Serendipidade
Eu conheci essa palavra primeiro em inglês: “serendipity”. Usei-a assim durante anos, sem nem tentar descobrir se ela tinha uma tradução para o português – o que sempre me pareceu improvável. Mas recentemente fui buscar uma tradução “oficial” e, em pelo menos um dicionário online de respeito (Michaelis) encontrei “serendipismo”. O problema é que eu não consegui encontrar “serendipismo” em um dicionário de português com a mesma credibilidade. O Houaiss, ironicamente, me encaminhava para a própria palavra em inglês – “serendipity”. Cuja definição me indicava a seguinte forma aportuguesada: “serendipidade” – que foi a que usei para o título de hoje.
Este início de texto meio labiríntico – quando não é? – tem um motivo. É fruto de uma improvisação. Hoje nem teria um post. Estou tirando alguns dias de férias das minhas atividades do dia-a-dia por conta de, entre outras coisas, me dedicar ao lançamento do meu novo livro: “50? Eu?” (E-galáxia). Mas diante do que vi no episódio de ontem do quadro “Vai fazer o quê?” – rapidamente, um homem negro, um branco, e uma mulher bonita tentando roubar uma bicicleta para ver a reação das pessoas – fui fazendo associações com o tema “racismo” e resolvi procurar aqui mesmo na internet uma música que não ouvia há tempos: “Racist friend”, do The Specials. Achei oportuno, diante do que foi mostrado no quadro, ouvir uma letra que elegantemente sugere: “Se você tiver um amigo racista, essa é a hora para terminar a amizade – seja sua irmã, seu tio, sua mãe, seu amante”.
Uma vez que o Specials é uma das bandas mais importantes – e talvez menos reconhecidas – do pop britânico (veja também “Ghost town”, Friday night, Saturday morning”, “A message to you, Rudy”, e claro “Free Nelson Mandela”) pensei em comunicar você que eu sairia de férias usando apenas esta música (“Racist friend”), sem me alongar demais. Mas aí a “serendipidade” entrou em ação – e aqui estou eu já terminando o terceiro parágrafo, e já pensando no quarto para explicar o que a tal palavra significa. Onde isso vai parar? Não sei – e essa é a beleza dessa palavra.
O próprio dicionário Houaiss ajuda nessa tarefa definindo que trata-se do “dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou de descobri-las por acaso”. Isso eu até mesmo poderia explicar, talvez com outras palavras, pela própria maneira como aprendi a usá-la em inglês: para descrever situações que iam se desenrolando, justamente, por acaso. Mas o Houaiss tinha mais – uma explicação possível de sua origem: teria vindo do antigo nome do Sri Lanka (um país da Ásia), de onde, segundo um antigo conto persa, vinham três príncipes que sempre “davam em coisas sem ter procurado por elas”.
Já viu onde isso vai dar, né? Na internet, claro! Isto aqui é o Reino da Serendipidade. Onde mais você pode se perder em informação, em associação de ideias, em caminhos soltos que sempre te levam a algum lugar? Aqui mesmo. Mais de uma vez escrevi sobre isso neste espaço – nesses quase sete anos de blog. E mesmo que não esteja sempre falando literalmente disso, a tal “serendipidade” sempre está presente na minha vida (e aposto que na sua também). Eu não brinco que minha religião é o acaso à toa…
Assim, do “Racist friend” do Specials, eu fui parar em outra canção com um título parecido: “Your racist friend”, do They Might Be Giants”. Na virada dos anos 80 para os 90 eu fui apresentado para um álbum dessa banda com o nome ligeiramente esquisito – que em português é algo como “Eles podem ser gigantes”. Era o disco “Flood” que eu ouvi umas 967.532 vezes, só no ano de 1990! Apesar de não ter escutado nenhuma faixa dele nos últimos 10, 15 anos. Por isso mesmo, no próprio YouTube comecei hoje de manhã a escutar várias canções de “Flood” – favoritos pessoais como “Istanbul (not Constantinopla)”, “Twisting”, “Letterbox”, “Minimun wage” (uma pequena obra-prima que eu faço questão de pedir 47 segundos da sua atenção para clicar aqui e ouvir o título dela, que significa “salário mínimo” e uma chicotada). E acabei a seleção com o “clássico” “Birdhouse in your soul” – que por acaso, era a mensagem gravada num cartão que eu havia escrito para um amigo meu, colega de trabalho, ontem mesmo.
Por conexões ainda mais misteriosas que as da minha memória, a lista de sugestões da própria página do YouTube para “Birdhouse” veio com uma música que eu não ouvia também há tempos – mas que esteve no meu “playlist” intensamente quando entrevistei sua cantora por causa de um lançamento de então. A canção era “Hands clean”, de Alanis Morissette. E quando o refrão veio, comecei a chorar:
“We’ll fast forward to a few years later
And no one knows except the both of us
And I have honored your request for silence
And you’ve washed your heads clean of this”
Por que as lágrimas? Por conta de uma entrevista que eu havia lido na manhã de domingo, com alguém que admirei havia algum tempo atrás – uma entrevista que li, entre outras coisas, pela paixão pelos livros que eu mesmo dividia com o entrevistado, a ponto de vibrar, tempos atrás, com seus comentários sobre um dos meus autores favoritos, Nick Hornby.
Ele, Hornby, está novamente em evidência por conta de um relançamento – pela Companhia das Letras – de seus livros mais queridos: “Febre de bola” e “Alta fidelidade”. Esse último em especial, é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que, como eu, é apaixonado por música e literatura – uma combinação interessante que sempre produz livros ótimos. Como este lançamento de um autor que só conhecia como colunista, mas cujo último trabalho estou louco para ler: “A maçã envenenada” (Companhia das Letras), com sua história que envolve a passagem do Nirvana pelo Brasil em 1993 (um episódio que, como qualquer pessoa que acompanhou meu trabalho na MTV no início dos anos 90 sabe, eu segui bem de perto). Ou este outro livro que terminei de ler ontem mesmo, “A morte do pai”, de Karl Ove Knausgård (também da Companhia das Letras) – e que achei misteriosamente hipnótico.
Knausgård – que cancelou na última hora sua participação na última Flip (a Feira Literária de Paraty) – vem sendo chamado de um Proust moderno, por seus livros monumentais que são (ou não) livremente biográficos. Não sei se é tudo isso, mas sei que é bom. “A morte do pai” é o primeiro desses volumes a sair no Brasil – traduzido do próprio original norueguês por Leonardo Pinto Silva – e me fisgou à relutância. Seu estilo por vezes ultradetalhista – com parágrafos que descrevem uma pessoa entrando no carro, colocando a chave no contato, girando-a e ligando o motor com mórbida precisão – é um obstáculo a princípio. Mas aos poucos você vai entrando na viagem da memória de Knausgård com resistência cada vez menor. Eu fui me surpreendendo com a maneira que minha leitura fluiu – em parte pela intimidade que o autor cria com o leitor (que a certa altura quase que passa a fazer parte da família Knausgård), em parte com a forte ligação que o protagonista (o próprio autor) tem com a música, e em especial com a música da minha geração.
Um trecho típico:
“Certa vez fomos até a casa de Asbjørn, eu me recordo, passamos três dias bebendo, Yngve pôs Pixies, então uma desconhecida banda americana, para tocar e Asbjørn ficou deitado no sofá se acabando de rir porque achou bom demais o som que ouvíamos. Isso é bom demais, gritava ele, por sobre a música no volume máximo. Ha-ha-ha! Ha-ha-ha! É bom demais! Quando fui a Bergen aos dezenove anos, ele e Yngve foram ao meu alojamento logo nos primeiros dias, e nem a foto de John Lennon, pendurada sobre a minha escrivaninha, nem o pôster de um milharal, com a pequena área gramada cintilando com uma intensidade milagrosa em primeiro plano, nem o pôster de ‘A missão’, com Jeremy Irons, passaram pelo crivo deles. Sem chance.”
Era estranho notar, página após página, como uma adolescência no interior da Noruega pode ser tão parecida com a de um garoto numa cidade grande do Brasil… Como eu disse, resisti incialmente a “Morte do pai”, mas saí extremamente recompensado da experiência, a ponto de achar que teria me arrependido muito se, um dia lá na frente, um amigo me recomendasse o livro de Knausgård e eu tivesse que admitir que ainda não tinha lido apenas por preguiça de me envolver com uma história que supostamente eu achava que não tinha nada a ver comigo.
E me lembrei de encomendar um outro livro na internet, cuja resenha me deixou incrivelmente excitado. Chama-se “Rewire: digital cosmopolitans in the age of connection”, de Ethan Zuckerman. Escrevendo sobre ele na “Bookforum”, Astra Taylor esclarece um ponto de vista do autor que não é exatamente novo, mas é sim brilhante:
“Nós procuramos por informação que já queremos ou achamos coisas novas com a ajuda de pessoas que já conhecemos, e uma vez que essas pessoas tendem a ser parecidas com nós mesmos, muita coisa no mundo acontece sem que a gente tenha conhecimento delas. Por exemplo, Zuckerman diz que nós americanos talvez não saibam muito do que está acontecendo na Zâmbia a não ser que a gente conheça alguém de lá. E na era de Google e Facebook, se seus hábitos de consumo de mídia são limitados, a culpa é de nós mesmos, não desses poderosos guardiões da informação. Por isso Zuckerman argumenta que ‘se quisermos que a conexão digital amplie a conexão humana, nós temos que experimentar’.”
E eu acho que esse é o problema de boa parte da nossa desinformação de hoje: a falta de curiosidade pelo que é diferente. Toda vez que vejo uma coluna de “as mais lidas” num site de notícia tenho vontade de apagar aquilo! A gente quer ler o que os outros lêem, os mesmo sites de sempre, sobre as mesmas pessoas – e depois a gente reclama que a vida é sem graça.
Pois eu digo: vá se aventurar. Quando você sai só um pouco do caminho, coisas impressionantes podem acontecer. Deixe a “serendipidade” entrar em ação. Eu não tinha ideia que este texto de hoje ia parar aqui. Passei por They Might Be Giants, Alanis, um chorinho, Nick Hornby, Knausgård, estudos cognitivos – e agora estou saindo de férias! Quem diria? Se você veio comigo até aqui – bravo! Já é um bom começo. É daqui para outros destinos ainda mais inesperados. Ou então tem uma lista de mais lidas aqui mesmo na primeira página do G1 – vai lá. No momento em que termino de escrever isso, a matéria mais procurada é a sobre o harém de colegiais que um livro diz que Khadafi mantinha numa fortaleza…
O refrão nosso de cada dia: “Vathala paakku”, Chitra - só para seguir na linha do mergulho no desconhecido, ouça esses 23 segundos de uma canção surreal. E depois vá para onde você quiser…