Onde eu estou?
Responda rápido: qual cantor ou cantora de menos de 30 anos que é popular hoje seria capaz de despertar sua curiosidade pelo que ele ou ela tem a dizer (ou a cantar) daqui a quatro décadas? O jogo de citar nomes, sobretudo de artistas que amamos, é sempre muito cruel. Mas, no caso de hoje, é irresistível. E digo isso porque nos últimos dias tenho ouvido, com certa frequência, um certo álbum de 1972 – “Transa”, de Caetano Veloso. E a cada audição, fico mais surpreso com a modernidade do disco – e mais: ainda me espanto com a presciência das músicas, das letras, dos sons, das mensagens que ele continha. E fico imensamente feliz de pertencer a uma geração que teve a sorte de crescer, não apenas com esse disco, mas à sombra de um artista tão relevante como Caetano – que, independente de você concordar ou não com o que ele pensa e diz, ainda nos serve como referência (e isso às vésperas de ele próprio completar 70 anos…).
Mas vamos à “Transa”. Seria desonesto da minha parte dizer aqui que me lembro dele na época do seu lançamento. Eu era um garoto de 9 anos, em 1972 – e apesar de já ter uma certa “queda” por boa música, eu ainda dependia do “filtro” do gosto musical dos meus pais para escutar alguma coisa no “toca-discos” (na dúvida, consulte o Google já sobre o que é esse “estranho objeto”). Assim, sem contar “Caetano e Chico juntos e ao vivo” – que também é de 1972, e que, tenho certeza, tinha entrado na minha casa muito mais por conta do “Chico” do que do “Caetano” na capa do disco –, o primeiro LP de Veloso que eu me lembro de pegar com minhas mãos foi “Cinema transcendental”, já de 1979.
Eu sei. Esse já era o Caetano “facinho”, dirão alguns – o Caetano de “Menino do Rio”, de “Beleza pura”, de “Lua de São Jorge”. Mas era também o Caetano de “Elegia” (terá uma poesia – brilhante no original de John Donne, perfeitamente encaixada nas rimas do nosso português por Augusto de Campos – jamais ganho uma adaptação musical mais feliz, como nessa de Péricles Cavalcanti?); de “Oração ao tempo” (“És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho”…); da indecifrável “Os meninos dançam” (“Baby, boca, Charles”?). E foi esse o primeiro Caetano que me fisgou.
Na sequência viriam “Outras palavras” – de “Vera gata”, de “Lua e estrela”, de “Rapte-me camaleoa”, e sobretudo de “Verdura”; “Cores, nomes” – de “Queixa”, de “Sonhos”, de “Trem das cores” (“Céu de uma azul celeste celestial”), e de “Ele me deu um beijo na boca” (“Toca de raposa bêbada”, “Delfim, Margareth Tatcher, Menachem Begin – política é o fim”); e “Uns” – de onde tirar apenas uma ou outra faixa seria uma injustiça. Depois dessa “educação sentimental”, aí sim eu me senti preparado para ir buscar o Caetano de antes – e depois de “Tropicália” e um par de álbuns com seu próprio nome (um deles, claro, com “London, London”), finalmente cheguei a “Transa”. E de lá não saí mais.
No início dos anos 80 – como expliquei, com uma defasagem de quase um ano –, ouvi “Transa” tantas vezes que era capaz de cantar todas suas músicas, a partir de qualquer trecho. “Triste Bahia” era, então, a mistura mais elegante de inspiração e melancolia, nos seus quase dez minutos. “Nine out of ten”, uma deliciosa celebração de liberdade – em todos os sentidos (“The age of music is past”…). Entregava-me com gosto ao embalo ligeiramente magnético de “It’s a long way” (com direito a canto de pássaros). “Mora na filosofia”, naquela preciosa regravação, remetia-me a rarefeitas lembranças de infância, na convivência de um poeta (que, não por acaso, era meu tio e também padrinho, o Cacaso) – e só por isso eu a adorava, sem entender direito o porquê. “Neolithic man” trazia aquele labirinto de palavras, que era um convite para se perder na voz de Caetano. E para esse “roqueiro tardio”, uma música com o nome de “Nostalgia (that’s what rock’n’roll is all about)”, tinha, claro, um apelo irresistível. Mas nenhuma dessas faixas superava o impacto de ter ouvido, logo de cara – faixa 1 do lado A (no tempo em que álbuns ainda tinham dois lados, ou ainda, no tempo em que álbuns ainda faziam sentido) – “ You don’t know me”.
Na “edição comemorativa” que tenho agora – celebrando simultaneamente os 40 anos de “Transa” e os 70 de Caetano – todas as músicas (na época, gravada no estúdio Abbey Road, em Londres) estão com uma qualidade coruscante. As estripulias musicais de Caetano – imerso no intenso cenário pop da Londres do início dos anos 70, onde estava exilado – penetram nossos ouvidos de maneira ainda mais incisiva. E, novamente, é “You don’t know me” que sai na frente. Da sua introdução – que me conecta, de maneira que não consigo explicar, a “Sympathy for the Devil”, dos Rolling Stones – até a inesperada transição da sua letra em inglês para o português, culminando na oração que dá título ao post de hoje, e passando até pela sutil participação de Gal Costa (“Já temos um passado meu amor”), “You don’t know me” prova que ainda é uma das composições mais atuais de toda a carreira de Caetano – ou ainda: se alguma coisa consegue ser “presente” por tanto tempo, é sinal de que ela é eterna…
Se você tem menos de 50 anos e nunca deu essa chance a “Transa”, essa é a hora. Eu desafio você a me sugerir um disco contemporâneo – de qualquer artista – que seja tão moderno quanto esse, e vingará no futuro como esse vingou. Não se trata de saudosismo, não – não preciso me explicar para você que sempre passa por aqui, nem te convencer de que estou sempre aberto a novidades. Mas “Transa” é essencial para entender o que eu sugeri lá no começo – a razão de Caetano Veloso ser tão relevante, há anos. Quem entrou na sua órbita por conta desse trabalho, ficou irreversivelmente preso a sua gravidade – e infinitamente curioso aonde ela pode te levar.
Repito à pergunta: qual cantor ou cantora de menos de 30 anos que é popular hoje seria capaz de despertar sua curiosidade pelo que ele ou ela tem a dizer (ou a cantar) daqui a quatro décadas? Não estou sugerindo com isso uma provocação fácil – estou ciente de que, apesar da imensa popularidade da “obra” de, digamos, João Lucas e Marcelo (além da hipnótica capacidade que “Tchun tcha” tem de não sair da sua cabeça), esses autores muito provavelmente não estarão entre os mais influentes de 2052; não queremos saber suas opiniões sobre as coisas hoje – tampouco no futuro. E eles mesmos não demonstram nenhum interesse mais profundo em expressar suas ideias, a não ser que seja a serviço da nossa diversão (o que fazem, deixo claro, com muita competência). Mas penso em tantos outros artistas que chegaram depois de Caetano e que, de fato, têm a intenção de ter uma relevância no cenário cultural brasileiro – mas talvez não tenham exatamente o estofo necessário para tal. Posso estar errado, claro. E por isso queria que você me apresentasse algumas respostas a minha pergunta… Mas se não der, desencane. Não é tarefa simples, eu sei…
Antes de encerrar, quero só pedir desculpas por não ter postado nada na última quinta-feira. Entre vários compromissos, acabei aceitando um outro bastante desafiador, que por fim “atropelou” meu compromisso aqui com você. Não é uma desculpa qualquer – tenho um álibi! Na última quinta-feira, fui convidado a escrever, na “Folha de S.Paulo”, um texto sobre o novo show de Marisa Monte, e fiquei dividido. Acabei dedicando-me mais a ele. No final, acho que consegui sucesso moderado – não vou aqui repetir o que expressei no jornal, mas se você quiser conferir, basta clicar aqui. Vou apenas assinalar um trecho do show que tem uma conexão acidental com o post de hoje.
A certa altura de “Verdade uma ilusão”, Marisa fala de uma cantora italiana que eu conhecia há tempos, a soberba Mina. Inspirado pela sugestão, no fim-de-semana fui procurar no Youtube várias coisas de Mina, quando, de repente, deparo-me com a própria cantando… “Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria”! Que é, claro, uma versão não de “You don’t know me”, mas de “Reza”, o original de Edu Lobo e Ruy Guerra. Isso mesmo: além das ótimas interpretações de Elis Regina e do Quarteto em Cy, “Reza” ainda foi gravada por Mina – e rebatizada de “Lais ladaia”.
Como diria um dos meus personagens favoritos da literatura contemporânea – Alex, criado por Jonathan Safran Foer: “Tudo se ilumina”…
O refrão nosso de cada dia
“Sono como tu me vuoi”, Mina – a conexão Marisa Monte/Mina, sobre a qual escrevi logo acima, mexeu comigo. E quero, com o refrão de hoje, mexer com você também. Por isso indico aqui “Sono como tu me voi”, que é justamente a canção de Mina que Marisa escolheu para seu novo show. Num dos momentos em que conversa com o público, a cantora, que era fã da italiana há anos, a convidou para participar de seu último disco, num dueto em uma das músicas inéditas. Marisa mandou a faixa para Mina, e ela gostou tanto, que nem quis saber de dueto: pediu para gravar a tal música sozinha no disco dela mesma. Que faixa é essa? Bem, não vou tirar a surpresa de você que ainda não assistiu ao show – que por enquanto está em São Paulo, mas vai rodar o Brasil. Mas para quem não conhece Mina, essa é uma boa introdução. Ah! E para você que já conhece, aqui vai uma atenção também… Já que não postei nada na quinta passada, aqui vai uma dose dupla de refrões – ambos de Mina! Eu mesmo não conhecia essa faixa, mas devido a audições seguidas nas últimas 48 horas, ela já entrou para a minha lista de uma das músicas mais bonitas que já existiram. Aqui está “Se telefonando”. Prepare-se, por que você vai chorar.
Desde a estreia de “Os vingadores”, os fãs de cinema já começaram a hiperventilar com as megaproduções da temporada. É natural. Entendo essa expectativa mesmo não sendo o público alvo desse tipo de filme – aos 49 anos, dificilmente conseguiria disfarçar uma falsa excitação para ver um “franchise” altamente promovido por um estúdio de Hollywood como se fosse de fato entretenimento. Para cair tão facilmente nesta armadilha, é preciso, claro, ter vivido bem menos – de certa maneira, anos de exposição à máquina pesadíssima de propaganda do cinema americano (uma engrenagem que eu, em nome da transparência, como jornalista de cultura, muitas vezes colaboro para azeitar) acabam deixando um espectador um pouco mais cético como eu meio desconfiado…
Mas não me entenda mal! Não estou aqui num protesto inócuo contra esse tipo de cinema. Nem tudo que Hollywood vende como “mega evento” é “pastel de ar”. De vez em quando um desses “blockbusters” é realmente bom e divertido – como o próprio “Vingadores”, sobre o qual já escrevi bem aqui. (Apesar de leitores apressados se mostrarem indignados com minhas críticas às conversas “pseudo” profundos do filme, adorei as horas que passei na companhia daqueles personagens. É interessante notar que quando eu assinalei alguns diálogos ruins de “Vingadores, eu não estava exigindo falas “inteligentes” – seja lá o que você entenda por isso – num filme de super-heróis, mas reclamava justamente da falta de um texto mais simples, que não se esforçassem tanto para disfarçar que aquilo era apenas um entretenimento superficial; isso é uma verdadeira praga disseminada por roteiristas pretensiosos, inocentemente comprada por espectadores desavisados – e pelo que vi do trailer do novo “Cavaleiro das trevas”, a última parte da trilogia de Batman assinada por Chistopher Nolan, vai reincidir no mesmo erro; será que é tão difícil assim simplesmente escrever um roteiro que conte uma história de ação sem maiores pretensões literárias? Acho que divago…). E o novo filme de Ridley Scott, “Prometheus” é mais um a entrar para essa lista: a de boas superproduções, que, apesar de um ou outro deslize, cumpre bem a função de divertir aqueles que humildemente compram um ingresso.
Escrevi esta última frase com certa relutância. O que eu queria mesmo ter escrito é: “O novo filme de Ridley Scott é ainda melhor do que ‘Alien – o oitavo passageiro’, um clássico”. Afinal, era isso que eu estava esperando. Aliás, eu e mais uma legião de fãs – não só desse, que é um dos diretores mais versáteis e bem sucedidos de Hollywood, mas também do próprio “Alien”, que me proporcionou uma das experiências mais aterrorizantes da minha adolescência. Para você que já deve ter visto este filme em incontáveis reprises na TV aberta e no cabo – ou mesmo as inferiores sequências que Hollywood parecia não se cansar de ressuscitar –, deve ser difícil imaginar o impacto que ele causou na minha geração.
Até então, não havia nada como “Alien” no cinema. Sim, George Lucas já havia nos apresentado a vidas extraterrestres bastante bizarras dois anos antes. Mas mesmo o vilão maior de “Guerra nas estrelas” tinha um ou outro traço de humanidade – se Darth Vader era o lado ruim da “Força”, é porque ele sabia que existia, pelo menos em teoria, um lado bom. O tal “oitavo passageiro” – um daqueles apostos adoráveis que os tradutores de títulos de filmes no Brasil adoram dar – não tinha nada disso: era puro mal. Seu impulso destruidor era não só imperativo como irracional. Da cena antológica do “nascimento” do Alien ao climático “face a face” que ele tinha com Ripley (o papel pelo qual Sigouney Weaver será sempre lembrada), aquela criatura – da qual víamos só algumas partes por vez – estava ali simplesmente para destruir a raça humana. Uma pequena amostra dela, é verdade, mas ali estava embutida a ideia de que toda nossa espécie estaria um dia ameaçada por aquela… coisa!
O roteiro de “Alien” serviu de modelo básico para filmes de suspense nas décadas que viriam – mas esse não era o único trunfo do filme. Seu visual também era algo que ultrapassava a estética “clean” de “Guerra nas estrelas”, e ia mesmo além das visões enlouquecidas de Kubrick em “2001: uma odisséia no espaço”. O artista e designer suíço H.R. Giger criou para as grandes telas um universo totalmente original – escuro, sombrio, metálico (tendendo ao grafite), orgânico… e assustador. Das incubadoras misteriosas que os tripulantes da Nostromo decidiram equivocadamente explorar ao próprio monstro que eles trouxeram para dentro nave, é dele aquela concepção macabra, que foi fundamental para transformar uma sessão de “Alien” numa experiência inesquecível.
E foi com uma expectativa assim que eu – e certamente hordas de admiradores como este que vos escreve – fui assistir a “Prometheus”. Admito: eu queria ver um novo “Alien” – sentir o mesmo frio na espinha que senti há 33 anos (wow!). Ou até mais! Queria torcer para as pobres vítimas escaparem do “caçador implacável” ao mesmo tempo que não podia esperar para ver pelo menos parte da criatura aparecer na tela. Gostaria de ficar novamente maravilhado com cenários e figurinos que estabelecessem um novo patamar para um filme de ficção científica. E desejaria ver um roteiro que não insultasse minha inteligência – não precisava nem ser muito elaborado, mas que não pedisse que eu “acreditasse demais em coincidências”, que seguisse uma narrativa razoável e sem muitos desvios. Com todas esses “quesitos” em mente, devo reportar que saí do cinema apenas satisfeito. Como o título de hoje sugere, “Prometheus” está exatamente dentro das expectativas – mas não chega a superar algumas delas.
Por exemplo, no que diz respeito ao roteiro, Ridley Soctt pede, mais de uma vez, que a gente acredite um pouco demais naqueles truques que eu chamo de “saltos e coincidências”. Por razões que a “brigada do spoiler” vai me agradecer, não quero contar nada do roteiro aqui, mas devo dizer que alguns detalhes não se sustentam, como a “entrada” do inimigo na nave – ou mesmo uma muleta narrativa que permite que dois tripulantes durmam fora dela (conhece o velho truque da dupla de covardes que não quer ir adiante na expedição exploratória mas acabam se perdendo e não só não retornam à base como também voltam ao próprio cenário que lhes tinha metido tanto medo, mas que agora perece convidativo o suficiente para eles passarem a noite lá?). Como essas, há pelo menos uma meia dúzia de passagens que não convencem.
O suspense em si, também deixa um pouco a desejar – e isso talvez seja culpa do próprio Ridley Scott que colocou ele mesmo a barra lá em cima com “Alien”. A “ameaça” à tripulação demora muito para, digamos, tomar uma forma – e, ao contrário de “Alien”, ela não está escondida em cada canto da nave, mas é uma presença maior, mais abstrata – e menos assustadora. Mas embora eu tenha sentido falta dessas coisas – coerência no roteiro e sensação de “ficar grudado na cadeira do cinema” –, não posso falar que “Prometheus” não me divertiu. Pelo contrário.
Fiquei maravilhado com o novo visual. Tudo bem que uma das salas principais tem uma cabeça gigante que lembra mais as esculturas de Angkor, no Camboja (que um bom observador há de se lembrar que já viu no fraco “Lara Croft – Tomb raider”), do que um trabalho realmente original. Mas de resto, todos os cenários – para não falar das naves e numa indescritível “sala de controle” – são estupendos! As novas criaturas (e são bem mais do que apenas uma) também são fantásticas – inclusive aquela que se aproxima da figura humana, a primeira que vemos numa espécie de prólogo recheado de imagens assustadoramente lindas. Os figurinos são impecáveis – inclusive as peças íntimas, bastante sensuais (se bem que eu diria até que Charlize Theron, a comandante Vickers, está quase mais sexy vestida naquele seu primeiro uniforme do que quando sai da “cápsula de conservação” seminua logo no início do filme). As sequências de ação fazem sentido – com exceção de um retorno à nave meio gratuito de um tripulante que todos pensavam que já havia morrido – e o final fez totalmente sentido para mim. (Ou ainda, os finais… mas não quero falar nada para não estragar a surpresa!). Enfim, “Prometheus” é uma ótima aposta para a temporada relativamente fraca de estreias no cinema.
Mas que eu esperava mais, ah, eu esperava…
O refrão nosso de cada dia
“Backfired”, Debbie Harry – mera associação de ideias… Enquanto sua banda original, Blondie (uma das mais importantes da “new wave”), agonizava, Debbie Harry, lançou-se num curioso projeto solo. Há anos não escuto este disco (que só tenho num formato mesozóico chamado LP), que recebeu o estranho nome de “Kookoo”, mas meu registro é que, na época de seu lançamento (e estamos falando de 1981!), eu tinha gostado muito. Ouvindo mais uma vez agora, depois de décadas, ainda acho que “Kookoo” traz o frescor da mistura inocente entre rock alternativo e o “funk” – assinado pela produção de Nile Rodgers e Bernard Edwards (da antológica banda Chic). Para os ouvidos do século 21, ele parece ligeiramente “subproduzido”, mas uma faixa como esta que indico prova que dessa união saiu pelo menos uma boa semente. A associação de ideias que me levou a escolher essa música hoje para você ouvir é que o clipe dela foi dirigido por… H.R. Giger! Sim, do “Alien”! A produção é meio pobre – lembre-se: era o início dos anos 80… Mas como “curiosidade histórica”, vale a pena você assistir até o fim. E quem sabe até testar a faixa numa pista de dança…
Uma das piadas mais sofisticadas da última versão para a divertida série “Homens de preto” eu só percebi quando o próprio Will Smith chamou minha atenção, numa entrevista que fiz com ele recentemente. Antes do encontro, a produção de “MIB 3″ (como os fãs acostumaram-se a chamar esse terceiro episódio) não mostrou o filme todo – revelando uma preocupação muito contemporânea com a pirataria. Mesmo com seus celulares recolhidos temporariamente, o que os jornalistas viram foram apenas trechos (generosos, diga-se) do novo trabalho. A tal piada estava num deles – e era tão óbvia, e ao mesmo tempo tão sutil, que eu na hora nem me dei conta. (“Brigada do spoiler”, abaixe as armas: não estou contando nenhum segredo fundamental do filme!).
Quando o agente J (Smith) volta ao passado para encontrar o jovem agente K (interpretado por Josh Brolin), ele “aterrissa” no mesmo “QG” que milhões de fãs do primeiro “Homens de preto” conhece bem – mas com alguns detalhes diferentes. A tecnologia – com aparelhos inspirados nas antigas séries de ficção científica dos anos 60 – é “retrô”, numa referência ao que poderíamos chamar de “futuro do passado”. Isso é fácil de notar. O que eu não tinha me dado conta, porém, é que os próprios extraterrestres que circulam pelo cenário também são “figuras de época”. Ao contrário das bizarras criaturas com computação gráfica de ponta que povoaram os dois primeiros filmes (e boa parte do terceiro), o que vemos são “alienígenas antigos”, “de carne e osso” – pessoas com caras pintadas (verde e roxo pareciam ser as cores “espaciais” da moda), corpos quase iguais aos dos pobres terráqueos (salvo por uma prótese de borracha ou outra), e roupas que pareciam saídas das passarelas mais disputadas mais de 40 anos atrás (Pierre Cardin, Paco Rabanne, AndrèCourreges). Lembra (ou, se você tem menos de 50 anos, já pegou alguma reprise) de “Perdidos no espaço”? Então, estou falando desse tipo de ET!
Ainda não vi o filme todo – está na programação do meu fim de semana -, mas faço hoje essa referência a “MIB 3″ porque há uma semana o tema “ficção científica” não sai da minha cabeça. Primeiro porque, por acaso, estive revendo há pouco tempo alguns episódios daquela que eu considero a melhor série de TV de ficção científica de todos os tempos: “The outerlimits”. (Ela durou poucas temporadas, em meados dos anos 60 – de 1963 a 1965 -, mas teve uma influência enorme, e é considerada um clássico alternativo; aparentemente foi exibida no Brasil com o nome de “A quinta dimensão”, mas eu comecei a conhecê-la em desajeitadas fitas de VHS no final dos anos 80, e hoje me orgulho de ter todos os episódios em DVD; apenas para dar o clima, aqui está a famosa abertura da série, com a não menos famosa narração que começa dizendo “there’snothingwrongwithyourtelevision set”, ou, “não há nada errado com seu aparelho de TV”… ). Rever esse show é um exercício que sempre faço quando as ideias que estão a minha volta parecem cansadas demais…
O segundo motivo pelo qual tenho pensado muito em “ficção científica” é último número da revista “The New Yorker”, dedicado quase que exclusivamente a este tema – e que devorei em questão de horas. Geralmente nesta época do ano, eles saem com um número de “summerficcion” – ou seja, “ficção de verão”, lembrando que, no hemisfério norte, as estações são as opostas às nossas. É uma edição importante – geralmente as grandes editoras americanas brigam para conseguir encaixar seus figurões, ou mesmo novos talentos que querem lançar, nessas páginas. A qualidade é sempre impecável – e o simples fato de um autor aparecer nessa “New Yorker”, claro, já é não só um prestígio como uma promessa de sucesso crítico e comercial. Este ano, porém, no lugar de repetir o esforço de sempre, a revista tomou uma atitude ousada: dedicou o número a autores de ficção científica – e mais: comprou a briga da bancada (esnobe) que sempre insiste que esse tipo de literatura não é… bem, não é literatura.
Fãs da ficção científica já cresceram familiarizados com esse tipo de preconceito. Quantos adolescentes já não foram “repreendidos” por estarem lendo um livro que “não é sério” – justamente de ficção científica -, quando poderiam estar usando seu tempo melhor se dedicando à literatura “de verdade”? Reações como essa não são um exagero – e o relato de alguns autores consagrados na própria “New Yorker” sobre o primeiro contato deles com o gênero só reforçam a ideia de que existe sim um pré-julgamento não só a esse tipo de ficção, mas até mesmo aos autores que se dedicam a ele. Quanta energia jogada fora…
MargaretAtwood, por exemplo, descrevenum artigo seu encantamento quando, ainda criança (uma fase que, segundo ela, não nos obriga a classificar nada que lemos), um conto numa revista, sobre um planeta dominado por mulheres que depositavam seus ovos em homens capturados em espaçonaves que ali desembarcavam, a deixou marcada para sempre. Karen Russel – uma das novas sensações literárias americanas (que misteriosamente continua inédita no Brasil, ainda que você possa encomendar o bom “Lodolândia” em sites de livrarias portuguesas) – brinca com um programa de incentivo à leitura (Book it!) que algumas lojas do Pizza Hut nos Estados Unidos adotam, e que crianças participam lendo títulos como “A espada de Shannara”, mas não com obras como “Orgulho e preconceito”. William Gibson, o grande mestre contemporâneo da ficção científica, também faz um relato pessoal sobre seu primeiro contato com o gênero (nos idos dos anos 50), em livros que descortinavam um “Amanhã cujo brilho confiante era visível além do horizonte de tudo que era menos maravilhoso, desde que alguém tivesse olhos para exergá-lo”…
A definição é belíssima – quase poética -, e serve perfeitamente para descrever alguns dos melhores livros de ficção científica já publicados, apesar, claro, desse “brilho do Amanhã” nem sempre ser muito confiante. Neste mesmo número da “New Yorker”, um ensaio sobre as primeiras descrições de vida fora da Terra na literatura popular, a escritora Laura Miller resume brilhantemente nossa relação com seres extraterrestres: “Apesar de tanta diversidade, essas criaturas acabam caindo em dois grupos: aqueles com os quais conseguimos conviver e aqueles com os quais não conseguimos conviver”. No primeiro grupo, claro, estão “E.T.” e companhia. No segundo, todo tipo de invasores enfurecidos que você pode imaginar – desde os temíveis seres de “Guerra dos mundos”, de H.G. Weels, até as horripilantes variações sobre o tema “Alien” (cuja mais recente encarnação está no ansiosamente esperado filme “Prometeus”, de Ridley Scott).
No meio dessas duas categorias, estamos nós, indefesos humanos que não sabemos se é melhor se apaixonar pelo alienígena (como já cantou belissimamente David Bowie – ele próprio um ser que certamente pertence a uma galáxia distante) ou se saímos correndo apavorados. Mas qualquer que seja nossa reação, o que importa é que o gênero “ficção científica” merece um pouco mais de respeito. No cinema, ele já conquistou isso. Stanley Kubrick – com “2001: Uma odisseia no espaço” e “A laranja mecânica” (seu autor, Anthony Burgess, tem um texto na mesma “New Yorker” sobre essa obra) – foi o grande responsável por trazer credibilidade ao gênero. (O próprio Ridley Scott, aliás, deve ser grato a Kubrick por isso). Mas na literatura, o preconceito ainda persiste.
Será que Jennifer Egan por ajudar nesse sentido? O texto seu que a “New Yorker” publica nesse número especial faz-me crer que sim. Com o título de “Black box”, ela traz um conto inédito que, a princípio parece apenas um truque – lembrando que a autora (uma das convidadas de honra da vindoura décima edição da Flip) ficou famosa por incluir um capítulo todo escrito no formato de um “power point”, no seu aclamado “A visita cruel do tempo”. Sua história é toda contada em frases curtas, que, de cara, lembram postagens de twitter. Mas aos poucos você começa a perceber que essa não é a questão. Nem todas as frases estão beirando os 140 caracteres (o discutível limite do twitter). Ademais, o leitor aos poucos vai percebendo que a decisão de escrever assim é menos de estilo e mais perversa: o que você está lendo não é uma narrativa, mas uma sequência de instruções.
“O fracasso do seu novo anfitrião em reconhecer sua presença pode indicar que mulheres não registram no seu campo de visão.
Ser invisível significa que você não será vigiada de perto.
Sua função é ser esquecida mas sempre presente.”
Mesmos os diálogos tomam, nesse conto de Egan, a forma de comandos, como neste outro trecho:
” ‘Onde você aprendeu a nadar assim?’ proferida preguiçosamente, com indolência, e dois dedos nos seus cabelos, indica curiosidade.
Diga a verdade sem precisão.
‘Eu cresci perto de um lago’ é ao mesmo tempo verdadeiro e impreciso.
‘Onde era o lago?’ transmite descontentamento com sua imprecisão.
‘Columbia County, Nova York’ sugere precisão ao mesmo tempo que a evita.
‘Manhattan?’ revela traiçoeiramente pouca familiaridade com a geografia do estado de Nova York’.”
É brilhante! E é a melhor evidência que a “New Yorker” pode dar de que ficção científica e boa literatura não são coisas excludentes!
Amantes ou não do gênero já superaram, quero acreditar, essa discussão. Eu mesmo, confesso, não sou um fã dos mais antenados do que existe na área. Como você que me acompanha aqui neste espaço sabe bem, eu gosto é de um livro bem escrito. Nesse sentido, tenho cá minha lista de títulos favoritos dessa “escola” – começando, claro, com dois autores inquestionavelmente consagrados: Aldous Huxley (“Admirável mundo novo”) e George Orwell (“1984″). Você pode até achar que estou citando clichês – mas esses, para o bem ou para o mal, são inevitáveis.
Minha lista segue com a já citada Margaret Wood – sendo que meu livro favorito dela é “O conto da aia”. “Fahrenheit 451″, do respeitado Ray Bradbury (que morreu recentemente, não sem antes contribuir com um texto também para esse número especial da “New Yorker”), não pode faltar. Entre trabalhos mais contemporâneos, sou incansável admirador de “Uma história de amor real e supertriste” de Gary Shteyngart – com sua delirante descrição de um futuro não muito distante, onde o dólar é cotado de acordo com as variações da moeda chinesa, e todo mundo tem um “äppäräti” pendurado no pescoço, uma engenhoca que dá todo tipo de informação que alguém precisa saber (inclusive o índice de “fodabilidade” de todas as pessoas que estão no mesmo ambiente que você…).
Mas o melhor de todos mesmo, para mim, é um livro que mal se encaixa nesse rótulo: “Não me abandone jamais”, de KazuoIshiguro. Esqueça o filme – se é que você cometeu o deslize de vê-lo. Essa é história mais triste e mais perversa que alguém poderia imaginar para nosso futuro. Os personagens criados por Ishiguro não usam roupas espaciais, não têm armas superpoderosas nem andam pelas ruas exibindo antenas ou membros sobressalentes. Mas eles foram imaginados vivendo num mundo onde a gente já se esqueceu o que é ser humano – e, nesse sentido, “Não me abandone jamais” está tão próximo dos contos brilhantes de Philip K. Dick, quando esses estão de “Alien” e “Prometeus”.
Percebo agora que citei livros que não exatamente se identificam com a parafernália futurística de boa parte das criações de ficção científica – e, reconheço, talvez esteja cometendo uma injustiça. Por isso mesmo vou terminar o post de hoje com uma pergunta para você: tem algum livro seu favorito desse gênero para me indicar?
O refrão nosso de cada dia
“Me enamore de un robot”, La Monja Enana – para não ficar devendo nada ao lado mais espalhafatoso e quase cômico da ficção científica (afinal de contas, eu também sou fã incondicional de “Marte ataca!”, de Tim Burton), ofereço aqui essa pequena obras “kitsch-espacial” de uma obscura banda espanhola cujo nome quer dizer “A freira anã”. O título, se você precisar de tradução, quer dizer “Apaixonei-me por um robô”. E a música… é pura diversão para o ano 2076!
Foi uma semana sem “Avenida Brasil”. E não uma semana ordinária – mas uma crucial, em que Jorginho descobriu que foi a própria Carminha que o deixou no lixão! O mundo virando de cabeça para baixo na “minha” novela (“minha” e de mais alguns milhões de brasileiros que a estão acompanhando)… A sorte é que eu troquei esse turbilhão de emoções – o rosto de Carminha tremendo diante do “vexame em praça pública”; as discussões homéricas com Mãe Lucinda; O olhar desorientado de Tufão; acredite: eu acompanhei tudo isso pelos comentários dos outros. E foi difícil. O que me salvou foi que eu estava em Madri – e lá, a gente é capaz de esquecer tudo. Ou quase tudo…
Fui até lá para entrevistar Justin Bieber. Talvez você ache essa combinação um tanto inesperada: Bieber e Madri. Mas as fãs que se aglomeravam na porta do hotel Ritz não se mostravam nem um pouco surpresas em poder receber o ídolo em sua casa. O mesmo impacto que ele causou por aqui no ano passado, Bieber causa em qualquer lugar por onde passa. Então, por que não Madri?
Não tenho muita certeza de que o próprio Bieber estava ciente de onde estava – uma síndrome de deslocamento muito comum em estrelas que enfrentam uma agenda de viagens brutal como a dele. Mas ele sabia, isso sim, que estava numa bateria de entrevistas para o lançamento de seu novo álbum, “Believe” – disponível na semana que vem para o mundo todo saborear. E nisso ele foi profissional: jogou charme para as fãs brasileiras (assim como, apenas minutos antes, ele dedicou todo seu amor às fãs holandesas, como confessou um colega que havia acabado de sair da entrevista, despachado diretamente de Amsterdã para falar com o cantor); falou da expectativa com o novo trabalho (que ficou do jeito que ele queria); e deu informações sobre sua vida pessoal na medida certa para satisfazer a curiosidade alheia e ao mesmo tempo se preservar. Houve um momento até de genuína espontaneidade, quando segundos antes de a gente começar a entrevista, uma pizza chegou – e Bieber, apesar de exclamar várias vezes que estava com fome, olhou para mim com certa ironia e disse: “Acho que o almoço pode esperar – o Brasil é mais importante que uma pizza”! Nesse sentido, ele foi um grande artista…
Mas não estou aqui hoje para falar especificamente desta entrevista – que foi ao ar ontem no “Fantástico” e você pode conferir (ou rever) aqui. Mais do que a “emoção” de encontrar o super ídolo – diga-se, pela segunda vez – a viagem valeu a pena por me dar mais uma chance de ver Madri de perto. (Imagino que várias pessoas que tentaram acertar o desafio do post anterior se confundiram com o letreiro que estava em segundo plano na foto que publiquei, dando a entender que eu estava em algum lugar na Galícia; trata-se, na verdade, de uma cena bem “madrileña”, em plena praça de San Miguel, mais precisamente em frente ao Mercado de San Miguel, onde estava gravando uma reportagem que ainda vai ao ar, e por onde circula aquela figura sensacional e bem-humorada, cujo convite para dança, você há de concordar, é irresistível…).
Já registrei aqui minha paixão pela capital espanhola quando da minha última passagem por lá – em setembro de 2010. Mas hoje uso mais uma vez este espaço para relatar outras impressões que tive desse lugar que, a julgar pelo que se lê no noticiário internacional, está passando por uma tremenda crise.
O quanto se percebe isso andando pelas ruas de Madri? Muito pouco. Com o verão, que, como de hábito, começou a derreter a primavera muito antes de o calendário autorizar sua passagem, a paisagem local estava animada como sempre. Gente, gente, gente – o tempo todo nas ruas. A Gran Vía, como sempre sempre ameaçando um congestionamento por conta daquelas senhoras que insistem em fazer seu passeio de braços dados, bloqueando qualquer possibilidade de ultrapassagem sem o risco de um atropelamento… As lojas cheias, os restaurantes idem. As pessoas animadas. A equipe que estava trabalhando comigo conta que “o pior” está para o interior da Espanha – que na capital é onde menos se vê seus efeitos. Pode ser. Não fosse pela manchete do final da semana – de que os bancos espanhóis receberiam, de fato, uma grande ajuda europeia para não quebrem de vez – eu diria que estava na “minha Madri de sempre”. E foi essa que mais uma vez eu insisti em explorar.
A gastronomia, claro, veio em primeiro plano – justamente por conta da pauta que eu estava cumprindo. Matei minha saudades não apenas do sublime “pata negra”, como também de uma especiaria que não provava há anos – um tal de percebes, que não é apenas a conjugação do verbo que você está pensando, mas também um marisco “riquíssimo” que se consegue na temível encosta do norte da Espanha. De vez em quando tomava uma “clara limón” para “enxaguar” (se você ainda não experimentou uma dessas não sabe o que é se refrescar no verão…). Fiz uma curiosa degustação de azeites – e uma mais curiosa ainda degustação de gin (ou “ginebra”, como eles chamam por lá). Variações de “gin tônica” me entorpeceram por uma tarde inteira – e, sim, foi exatamente antes de tirar a foto com a senhora na praça de San Miguel… Mas logo veio um “churros com chocolate” para “quebrar” o transe – seguido de um sorvete artesanal que se chama (juro que não estou inventando!) “Y Fueron Felices”, um “procucto de vacas consentidas”! Como resistir a isso? Tapas, pintxos, croquetas, empanadas, “embutidos” (alguns deles, em miniatura, servidos como se fossem pipoca de cinema – o que nos diz alguma coisa sobre os hábitos alimentares desse povo que sabe viver…). Na última quarta-feira achei que tinha morrido e acordado no paraíso – foi como um dia de folga preciso do “Medida Certa”, eheh…
A esbórnia foi tanta, que no dia seguinte (quinta), resolvi mudar radicalmente de dieta – e me alimentar só de arte. Ok, teve um gazpacho aqui entre uma galeria ali nas cercanias de Atocha (que inevitavelmente me fez lembrar do genial livro de Ben Lerner, já comentado aqui). Mas em sua maioria passei o dia passeando por incríveis imagens – e as mais fortes delas, talvez, encontrei (como já esperava, claro) no Renia Sofia – o museu e centro cultural que é referência de arte contemporânea de todo o mundo. Geralmente fico feliz só de passear por aquela entrada com a gigantesca pincelada de Roy Lichtenstein plantada no meio de um enorme átrio. Mas dessa vez ainda fui duplamente surpreendido por ótimas exposições de artistas convidados.
A mais reveladora foi, sem dúvida, uma retrospectiva do artista irlandês James Coleman – que eu conhecia apenas superficialmente e fiquei completamente hipnotizado (especialmente com suas reflexões sobre as imagens e como as vemos – um porão do Renia Sofia onde “frames” de uma luta de box eram projetados na parede escura com uma sonorização que lembrava nossa própria pulsação deixou-me especialmente desarmado). Mas ainda me emocionei com os registros sociais de Hans Haacke – que também ganhava ali uma retrospectiva. Com os enigmas do espanhol Nacho Criado – de quem não conhecia nada. E sobretudo com as narrativas elaboradas de Sharon Rayes – que fez com que a frase “Hay tantas cosas que quiero decirte” (“Há tantas coisas que quero te dizer”) ficasse gravada para sempre na minha consciência. (Dizê-la em voz alta e, mais importante, executá-la é um pouco mais complicado, sempre – mas eu divago…).
Com a cabeça nas alturas, andei como que inspirado pelos itinerários de Teju Cole (cujo livro “Cidade aberta” acaba de ser lançado pela Companhia das Letras no Brasil – e sobre o qual quero falar mais aqui em breve), sentindo a cidade mais viva e linda do que jamais a havia visto. E o fim de todos os caminhos, claro tinha que ser numa loja de discos, onde a mesma intuição que me acompanhou por todo o dia foi indispensável para que eu descobrisse novos e incríveis artistas. O que me conquistou mais imediatamente está ali embaixo, no “Refrão nosso de cada dia” de hoje. Mas tenho que citar – ainda que brevemente (para explorá-los melhor depois) – nomes como o de Silvia Pérez Cruz, uma cantora catalã que eu não me perdoei por tê-la descoberto só agora; o curioso trabalho do Grupo de Expertos Solynieve (desafio você a não se interessar por um grupo com esse nome!); o inesperado trabalho solo de Dani Martín (El Canto del Loco); e novos trabalhos de “paixões antigas”, como o já citado Macaco e a inimitável Giulia y los Tellarini (que, só para refrescar sua memória, assinava a música que permeava todo “Vicky Cristina Barcelona”, de Woody Allen).
Desse dia de puro vaguear, parti diretamente de volta ao Brasil, sem tempo de assimilar tudo, mas com a certeza de que nada disso foi em vão. Madri sempre te convida a levá-la junto na bagagem – e quem era eu para recusar mais uma vez essa oferta? Você mesmo vai poder acompanhar reflexos disso nos próximos dias aqui mesmo no blog. Mas hoje, ficamos por aqui, porque tenho que não só ver todos os capítulos de “Avenida Brasil” que deixei gravando, como também me preparar para ver o que Carminha vai responder hoje quando Tufão perguntar: “Quem é o pai de Jorginho?”…
O refrão nosso de cada dia
“Hombre de ninguna parte”, Xoel Lopez – um achado recente pelas lojas de disco de Madri (sim, Madri ainda tem loja de discos!). Se da última vez, minhas investidas nas prateleiras cada vez mais tranquilas da seção de música do El Corte Inglés me fez descobrir um trabalho tão original quanto o de um artista chamado Macaco (indicado aqui entre os melhores discos que você não ouviu em 2010), desta vez minha intuição me levou até o estupendo (para usar um elogio bem espanhol) disco “Atlántico”, de Xoel Lopez. Essa faixa que separei aqui é apenas uma mostra – e das mais preciosas, com esse refrão que, de tão bom, parece que domina toda a música. Minha sugestão é que você não pare por aí…
Escrevo o texto de hoje ao mesmo tempo em que assisto às celebrações do jubileu de diamante da Rainha Elizabeth – “a remakable Day, despite the gloomy weather”, como nos lembra um dos anônimos comentaristas da transmissão que vejo pela CNN (a frase pode ser traduzida apressadamente por “um dia notável, apesar do tempo sombrio”…). Elizabeth está elegantíssima de branco – com o que parece ser uma “pashmina” (também branca) jogada de última hora nas costas, num improvisado toque que faz referências simultâneas ao, de fato, terrível clima de Londres (que, só lembrando, está prestes a entrar em mais “tórrido” verão, com temperaturas batendo os “inimagináveis” 25 graus) e ao glorioso Raj, que não é exatamente o personagem que Rodrigo Lombardi interpretou na novela “Caminho das Índias”, mas o vasto império inglês que dominou o “subcontinente indiano” por quase um século. Seu barco, uma mistura equilibrada de pompa e circunstância, rasga as águas do Tâmisa com seu vermelho brilhante e dourado opaco – como se o cinza do céu tivesse sido especialmente encomendado para fazer a embarcação reluzir. Neste exato momento que vejo a TV, a ponte de Londres está sendo levantada para deixar o cortejo passar, enquanto a própria rainha acena cá e lá, menos numa demonstração de carinho a seus súditos do que num gesto quase cômico e automático, involuntariamente a aproximando mais das pequenas reproduções de “sua alteza” vendidas nas lojas de souvenir de Picadilly (com sua mão tremelicante virando de um lado para o outro movida à energia solar) do que a um nobre panteão de figuras que vamos venerar no futuro. Ah, a nobreza…
Enquanto esse “barco real” dá uma voltinha de 360 graus nas águas provavelmente geladas – uma manobra “truly remarkable” (“realmente notável”), na descrição de uma outra voz, feminina – e um punhado de oficiais saúda Elizabeth fazendo pequenos círculos pausados com seus chapéus na ponta de seus braços estendidos, é quase impossível não olhar tudo isso e imaginar o comentário que cruza o pensamento não apenas daqueles milhares de vassalos espalhado pelas margens do rio (e pelas ruas em festa do coração do Reino Unido), mas também de milhões de admiradores distantes (como eu) hipnotizados pela transmissão televisiva: “Que grande espetáculo!”.
Ou seria um “grande circo”?
A ironia é inevitável – e a metáfora, de tão batida, é quase infame. Quantas vezes não lemos (ou nós mesmo usamos) a expressão “circo da mídia” numa tentativa de descrever a fanfarra que os meios de comunicação – em especial a televisão, que é, diga-se em nome da transparência, o principal canal de expressão do meu trabalho – oferecem a uma plateia cujo apetite parece nunca diminuir? As imagens do jubileu de diamante de Elizabeth são só o capítulo mais fresco na longa cronologia dos esforços dos seres humanos para entreter sua própria espécie.
Das megaproduções de Hollywood ao teatro infantil da escolha do seu filho, nós chegamos ao século 21 celebrando nossa infinita capacidade de criar coisas para nos distrair dos aborrecimentos da vida – e com isso, claro, colecionamos não apenas pontos altos (Shakespeare, Chico Buarque, Spielberg, João Emanuel Carneiro, para citar uma ínfima fração de um time de criadores memoráveis, nas mais variadas áreas da inventividade humana), mas também pontos baixíssimos – que não vou nem me dar ao trabalho de listá-los aqui para poupar você que me lê. Porém…
Porém é justamente sobre um desses pontos fracos que eu quero me estender aqui hoje – pois é, o tema deste post não é exatamente a “festa da rainha”, mas um outro tipo de espetáculo que teve suas origens em meados do século 18, dentro do próprio seio de uma cultura que, geralmente, sempre se orgulhou de trazer progressos – e não retrocessos – à evolução da nossa inteligência: o continente europeu. Falo dos “zoológicos humanos”, um triste registro da nossa fascinação com o diferente e o “exótico” (talvez a palavra que eu mais odeie no mundo – e o motivo disso explico daqui a pouco), reunido magistralmente numa exposição chamada “A invenção do selvagem”, naquele que é o meu museu favorito: o Quai Branly, em Paris.
Escrevo sobre isso com um certo atraso – pois vi essa mostra há algumas semanas. Oficialmente, ela terminou ontem – ou seja, nem que você tenha a oportunidade de passar por Paris nessa temporada, não vai poder mais visitá-la. Mas, para aqueles leitores e aquelas leitoras cuja curiosidade eu conseguir despertar com o texto de hoje, há sempre o site to museu, ou ainda inúmeros textos e ilustrações que você pode encontrar na internet – um dos melhores, aliás, publicado pelo jornal francês “Libération”. (O fim da exposição não deve, no entanto, desencorajar ninguém de visitar o Museu do Quai Branly, que além de seu acervo estupendo, ainda tem outras interessantíssimas exposições temporárias, como à dedicada aos “mestres da desordem”, pajés e quejandos que, desde os tempos ancestrais, tentam fazer nós humanos entendermos melhor nossa relação com o divino (que não é, claro, o time de futebol de “Avenida Brasil”…).
Esse atraso, porém, não tira nem um pouco a força do impacto que “A invenção do selvagem” teve sobre mim – e que quero agora dividir com você. Na última segunda-feira, coloquei aqui uma pequena amostra do que vi na exposição: um trecho de um filme feito em 1933, naquilo que parecia ser uma “feira de culturas exóticas” (de novo essa palavra!). Nas imagens, dois membros da “tribo do capitão Hiak”, executam o que parece ser uma “dança selvagem”, sob o comando feroz do chicote de um capataz, para o deleite dos transeuntes. Se o detalhe lhe escapou, as imagens são de 1933 – “apenas” 80 anos atrás, quando o mundo, apenas para dar uma situada, já havia passado por uma Guerra Mundial e estava prestes a embarcar na segunda. Quando, claro, esperava-se um pouco mais da humanidade… Se, por ventura, o fato de que uma imagem tão absurda tenha acontecido há tão pouco tempo não te incomodar, não sei se é o caso de você continuar lendo o blog hoje… No entanto, se você achar que isso já era um absurdo, mesmo para a época – e ainda desconfiar que o tipo de fascinação que espetáculos como esse exerciam nas audiências de então tem desdobramentos na nossa cultura pop hoje – então venha comigo, pois vou lhe contar mais algumas coisas que passaram pela minha cabeça quando visitei “A criação do selvagem” no Quai Branly.
Os “zoológicos humanos”, como alternativa de diversão, já tinham passado marginalmente no meu radar. Registros de “selvagens” que chegavam à nobre cultura europeia da época das grandes explorações coloniais sempre me fascinaram. O garoto aborígene que veio da Austrália e esperava tornar-se um lorde. A africana da bunda desproporcionalmente grande que escandalizou Paris (a “Vênus hotennote”, que figura na exposição). Os índios – daqui das nossas matas mesmo – que aprendem a conviver com os brancos. Os esquimós que conquistaram os americanos. Os pigmeus que fascinaram os ingleses. Bebi em todas essas histórias com uma fascinação mórbida pela nossa capacidade de rejeitar o diferente – sempre nos esquecendo de que o que nos separa de uma criatura “exótica” (sim, de novo!) é o simples fato de termos nascido casualmente num lugar e não no outro. E o que estava vendo ali no Quai Branly era uma prova atrás da outra de que nossa estupidez e nossa pobreza de espírito é, infelizmente, infinita. Nossa recusa em trocarmos algo com o que é novo é simplesmente o aspecto mais imbecil da nossa condição.
Levados por acaso à Europa por exploradores que, a princípio, estavam mais preocupados em trazer bens materiais do que culturais, esses “exemplares humanos” tornaram-se imediatamente objetos de especulação e curiosidade. Viviam, claro, à margem de uma sociedade que não sabia muito bem o que fazer com eles – e, na impossibilidade de agregá-los, encontrou na “jaula” (muitas vezes não necessariamente um espaço com grades, mas um confinamento disfarçado, ou melhor “estilizado” com elementos da origem daqueles “seres”) uma das melhores, e eventualmente mais lucrativas, saídas para contornar um problema incipiente: o choque cultural, que teria consequências até nossos dias (e ainda vai ter por um bom tempo). Nasciam aí, em meados do século 19, os tais zoológicos humanos: espaços diferenciados, montados para usar os “selvagens” e seu estilo de vida como uma maneira de entreter os “evoluídos” europeus. (Cito sempre a Europa porque, em sua maioria, os registros da exposição são de lá, mas os Estados Unidos também exploraram bem esse “exotismo” – argh! – sobretudo com suas tribos indígenas nativas, numa caricatura que durou até os tempos áureos de Hollywood, ou com povos de outras bandas, como o Alaska ou Havaí).
E que grande diversão eles proporcionavam! “Lez Zoulous!” – anunciava um cartaz com africanos empunhando escudos e armas, vestidos em trajes sumários (o espetáculo era destaque do Folies-Bergère, uma das casas mais famosas de espetáculos da “belle époque” francesa). “As três tigresas graciosas!” – alardeava um outro pôster do Olympia (outra casa de shows), “vendendo” a imagem de três africanas com manchas “albinas” no rosto e no cabelo. “Índios Galibis!” – provocava um outro painel de um “Jardim Zoológico de Aclimatação” (um eufemismo criado para minimizar o choque de colocar humanos num zôo!), ilustrado com homens, mulheres e crianças (!) de uma tribo oriunda da Guiana Francesa. “Les malabares!” – gritava mais um “outdoor” da época, comunicando que os incríveis equilibristas e acrobatas indianos estavam na cidade. Era diversão para todo mundo! Menos, claro, para quem estava sendo exposto…
O fato de um espetáculo tão grotesco como esse ter sobrevivido por décadas – justamente num período em que a humanidade parecia redescobri o conhecimento – é mais do que anacrônico. Para este visitante da exposição, é inaceitável! Meu problema com a palavra “exótico” é justamente o fato de ela ser um rótulo vazio. Chamar alguma coisa de “exótico” significa afastá-lo da sua curiosidade – um convite a apreciar alguma coisa apenas na sua superficialidade. Registrar com uma foto, fazer um comentário irônico, e passar adiante, sem registrar nada com relação às inúmeras possibilidades que o “diferente” sempre abre diante da mente curiosa.
Como viajante ávido, evito a noção do “exótico” como a um mosquito que pode me infectar com uma doença tropical. Não há nada que empobrece mais nosso contato com uma cultura nova do que o preconceito de que a olhamos de um patamar superior. Cansei de ver isso atravessando este mundo – e fico sempre triste ao ver o desinteresse que as pessoas têm diante do novo. Por que viajam então? Que tipo de registro levam de volta para casa as pessoas que se limitam a apenas tirar uma foto distante de algo que não têm coragem de se aproximar? E, pior, porque assumir que aquela diferença que separa nossas culturas deve ser ridicularizada?
Uma das vitrines mais “revoltantes” da exposição “A criação do selvagem” – título que, como você já pode imaginar a essa altura, refere-se à origem da noção de uma cultura nova como algo que devemos temer – traz uma máscara/capuz representando uma cabeça de negro, vendida como curiosidade nos Estados Unidos nos anos 20. Não chega a ser novidade – faça uma rápida pesquisa de imagens com as palavras “nega maluca” no Google para ver o que você acha , aqui mesmo no Brasil (e não exatamente nos primórdios do século 20…). Mas ter visto aquela máscara ali, no meio de todos aqueles pôsteres e imagens de tribos e culturas que para mim sempre foram motivo de aproximação (e não de repulsa), embrulhou-me o estômago.
Nem por isso – ou talvez por causa disso mesmo –, essa visita ao Quai Branly foi menos fascinante. Instrutiva até! Com essa exposição, o museu mais uma vez cumpriu sua função principal que é a de nos fazer refletir sobre as coisas que nós mesmo, humanos, produzimos. Assim como eu, acredito que mais pessoas saíram ligeiramente perturbadas de “A invenção do selvagem”, e essa perturbação é, acredite, bastante positiva. Está comigo até hoje. Tanto que, ao ver a festa do jubileu de diamante da rainha, novamente me questionei sobre o tipo de espetáculo que mais gostamos de ver hoje. E o mais divertido de tudo foi imaginar o que um curador do próprio Quai Branly no início do século 22 selecionaria para uma exposição sobre como as pessoas do início do século 21 se divertiam com o “selvagem” de maneira não muito distante dos europeus dos séculos 19 e 20…
Algum programa de TV que anuncia o diferente, o “exótico”, o bizarro, como motivo de piada, talvez? Veja bem que não estou citando nenhum nome… Se você pensou num deles, quem sabe não é porque você também pensa assim?
Ah, nós humanos… Tão evoluídos…
O refrão nosso de cada dia
“That’s entertainment”, The Jam – por que será que me lembrei de uma canção como essa hoje – um pequeno clássico do The Jam, que brinca justamente com a noção do que é entretenimento para as pessoas? Alguma coisa a ver com a exposição “A invenção do selvagem”? Será? Convido você a encontrar as respostas… (e, de quebra, aproveitar um dos melhores refrões de todos os anos 80!).