece muito solto, mas não há como viver nesses tempos modernos e não se identificar com os personagens de Bill Murray (ele já volta aqui nesta mesma lista) e Scarlett Johansson. Nunca voltei a ver esse filme – acho que por medo de me perder de vez.

30) “Tempestade de gelo”, de Ang Lee (1997) – se você cresceu nos anos 70 com seus pais tentando entender o que tinha acontecido com a instituição “família” depois da revolução da década anterior – ou seja, se você é fruto desse período turbulento, este filme é para você. Foi nele que Lee mostrou pela primeira vez suas credenciais como diretor sensível, capaz de lidar com qualquer gênero além de filmes de ação. É de um silêncio constrangedor, de uma beleza congelada, e de uma profundidade que faz os olhos de Tobey Maguire parecerem rasos.

31) “A árvore da vida”, de Terrence Malick (2011) – quando ele foi lançado, dediquei um post inteiro a este filme aqui mesmo neste espaço. Sem falsa modéstia, escrevi, de uma vez só, um dos textos mais emocionados de toda a existência deste blog. E escreveria tudo de novo. Essa é uma das mais lindas histórias de amor que já foram filmadas – mas não desse amor que você está pensando. De um amor maior: pela pessoa com quem você resolve se casar, pelo seus filhos, pelo seu pai, pela humanidade, pelo mundo. Já vi quatro vezes – e chorei corrido em todas elas. Até na cena do dinossauro – fica claro agora como esse trabalho de Malick foi importante para mim?

32) “Minha adorável lavanderia”, de Stephen Frears (1985) – depois de “Sid & Nancy” (acima) este é o filme mais punk que saiu da Inglaterra. Não digo no sentido literal – o visual dos personagens principais (um deles vividos por um jovem Daniel Day-Lewis) está mais para o “new wave estiloso” do que para os Sex Pistols. Mas “Lavanderia” é punk na sua alma – subversivo como só a juventude inglesa sabe ser. Pense em “Faça a coisa certa”, de Spike Lee, mas sobre questões ainda mais complexas que o racismo. Uma sociedade toda pegando fogo – e você assistindo.

33) “Feitiço do tempo”, de Harold Hamis (1993) – “É o Dia da Marmota!”, anunciava o repórter na TV todo dia – já que todo dia era o mesmo dia. E não era nem o melhor dia da vida do sensacional personagem interpretado por Bill Murray. Mas era naquele dia que ele estava preso – e você também se torna refém, só que de um dos roteiros mais criativos de todas as comédias às quais que já assisti. Sei passagens inteiras de cor – e quando pego “Feitiço do tempo” sem querer num canal de TV, posso acompanhar de qualquer trecho em diante. Para mim, é quase uma religião.

34) “A professora de piano”, de Michael Haneke (2001) – depois desse filme eu nunca mais fui capaz de assistir a um filme com Isabelle Huppert relaxado. Mesmo em “Amor”, o filme mais recente de Haneke, onde ela faz um papel relativamente inocente, a expectativa é a de que ela vai entrar num banheiro, legar uma gilete e – bom, quem viu o filme sabe do que eu estou falando. Mas essa nem é a maior perversos da professora que ela interpreta divinamente. Todo o roteiro é construído em torno de suas obsessões – e de maneira tão esperta que você acaba torcendo por elas.

35) “O homem elefante”, de David Lynch (1980) – poderia ter sido um desastre: uma peça “difícil” (apesar de bem sucedida); um diretor alternativo; um personagem surreal (mas muito verdadeiro); branco e preto. No entanto, “O homem elefante” foi um sucesso. Não só lançou a carreira definitiva de Lynch, como emocionou o mundo com a história de um monstro – apenas por fora, e não por dentro. John Hurt, no papel principal, gritando: “Eu não sou animal!”. Eu me lembro disso até hoje e fico paralisado.

36) “E sua mãe também”, de Alfonso Cuarón (2001) – vou pegar emprestadas as palavras do crítico da “New Yorker” para expressar o que penso desse filme: “Julio e Tenoch podem transbordar de insolências e bobagens, mas isto é prerrogativa dos jovens; e é o trabalho do artista adulto remexer nesse passado, e desenterrar, desse ridículo, os cacos de uma glória interrompida”. Eu nunca achava que me interessaria por outro “road movie” depois de “Thelma e Louise” (confira nas próximas listas). Mas aí veio Cuarón e mudou tudo.

37) “Titanic”, de James Cameron (1997) – você pode até esnobar, mas uma lista de filmes recentes que não inclui “Titanic” só está prejudicando a si mesma, jamais ao trabalho de Cameron. Tive de lutar para comprar um ingresso no dia da estreia no Brasil – 25 de dezembro de 1997. Consegui na última sessão, na primeira fila, com a cabeça jogada para cima, e uma visão ultradistorcida da tela. Tudo jogava conta. Mas eu nunca esqueci daquela noite. E eu tenho certeza de que você também tem uma boa resposta para a pergunta: “Onde você estava quando viu ‘Titanic’ pela primeira vez?”.

38) “Fale com ela”, de Pedro Almodóvar (2002) – talvez só escolher filmes de Woody Allen seja uma tarefa mais ingrata do que escolher alguns de Almodóvar. O diretor espanhol é tão brilhante e inesperado, que ficar apenas com um ou dois títulos seria uma descabida injustiça. Outros virão, mas vou começar por “Fale com ela” simplesmente por causa da frase final dita pela personagem de Geraldine Chaplin: “Nada é simples”. E isso num filme que mistura Pina Bausch com toda uma sequência evocando cinema mudo (com uma vagina gigantesca), passando por toureiras e Caetano Veloso. De fato, nada é simples…

39) “Borat – o segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América”, de Larry Charles (2006) – um filme como este nunca mais poderá ser feito. Sacha Baron Cohen até tentou (e eu acho “Brüno” um filme quase tão bom quanto esse), mas o truque é “irrepetível”. Terá tudo sido feito “na inocência” mesmo ou era tudo armado? Cohen realmente levou todos aqueles processos de pessoas que apareceram na tela ou era só um golpe publicitário? Não importa – o que conta é que esse é um trabalho original, único, e o melhor que você pode fazer é lamentar que não foi você que teve essa ideia primeiro…

40) “Um convidado bem trapalhão”, de Blake Edwards (1968) – Peter Sellers vai por engano em uma festa onde ele não conhece ninguém. Bem-vindo ao caos. Essa é uma pequena joia esquecida do cinema, mas que fiz questão de incluir por dois motivos: para provar que é possível fazer comédia sem nenhuma referencia à baixaria; e porque este foi o primeiro filme que eu assisti num cinema na minha vida (descontando os clássico de animação da Disney, claro). Foi lá no Cine Veneza, na Rua Augusta, em São Paulo (onde hoje é o Teatro Procópio Ferreira). Minha avó (que eu chamava de Mainha – vai entender!) me levava para ver desenhos na sessão “Tom & Jerry” – você não sabe que luxo era ver aquilo numa tela grande, no lugar da TV. E depois vinha a “atração principal”. Foram vários do Jerry Lewis, “Se meu Fusca falasse” – até mesmo um curioso filme experimental chamado “Um dia, um gato”. Mas o que eu nunca esqueci mesmo foi “Um convidado bem trapalhão”. Assista – e você vai entender por quê…

 



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