Ainda há vagas

seg, 31/10/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Os Papais Noéis já estão nas ruas! Em outubro! E com eles, claro, os inevitáveis comentários sobre como o ano passou rápido… Não vou castigar seus ouvidos – ou, no caso, seus olhos, com esse ramerrão. Só chamo a sua atenção sobre a proximidade do fim de 2011 – um ano que, salvo alterações em escalas subatômicas que eu não pude registrar, correu cronologicamente exatamente como os outros – porque isso significa que eu já devo começar a preparar a minha já tradicional lista dos melhores discos do ano que você não ouviu…

Caso você seja novo – ou nova – por aqui, vale uma breve introdução. Desde dezembro de 2007, faço aqui neste espaço uma seleção de bons álbuns com os quais eu cruzei num determinado ano. São, como você pode imaginar, músicas que você não vai ouvir nas rádios convencionais. Sequer nas baladas que você se acostumou a frequentar. Não são exatamente sons e artistas estranhos – apenas criações inusitadas, que, apesar de brilhantes, não encontram espaço merecido, nesse universo sempre disputado do pop.

A lista de estreia, por exemplo, por um processo deliciosamente “serendíptico” fez com que o Beirut se tornasse uma referência musical no Brasil – e que o cara por trás disso, Zach Condo, se apaixonasse pelo Brasil. Em 2008, tive o prazer de introduzir no gosto brasileiro a anarquia eufórica de El Guincho. Em 2009, foi a vez de, entre outros, a ainda desconhecida Florence (and the Machine) – hoje, a grande aposta do pop para 2012. E no ano passado, teve Asa, Twin Shadow e Fredo Viola – “tutti buona genti”…

São discos que eu coleciono durante o ano todo – e pode apostar que a lista deste ano está animada… Mas não está completa! Já juntei coisas curiosas, porém, não pretendo adiantar nenhuma delas agora. A não ser que você me ajude…

É o seguinte: para que a seleção fique sempre diferente, eu procuro incluir todo tipo de música. Entre eles, uma boa banda do cenário independente – isto é, do rock independente. Ocorre que 2011 parece que foi um ano excepcionalmente fértil nessa área. Tanto que, diante de várias possibilidades de escolha, encontro-me ligeiramente perdido: é muita coisa boa e por isso peço uma força. Vou dar algumas opções de ótimos álbuns que escutei este ano e que poderiam todos marcar presença no ranking dos melhores discos que você não ouviu em 2011. Mas eu só quero incluir um deles – e vou fechar um compromisso contigo: vou colocar apenas o mais votado.

Você vai ver que a tarefa não é fácil. Todos são discos sensacionais, sensíveis, originais e competentes. Mas qual deles é o melhor – qual deles merece entrar para a lista? Avalie comigo! O que vou dar aqui é o nome – do álbum e do artista (ou banda) – e uma breve descrição dos motivos pelos quais eu gostei tanto dele. Estou seguro de que você não vai encontrar a menor dificuldade em ouvir esses discos – ou pelo menos partes significativas deles – aqui mesmo na internet. Assim, depois de uma rápida apreciação, você manda um comentário com seu favorito. E aí deixa a contagem de votos comigo. Vamos lá?

Aqui estão os “finalistas” a uma vaga na lista dos “20 melhores discos que você não ouviu em 2011”:


- “Portamento”, The Drums – não é exatamente um disco de estreia (é o segundo dessa banda), mas é tão original que parece que veio “do nada”! Como diz um amigo meu, se alguém descobrir de que planeta vem o vocalista, por favor, informe-nos. Mas esquisitice não é tudo: as melodias são imediatamente reconhecíveis – e fazem você sair cantando sem nunca tê-las ouvido antes. Meio moderninhos – na linha de Vampire Weekend, talvez. Mas bem melhor que isso, eu garanto!


- “Cadenza”, Dutch Uncles – esse é um daqueles discos que eu comprei “no embalo”, quando passei rapidamente, numa tarde por aquela loja de Londres, Sister Ray. Estava na prateleira das “recomendações dos funcionários” – o que sempre é um bom sinal. Não havia lido nada sobre eles – e me surpreendi. Melodias elaboradas e um conjunto que acaba sendo bastante original. E inesperado.


- “The weight’s on the wheels”, The Russian Futurists – um disco de pop inglês tão comportadinho que é quase “retrô”. Mas ele acaba te convencendo que você não precisa vir cheio de novidades para agradar. Várias vezes tive a sensação de ter colocado, por engano, um obscuro CD da minha coleção dos anos 80. Mas a produção é inegavelmente moderna. E sedutora.


- “In the grace of your love”, The Rapture – essa já é uma banda querida, cujo novo álbum, aliás, eu estava esperando ansiosamente. Não me decepcionei, claro. Aliás, gostei tanto que quase coloquei-o direto na lista. Mas, em nome do gosto popular, vamos jogá-lo no páreo com os outros. Eu poderia aqui forçar a barra e dizer que ele tem a melhor capa de todos. E talvez o melhor single de toda a competição: “How deep is your love” (e que não é a do Bee Gees!). Mas não quero influenciar sua opinião…


- “Forever dolphin love”, Connan Mockasin – com um pé no psicodélico e outro no romance, esse neo-zelandês (baseado há anos na Inglaterra), Connan também não é um novato. Mas, de alguma maneira, em “Forever dolphin love” ele conseguiu o equilíbrio perfeito para conquistar seus ouvidos – e quem sabe seu coração. Por que ele não faz mais sucesso? Ah, os mistérios do pop. Quem sabe você não conserta isso com seu voto?


- “You are all I see”, Active Child – esse eu adquiri em outra loja favorita (esta, em Nova York, a Other Music). E me pegou totalmente de surpresa. Achei que ia ouvir mais uma “variação sobre o tema” daquele rock básico, mas “You are all I see” não combina com nada disso – aliás, não combina nem com a capa do disco. Tenho certeza de que você também vai se surpreender.


- “Megafaun”, Megafaun – conhece Bom Iver? Gosta dele? Mas não gostou do álbum que ele lançou este ano – que, diga-se, era um dos mais esperados de 2011? Então aqui vai à “forra”: Iver já colaborou várias vezes com o Megafaun, que nesse quarto álbum “acertou” a mão. Longas faixas estão longe de ser sinônimo de aborrecidas – pelo contrário, são hipnóticas. E, ironicamente, têm um sotaque de “country” alternativo.

E então? Qual desses álbuns deve entrar na lista deste ano?

(Para não misturar muito as coisas, decidi não oferecer hoje mais uma música para você na seção “O refrão nosso de cada dia”. Se você quiser muito ouvir uma coisa nova, posso até indicar a já citada “How deep is your love”. Mas você vai achar que eu estou sendo tendencioso…).

Das parcerias inusitadas

qui, 27/10/11
por Zeca Camargo |
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Recebi esta semana um convite difícil de recusar: ver Maria Bethânia cantando Chico Buarque, Lulu Santos cantando Roberto e Erasmo, Sandy cantando Michael Jackson. Como diriam os entusiastas do Rock in Rio, eu vou! Na prática, claro, eu vou… se conseguir, porque algumas apresentações, que acontecem a partir do mês que vem (por enquanto, em cinco cidades brasileiras), caem num fim de semana – o período que é sempre um pouco complicado para mim, por conta do meu trabalho. Mas vamos ver se dá, pois a ideia é tão boa que eu vou fazer o possível para me deslocar e ver pelo menos um show desses em cada lugar (os detalhes de cada apresentação estão no final deste texto) – e isso porque eu ainda terei de driblar as duas semanas de férias que vou tirar entre o final de novembro e o início de dezembro (estou precisando tanto delas que não perco uma chance de divagar sobre o assunto, perdoe-me).

(Fotos: AP/Divulgação)

Quem está por trás disso é uma grande agitadora cultural (e, em nome da transparência, devo dizer que também é uma grande amiga pessoal), Monique Gardenberg – alguém que sabe avaliar uma boa mistura, sobretudo musical. Seu nome pode não ser familiar para as novas gerações, mas Monique (durante muito tempo junto com sua dinâmica irmã Sylvinha, que morreu em 1998) foi a primeira pessoa que trouxe para o Brasil o conceito de um evento diferenciado de música. A rigor, o primeiro Rock in Rio chegou antes dela, em janeiro de 1985, mas logo no final do mesmo ano, Monique (ainda com Sylvinha) colocavam de pé o Free Jazz Festival. Menor e focado num público mais específico, o Free Jazz foi durante décadas um dos eventos culturais mais importantes do Brasil. Para você ter uma ideia, Chet Baker tocou na primeira edição. Depois, além do melhor do jazz (e da música) nacional viriam nomes como Nina Simone, John Zorn, Brandford Marsalis, Chuck Berry, Digable Planets, Herbie Hancock, Björk (sim, Björk!), Elvis Costello, Wayne Shorter, Massive Attack, Diana Krall, Mano Chao, Belle & Sebastian (sim, muito antes daquele show no Circo Voador do Rio…), Kraftwerk, e Aphex Twin! Por falar em mistura…

Os mais jovens talvez se lembrem do Tim Festival, não é? Pois então, essa foi apenas a encarnação mais recente do projeto de Monique – que, lá nos idos dos anos 80, ainda conseguiu apresentar algumas edições de um outro evento, o Carlton Dance Festival, que marcou muito o pequeno Zeca, que começava então na sua carreira de jornalista cultural (mas esse assunto, que me é muito caro, é obviamente para um outro post, quem sabe?). Faço essa recapitulação aqui, apenas para justificar que, se eu esperava uma iniciativa como essa de juntar artistas consagrados cantando repertórios “inesperados”, o mais provável seria mesmo que ela viesse de Monique Gardenberg (para dar mais uma informação, o sempre bom Toni Platão fez a curadoria junto com ela).

Os shows marcam a volta do Circuito Cultural Banco do Brasil – e, pelo menos por enquanto, sabe-se muito pouco sobre o próprio repertório em si. Imagino que todas as músicas de cada apresentação ainda não estão definidas. Uma ou outra a gente pode até imaginar… A própria Bethânia fez de “Olhos nos olhos”, de Chico, um clássico. Eu mesmo já vi Lulu Santos cantando (e bem) “Se você pensa”. E Sandy… bom, já viu ela cantando “Ben”? Mas o que mais a gente pode esperar?

Isso, claro, é com os artistas convidados para o projeto – que espero que continue. Aliás, gosto tanto da ideia que queria hoje propor aqui para você um daqueles exercícios de imaginação – e, se a própria Monique passar os olhos por aqui, quem sabe ele não vira uma fonte de inspiração. Diga-me lá: que artista brasileiro (ou banda brasileira) você gostaria de ver desfilando um repertório de um outro artista? Eu tenho cá alguns palpites…

Não seria legal ver Zeca Pagodinho cantando Raul Seixas? Já pensou o que ele poderia fazer com “Ouro de tolo”? Não fique achando que eu estou exagerando… O que é legal desses encontros é justamente a possibilidade, sempre presente, de eles virarem “desencontros”. Mas como isso nunca vai acontecer, justamente pelo talento das partes envolvidas, as chances de termos uma apresentação única e sensacional são enormes! Já que é para enlouquecer, vamos às alturas! Quero ver Dinho Ouro Preto cantando só Led Zepellin. Karina Bhur cantando Clara Nunes. Emicida cantando Caetano. Marisa Monte cantando Bob Dylan. Luan Santana cantando Legião – vai encarar? Maria Rita debruçando-se sobre o repertório de Britney Spears – já pensou? Diogo Nogueira cantando Tim Maia. Céu cantando Lamartine, que sonho… Pitty cantando João Bosco! E, talvez mais do que tudo, Ivete Sangalo cantando Assis Valente – nem posso imaginar o que ela faria com “Uva de caminhão”…

E você? Qual seu palpite para um encontro realmente inusitado?

(Essas apresentações do Circuito Cultural Banco do Brasil vão passar, por enquanto, por Curitiba, São Paulo, Ribeirão Preto, Goiânia, e Recife, a partir de 18 de novembro. A ordem das performances nem sempre é a mesma, então vale a pena conferir essa sequência, bem como as datas precisas e locais dos shows aqui)

O refrão nosso de cada dia

“Uva de caminhão”, Wanderléa – para os que estranharam o nome de Assis Valente na minha sugestão de repertório inusitado para Ivete, que fiz logo acima, aqui vai uma introdução deste que é um dos meus compositores favoritos de todo nosso cânone da MPB. Um dia, quem sabe, não acho um gancho para fazer um post só sobre ele… Mas, por enquanto, fique com essa versão impagável de “Uva de caminhão”, com ninguém menos que… Wanderléa. Afinal, que graça tem as coisas que são previsíveis?

Fala Alain, que eu te escuto

seg, 24/10/11
por Zeca Camargo |
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Você seria capaz de inventar uma série de TV só para chegar perto de seus ídolos? Pois foi exatamente isso que aconteceu nos idos de 2007. Tão fascinado eu era pelo trabalho de alguns autores, que propus um quadro no programa que apresento – o “Fantástico” – no qual seria possível explorar o mundo das ideias contemporâneas. Já havíamos colocado no ar, com muito sucesso, uma série sobre Filosofia (“Ser ou não ser”). Com a boa receptividade que o assunto teve, minha sugestão foi fazer uma espécie de continuação  - só que com “filósofos” (e pensadores, e antropólogos, e historiadores, e cientistas) que estivessem de fato vivos, e que poderiam expor seu pensamento e, se possível, nos dar uma chance de aproximar esses conceitos de um grande público de televisão. “Novos olhares”, como resolvemos batizar o projeto, foi um sucesso. Apresentamos conceitos sofisticados para nossa audiência e conseguimos deixar claro que as ideias que circulam nas cabeças dos pensadores não pertencem apenas ao universo dos “intelectuais”, mas a todos nós.

Não foi uma tarefa simples. Tente explicar um pouco de física quântica – e mais o conceito de massa crítica – usando um jogo de futebol no Maracanã. Ou discutir a noção de “multiculturalismo” levando uma família de surfistas cariocas para um fim-de-semana junto de uma tribo Xavante – assunto esse que me levou para perto de um cara que eu tinha admirado desde que li um artigo seu no jornal “The New York Times”, o filósofo ganiano (e americano) Kwame Anthony Appiah. Esse era então um dos ídolos de quem eu queria chegar perto, mas tinham mais na lista…

A jornalista Elizabeth Kolbert, da “The New Yorker”, falou sobre meio ambiente (e eu tive que me segurar na entrevista para não parecer que eu estava tietando). Para discutir a importância das religiões – e especialmente o que significa o budismo hoje – fui entrevistar outro jornalista de quem eu devoro todos os textos, o indiano Pankaj Mishra (mais sobre ele daqui a pouco). Mas quem eu mais queria entrevistar, entre todas essas mentes brilhantes, era um filósofo suíço chamado Alain de Botton.

Há anos eu já era seu fã e tinha lido vários de seus livros – dois deles, inclusive, artigos de cabeceira até hoje (a saber: “As consolações da filosofia”; e, claro, “A arte de viajar”, ambos editados aqui pela Rocco). Seu livro mais recente na época tratava de um assunto um pouco árido – especialmente para o grande público. Em “Arquitetura da felicidade” (também da Rocco), de Botton aplicava sua sapiência e suas observações afiadas e irônicas à maneira como escolhemos como e onde morar, com uma atenção especial (sobretudo nas críticas) ao Modernismo. Como fã, achei o livro fascinante, mas confesso que estava quebrando a cabeça para ver como poderia “vender” esse assunto de um jeito popular – até que uma produtora brilhante que fazia a série comigo (Maria Luiza, que saudades) sugeriu que a gente conduzisse o assunto para uma marca bem contemporânea da arquitetura brasileira: o “puxadinho”. Escolhemos então uma diarista batalhadora, que, como tantos brasileiros, ia construindo sua casa como, quando, e “se o dinheiro”… dava. Seus depoimentos associados à entrevista de Alain de Botton provocaram um delicioso contraste – além de um dos momentos mais emocionantes da série quando ela dizia espontaneamente: “Quer dizer que eu sou arquiteta?”.

Para entrevistar de Botton, fui até sua casa em um subúrbio de Londres – uma cidade que, de cara ele declarou ser feíssima (para a minha surpresa). Extremamente amável, tivemos uma conversa estimulante (cuja íntegra, se você se interessar, pode ser encontrada no livro “Novos olhares”, com todas as entrevistas da série, da editora Globo) – e ainda ganhei um presente que guardo como uma preciosidade: um exemplar de “A arte de viajar”, em inglês, com um autógrafo seu. Não pedi – eu juro! Nunca peço nada – nem fotos com os grandes astros que eu eventualmente entrevisto. Mas eu contei a ele como eu gostava de viajar e como esse livro seu tinha sido importante nas minhas andanças – e ele se ofereceu para assinar um para mim. Preciso dizer que saí de lá como um adolescente depois de um show de uma estrela pop?

De Botton não é uma unanimidade. Muitas pessoas – inclusive colegas jornalistas cuja opinião eu respeito muito – acham, por exemplo, que ele simplifica demais as coisas em seus livros (quando não descamba para a “auto-ajuda metafísca”, seja lá o que for isso…). Eu prefiro achar que ele lança luzes em assuntos que são muito discutidos, mas pouco elucidados. Seu olhar sobre tudo parece sempre fresco, sua linguagem, sempre direta, e suas conclusões, sempre lúcidas. Ok, algumas delas são ligeiramente absurdas, mas, dentro do seu raciocínio cristalino, de Botton sempre nos convence de que elas fazem um enorme sentido!

Para quem ainda não o conhece, seu novo livro é uma oportunidade e tanto – especialmente pelo tema sobre o qual ele resolveu se debruçar dessa vez: religião. Quando encontrei o livro em uma estante sábado passado, levei um susto! Como eu não havia sido avisado disso? – perguntei-me com falsa indignação. E resposta eu já sabia: na correria dos últimos dias (algo que só vai se agravar até o final do ano, já sei), eu mal tive tempo de passar numa livraria. Elas estão cheias de novidades – e essa é, claro, uma das melhores. Tem até um título que parece ter sido feito sob encomenda para mim: “Religião para ateus” (Editora Intrínseca). Comprei-o imediatamente e, com exceção de um certo programa que eu acabei apresentando no domingo, o resto do meu tempo dediquei integralmente à sua leitura. Eu era uma presa fácil – concordo (ainda mais depois dessa confissão de idolatria que fiz aqui). Mas quem há de resistir a uma leitura que, logo de cara, na primeira página, propõe:

“A real questão não é se Deus existe ou não, mas para onde levar a discussão ao se concluir que ele evidentemente não existe. A premissa deste livro é que deve ser possível manter-se um ateu resoluto e, não obstante, esporadicamente considerar as religiões úteis, interessantes e reconfortantes”.

Fala de Botton! Fala que eu te escuto!

O autor é um ateu convicto – filho de pais judeus seculares que, como ele explica, “colocavam a crença religiosa num nível similar à crença do Papai Noel”. Resolvida essa apresentação ainda na introdução (sugestivamente chamada de “Sabedoria sem doutrina”), ele nos deixa à vontade para acompanhá-lo no seu pensamento sem compromissos com a fé. Assim, de Botton é só elogios para os princípios por trás das religiões (ele se concentra basicamente em três das maiores do mundo: Catolicismo, Judaísmo, Budismo), que sustentam os pilares daquilo que a gente costuma chamar de sociedade – ou pelo menos sustentavam. O problema que temos de encarar hoje é que (naturalmente) desistimos de acreditar em todo o aspecto sobrenatural das religiões – e com isso deixamos para trás também as boas coisas que nos ajudaram, através de séculos, a nos organizarmos como pessoas mais decentes. Para usar uma expressão surrada, mas ideal para explicar o que aconteceu: jogamos fora a água da bacia depois do banho, mas o bebê foi junto com ela.

Uma vez que você aceita essa premissa inicial, fica fácil viajar nas propostas mirabolantes do filósofo. Por exemplo: grandes banquetes chamados “ágapes” (sim, como no título do best seller do Padre Marcelo Rosi) eram a regra até o Concílio de Laodiceia, no ano de 364, “acabar com a bagunça” e institucionalizar a hóstia. Para que a alegria desses encontros gastro-religiosos seja restaurada, de Botton, sugere a criação de um novo tipo de restaurante – justamente os “Ágapes”, onde todos se misturariam e, com as pessoas mais diferentes possíveis, celebraríamos a beleza da comunidade.

Se essa ideia lhe parece muito radical, espere para ler como ele acha que as universidades devem ser reorganizadas sob a ótica das religiões. De Botton acha que a abordagem tradicional para o aprendizado é ineficiente. Alunos não assimilam os ensinamentos e as discussões que realmente deveria nos interessar – sobre como podemos ser pessoas melhores – são ignoradas nas salas de aula. Por mais improváveis que sejam as aplicações de suas ideias não tem como não se divertir quando ele escreve que seria importante que não apenas lêssemos, mas relêssemos tudo que consideramos fundamental para nossa formação:

“Possivelmente, há tanta sabedoria a ser encontrada nas histórias de Anton Tchekhov quanto nos evangelhos, mas as coleções das primeiras não estão encadernadas junto com calendários para lembrar o leitor de programar uma releitura regular de suas percepções. Despertaríamos graves acusações de excentricidade caso tentássemos construir liturgias a partir das obras de autores seculares. No máximo sublinhamos algumas das frases que mais admiramos e que, de vez em quando, poderemos tornar a ver em um momento desocupado à espera de um táxi”.

Daí ele parte para o questionamento na linha do “será que estamos lendo livros demais e absorvendo de menos o que eles dizem?” – que é não menos interessante. Ele segue: “Nós nos sentimos culpados por tudo o que ainda não lemos mas deixamos de notar que já lemos muito mais que Agostinho ou Dante, ignorando, desse modo, que o problema está, sem dúvida, na nossa maneira de assimilar, não na extensão de nosso consumo”. Não é uma boa provocação?

De Botton tem dezenas delas em todo o livro. Pode ser sobre arte (“O cristianismo reconhece a capacidade da melhor arte em dar forma à dor e, dessa maneira, atenuar o pior dos nosso sentimentos de paranoia e isolamento”). Sobre a ternura (“Se existe um problema com a abordagem do cristianismo é ter sido bem-sucedida demais”). Ou mesmo sobre arquitetura (“Dada a feiura em que se transformaram vastas porções do mundo moderno, poderíamos perguntar se de fato há importância na aparência das coisas ao redor”). Não há um parágrafo sequer em todo “Religião para ateus” que não seja incapaz de te instigar. Aliás, como em todos os seus livros… Mas eu diria que dessa vez, justamente por ele falar de religião, as provocações me parecem ainda mais tentadoras. E por falar em tentações…

O outro escritor que mencionei hoje aqui, de quem gosto tanto e que consegui entrevistar graças à série “Novos olhares”, acaba de ter um livro lançado aqui no Brasil. Foram só sete anos de atraso, mas a chegada de “Um fim para o sofrimento”, de Pankaj Mishra (Record) é tão importante, que não quero perder tempo com rusgas menores. O que me encantou nesse livro desde que o li foi a naturalidade com que o autor mistura sua história pessoal com a de ninguém menos do que o Buda. E, “de troco”, o leitor ainda dá um passeio por parte da história da própria Índia!

Minha intenção inicial era juntar os livros de Mishra e de Botton num mesmo post – mas acho que já estou exigindo demais da sua atenção por hoje. Deixe-me então criar mais um suspense, deixando Mishra para mais tarde, quando eu fizer um grande – grande mesmo – post sobre a Índia e sua cultura. O que vai acontecer assim que eu conseguir visitar a exposição sobre este tema que abre hoje no CCBB, no Rio de Janeiro. Quero provar para você que esse é um dos lugares mais fascinantes do mundo – e para isso vou pedir não só a ajuda de Pankaj, como também de um outro autor chamado Suketu Mehta. Em breve.

O refrão nosso de cada dia

“Don’t fucking tell me what to do”, Robyn – juro que não é uma provocação com o assunto “religiões”, do qual eu trato no post acima. Juro por Deus – se você quiser! Já tinha separado essa música para colocar aqui – é uma coincidência! Não pense em bobagem. Aproveite a batida impecável dessa faixa de um dos discos que eu achei um dos melhores do ano passado (“Body talk”, Robyn). E um refrão que desafia definições. Amém.

Ponto de exclamação

qui, 20/10/11
por Zeca Camargo |
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Sei que eu mesmo sou mestre em abusar dessa pontuação. Acho que é um tique meu! Sempre coloquei esse sinal em tudo quanto é texto que eu escrevo. Mas – você vai concordar – nunca as pessoas escreveram com tanta ênfase na exclamação. Com as mensagens cada vez mais curtas, parece que todo mundo agora precisa dar ainda mais intensidade ao que diz. Gostou de um filme? Adorei!!!!!!!!!! E o show do Guns? O melhor!!!!!!!!!!!!  E a festa de ontem? O bicho!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! A piada que eu twitei? Kkkkkkkkkkkkkkk!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Mas nessa onda de exageros, é interessante observar que às vezes basta apenas uma exclamação para chamar a sua atenção. Tão preocupados estamos sempre em dar a dimensão da nossa intenção nessas mensagens rápidas, que nos esquecemos que o que conta mesmo é o que vem antes da exclamação. Caso em questão: os artistas que participam da exposição “Em nome dos artistas”, atualmente em cartaz no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Nos cartazes e em toda a programação gráfica da mostra os nomes dos convidados vêm seguidos de uma simples exclamação. Basta isso!

Estou para falar disso já há alguns dias, desde que visitei a mostra na semana de sua abertura. Outros assuntos acabaram entrando na frente, mas aqueles pontos de exclamação não me saem da cabeça – quem sabe agora, já que eu vou tentar te convencer a ir até lá. Ao fazer esse convite, sei bem que estou sendo injusto com quem não mora em São Paulo, ou não tem a facilidade de passar pela cidade até o início de dezembro (quando ela se encerra). Mas é que, ao contrário de outros eventos culturais que eu costumo mostrar aqui (filmes, música, TV), arte tem essa “coisa chata” de se deslocar pouco. Na verdade, é a gente que tem de ir até ela. Dá trabalho, eu sei. Eu mesmo já cheguei a fazer loucuras, apenas para ver “a última loucura” de um artista que eu gostava bem – como foi o caso, em julho de 2008, das cataratas artificiais de Olafur Eliasson em Nova York (artista este que, aliás, também ganha agora uma exposição em São Paulo – sobre a qual pretendo escrever assim que conseguir visitar). Então quem sabe você não se anima?

Posso garantir que sua visita a “Em nome dos artistas” será imensamente recompensada. Ela vale, como disse, cada exclamação que o cartaz da mostra traz. Mesmo que você não tenha grande intimidade com os artistas – quase todos os nomes consagrados do cenário contemporâneo – tenho certeza de que você vai se impressionar. Não só pelo fato de, “pela primeira vez na história deste país”, uma exposição estar tão bem sintonizada com o que há de melhor nos museus do mundo todo (alguns podem criticar até que essa seleção chega com alguns anos de atraso – afinal, como o Brasil ainda não tinha tido a oportunidade de ver uma daquelas vitrines de Damien Hirst? –, mas eu prefiro celebrar a oportunidade preciosa de nosso público poder conferir tudo isso). Mas eu sei que você vai gostar simplesmente por algo que um passeio pelos corredores do Pavilhão da Bienal não nos dá há algum tempo: o puro prazer de olhar.

Recentemente, passeando pelo meu jornal favorito da internet, o “The Guardian”, fui parar num vídeo que me deixou encantado: o crítico de arte Adrian Searle conversando com a artista suíça Pipilotti Rist sobre sua exposição que está acontecendo na Hayward Gallery, em Londres. Mesmo se o seu inglês estiver enferrujado vale a pena dar uma olhada nesse link, apenas para aproveitar o que o próprio jornal chamou de “massagem no globo ocular”. Eu mesmo – se tudo der certo – quero ver se tenho a chance de ver a mostra de Pipilotti Rist até o fim do ano. Mas até lá, toda vez que eu precisar de uma massagem dessas, eu vou dar um pulo no Ibirapuera…

Não sou um crítico de arte – aliás, faço questão de reforçar: aqui neste blog não pretendo ser crítico de nada, apenas um amante das coisas que consumo culturalmente e, se possível, um provocador… Por isso não vou me afogar em palavras aqui tentando decifrar o que me estimulou tanto no trabalho desses talentos convidados para “Em nome do artista”. Pelo contrário, vou tentar ser sucinto. Abaixo, você vai encontrar uma lista com os nomes dos meus artistas favoritos ali presentes, uma foto representativa – e um curto parágrafo para eu justificar porque acho que ele merece ser uma parada obrigatória na sua visita à mostra. O resto, é com você. Eu acho que seu globo ocular merece essa massagem…

Matthew Barney!

Outro dia citei seu nome ao falar de sua esposa – sim, Björk. Mas Barney, claro, nem precisa dessa “credencial”. Ele já era um artista consagrado quando os dois se conheceram, espalhando suas criações inusitadas por museus do mundo todo. Algumas delas estão aqui na mostra, mas aproveite para gastar uns bons minutos com as telas que passam alguns de seus filmes – a série “Cremaster”. Você nunca viu uma associação de idéias tão bizarra e ao mesmo tempo tão lírica. Se gostar do que viu – ou pelo menos sentir sua curiosidade provocada –, é só clicar aqui para “aprofundar seus estudos”…

Jeff Koons!

Mesmo se você não acompanha o “circuito das artes” internacional, talvez você se lembre do nome de Koons por ele ter, durante um período se casado com Cicciolina – essa mesma: aquela atroz pornô que hoje é política atuante (sem duplo sentido!) na Itália de Berlusconi… Enfim, quando foram casados, Koons fez uma série de fotos com ela, em posições sexuais nada ortodoxas, que chamou a atenção do mundo todo. Ele é mestre nisso – e na mostra você vai encontrar bons indícios dessa sua capacidade de provocar.

Nan Goldin!

Por falar em provocação, essa fotógrafa americana criou uma polêmica e tanto com o trabalho que a lançou no cenário artístico, “The ballad of sexual dependency” (ou, “A balada da dependência sexual”). Com imagens autobiográficas, Goldin expôs um submundo de drogas e sexo que, até por sua naturalidade, chamou atenção. Na mostra ela apresenta “Gilles and Gotsche”, uma sequência forte de um casal gay – onde um dos parceiros está morrendo de AIDS. É apenas uma amostra de como essa artista é capaz de virar sua cabeça.

Damien Hirst!

O cara do tubarão! Para muita gente Hirst é conhecido apenas assim: como o cara que colocou um tubarão de verdade, com a boca bem aberta, num tanque de formol – e dentro de um museu. Mestre da arte de chamar atenção para si, seu nome é sinônimo de frisson. O tubarão não veio, mas Hirst mandou outro de seu trabalho icônico – uma vaca e seu bezerro serrados ao meio… Um aviso importante: este não é nem a obra de arte mais chocante que você vai ver no espaço dedicado a ele na mostra. Em tempo: nem tudo é “choque” na sua arte. Não deixe de ver também os quadros de borboleta – sério!

Shirin Neshat!

Vi seu trabalho pela primeira vez na Serpentine Gallery, em Londres – e “persigo” essa artista iraniana pelo mundo desde então. Seu trabalho é fortíssimo – discute a imagem da mulher no mundo islâmico e até a própria fé muçulmana. Mas mais que isso, as imagens de suas fotos e filmes é de uma poesia absurda. O trabalho que ela trouxe mostra, com muita sutileza a tensão sexual entre um homem e uma mulher que se encontram a caminho de uma oração. Quando todas as provocações estão apenas no olhar, Neshat consegue te envolver nesse universo ainda tão misterioso – ainda mais para nós, brasileiros.

Robert Gober!

Este é um de meus artistas favoritos da atualidade. E devo confessar que é extremamente difícil explicar porquê… Assim como os trabalhos que vieram do Brasil, sua obra não oferece muitas pistas. Elas provocam um ruído, um incômodo. E só… Ao se deparar, por exemplo, com uma perna de cera que sai da parede, ou com uma daquelas pias do mesmo material que jorram água sem parar, você parece que ouve um barulho surdo. E os efeitos disso você só vai sentir muito tempo depois. E, insisto, não vai conseguir expressar em palavras.

Félix González-Torres!

Um punhado de balas no chão – e você pode até se servir de uma delas. Isso é arte? Pode apostar. Torres era um artista americano (nascido em Cuba) que se especializou em fazer você repetir essa pergunta a cada trabalho seu. Meu conselho é você deixar essa sala para o final. Depois de tanta informação, um passeio pela arte de Torres vai servir como uma boa “descompressão” de todas as experiências que você viveu. Só não pense que você vai sair menos inquieto de lá…

Só lembrando, esse é um roteiro muito particular. Tenho certeza de que, se você tiver mesmo a chance de ir lá, vai descobrir outras coisas – e até me dar mais um motivo para visitar “Em nome dos artistas”.

O refrão nosso de cada dia

“Only love can break your heart”, Saint Etienne – sim, é uma versão. De uma música de Neil Young (que, só lembrando, vem participar do SWU, infelizmente não para tocar mas para dar palestra). Mas essa gravação catapultou essa banda inglesa para o sucesso – e eu passei os anos 90 e boa parte dos “00” correndo atrás do que eles faziam. Um refrão abençoado, eu diria…

Louco por cinema

ter, 18/10/11
por Zeca Camargo |
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A sala do Cine Metrópole estava lotada. Não estou falando apenas das poltronas, mas também dos corredores, degraus e eventuais cantos livres (isso era por volta de 1984, bem antes de alguém inventar uma coisa chamada “rota de evacuação”). Quem chegara algumas horas mais cedo estava sentado, mas mesmo assim negociava se emprestava seu colo ou não para quem só conseguiu entrar tarde demais. Por falar em tarde, eu mencionei que a sessão era da meia-noite? Isto é, supostamente. Já se aproximava da 1h da manhã e a projeção nem dava sinais de que iria começar. Mas nada derrubava a excitação naquele espaço – visível no ar, quase palpável. Que filme estávamos esperando para assistir? “Liquid sky”, uma bobagem. Dirigido por alguém de quem mal ouviríamos falar nas décadas seguintes (o russo Slava Tsukerman), essa era – pasme – uma das sessões mais aguardadas da criação maior de alguém que eu admirava pessoalmente e que morreu na última sexta-feira, Leon Cakoff.

Sua Mostra Internacional de Cinema chega à sua 35ª edição nesta quinta-feira, em São Paulo – numa triste (ou quem sabe respeitosa) coincidência. Os assuntos sobre os quais quero discutir aqui com você só se acumulam: a incrível exposição “Em nome dos artistas”, no Pavilhão da Bienal de São Paulo; o sensacional disco novo de Karina Buhr; o livro “Uma história de amor real e muito triste” já está pegando poeira na prateleira; um novo Almodóvar está chegando; Marisa Monte nos espera na esquina com seu “O que você quer saber de verdade”; e há ainda uma outra exposição imperdível sobre a Índia (no CCBB, no Rio), que eu quero juntar com três livros muito bons que falam daquele país – entre tantas coisas. Mas isso tudo vai ter de esperar porque hoje eu quero usar este espaço para, assim como fiz quando me despedir de outras pessoas queridas que tanto me inspiraram, prestar uma homenagem a Cakoff – alguém que definitivamente mudou a maneira como nós vemos cinema hoje no Brasil.

Parece um exagero, mas não é. Mesmo que você nunca tenha morado em São Paulo, ou mesmo que você tenha morado por um tempo (ou more até hoje) e nunca tenha ido a uma de suas Mostras, mas gosta um pouquinho que seja de cinema – todas as possibilidades que existem hoje para você encher seus olhos foram abertas por Cakoff. Eu mesmo, como escrevi também por coincidência no meu post anterior, já fui “rato da Mostra” – isso lá nos idos dos anos 80 quando o tempo livre era abundante e a curiosidade infinita (a curiosidade, creio, ainda conservo, mas o tempo livre…). Ironicamente, à medida em que fui me aproximando do jornalismo cultural, minha presença na Mostra foi ficando cada vez menos frequente. Mas nunca deixei de conferir o que ela oferecia, nem que fosse à distância. E talvez por ela ser, até hoje, essa referência cultural tão forte para mim, resolvi, numa espécie de tributo, juntar aqui algumas lembranças que tenho desses festivais (a Mostra, que sempre adotou um tom mais sóbrio – e ao mesmo tempo mais punk – nunca quis ter o espírito fanfarrão de Cannes, mas acho que chamá-la de “festival” não é tão indelicado assim…).

“Liquid sky” ficou para trás no tempo – aliás, com seus registros datados sobre a cena de clubes “underground” de Nova York justamente no início dos anos 80 (algo que a noite paulistana de então só podia sonhar em emular), o filme era mesmo, como disse acima uma bobagem (eu poderia até salvar a cena em que uma “performer” canta “Me and my beatbox” como relíquia preciosa para um museu daquela época, mas acho que eu divago…). O Cine Metrópole também não existe mais – sua gigantesca sala, embutida numa galeria no centro de São Paulo, bem na rua São Luís, nada mais que uma lembrança de quem viu lá filmes bem mais memoráveis que “Liquid sky”. Mas ao longo desses anos todos, foram dezenas de trabalhos surpreendentes que me marcaram, graças ao esforço e dedicação de Leon Cakoff – e vou juntar agora alguns deles sem preocupações cronológicas. São memórias soltas de descobertas sublimes, que podem até parecer desconexas demais. Se esse for o caso, caro leitor, cara leitora, desculpe-me. Tente ler o texto de hoje menos como uma página da Wikipédia e mais como um roteiro de uma obra como “Arca russa”, de Aleksandr Sokurov – um plano-sequência de tirar o fôlego pelo imponente museu Hermitage (São Petersburgo), e também pela história da própria Rússia. Filme que, aliás, eu vi pela primeira vez numa Mostra.

Na mesma sala do Metrópole, por exemplo, lembro-me de assistir a um dos filmes mais importantes para minha formação cinematográfica – falo, claro, do ponto de vista de quem vê, não de quem faz cinema… Wim Wender tinha acabado de ser “descoberto” com seu transcendental “Paris, Texas”. E numa Mostra seguinte, depois desse enorme sucesso, Cakoff resolveu mostrar todos os filmes que Wenders havia dirigido até então. Foi então que vi “O amigo americano” (livremente inspirado no quase que perfeito livro de Patricia Highsmith, “O jogo de Ripley”), cuja cena em que alguém encostado em um carro sussurra o refrão de “Drive my car”, dos Beatles, me dá frio na espinha até hoje. Mas foi um outro filme seu que, ali no Metrópole, me fez finalmente perceber que cinema era algo que, além de contar uma história, é também capaz de fazer você rever suas ideias, suas paixões, seus próprios questionamentos, as perguntas importantes que você quer fazer. Ele se chama “O estado das coisas” – e eu nunca fiquei livre daquelas imagens em branco e preto filmadas em um enorme hotel abandonado na costa portuguesa.

Numa sala bem menor (a Mostra desde muito cedo teve que ser distribuída por várias delas), assisti a uma pequena preciosidade – que talvez olhando hoje seja tão “excitante” quanto “Liquid sky”. Mas este era (e acho que ainda é) a magia da Mostra: transformar algo que é apenas curioso num evento. Falo agora de um modesto filme chamado “Zuckerbaby” – também conhecido como “Sugar baby” (não me lembro se ele chegou a ganhar um nome, sequer uma distribuição comercial, por aqui). Durante umas duas semanas, tudo que os cinéfilos queriam discutir era a história dessa mulher de uns 30 anos, solitária, obesa, que um dia se apaixona pela voz de um funcionário do metrô – e vai atrás de seu sonho. Parece simples, mas na época (o filme é de 1985) todo mundo se encantou com ele. E com a atriz principal também, que no trabalho seguinte do mesmo diretor (Percy Adlon), foi catapultada à categoria de “cult”: no icônico “Bagdá Café”, Marianne Sägebrecht brilhou e seduziu as plateias de todas as sessões da Mostra (e até “um certo” George Michael, que compôs uma música belíssima sobre o filme).

Nem tudo era romance… A primeira vez que vi o trabalho que lançou a carreira de Quentin Tarantino – “Cães de aluguel” – foi também na Mostra. Ele ainda não inspiravam a histeria obrigatória que já vem com cada lançamento desse diretor desde “Pulp fiction”, mas quem estava lá assistindo a “Cães” na sua “première brasileira” conheceu, da maneira mais brutal possível, um novo patamar de crueldade no cinema. Você acha “Jogos mortais” e “Hostel” desagradáveis? Experimente passar alguns minutos na companhia dos senhores Branco, Laranja, Rosa… Ali era inaugurada uma nova vertente no cinema – o que podemos chamar de uma “neo-violência”. E a sede de filmes assim, iria se refletir logo depois em duas noites memoráveis também da Mostra, na companhia de “Pulp fiction” (do próprio Tarantino) e seu “genérico”, “Assassinos por natureza”, de Oliver Stone.

Se até hoje tenho vontade de me jogar de joelhos durante um filme do iraniano Abbas Kiarostami, o “culpado” disso também é Cakoff. Esse era um dos ídolos pessoais do organizador da Mostra – os dois depois se tornaram grandes amigos – e é fácil entender esse fascínio. Kiaostami tem um tempo próprio, único – e apresenta, em suas produções, uma delicada mistura de atuações, que vão do grande amadorismo até a mais sofisticada interpretação dramática. Também esse diretor me proporcionou momentos emocionantes, mas nenhum mais forte do que aquela sequência final de “Através das oliveiras”, na qual, por longos minutos, um homem corre por um olival atrás da mulher de sua vida declarando seu amor por ela. É uma súplica desesperada, mas tão leve, tão bonita, tão romântica, e tão verdadeira que, durante anos eu sonhei em viver a mesma cena – não necessariamente através das oliveiras (depois a gente fica velho e esquece essas bobagens – mas olha eu divagando novamente…).

Porém, de todos os cineastas geniais que a Mostra me apresentou, talvez o que mais me surpreendeu foi Wong Kar Wai. Hoje seus filmes são lançados comercialmente e têm um público fiel. Mas até meados dos anos 90, esse diretor era privilégio que quem circulava por festivais internacionais – e foi Cakoff que o trouxe para ser descoberto pelos brasileiros. Seu trabalho mais conhecido acho que ainda é “Amor à flor da pele”, mas o primeiro filme dele que eu vi tem a ver com uma história pessoal que vou contar rapidamente.

Em 1995 eu editava o caderno de cultura da “Folha de S.Paulo”. A “Ilustrada” sempre funcionou como um excelente canal de divulgação da Mostra e de seus filmes – e durante um período o jornal chegou a publicar também um caderno que trazia os destaques e e a sempre caótica programação das sessões (do pouco que acompanho hoje em dia, acho que parte delas continuam assim – um caráter quase obrigatório de um evento que pretende mostrar dezenas de produções em espaços e horários limitados; reclamar disso é um velho hábito dos frequentadores da Mostra – que beira o passatempo!). Eu então, como editor da “Ilustrada”, era responsável pela tarefa de “colocar de pé” o caderno especial daquele ano – tarefa para a qual chamei alguém da equipe que era já uma grande amiga e colega (uma relação que continua forte, nos dois sentidos, até hoje). Depois de juntarmos esparsas informações sobre os principais participantes da Mostra (acredite: houve um tempo em que não existia um site chamado imdb!) e selecionar as imagens que queríamos para ilustrar o suplemento, escolhemos sem muita discussão a foto que seria a nossa capa: essa que reproduzo abaixo, do filme “Amores expressos”.

Não sei explicar bem porque a escolhemos, mas acho que o clima tinha tudo a ver com a própria alegria (mencionei também o caos?) de fazer aquele trabalho. A escolha não poderia ter sido mais feliz – e não apenas pelo seu aspecto gráfico (a capa ficou linda!). Ela refletia bem também a atmosfera do filme – e foi com um enorme prazer que eu e essa minha amiga (eterna devota de Wong Kar Wai) fomos então apresentados ao trabalho desse diretor. Por mais que eu tivesse gostado de “Amores expressos”, contudo, o filme não me preparou para seu trabalho seguinte – exibido também na mostra três anos depois.

Se eu não tivesse tantos motivos para ser grato a Leon Cakoff, só esse já bastaria: a satisfação por ele ter me colocado em uma sala escura assistindo a “Felizes juntos”. Wong Kar Wai preferia sempre o título original em inglês – que é o que está inclusive no cartaz que eu reproduzo lá no início do texto: “Happy together”. Para fazer justiça a este filme – que tanto mexeu comigo e com a cabeça de quem tanto mexeu comigo – eu precisaria de um outro post. Talvez dois. E talvez fugiria demais do assunto. Mas quero só fechar essa série de lembranças pegando emprestado esse título só para celebrar o legado de Cakoff. A Mostra (que, só lembrando mais uma vez, abre nesta quinta-feira em São Paulo) vai em frente, sendo sempre esse tornado de ideias, de delírios, de temperamentos, de chiliques, de talentos, de manias, de inspirações (e de eventuais decepções) – por anos e anos, tenho certeza. E por isso temos que agradecer a esse “louco por cinema”, esse Cakoff, que fazia de tudo para aproximar essas duas partes. Filme e espectador. Felizes. Juntos.

O refrão nosso de cada dia

“Tema de Yumeji”, da trilha sonora de “Amor à flor da pele” – para continuar na homenagem, escolho hoje essa música. Instrumental, eu sei – mas quem disse que ela também não tem um refrão. O violino, no caso, substitui brilhantemente uma voz – sem falar que dá um ritmo e uma respiração inesperada à sequência que é uma das mais belas filmadas por Wong Kar Wai. É também uma das mais sensuais que eu já vi numa tela grande. E, sim, o máximo que você vê de nudez são os braços da atriz Maggie Cheung. Mas de que vale eu falar de sutilezas? Deixe-se envolver por essas imagens e esses sons que você vai entender…

Duas atrizes (brasileiras) e dois diretores (brasileiros)

qui, 13/10/11
por Zeca Camargo |
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Sai o rock, entra o cinema. Pelo menos até a próxima edição do SWU – daqui a um mês – a pauta cultural vai dar uma variada por conta dos dois principais festivais internacionais de cinema do Brasil, no Rio e em São Paulo. Confesso que já fui “rato” de eventos como esse. Nos anos 80, quando só o de São Paulo existia – graças ao idealismo quixotesco que um organizador que há anos tem meu respeito (Leon Cakoff) – eu juntava todas minhas economias para ter uma “carteirinha passe livre” para todas as sessões (que incluíam, como sempre, as mais obscuras produções do mundo todo – lembro-me que disse a mim mesmo que havia chegado ao limite quando fui assistir a um documentário sobre freiras num convento no interior do Canadá, numa sessão da meia-noite, mas eu divago…). Hoje, com mais acesso (por conta da minha profissão de jornalista) a qualquer filme que eu queira assistir, mas ironicamente limitado por questões de tempo e de agenda, sigo acompanhando essas mostras, porém de longe. Ver um destaque nesses festivais tornou-se um privilégio, que eu aproveito ao máximo. E foi por isso, talvez, que eu gostei tanto dos filmes que conferi esta semana no Festival do Rio: “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” e “Abismo prateado”.

Sim, são dois filmes nacionais – concebidos, filmados, dirigidos e interpretados por gente que fala a mesma língua que você que me lê com fluência aqui. Não se trata apenas de uma coincidência. Fiz questão de ver essas duas produções não apenas por minha sempre insaciável curiosidade, mas também porque tenho relações pessoais com pelo menos uma pessoa importante de cada filme. Em nome da transparência, tenho que dizer que a atriz que protagoniza o primeiro filme é alguém com quem tive o privilégio de desenvolver uma sólida amizade nos últimos anos, alguém de quem já era fã à distância e cuja proximidade permitiu que minha capacidade de admirá-la só aumentasse – e para muito além do aspecto profissional. Falo, claro, de Camila Pitanga, que em “Lindos lábios” vive a personagem Lavínia (mais sobre ela, daqui a pouco).

No caso de “Abismo prateado”, minha ligação direta é com o diretor Karim Ainouz – alguém que, como Camila, eu já acompanhava de longe, desde seu primeiro filme, “Madame Satã”. Para quem não se lembra, esse foi o trabalho que lançou não apenas a carreira do diretor, mas também apresentou para um público maior o talento de “um certo ator baiano” de quem talvez você tenha ouvido falar: Lázaro Ramos. Numa abordagem inovadora, Karim fez uma biografia de um personagem curiosíssimo não contando a história da sua vida, mas através de um corte específico quando ele já era adulto – e controverso (se você não viu, vale alugar, pedir emprestado, e até mesmo comprar para a sua coleção). Recentemente, amigos em comum nos apresentaram durante uma viagem a Berlim – onde o diretor hoje está baseado – e pude ver que para além do seu trabalho, Karim é sem dúvida uma mente (e uma amizade) a ser infinitamente explorada.

Deixo essas conexões claras menos para me gabar delas – apesar de elas serem, de fato, amizades invejáveis – mas mais para esclarecer que os elogios que vou fazer no texto de hoje são genuínos, e, na medida do possível, independentes dessas relações pessoais. Ter esse desprendimento não é um exercício simples. Eu mesmo, em cada sessão (vi “Lábios” na última terça-feira, e “Abismo” ontem, na gloriosa sala do Cine Odeon, bem no coração de uma área no centro do Rio que tem um dos nomes mais poéticos para quem como eu adora uma sala escura: Cinelância – mas cá estou eu divagando de novo…) – enfim, em cada sessão, esforcei-me para ver cada trabalho com “olhos neutros”, tentei assistir à atuação de Camila e apreciar a direção de Karim além dos laços que nos unem. Não foi fácil. Mas no final – e é por isso que resolvi encarar esse assunto hoje aqui – acho que eu consegui. Gostei “imenso” (como se diz lá em Portugal) dos dois filmes – e acho que estou enfim à vontade para convidar você a conferi-los também, assim que eles entrarem num circuito de exibição comercial.

Começo, pela ordem cronológica, por “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”. Dirigido por Beto Brandt – de quem, também em nome da transparência, devo dizer que sou fã –, trata-se de uma delirante história de amor, baseada em um livro do mesmo nome do escritor e jornalista Marçal Aquino. Os dois já haviam trabalhado juntos – essa é a quarta colaboração (Aquino também assinou como roteirista em “Os matadores”, “Ação entre amigos” e, meu favorito, “O invasor”), e, talvez por conta disso, é possível sentir no filme uma sintonia perfeita.

A história de Lavínia, a personagem de Camila Pitanga, é contada “em conta-gotas”. Tudo que sabemos a princípio é que ela tem uma atração fortíssima por um fotógrafo (Cauby, bem interpretado por Gustavo Machado) que chega a uma cidade do interior do Pará. Como exatamente Lavínia foi parar lá só é revelado já na metade do filme. Mas quando você descobre isso, apesar do choque, nada muda na maneira como você se envolve com Lavínia: você simplesmente passa a perceber que ela é não muito diferente de cada um de nós – acomoda o bem e o mal dentro do mesmo coração. Sua história com Cauby fica cada vez mais intensa e perigosa – num paralelo curioso, aliás, com a situação social da própria cidade, que vive uma disputa entre índios e madeireiros. Esse conflito, porém, é pincelado de maneira sutil, sem interferir demais no seu interesse pelos personagens que vão aos poucos queimando suas paixões. E que paixões!

Machado conduz sempre seu personagem Cauby à beira da obsessão – e aos riscos que ela pode trazer (o maior deles pelas mãos e pela língua do jornalista Viktor Laurence, brilhantemente afetado na pele de Gero Camilo). Mas é Lavínia que vive as emoções mais fortes de todo o filme. Camila, como eu já acompanhava na época das filmagens, entregou-se de uma maneira tão abnegada ao filme, como só uma atriz que está buscando novos limites pode se entregar. Conhecida (e reconhecida) por seus trabalhos em televisão, ela sabia que tinha no cinema a oportunidade de ir muito além na sua atuação. E aproveitou cada chance de mostrar isso. Quem assistir a “Lábios” talvez fique impressionado com essa “nova Camila”, sobretudo nas cenas mais fortes – não é sempre que você vê uma mulher como ela se dilacerar em sequências de degradação física. Mas esse seria o elogio fácil (tanto quanto qualquer um feito às cenas de sexo – muitas e fortes). O que mais me emocionou mesmo foi outra coisa: a sutileza de outros momentos, mais serenos e ao mesmo tempo mais difíceis de interpretar.

Eu poderia gastar uns bons parágrafos aqui falando sobre o sorriso de Lavínia que fecha o filme. Porém, se eu fizesse isso teria que entregar demais o emocionante desfecho de “Lábios” – e acho que nem conseguiria descrever por inteiro o mistério “monalisesco” daquela expressão. Prefiro ressaltar então um momento, também mais próximo do final, onde Camila pega uma câmera e tira uma foto. Não parece grande coisa, não é? Mas te garanto que essa é a chave de todo o filme – que te conecta com as origens de Lavínia, com a paixão que cresceu de seus encontros com Cauby, e com um talento que você talvez desconhecesse nessa atriz. Depois de Lavínia, Camila chega definitivamente a um outro patamar, com o auxílio de um filme que é não só uma história interessante, mas também mais uma entrada significativa na filmografia de Beto Brant (que, diga-se, divide mais uma vez a direção com Renato Ciasca). Filmografia essa tão apreciada quanto “suada”…

“É difícil fazer filme no Brasil”, anunciou Rodrigo Teixeira, produtor de “Abismo prateado”, antes da sessão do filme, no dia seguinte ao que assisti “Lábios”. Karim Ainouz subiu logo depois ao palco e repetiu o bordão. Todos na plateia de convidados e gente de cinema sabiam bem do que eles estavam falando. “Abismo” é apenas o terceiro longa-metragem do diretor em quase dez anos – um placar modesto. Karim, pelo contato que tive com ele, tem potencial e ideias para muito mais, mas as dificuldades de realizar projetos assim são enormes. E some a isso a noção de que seus filmes não são exatamente voltados para o grande público. Eu não faria aqui a injustiça de rotulá-los como “filmes de arte” (não porque eles não sejam obras de arte – pelo contrário –, mas porque esse rótulo remete a um elitismo que só desmerece o trabalho que o recebe). Mas seus trabalhos certamente têm a qualidade de querer conduzir o olhar do telespectador por um caminho menos usual – o que acaba limitando seu público potencial.

Com “Abismo” não é diferente. O ponto de partida é uma música popular – talvez uma das mais populares que Chico Buarque já compôs: “Olhos nos olhos”. Mas no lugar de simplesmente descrever o que diz a poética letra, Karim prefere contar o que acontece antes da canção. “Abismo” é a história de uma separação – ou melhor, do imediato desdobrar de uma separação. Para mostrá-la na tela, o diretor optou por abrir mãos de diálogos – raros, eles servem muito mais para preencher (ou despistar) cenas cotidianas do que para traduzir o que Violeta está sentindo. Com esse recurso, toda a dramaticidade fica sob a responsabilidade da atriz que a interpreta. E aí Alessandra Negrini manda bem. Aliás, manda muito bem.

As emoções de sua personagem têm a ver com a dificuldade de aceitar o que está acontecendo (brigada do “spoiler”, não zangue comigo – a separação acontece logo no início do filme). Num primeiro momento, tudo é barulho e ruído – a discussão de Violeta com sua cunhada, por exemplo, que trabalha numa construção civil, é quase incompreensível (propositalmente, imagino). Mas em seguida ela fica sozinha com sua confusão – e aí que a interpretação de Negrini toma força. É depois de ouvir novamente a mensagem que seu marido deixou na caixa postal, que Violeta começa realmente a surtar. Nós, o público, a ouvimos pela primeira vez (para um filme econômico no texto, chama atenção a voz de Djalma, vivido por Otto Jr., dizendo de maneira desconcertante: “Violeta, meu amor… eu não te amo mais” – “meu amor”, “não te amo mais”…). E embarcamos com a personagem numa noite assombrosa.

São longas trechos que Karim nos pede para passar com ela – e em muitos momentos somos colocados à prova, na nossa atenção e na nossa paciência. Em mais de uma sequência minha memória remetia a “Um lugar qualquer”, o mais recente trabalho de Sophia Coppola – os hiatos em que nada acontecem funcionam mais como momentos de reflexão do que como instantes narrativos. Constantemente sua expectativa é provocada – e em seguida frustrada. A ponto de você achar que Karim é um diretor realmente perverso (o que ele é, claro, mas de uma maneira mais positiva do que o adjetivo permite interpretar – mas se me esticar nisso vou divagar pela terceira vez hoje, o que não é nada bom…). Mas o que ele é mesmo é um diretor que arrisca, que te seduz e te cutuca – e que mesmo se ele vier com “apenas” mais três filmes nos próximos 10 anos eu vou querer conferir cada um deles.

Enfim, foram dias – ou melhor, noites intensas numa sala de cinema. Mas saí de ambas experiências extremamente recompensado. Com filmes brasileiros, sim, como fiz questão de frisar no título de hoje. A ironia, porém, é que coloquei esse predicado entre parênteses lá em cima justamente porque ele pode ser dispensado. O que me encantou no trabalho dessas atrizes e desses diretores não depende de nacionalidade. Depende só de talento. Que, nem preciso dizer, sobra nesses casos.

O refrão nosso de cada dia

“6am Jullandar Square”, Cornershop – o refrão de hoje é um teaser. Muito estranho, reconheço. Mas em breve (semana que vem) você vai entender porque eu gosto tanto dessa música. Já voltamos ao assunto, mas enquanto isso, será que você consegue contar quantas vezes eles repete o refrão a partir dos 4 minutos e 33 segundos?

Eu vi o futuro. E ele é cristalino

seg, 10/10/11
por Zeca Camargo |
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Sexta-feira, por volta das 21h30. Foi bem nessa hora que eu comecei a (finalmente) conhecer o futuro da música. Sozinho em casa, num momento de puro pleonasmo, pego meu iPhone para procurar (mais) notícias sobre a morte – ou melhor, sobre o legado – de Steve Jobs. Calma, este post não será mais um exercício gratuito de elegia ao visionário que o mundo perdeu na última quarta-feira – eu mesmo, um pouco perplexo com a talvez exagerada repercussão mundial dessa morte, preferi me refugiar dessa cacofonia neste obituário, que disse tudo, e da maneira mais elegante (e menos exagerada) possível. Cito Jobs apenas com um link entre um assunto da semana passada e o tema de hoje do blog, pois foi por causa dele que eu comecei a fuçar no meu aparelho e acabei chegando ao novo álbum da Björk, “Biophilia”.

Esse caminho foi cheio de voltas, mas para o que quero escrever hoje, basta dizer que, a certa altura, lá estava eu lendo o “The Guardian” (sim, algo que Steve Jobs “fez” de bom para mim e para a humanidade: ler jornais do mundo inteiro no meu telefone), e fui parar na sessão de música do site, onde havia uma resenha sobre o novo trabalho de Björk. Fiquei obviamente interessado, primeiro porque sou fã dela. Correção: sou muito fã. Segundo, porque a crítica falava maravilhas sobre as músicas, mas não só isso. Boa parte do foco do texto (e de vários outros sobre “Biophilia” – o melhor delas, talvez, o que foi capa da edição inglesa da “Wired”) é sobre a maneira como Björk apresenta as músicas – como “apps” ou aplicativos para um “smartphone” ou um tablete, e não exatamente como faixas, ou “singles”. O que essa artista estava propondo era de fato uma pequena revolução na maneira como nós nos relacionamos com a própria música – uma espécie de experiência futurista que conecta, de maneira inovadora, músico e ouvinte, em variações infinitas sobre determinados temas (musicais, claro). Como você pode imaginar, não resisti.

Fui naquele momento mesmo à “app store” – uma “loja” virtual onde é possível comprar “apps” (um espaço que, do alto dos meus 48 anos, devo confessar que frequento com moderação, pois tenho menos de uma dúzia deles no meu iPhone). Achei o de Björk sem dificuldade (se você tentar, procure pelo nome dela e “Biophilia”), e em menos de dois minutos eu havia baixado a “cosmologia” que representa as novas criações de Björk. Não se trata de uma figura de linguagem. Ao som de uma narração de ninguém menos do que Sir David Attenborough, a voz por trás dos mais famosos documentários sobre a Natureza produzidos pela BBC, descrevendo a ambições do projeto (nada menos do que reinventar a relação entre a música, o homem, e o cosmos!), a primeira coisa que você vê na sua tela é uma espécie de galáxia – mesmo! Cada faixa é um “planeta”, e você tem que clicar nele para “entrar” na música. Mas antes disso, só de passear pela tal galáxia você já vai se divertindo.

Afinal, o universo que ela apresenta não é só visual, mas sonoro também. Conforme você se aproxima dos “planetas” surgem novas camadas sonoras, e o efeito é tão surpreendente que leva um tempo para você entender o que tem (literalmente) nas mãos. Abrindo e fechando as imagens com as pontas dos meus dedos, ora ouvia a voz de Björk, ora apenas uma trilha instrumental, ora um coro fantasmagórico, e ora algo que parecia ser o próprio som do universo. Fiquei tanto tempo explorando esse “espaço sideral”, que quase me esqueci de ir além – de penetrar nas próprias faixas. Foi só quando me dei conta que nada ali parecia propriamente uma música que resolvi ir mais fundo, clicar nas próprias faixas e ver seu eu era conduzido então a alguns sons num formato que eu fosse capaz de reconhecer – uma canção (coisa de velho, eu sei).

Intuitivamente fui primeiro à lua – ou melhor, ao “app” que se chama “Moon”. O passeio pela tal cosmologia é de graça – você não paga nada para baixar. Mas para ter acesso a cada “app” (pelo menos os que estão disponíveis) você tem que fazer uma compra no valor de U$ 1,99 – um pouco menos de quatro reais. Achei razoável, comprei, e o que ganhei foi bem mais que uma canção. Antes mesmo de ouvir qualquer coisa, você é recebido com um texto que começa assim (minha tradução, do inglês):

“A cada lua nova, nós completamos um ciclo e uma renovação nos é oferecida – para assumirmos riscos, para nos conectar com outras pessoas, para amar, para colar. O simbolismo da lua como o reino da imaginação, melancolia e regeneração é a expressão de ‘Moon’ como canção e ‘app’, através de padrões musicais e imagens que untam e mínguam e letras que falam de renascimento”.

Parece estranho, eu sei – especialmente o “untam e mínguam” (“was and wane”, no original). Mas é assim que está escrito. Lembrei-me dos antigos textos em capas duras de disco de vinil (circa anos 50/60) que muitas vezes tentavam explicar ao ouvinte o que ele estava prestes a escutar – porém, o objetivo de Björk vai muito além do didático: é profético! E essa não é nem a coisa mais estranha que espera quem se habilita a explorar o “app”. Logo depois dessa introdução, vem uma explicação de como você pode interagir com esse aplicativo, mexendo nos sons das luas que aparecem na tela (na opção “play”), mudando assim, ao seu bel-prazer, a própria base da canção criada por Björk. Soa um pouco árido, eu sei – e confesso que não me animei com essa explicação. Mas quando surge o som da harpa e as pequenas luas conectadas por um tubo por onde passa um líquido vital (confie em mim: é isso mesmo!), e você percebe então que pode estar no controle do que a própria Björk está cantando, as coisas começam a ficar realmente divertidas. Não só você é capaz de mexer na tonalidade de toda a frase musical que é a base da música, mas passando seu dedo por cada lua (isto é, por cada nota), você altera a própria frase e “cria” em cima da música diferente. Gostou? Então é só gravar e começar outra.

Isso, claro, não é tudo. Se você quiser, pode acompanhar a representação gráfica da música – que, diga-se, é belíssima (Björk trabalhou com os times mais criativos de criadores de “apps”). Ou ainda seguir a letra e a partitura em outro canto do aplicativo. Ou ainda ler uma apreciação musical da faixa – um texto sempre assinado por um convidado especial. Deve até haver outras maneiras de explorar “Moon”, mas eu devia estar tão excitado, entusiasmado, que nem pude perceber. Tudo que eu queria, depois de ter passado um bom tempo na órbita daquela música, era baixar um outro “app” e “brincar” mais com outra música. Mas aí veio a primeira má notícia: nem tudo já está disponível. Não sei se isso vale para o mundo inteiro, ou só para o Brasil, mas por enquanto tudo que eu consegui ter acesso foram três músicas: além de “Moon”, baixei o “app” de “Crystalline” e de “Virus” – mais duas experiências reveladoras.

Além de ouvir “Vírus” – a mais bela dessas três canções até agora disponíveis –, você interage com uma espécie de jogo, onde você tem que defender uma enorme célula justamente de um ataque de vírus. Ou não… Se a música vai até o fim, novos “inimigos” (outro tipo de vírus?) aparecem – e os sons tomam outros rumos. Aos pouco você percebe que cada célula que surge na tela funciona como um instrumento de percussão, e é seu dedo que faz cada uma delas vibrar. Cinco minutos com o “app” de “Vírus” e você já está achando que é um músico do mesmo calibre de Björk – a não ser, claro, pelo pequeno detalhe de que foi ela que criou tudo… Você é mero vassalo desse império musical!

Mas o “app” que mais me divertiu mesmo – pelo menos até agora – foi o de “Crystalline”. A música, que já estava rolando a um bom tempo no youtube, é bem boa – complexa e inusitada, com os vocais de Björk a plenos pulmões. Mas a experiência de mexer com ela vai muito além dos quatro minutos da composição original. Você começa com alguns elementos sólidos (cones, esferas, paralelepípedos) deslizando por uma tela espacial. Mexendo no próprio iPhone (ou, imagino, no iPad), você vai conduzindo esses sólidos – que são, como você logo percebe, fragmentos da própria música – por túneis sonoros que vão mudando a estrutura da canção. Cada vez que surgem novos túneis, você tem novas possibilidades de criar trilhas sonoras diferentes – a escolha é sua, e você não sabe direito o que cada túnel pode te oferecer como registro musical. Quando você percebe o que mudou, vem um misto de surpresa e alegria: você está fazendo música! E no final, tudo que você foi juntando – na verdade, a “composição” que você criou a partir do original de Björk – vira outra coisa, talvez até mais interessante . Se você gostou, é só guardar – e começar uma nova. Eu já colecionei 16 “covers” de “Crystalline”!!

Se as explicações que dei aqui hoje parecem um pouco confusas, entenda: estou tentando descrever algo que até bem pouco atrás não existia. Uma outra boa apresentação talvez seja o próprio site de Björk – onde ela mesma te recebe com a tal introdução do “app”, falando de Natureza, do corpo humano, dos ritmos do mundo, dos mistérios dos sentidos, da grandiosidade da própria música, e da nossa vontade inerente de descobrir mais, sempre. Mas acho que isso também não será suficiente para absorver tudo que ela quer transmitir. O “conceito” de álbum de Björk é algo tão inédito, que nem isso nem meu esforço de “traduzi-lo” por aqui bastam… E olha que não faço outra coisa em qualquer horas vaga dos últimos dois dias a não ser brincar com “Biophilia” – e não quero nada além disso por um bom tempo, pois não estou dando sinais de me aborrecer com essa diversão. Nem preciso dizer isso, eu sei, mas você deve imaginar o quanto eu estou ansioso esperando novas faixas ficarem disponíveis na “app store”! Só os nomes já são sugestivos: “Solstice”, “Thunderbolt”, “Dark matter”… O que deve vir por aí?

Não tenho a menor ideia – e isso é que faz de “Biophilia” um trabalho tão interessante. Como li em várias entrevistas recentes com ela, esse álbum é a realização de um projeto antigo, do tempo em que ela era estudante de música em Reykjavik: pensar na música de uma maneira diferente; experimentar o que ainda não foi feito; ou, como diria Steve Jobs, oferecer para as pessoas algo que elas ainda não sabem que elas querem…

Björk, claro, nunca decepciona. Este blog já é antigo o suficiente para já ter presenciado o lançamento de pelo menos um álbum da artista, “Volta” – e minha opinião na época (era o ano de 2007) não é muito diferente da de agora: poucas artistas do pop são tão inteligentes, ousados, transcendentais, surpreendentes, curiosos, inovadores e brilhantes como Björk. Da sua atuação no cinema (melhor atriz em Cannes com “Dançando no escuro”, lembra?), à própria escolha de seu parceiro (Björk é casada com o artista americano Matthew Barney, um dos mais conceituados da cena contemporânea, que, aliás, está com trabalhos incríveis numa exposição no Pavilhão da Bienal em São Paulo, chamada “Em nome dos artistas”, sobre a qual pretendo escrever aqui em breve!). Ela não dá um passo errado. Com o álbum/“app” de “Biophilia” não foi diferente.

Aliás, foi até melhor, porque esse passo foi para o futuro.

O refrão nosso de cada dia

“Deus”, The Sugarcubes – para retomar esta seção em “grande estilo”, chamo a própria Björk – mas em outra “encarnação”, quando ela ainda era de uma banda chamada The Sugarcubes. Eram os anos 80, e esses músicos com um som meio esquisito chamavam atenção primeiro por sua origem. Se hoje já é pouco comum você ouvir músicas da Islândia, imagine há quase trinta anos! Mas superada essa surpresa, você começava a prestar atenção à música em si – e ela era genial. Estranha e genial. Eu recomendo que você explore bastante esse passado de Björk – tenho certeza de que vai adorar. “Deus” é um bom começo. Não tem como não se encantar com a maneira que ela pronuncia essa palavra que é tão conhecida em português… Mas preste atenção na letra, pois não se trata exatamente de um hino de louvor ao Todo-poderoso…

Esperando Sr. Rose

seg, 03/10/11
por marcus.brasil |
categoria Todas

Último show do Rock in Rio 2011. Axl Rose está ligeiramente atrasado. Normal. Logo que cheguei à Cidade do Rock neste domingo, para a transmissão do último dia de festival, a notícia que corria era a de que ele havia perdido o voo de ontem, e que um avião fretado especialmente para ele já estava a caminho. Axl estava voando – literalmente – e só chegaria ao Rio no final da tarde. Normal. Por tudo isso, o horário do início do show do Guns N’Roses – o esperadíssimo “gran finale” do evento – atrasaria para bem depois do previsto, por volta da 1h da manhã. Normal, de novo. Se aprendi uma coisa nesses anos todos de rock n’roll é que as bandas realmente poderosas nunca entram no palco na hora combinada. E que Axl Rose só faz o que ele quer. Combinei esses dois “ensinamentos”, e resolvi relaxar.

Dei uma olhada na internet para passar o tempo, e a primeira notícia que vi foi a de que Rafinha Bastos está fora do programa “CQC” – pelo menos temporariamente. Hum. Penso no que escrevi no último post , penso em retomar o assunto, mas concluo que já disse tudo que queria dizer sobre o caso. Converso um pouco então com as pessoas da valiosa equipe que me acompanhou nessa jornada (entre o pessoal do jornalismo e outros colegas envolvidos na transmissão do próprio Rock in Rio, trabalhei diretamente com cerca de 20 pessoas – wow!) – e nosso assunto principal, claro, era o próprio festival.

Você pode até imaginar que depois de trabalhar por quase duas semanas mergulhado numa operação puxada (12 horas de trabalho por dia era o mínimo…), ninguém aguentaria mais falar de Rock in Rio, de banda, de show. Mas era justamente o contrário. Na expectativa de ver uma das maiores atrações de todo o evento – para refrescar sua memória, o Guns foi, assim como o System of a Down, uma das duas bandas escolhidas numa votação promovida pelo próprio festival como a que o público mais queria ver tocar por aqui – o que a gente conversava obsessivamente ali era sobre os próprios shows que a gente tinha visto durante essa (e uso a palavra com moderação) “maratona” de sete dias de música.

Como eu já podia prever, dificilmente havia um consenso sobre “o melhor show desse Rock in Rio”. Pela “temperatura” do público que esperava o Guns, alguém até poderia arriscar que essa sim seria finalmente a banda à qual todos se curvariam – ou não… A segurança a essa altura já assinalava que estava com sérios problemas – não só entre os fãs que já estavam dentro da Cidade do Rock, mas com alguns grupos que, numa investida inédita até então nessa edição do festival, tentavam se juntar à festa pulando as grades que cercavam o espaço oficial do evento. Sim, as coisas estavam tensas.

Mas como que para distrair o momento delicado, alguém grita: “Maroon 5! O melhor show desse Rock in Rio”. Mesmo? Comecei a pensar sobre o assunto, começando com minhas próprias impressões sobre essa performance. Sou um fã moderado da banda – e a culpa de eu não gostar mais dela não é de seus membros, que fazem uma combinação bem interessante entre o pop e o rock alternativo. Minha ligeira rejeição ao som do Maroon 5 deve-se, claro, à superexposição que essas mesmas músicas sofreram. O “preço da fama”? Talvez. Do que vi – e é bom lembrar que a maior parte dos shows eu vi enquanto trabalhava e/ou estava ocupado com algum detalhe da transmissão –, eles fizeram um show bem comportado, oferecendo exatamente aquilo que uma banda com a pretensão dela tem de melhor: a capacidade de fazer um público de 100 mil pessoas cantar suas músicas. Mas será que isso basta para ter o melhor show do evento?

Muita gente fez o mesmo que eles – e ainda mais. Lembrei de Ivete Sangalo na noite de sexta – com a diferença de que a baiana não se deu por satisfeita em ver todo mundo “apenas” fazendo coro para seus sucessos: ainda quis colocar todo mundo para dançar. E conseguiu! O que tem essa mulher? Já perdi a conta de quantos shows eu vi de Ivete – e não tem nenhum que eu fale depois: “é, esse foi mais ou menos”… Todos são enlouquecidamente animados, e o do Rock in Rio não foi exceção. Todas as pessoas ali estavam sob seu comando – e posso garantir que aqueles súditos estavam felizes de ver a soberana novamente no poder. A força era tanta, que bastou Ivete falar o nome de Shakira para que a expectativa para ver a estrela colombiana chegasse às alturas.

Shakira, que também fez uma apresentação animada – se tanto, um pouco menos calorosa do que as da sua mais recente passagem pelo Brasil, no primeiro semestre – retribuiu a gentileza chamando Ivete para cantar “País tropical” com ela no fim da noite. E foi então que todo mundo teve a certeza de que este Brasil aqui é o melhor lugar do mundo – pelo menos naquela madrugada. Assim como as outras parcerias e “colaborações” do festival, o público tinha naquela hora a sensação de estar presenciando um momento único. E era mesmo. Quem viu Janelle Monáe cantando com Stevie Wonder sabe do que eu estou falando…

Janelle – que, como eu comentei várias vezes, entrou naquele Palco Mundo, creio, com um punhado de fãs e saiu pelo menos com uns 80 mil novos admiradores – era a pura herança do grande mestre da música negra. Aliás, deixe-me colocar de outra maneira: “pura herança do grande mestre da música”! Vamos combinar que a genialidade de Stevie Wonder – um dos artistas que eu mais esperava ver ao vivo nesse festival (e não me decepcionei nem um pouco) – não é para ficar confinada em nenhum rótulo, certo? Quem segurou firme os longos números de Stevie e sua banda que, de vez em quando pareciam pura improvisação (e vai ver eram mesmo), foi premiado com uma sucessão de “hits” que contavam a própria história do pop. E foi genial.

Mas será que esse foi meu show favorito? Em algumas entrevistas informais que dei ao longo desses dias, eu brincava que uma das apresentações que eu mais tinha mais gostado era a do Slipknot. Por que? Ora, porque era uma banda que eu praticamente não conhecia, e que me fez ficar grudado em cada momento dela no palco! Rock in Rio é para essas coisas, não é? Para encher os olhos da gente. É para encher os nossos ouvidos também, claro, mas se os olhos ganharem um “presentinho”, tudo fica ainda mais interessante. E mais de um artista fez isso muito bem.

Kate Perry, por exemplo. Ela fez uma espécie de “noite de teatro de revista”, só que mais moderna. Cantou todos os sucessos, brincou o que quis com a platéia, e divertiu-se talvez mais do que ninguém naquele palco (ok, tem Ivete, mas vou arriscar um empate técnico!). E o mesmo vale para o Coldplay, com quem eu estava determinado a fazer as pazes… Leitores e leitoras frequentes deste espaço sabem que, tempos atrás, eu tive um “probleminha” com Chris Martin – episódio contado em detalhes no meu livro “De ah-a a U2”. Basicamente ele cancelou uma entrevista para qual eu fui até Los Angeles – ele disse que não apareceria na última hora, quando eu já estava lá! O “incidente”, claro, me fez perder um pouco o respeito pela banda – porém não por sua música. Enfim, para “apagar” esse passado, eu queria assistir à apresentação d o Coldplay “de coração aberto”. E fiquei feliz mesmo em ver um show que, desde seu momento inicial ganhou a platéia em todos os sentidos. Foi emocionante!

Aliás, eu poderia usar esse adjetivo para mais de um artista que passou por esse Rock in Rio. Foi emocionante ver Dinho, com décadas de estrada, ainda conseguir tocar um público desse tamanho. Por falar em veteranos, só a elegância de Frejat em chamar seu filho para tocar “Malandragem” (uma homenagem à Cássia Eller), também me emocionou. Pitty “mexeu” comigo quando fez um curto tributo ao Nirvana, cantando um trecho de “Smells like teen spirit” (e, de uma outra maneira, ela também me divertiu bastante: fiquei imaginando como seria se, durante uma das entradas ao vivo que fiz ontem no “Fantástico”, a música que estivesse de fundo fosse “Me adora” – mas eu divago…). A energia do Red Hot Chili Peppers não só me deixou emocionado – poxa, eu vejo os caras arrasarem no palco há pelo menos 20 anos! –, como também me fez acreditar que não existe prazo de validade para uma banda fazer a cabeça de uma platéia. Lenny Kravitz andando no meio daquela multidão meio que hipnotizado com a energia que ele mesmo havia levantado era também emocionante. Assim como Amy Lee, do Evanescence, sentada na frente daquele piano cantando “My immortal”. E, exageros à parte (algumas “rodinhas punk” extrapolavam um pouco a definição de “diversão”), a intensidade de cada música do System of a Down era até mais que emocionante: era eletrizante!

Nem tudo foi uma maravilha… Na primeira noite, o enorme atraso de Rihanna para entrar no palco ameaçava criar um padrão temerário para todo o festival. Jamiroquai, que já me divertiu horrores em outras ocasiões, fez uma apresentação sem novidades – e que acho que os próprios fãs estavam esperando um pouco mais. O Maná, apesar de ter emplacado alguns sucessos modestos no Brasil, não fez o barulho que prometia… Mas de resto, acho que ninguém duvida que o balanço foi positivo. Mesmo na opinião deste que já afirmou várias vezes que esse não era o Rock in Rio dos seus sonhos… E, acho que posso falar por todos que estavam à minha volta, e mesmo em nome daquela multidão que esperava Axl Rose entrar no palco para fechar o Rock in Rio 2011.

Chovia muito lá fora – chovia mesmo. Mas quem disse que isso fazia alguém desistir de estar ali? Afinal, não era ele, Axl, o mais desejado? O “mar de gente” só estava um pouco mais molhado – ou melhor, bem mais molhado. Mas o entusiasmo era o mesmo. O que aquele público todo nem desconfiava era que, naqueles longos momentos de espera, a própria possibilidade de o show não acontecer estava sendo negociada…

A certa altura a água era tanta, que invadiu bem o palco – trazendo problemas técnicos que dificultariam a apresentação. Como se isso não bastasse, chegavam rumores de que havia ocorrido uma confusão entre seguranças de Axl Rose e do próprio Rock in Rio. Dali a pouco, a “notícia” (não confirmada) era de que ele tinha resolvido pagar uma multa e não fazer mais o show. Mas aí a gente escutava alguém “esquentado” a bateria – ou então aquele som de microfone sendo testado. Já passava das 2h da manhã, e as informações eram as mais desencontradas – e confesso que dali em diante já não sabia mais se eu deveria torcer para ele finalmente começar a cantar ou ir embora correndo! Eu só imaginava o que poderia acontecer – a confusão, a bagunça, a loucura – caso o cancelamento fosse confirmado…

E então, depois de ter passado a limpo na minha memória todas as noites do festival, depois de ter vencido o cansaço em nome da minha paixão pela música, e depois de ter driblado todos os boletins desencontrados sobre o que estava para acontecer, Axl chega ao palco e solta aquela voz que eu e todas as cem mil pessoas que estavam ali reconheceríamos em qualquer lugar do mundo, e em qualquer época. Seria esse o melhor show de todo o festival? Eu já não tinha mais cabeça para pensar nisso. Só queria aproveitar aqueles últimos momentos e agradecer por ter tido a chance de conferir (e de tão perto) mais um Rock in Rio.

“Welcome to the jungle” – de fato!

(Caros, caras. Foram dias – ou melhor, foram noites e madrugadas muito intensas. Um sinal de que o tempo e a energia andavam apertados é a ausência, no último post e neste de hoje, do “refrão nosso de cada dia”. Mas você que já me conhece sabe que eu não gosto de fazer as coisas pela metade – assim, não queria simplesmente indicar uma música qualquer, só por obrigação. Vou retomar o “refrão” na segunda-feira da semana que vem. É… segunda. Acho que você vai entender se eu explicar que vou tirar uma pequena folga para descansar depois dessa, novamente, “ maratona” musical. Vou literalmente recarregar as energias, para voltar aqui na forma que você está sempre acostumado a me ler. Combinado? Boa semana!)



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