Enigma londrino
Analisando friamente, Amy Winehouse era uma artista de carreira modesta. Sim, modesta. Não fique indignado (ou indignada) com essa afirmação – não se trata de uma crítica nem de um comentário maldoso: é apenas uma constatação. Ao longo de sua carreira, ela nos presenteou com não mais do que dois álbuns, e um punhado de shows – se é que as pessoas que foram conferir suas performances mais recentes (incluindo essas do começo do ano pelo Brasil) podem classificar aqueles espetáculos desconcertantes como “shows”. Ofereceu também um bocado de confusão, mas vamos falar disso daqui a pouco para não perder o foco.
Pense nos outros grandes nomes da música que também deixaram seus fãs de uma maneira abrupta – ou estúpida, se você preferir. Jimi Hendrix – três álbuns de estúdio lançados em vida e uma série de concertos memoráveis (eu diria até históricos). O mesmo vale para a prolífica Janis Joplin. Kurt Cobain? Oficialmente só três de estúdio (mais alguns preciosos com gravações ao vivo) –, mas deixou também uma série de turnês incríveis, com shows que, apesar de quase sempre muito além do limite da sobriedade (qualquer pessoa que estava na mesmo noite de 1993 que eu, em São Paulo, quando ele, displicente e propositalmente, abria a calça para as câmeras que captavam o show para a TV aberta sabe do que eu estou falando), são registros memoráveis. O mesmo vale para Cássia Eller – guardadas as proporções da sua importância no cenário musical brasileiro, em comparação com os outros artistas citados. Antes de tudo, ela era um furacão no palco – com o perdão do clichê –, e não apenas em uma performance, mas em absolutamente todas! E não preciso aqui nem enumerar seu discos, parcerias, colaborações e outros improvisos mirabolantes. Quando digo que a carreira de Amy era modesta, estou fazendo esse tipo de comparação.
E é baseado nessa avaliação, que pergunto por que nos comovemos tanto com a morte de Amy?
“Comover”, talvez, não seja o melhor verbo para usar… O que quero entender é o barulho que sua ausência vem provocando desde sábado. Mas talvez “barulho” não seja a palavra ideal. Quem sabe se eu colocar assim: Por que nos importamos tanto com o desaparecimento de uma cantora que brilhou por tão pouco tempo no nosso imaginário? Você, tenho certeza, sabe de que inquietação estou falando…
Soube da morte de Amy Winehouse de uma maneira inesperada. Eu estava em Curitiba, na hora do almoço de sábado, descansando um pouco depois de uma manhã bastante intensa – quando conseguimos levar mais de 5 mil pessoas para caminhar conosco naquele desdobramento do projeto “Medida Certa”, que fizemos no “Fantástico”. Fazia hora para pegar o avião de volta ao Rio, quando uma colega da produção me ligou pedindo ideias para fazer alguma matéria sobre Amy Winehouse. Só isso. Minha primeira pergunta – quase que por reflexo – foi logo: “Ela morreu”?
Veja bem: em se tratando de uma artista popular como ela, eu poderia esperar qualquer tipo de notícia. Ela poderia ter anunciado que viria ao Rock in Rio, por exemplo. Ou quem sabe teria dado outro vexame federal numa apresentação numa pequena ex-república soviética. Dada a expectativa em torno de um novo disco seu, quem sabe algum material inédito tivesse vazado na internet… Ou quem sabe – como eu sou sempre otimista – ela tinha convocado uma grande entrevista coletiva para comunicar ao mundo que estava “limpa” – livre das bebidas e das drogas! Tudo isso era possível – e mereceria, talvez, uma menção no programa que apresento. Mas minha reação imediata foi supor que ela havia morrido. E – nem precisaria acrescentar – de uma complicação relacionada às bebidas e às drogas. Essa, muito provavelmente foi a sua reação também, quando alguém te perguntou (ou mandou uma mensagem de texto, ou te “tuitou”): “Você viu a Amy Winehouse?”.
É como se as pessoas – todos, inclusive eu e você – estivéssemos esperando isso dela. Sua morte “trágica” (aposto que esse adjetivo está sendo mais usado para descrever o que aconteceu com Amy do que “inesperada”) fosse apenas uma questão de tempo – um mero ponto final de um processo inevitável que ela já havia anunciando em episódios cada vez mais repetitivos, alardeados como crônicas bizarras pela imprensa. Sendo até um pouco atrevido, não duvido que houvesse até que torcesse secretamente para que isso acontecesse – pelos motivos mais confusos, desde a necessidade de preservar sua obra intacta (antes que ela começasse a oferecer discos medíocres em uma suposta carreira decadente), até pela mórbida obsessão de poder ler um obituário brilhante sobre uma artista que deixa o mundo no auge da sua carreira.
Bem, para aqueles que imaginavam (veladamente ou não), que sua morte traria um inevitável circo de mídia – bravo! Nas últimas 48 horas você tem um bom punhado de evidências de que foi isso mesmo que aconteceu (inclusive no próprio “Fantástico”). E foi vendo justamente esse “espetáculo” que eu comecei a me perguntar qual era o sentido de tudo aquilo. Por que a reação à morte de Amy foi tão histérica?
Uma hora depois de que soube do acontecido, eu já estava num frenesi de mensagens de texto, voz, ligações – e até whatsapp! Nacos de informação (a maioria deles distorcidos ou simplesmente “chutados”) ricocheteavam no meu celular com a velocidade quântica. E se alguém achava (como eu) que aquilo seria apenas uma reação inicial… O mesmo frege continuou por todo o fim de semana – e refletiu, inevitavelmente também, no interesse das pessoas em ver o “Fantástico” de ontem à noite. O que estava acontecendo?
Bem, a explicação mais fácil é uma que já foi discutida de várias maneiras aqui mesmo neste espaço – a de que as pessoas, de tempos em tempos, precisam de uma catarse coletiva. Nós gostamos de nos sentir “juntos” de todo mundo, dividindo um mesmo sentimento, seja ele o luto (Michael Jackson), a solidariedade (tsunamis, deslizamentos, enchentes), euforia (Copa do Mundo), ou mesmo uma falsa indignação (lembra da história de Ronaldo “Fenômeno” e um travesti?). Na morte súbita – porém, insisto, não inesperada – de Amy, tínhamos mais um conjunto de fatores perfeitos para que voltássemos a viver essa experiência. Ou “melhor”, dessa vez, foi possível compartilhar não apenas o luto, como também a falsa indignação (“aquela transgressora, mergulhada em álcool e drogas – viu o que aconteceu?”). Uma, digamos, “tempestade perfeita”.
Contudo, eu percebia que o sentimento que estava se espalhando não era exatamente genuíno. Diferente, por exemplo, da catarse provocada pela morte de Michael Jackson – um “evento” aliás, de proporções inigualáveis no mundo do pop -, o que as pessoas pareciam querer dividir não era um sentimento, mas apenas 140 caracteres (se tanto) de alarde duvidoso… O “barulho” que a morte de Amy Winehouse provocou, infelizmente, tinha muito pouco a ver com a sua arte – e seu inegável talento –, e quase nada a ver com uma ligação genuína que as pessoas tinham por ela. Não estou exatamente duvidando daqueles que realmente sofreram com a perda – que são, calculo, uma pequena fração dos que se manifestaram nesses dois últimos dias. Mas não posso deixar de questionar como sua morte teria repercutido se não vivêssemos uma era tão conectada. O que seria muito bom se essas conexões não fossem vazias…
Em muitas manchetes, mensagens, “twitts”, comentários, o que se via era um eco surdo de vozes que misturavam desinformações, clichês, pieguice, elogios – e até mesmo a tentativa de ser engraçadinho (uma fraqueza da qual eu mesmo fui vítima quando, no sábado, enquanto comentava sobre Amy na Globo News, sugeri que a causa de sua morte só seria uma surpresa se o laudo constatasse uma overdose de chá de camomila…). Mas onde estava o verdadeiro reconhecimento de uma das artistas mais poderosas e enlouquecidas do nosso tempo?
Como escrevi logo no início, a carreira de Amy foi relativamente curta – ainda mais se comparada a outros ídolos da música que partiram em circunstâncias parecidas e são venerados (e velados) até hoje. Mas a reação à notícia de sua morte foi tão grande que eu arriscaria até a dizer que foi desproporcional com relação ao seu legado – a não ser pelo fato de que… ela merecia tudo isso. Parece confuso? Explico.
Como qualquer pessoa que gosta de música como eu já percebeu, minha cutucada sobre a brevidade da carreira de Amy não passa de uma provocação. Quando um artista é revolucionário, não importa se ele ou ela deixou um, dois, três, vinte discos – ou vinte livros, trinta peças, quarenta filmes, cem quadros (pense em Baudelaire, James Dean, Mamonas Assassinas, Sid Vicious, Hélio Oiticica, Yves Klein, Noel Rosa). O que devemos sempre lamentar é o fato de que ele ou ela nos deixou com a promessa de que muitos outros trabalhos interessantes poderiam ser produzidos.
Amy deveria sim ter recebido todas essas homenagens que recebeu – e as que ainda receberá! Centenas de cantoras, músicos, artistas e “performers” vão beber por gerações na sua fonte – e com certeza sonham em um dia poder criar (ou mesmo superar) o sacode que ela deu no mundo do pop. Mas será que todo mundo que soltou um comentário tolo sobre sua morte reconhece esse talento artístico – esse legado? Creio que não… mas espero quem sim!
Justamente pela enorme poeira que se levantou – e que ainda está baixando –, só vamos entender daqui a algum tempo o registro que Amy Winehouse e sua música vai deixar na nossa memória. Eu, por aqui, torço sempre para que a música vença, e para que todo esse “ruído” em torno de sua vida, sua decadência, seu instinto autodestrutivo, seu “mau exemplo” – e até mesmo a ridícula “glamurização” disso tudo –, não vá além do oportunismo imediato de quem quer chamar atenção por alguns segundos (e pegar carona no brilho dos outros…).
Fico com suas músicas, com sua triste aparição nos palcos brasileiros, com as entranhas expostas nas letras de suas canções, com a possibilidade de salvação pela arte que todo seu trabalho sugere. Os “gritinhos histéricos” daqui a pouco vão embora e vamos ouvir Amy cada vez com mais atenção – e reverência. É até bem provável que vejamos, ainda este ano, um álbum seu cheio de material inédito – e, quem sabe, surpreendente. Mas mesmo que essas faixas nunca apareçam (o que é quase impossível quando a gente pensa nas forças de marketing que movem tudo hoje em dia – preciso novamente citar Michael Jackson?), ou mesmo que elas venham e estejam aquém de tudo que ela já nos ofereceu, a lembrança que vai ficar é de uma artista maior.
E que, ainda que de uma maneira involuntária, viveu seus dias finais exatamente como o “último desejo” que cantava no refrão de seu maior sucesso: “not going back to rehab”…
O refrão nosso de cada dia
“More more more”, Carmel – para celebrar uma cantora como Amy Winehouse, vou convocar um outra voz poderosa – que por razões que o próprio pop reconhece, nunca teve o reconhecimento que merecia. Carmel é uma inglesa que fez algum sucesso em meados dos anos 80 (sua capa na extinta revista influente “The Face” é uma das imagens icônicas daquela década) – mas um sucesso moderado. Vivo torcendo para que alguém a redescubra – quem sabe este não é o momento? O repertório de Carmel não ficaria muito fora de tom na interpretação da própria Amy – e por isso fiz essa escolha. Especialmente da música (entre tantas ótimas que Carmel gravou), que é bem para cima, para celebrar uma artista que nos deixou, mas de quem sempre a gente vai querer “mais mais mais”. Viva Amy! (e viva Carmel!)
Jogue a culpa na Lady Gaga, se quiser. Ou mesmo em Amy Winehouse. Mas eu acho que o mundo agora está precisando de uma Adele. Isso mesmo. Para dar uma equilibrada. Para que as coisas voltem a fazer sentido – para logo em seguida deixarem de fazer sentido de novo. Adele chegou no momento certo. E com a voz certa – ainda que nem sempre com a música certa.
Eu tive de escrever sobre Adele hoje. Não dava mais para segurar. Fora os pedidos de várias pessoas que passaram por aqui deixando comentários, há a pressão dos amigos pessoais, encantados com o talento de Adele – e com o carisma que ela demonstra. Talvez justamente por causa desse frisson todo, eu tinha desenvolvido uma certa resistência. Até uma teimosia – se você preferir. Até que não deu mais: resolvi ouvir Adele com atenção e… me surpreendi.
Eu esperava algo bem mais previsível. Pelo que tinham me contado – e pelo que eu havia ouvido esporadicamente no rádio e na internet – minha expectativa era que Adele fosse uma cantora mais convencional. Já sabia que sua voz era algo especial – mas não são poucas as cantoras de vozes excepcionais que, ao longo de um repertório maior, acabam decepcionando. O que eu não podia esperar é que eu ficasse tão envolvido com o universo de suas canções – nem tão hipnotizado por sua maneira de cantar. Eu achei que enjoaria de suas músicas logo na primeira vez que as ouvisse – que eu escutaria com atenção, mas com uma distância profissional, que me permitisse apenas assimilar informações para poder escrever sobre ela neste espaço. Bem feito para mim! Adele é muito mais do que todos os pré-julgamentos que eu pudesse fazer somados. Se ela é a nova musa do pop, ela merece. E eu agora, humildemente, vou tentar explicar o porquê.
Fui apresentado então oficialmente à cantora pelo seu segundo disco, “21″. Mas não comecei a ouvi-lo por “Rolling in the deep” – seu maior sucesso até agora, aliás, um dos maiores sucessos internacionais de 2011. Adepto inveterado do “shuffle” (a tecla que permite que você ouça as músicas em ordem aleatória), deixei que o destino escolhesse – e logo veio “He won’t go”. Com a impaciência que os sucessos de rádio recentes nos ensinaram a ter, achei que a música estava demorando para começar… Uma impressão, claro, contaminada por essa nova necessidade de que uma música agrade logo nos primeiros sete segundos (pense em “Single ladies”, de Beyoncé). Porém, em pouco mais de um minuto, eu já estava embalado pela voz de Adele – e se não instantaneamente apaixonado por sua voz, no mínimo tentado a ouvir mais.
Logo em seguida veio “Turning tables”. Hum. Mais uma vez, achei que a introdução colaborava para esfriar o clima entre eu e ela… Até que, novamente, o refrão vem num crescente, com uma levada irresistível – e eu era obrigado a admitir, mais uma vez, que ali havia alguma coisa maior, que eu não estava perdendo meu tempo procurando naquele álbum por algo maior. Essa ainda não era uma faixa impecável, aquela que poderia me ajudar a entender o sucesso todo de Adele, mas servia, com toda sua carga emocional, para abrir meus ouvidos para o que viesse a seguir. E aí foi a vez de “Rumour has it”.
Ali sim, descobri uma faixa mais interessante. Fortemente calcada num “soul” dos anos 60 (mais sobre isso daqui a pouco), mas que tinha algo especial, diferente – uma batida ótima, um arranjo bem sofisticado, uma letra interessante, um convite para dançar… ah, e aquela voz! Ao repetir o título da música, Adele parecia transformar aquilo num mantra – e eu já estava totalmente hipnotizado, até que ela parou tudo e para fazer um interlúdio sensacional. O tal “mantra” voltaria logo, e seguiria até o final. Mas foi aquela paradinha que me ganhou, definitivamente. E enquanto eu ainda me recuperava de “Rumour”, o iPod seleciona “Take it all”, com seu começo seco, apenas com a voz – e o piano correndo lá atrás. O que era aquilo? Um “gospel” revisitado? Um “R&B” modernizado? Uma demonstração de suas capacidades vocais? Ou simplesmente uma linda canção para quem acaba de terminar um namoro? Melhor assinalar “todas as opções anteriores”!
Estranhamente comecei a pensar em Moby. Sim, Moby – em especial no seu álbum “18″ (a meu ver, bem superior do que aquele que o catapultou para a fama universal, “Play”). Um dos méritos desse disco – que eu coloco na lista dos 100 melhores dessa primeira década do século 21 sem pestanejar – é a escolha sofisticada dos gospels que Moby “sampleou”. E ao ouvir “Take it all”, pensei automaticamente que ele poderia fazer um remix poderoso da música. Mas antes mesmo que eu terminasse de imaginar como seria esse encontro de talentos, veio a faixa seguinte – e algo ainda mais estranho aconteceu: eu tive a certeza de que meu iPod estava lendo meu pensamento, já que a introdução da música escolhida (justamente “Rolling in the deep”) era muito, mas muito parecida com uma conhecida faixa de Moby, “Natural blues”! Quem estava brincando comigo – minha memória ou a própria Adele?
Minha memória, claro! Adele não está aqui de brincadeira – e nem, para os desavisados, de uma hora para outra. “21″, como todo fã sabe bem, é seu segundo disco. O primeiro chama-se “19″ e, desde o seu lançamento em 2008, já vinha provocando elogios (e conquistando alguns prêmios). É um disco bom também, mas “21″ é superior: mais bem produzido, com músicas mais bem acabadas – um conjunto mais sólido. Tão sólido quanto à própria imagem de Adele – que, como eu sugeri do começo do texto de hoje, não poderia ser mais diferente – no que diz respeito ao seu estilo – do que Lady Gaga e Amy Winehouse.
Não preciso aqui repetir minha admiração enorme por essas duas artistas – já celebradas aqui em mais de um post (é só procurar!). Mas junto de suas composições impecáveis e performances mirabolantes, elas traziam também minirrevoluções visuais – e às vezes até de comportamento. Nada contra – aliás, é por isso mesmo que nos apaixonamos tanto por elas. Mas Adele surge justamente no vácuo das duas, como um antídoto para os exageros que Gaga e Amy derramam sobre seu público. Seu negócio é simplesmente cantar – soltar aqueles pulmões. Sua mensagem raramente extravasa a do amor (e da falta dele). Seu visual é elegante, mas conservador – quase “retrô”. E quanto às transgressões – um assunto que as duas outras têm PHD – o máximo que eu consegui achar no currículo de Adele (isto é, na sua página na wikipédia) é que ela, ainda menina, gostava de citar as Spice Girls como sua maior influência. Inofensivo, não?
Mas vai ver é essa estrela que o pop estava precisando agora – nem que fosse para dar uma pausa na loucura. Com seu talento, carisma, e voz, Adele conseguiu o que só Susan Boyle, na minha lembrança, havia feito recentemente: galvanizar gerações em torno da música – só que com um “conjunto de obra” bem mais interessante! Experimente apresentar a cantora para sua tia mais velha – tipo assim, da minha idade… Ela vai gostar. A mãe dela, também. Você gosta. E tenho certeza de que, se bem apresentada, até seus filhos vão curtir. Pois se tem uma coisa que nosso cérebro é programado para gostar, é de boa música.
Seu repertório – como também esbocei ali no primeiro parágrafo de hoje – talvez não seja dos mais frescos. Como bem observou Simon Reynolds (num artigo recente do jornal “The New York Times”), tudo em “Rolling in the deep” – sua melodia, as letras, a interpretação de Adele, seu timbre, o papel dos ‘backing vocals’ – aponta para a era de ouro perdida de cantoras ‘soul’ como Etta James e Dusty Springfield”. As baladas, às vezes, podem parecer tão derivativas como se tivessem saído do “songbook” de Dionne Warwick, ou mesmo de Celine Dion. Mas qual o problema de ela pegar tudo isso e resolver dar uma nova roupagem?
A própria Amy Winehouse fez toda uma carreira em cima de um som que a gente pode facilmente classificar de nostálgico. E Gaga (intencionalmente ou não) esbanja “tributos” a seus ídolos pop – de Elton John a, hum, Madonna. Então deixa a Adele vir com mais daquilo que ela sabe fazer bem feito: transformar as canções (e até mesmo todo um gênero musical) com a sua voz.
É isso que ela tem de especial – ou, pelo menos é isso que a gente percebe facilmente que ela tem de especial. Junto com esse seu instrumento, Adele nos conquista com vários outros talentos que, se eu começasse a descrever aqui, esbarraria certamente em um monte de clichês. Por isso, peço sua ajuda, fã de Adele – e eu sei que não são poucos…
Além do que eu já listei hoje aqui, pergunto: o que (mais) que a Adele tem?
O refrão nosso de cada dia
“Mjaðmir”, Prinspóló – nem tudo de bom que vem da Islândia chama-se Björk. Calma – eu também sou devoto da cantora e mal posso esperar pelo seu próximo álbum que sai em setembro, parece. Mas é que às vezes eu acho que ela acaba “sugando” todas as atenções musicais daquele pequeno, mas musicalmente rico, país. A lista de bandas de lá que eu gosto é grande: Múm, Sigur Rós, FM Belfast, e a própria Skakkamanage – de onde saiu Svavar Pétur Eysteinsson. Svavar (repita esse nome várias vezes e veja que delícia que é pronunciá-lo!) é o próprio Prinspóló, que eu cruzei numa prateleira de uma loja alternativa de CDs em Paris, há poucos dias. Estou aqui me segurando para não fazer desde já uma prévia dos “melhores discos de 2011 que você não ouviu” – só para satisfazer a vontade de tornar “Jukk”, o álbum de estréia de Prinspóló, mais conhecido para meus nobres leitores… Mas isso vai ter que esperar mesmo até dezembro. Tudo que posso adiantar agora é essa faixa – cujo título é escrito daquele jeito mesmo, com uma espécie de “d” cortado em cima (e significa “quadris”). E que é genial. O refrão mesmo é só um suspiro – e a música só começa mesmo depois de um minuto e 45 segundos. Mas é sensacional. Prinspóló é um nome a descobrir.
Foi como se alguém tivesse jogado um “Impedimenta!” sobre mim… Como muitos que passaram por aqui (e deixaram seu comentário sobre o vazio que Harry Potter vai deixar depois do último filme) já previam, eu não consegui ver “Harry Potter e as relíquias da morte – parte 2” durante o último fim-de-semana. Sessões lotadas – e uma rotina de trabalho deveras ocupada – fizeram com que as esperanças de que eu escrevesse sobre o “evento cinematográfico do ano” ontem fossem totalmente frustradas. Minha expectativa era imensa – não só pela curiosidade geral que sempre orienta este espaço (e este que o assina), mas também pela atmosfera criada pelas dezenas (centenas!) de comentários para meu último post, onde eu pedia para as pessoas descreverem o que estavam sentindo com a chegada do derradeiro episódio da saga (mais sobre isso daqui a pouco).
Assim, tive de esperar o “meu domingo” chegar – isto é, a segunda-feira. E mesmo assim não foi fácil… Primeiro, eu queria assistir à versão em 3D – mesmo desaconselhado por vários amigos que insistiam que seria uma perda de tempo (que a versão tridimensional não acrescentaria nada à emoção desse último Potter). As escolhas de salas de cinema, porém, não ajudavam – eram poucas e distantes de onde eu moro em São Paulo (será que os exibidores, passada a febre do ano passado, estão desistindo do formato?). Então procurei uma sessão com o filme em 2D mesmo – mas nem por isso a tarefa ficou mais fácil. Esqueci que estamos no período de férias escolares – e que milhares de pais (e adolescentes que já conquistaram o direito de circular soltos por shopping centers) – estavam prontos para lotar as salas onde “Relíquias 2″ está em cartaz. A solução foi apelar para um daqueles fenômenos que fazem de São Paulo a cidade mais bizarra do mundo – do ponto de vista de consumo: o ingresso superfaturado numa sala VIP! Contando com a pipoca (sempre uma pechincha!), a água, e o estacionamento, quase R$ 70,00 foram gastos para ver as últimas aventuras do bruxo – e poder então escreve sobre isso hoje aqui. Valeu a pena? Pode apostar…
Eu já não esperava muito. Sou um admirador ávido de Harry Potter – mas menos pelo que sua história significou para mim (como já disse várias vezes aqui, a saga de “Guerra nas estrelas”, que se baseia no mesmo arquétipo do “menino órfão” que é o “escolhido” para vencer a batalha entre as forças do bem e do mal, falou muito mais com a minha geração), do que pelo incrível impacto que ele teve sobre a cultura pop mundial na última década. Assim, eu fui preparado para ver apenas o capítulo final de uma história fantástica, que por mérito de uma escritora fabulosa (J.K. Rowling) – e uma incrível campanha de marketing que soube muito bem aproveitar a magia que saía de todas aquelas varinhas -, já estava predestinado a emocionar milhões de espectadores em todo o mundo.
Há tempos eu já havia abandonado qualquer esperança de ver, nos filmes, a coerência da história bem construída por Rowling nos livros. A migração de Harry Potter para o cinema, como o mais dedicado fã do bruxo há de concordar, trouxe inevitáveis perdas à história original. Não estou tirando o valor da série de filmes – quem sou eu para me atrever a questionar sua competência em fascinar os fãs do bruxo… e arrancar deles precisos ingressos! Mas é inegável que as adaptações eram para “iniciados”…
Isso não é um problema, como escreveu David Denby, com muita propriedade na “The New Yorker”: “Mesmo com os mais nobres esforços, os adultos ainda se perdiam entre as varinhas e espadas, medalhões, diademas, anéis, e gabinetes de curiosidades, mas a conversa fluente e infinita – de feitiços, poções, profecias, e destinos – era tagarelice tão segura e bem-humorada, que era impossível de ser ridicularizada”. Como o crítico, já nos três últimos filmes eu decidi me entregar à trama que via na tela sem muitos questionamentos, desmontando todos os obstáculos da compreensão racional para que eu pudesse aproveitar, em tom maior, e embalado por pura fantasia, todo o poder e o carisma de Harry Potter.
Se eu quisesse ser chato, eu poderia, por exemplo, pedir para alguém me explicar como, em “Relíquias 2″, a espada de Gryffindor desaparece, como por encanto dos braços do combalido goblin que ajudou Harry, Hermione e Rob a entrarem no “Banco Gringotts”, apenas para aparecer, já na batalha final, nas mão de Neville Longbottom, que não havia saído de Hogwarts. Mágica – suponho! Mas considerando que a espada é um instrumento ligeiramente crucial para destruir os “horcruxes” onde Voldemort depositou partes da sua alma (como diz o próprio Harry Potter no início de “Relíquias 2″, “it’s complicated” – “é complicado”), eu acho que este espectador que vos escreve, mesmo na qualidade de “trouxa-mor”, merecia uma explicação melhor de como isso aconteceu…
Mas, deixando essas “cartesianices” de lado, eu me diverti horrores. Fiquei realmente encantado de ver como Harry Potter adulto – ou melhor, “jovem adulto” – tornou-se um personagem ainda mais interessante. Posso entender perfeitamente a conexão imediata que a geração que começou a ler a saga por volta dos 13 anos de idade estabeleceu com o poderoso personagem. Quando ele surgiu na cultura popular, porém, eu já estava na casa do “trinta e muito” – e dificilmente poderia admitir que todo aquele universo falava comigo. Mais de uma década depois, porém, Potter transformou-se num herói bem mais interessante – ciente de seus poderes e de suas fraquezas, dividido entre sua missão maior (a de eliminar o “mal” do mundo) e o amor a seus amigos e a todos que os cercam, sabiamente hesitante diante das crescentes dificuldades que tem que atravessar. E foi o foco nesse Harry Potter que me fez esquecer os pequenos deslizes de lógica narrativa que “Relíquias 2″ não conseguiu evitar, e aproveitar o filme como… Bem, como uma criança de 13 anos, mas que hoje já tem mais de 20 e não quer que a saga acabe!!
Sabe de quem eu estou falando, não sabe? De você – é, você mesmo, que mandou um comentário para este blog, descrevendo a sua experiência de ter que finalmente encarar que a grande história que te acompanhou nesses último anos está chegando ao fim. Quando fiz esse convite, no último post, não podia imaginar que leria relatos tão profundos de transformação. Meu objetivo era bem menos emocional: queria simplesmente saber o que ficaria dessa vivência toda. Imaginei que boa parte dos fãs adolescentes de Harry – e hoje já “jovens adultos” também – teriam a maturidade para assimilar tudo o que absorveram nessa década pela imaginação de Rowling e tocariam suas vidas com uma doce lembrança de um “período muito louco” de sua adolescência, onde tudo o que faziam era orientado pelos ensinamentos de uma escola bem distante chamada Hogwarts! Mais ou menos como se um cara da minha idade hoje assistisse novamente a “Os embalos de sábado à noite”, olhasse para trás e dissesse: “Nossa, que loucura!”. Mas não…
Os relatos que chegaram foram tão poderosos, que me emocionaram. Percebi que a relação da maioria das pessoas com Harry Potter não é apenas de uma referência cultural, mas de vida! O nível de detalhes que muitos dos relatos continham era impressionante! Não só da primeira vez que entraram em contato com o “Harry Potter e a pedra filosofal” – o que, para muitos, significou o primeiro contato com um livro “de verdade”, e a primeira (e promissora) porta de entrada para o mundo da literatura (um feito que, por si só, pelo menos para mim, já é motivo para a canonização, em vida de J.K. Rowling). Mas de como o personagem acompanhou as pessoas nas suas descobertas justamente desse período da vida em que elas são geralmente mais férteis – dos 13 aos 20 anos.
Namoros, decepções amorosas, independência da família, primeiro emprego, desafios profissionais, viagens, amizades, sexo, escolha de carreira, gravidez, baladas, experiências espirituais – eu sei, tem muita coisa acontecendo nesse período. É impossível ficar imune a isso tudo. E o que me fez esboçar um sorriso em vários comentários que li foi justamente essa sensação de que as pessoas não tiveram de enfrentar isso sozinhas – que Harry Potter (e todo seu universo e seus ensinamentos) estava do lado delas. Mais legal ainda: todos querem passar toda essa vivência para uma futura geração! Foi delicioso ver que uma parte considerável das pessoas que escreveram para cá já tinham filhos (algo que nem sonhavam, talvez, quando começaram a ler “Harry Potter”) e que estavam muito a fim de “levar a magia adiante” com a geração que acaba de chegar. Mas mesmo quem ainda não tinha uma criança para quem direcionar todo esse encanto acumulado de anos de histórias do bruxo mostrou-se mais do que disposto a não encarar “Relíquias 2″ como um fim… O que, aliás, não é mesmo…
Voltando ao filme, depois de tanta destruição – e põe destruição nisso (aquelas varinhas devem ter trabalhado muito para recolocar Hogwarts de pé!) – o que se via nas telas era uma mensagem de continuidade. (Por favor, não me venha com aquele ramerrão sobre “spoiler”, pois se você está lendo isso até aqui é porque já sabe de tudo que aconteceu nesse episódio final!). Quando na tela aparece “19 anos depois”, mesmo sem ver ainda os personagens envelhecidos (aliás, tão bem envelhecidos que você quase esquece que um dia os conheceu como crianças), sua sensação é de continuidade – mais ainda: de que o “bem” venceu e é isso que vai levar o mundo adiante.
Os filhos de Harry e Ginny, e de Ron e Hermione, entram pela mágica plataforma 9 3/4 para pegar o primeiro trem para Hogwarts – e você não consegue fazer outra coisa que não sorrir… Depois de uma montanha-russa de emoções – que, no meu caso, inclui a própria montanha-russa dos cofres do “Banco Gringotts”, o voo dos nossos heróis num dragão branco sobre Londres (que nos permite até uma curiosa visão do Rio Tâmisa, com a roda-gigante London Eye), Minerva McGonagall (a incomparável Maggie Smith) dizendo que sempre quis usar o feitiço de fazer os soldados de pedra da escola irem para a luta, o plácido encontro de Harry com Dumbledore, e o próprio confronto final -, enfim, depois de tudo isso, “Harry Potter e as relíquias da morte – parte 2″ termina cheio de esperança.
Não de que a saga vai continuar – mesmo com a promessa de que uma nova geração de bruxinhos vai entrar em período letivo e pode enfrentar novos desafios, estou confiante de que J.K. Rowling, se voltar mesmo a escrever algum dia, vai enveredar por outros caminhos que não os de Potter. Mas de que sempre vamos ser capazes de descobrir – como autores ou como meros leitores (e espectadores) – histórias tão fascinantes como essa para nos fazer sonhar. Isso – e não Voldemort – que é duro de matar. Ainda bem…
O refrão nosso de cada dia
“Funny how love is”, Fine Young Cannibals – se você já ouviu falar de Fine Young Cannibals, é porque um dia já ouviu o mega sucesso mundial “She drives me crazy”. O que é uma pena, porque essa nem é a melhor música deles. Em meados dos anos 80, esse grupo apareceu ancorado pela mais que improvável voz de Roland Gift. É simplesmente um dos “conjuntos de obra” mais consistentes que já apareceram no mundo do pop. Experimentando com vários estilos – de versões de Elvis (a impecável “Suspicious minds”) a salsa eletrônica (a brilhante “Johnny come home”) – eles conseguiram, na sua breve carreira (dois álbuns apenas!) deixar um sólido legado. Literalmente tudo que eles gravaram é sensacional – e tive que me dividir para escolher que música usaria aqui para apresentar o FYC (como também eram chamados) para uma geração que não os conhecia. Quase optei por “I’m not the man I used to be” – que é minha favorita. Mas o refrão de “Funny how love is” é mais poderoso – e destruidor. E esse espaço aqui, afinal de contas, é para celebrar os bons refrões (mas não a destruição… especialmente as de um coração!). Então aproveite!
Está no ar – você também não está sentindo? Está nos sussurros dos fãs, nos pôsteres nas ruas, nos trailers na tela do computador, em capas de revista, nas matérias que você vê na internet. Chegou o momento, e a expectativa está insuportável. Será que você vai aguentar?
Não estou falando, claro, da tão esperada experiência de ver o derradeiro filme de Harry Potter – a parte 2 de “As relíquias da morte”, que estreia amanhã no mundo inteiro. Essa, digamos, emoção, a gente já pode prever com precisão como será. Como já acontece desde a adaptação do primeiro livro para o cinema, “Harry Potter e a pedra filosofal”, os fãs já sabem praticamente tudo que vão ver – e o que vão sentir. Isso eu já observei aqui desde que as primeiras vezes que escrevi sobre esse assunto: o que importa mesmo em toda a saga é menos o prazer da leitura (tampouco o de apreciar um filme por suas qualidades essencialmente cinematográficas), e mais o afã de viver esse fenômeno cultural – ser parte dele, dos sonhos, da força, dos valores e de todas as emoções que ele provoca. A isso, dá-se o nome geralmente de catarse – mas não quero entrar muito isso e assustar o fã (ou a fã) de Potter que eventualmente consegui trazer até aqui na sua leitura, e quero que me acompanhe até o final deste breve post (pelo menos para os meus parâmetros normais).
O que quero dizer é que essa experiência é legítima e bela. Harry Potter & Cia (pelas mãos da autora J.K. Rowling, claro) galvanizou toda uma geração, criou um elo fortíssimo entre jovens (e muitos adultos) de todo o mundo, e reinstalou o imaginário fantástico no cenário cultural pop universal como nunca havia acontecido, talvez, desde “E.T.” – o filme de Steven Spielberg, de 1982. Mas não é disso que eu quero falar hoje. Todo esse frisson já está pré-programado. Eu mesmo, que sou um fã bissexto da saga, sei exatamente como vou me comportar na “despedida” da série do cinema (pretendo assistir a “Relíquias 2″ este fim-de-semana, para escrever sobre isso já na segunda-feira – se eu conseguir um ingresso!). Comentar sobre isso seria, hum, “falar para convertidos”.
Não. O que estou mais preocupado é com o que vai acontecer depois que você assistir ao filme. Muitos, claro, simplesmente vão vê-lo uma segunda vez. Ou terceira. Provavelmente uma quarta também. Mas, e depois? Como será que os admiradores do mago vão sobreviver ao choque de se verem órfãos pela segunda vez? A primeira, claro, foi em 2007, quando Rowling colocou um ponto final na sua história – ponto este que, felizmente, em nome de sua integridade artística, ela até agora não deu sinais de que vai deixar de honrar, ressuscitando seu adorado personagem por um torpe motivo vil ($).
Mas mesmo o leitor, ou a leitora, que virou a última página de “Relíquias” naquela época sabia que teria sua diversão prolongada por uns bons três anos, até que todos os livros fossem adaptados para o cinema. Quando veio o anúncio de que esse último volume seria dividido em duas partes na grande tela, esse ano de “sobrevida” foi comemorado como um cantil que chega a alguém perdido no deserto. Só que agora não há mais onde se agarrar: acabou a ilusão – e não há feitiço (nem um improvável “ressuscitarmus”!) que possa estender as aventuras do nosso herói.
Não falo isso com escárnio – aliás, juro que não há um pingo de ironia. Sei o que é querer mais de um ídolo e não ter onde “beber”. Comigo foi assim, por exemplo, quando esgotei todos os títulos possíveis de Agatha Christie, ou quando li o último volume de “As aventuras de Tintin” (que, ironicamente devem ser ressuscitadas até o fim do ano pelas mãos do próprio Spielberg). Ou quando assisti ao último filme da primeira trilogia de “Guerra nas estrelas”. Esticando um pouco a ideia, posso confessar até que achei que o mundo iria acabar quando ouvi o derradeiro álbum dos Smiths – e não estou apenas usando a expressão como figura de linguagem. Pottermaníaco, Pottermaníaca, eu me preocupo com a sua dor. Tanto que gostaria de entendê-la melhor – por isso faço uma proposta.
Não sei se vai dar muito certo porque, imagino, alguns fãs que passaram por aqui pela primeira vez atraídos pelo título do post de hoje já devem ter se dispersado – como disse que temia lá no início. Devem ter pensado que meus volteios eram críticas disfarçadas à saga (não são!). Mesmo quem já participou de debates aqui sobre o assunto – e sabe que, apesar de alguns percalços, eu hoje fiz as pazes com Harry Potter -, pode estar desconfiado do convite que eu vou fazer hoje, com medo de que seja apenas uma armadilha (digna de um assecla de Voldemort). Mas posso garantir que minhas intenções são as mais puras: eu realmente, enquanto curioso de cultura pop, quero entender o que significa, para uma legião de admiradores, o fim de uma história poderosa como a de Harry Potter.
Minha curiosidade foi inspirada por um link que recebi com imagens dos atores principais dos filmes na época do lançamento de “Pedra filosofal” e hoje, nos eventos para promover “Relíquias 2″ (existem vários desses links assim). Nossa! Como eles cresceram. São verdadeiros adultos! Emma Watson (Hermione), nem preciso falar – transformou-se numa “bomshell”, e é provavelmente a mais forte candidata, entre o trio inicial de amigos de Hogwarts, a ter uma excepcional carreira no cinema. Rupert Grint (Ron), apesar do sorriso perenemente de um moleque de 15 anos, é um homem! E Daniel Radcliff (o próprio Harry), apesar de suas estranhas feições faciais que parecem não querer se definir ainda entre a adolescência e a idade adulta, está longe daquela primeira imagem angelical que o apresentou ao mundo.
Depois de ver o filme, espero, vou comentar um pouco mais sobre isso. Mas o que quero dizer agora é que, se essa transformação aconteceu com os atores, certamente aconteceu também com os fãs. O garoto ou a menina que tinha 13 anos em 2001 agora é um adulto (ou uma adulta) – e como será sua visão desses anos todos em que acompanhou o pequeno bruxo? Terá valido a pena? A magia daquela primeira leitura (ou da primeira sessão de cinema) que te colocou em contato com essa história poderosa fortaleceu-se com o tempo? Ficou um pouco mais frouxa? Está gravada para sempre na sua memória? Vai ser levada adiante para seus filhos e filhas? (Não é difícil imaginar que quem conheceu Potter há mais de uma década, aos 13 anos, já é mãe ou pai). Enfim, mesmo antes de ver este último filme, “Harry Potter e as relíquias da morte – Parte 2″, qual o rescaldo dessa aventura toda? Depois da batalha final – e do beijo final (e não me venha com essa de “spoiler” porque você já conhece a história que vai ver no cinema de cor e salteado!) -, o que fica na lembrança?
Um enorme vazio? Um presente para sempre? Ou simplesmente você vai atrás de outras sensações – que nunca estão em falta no universo pop. Depois de “Relíquias 2″, você vai sair cantando “I will always love you”? Ou “Beijo, me liga? Estou, honestamente, louco para saber…
O refrão nosso de cada dia
“Jolene”, Dolly Parton – que ninguém diga que este espaço não é eclético. Hoje proponho aqui um dos refrões mais emocionados que já ouvi – e que vem de um sucesso “country”. Pela voz encantada da diva maior do gênero, claro, Dolly Parton. Em nome da transparência, devo dizer que não conheci essa música através dela, mas de uma dupla de inglesas enlouquecidas dos anos 80, chamada Strawberry Switchblade – numa bizarra versão “synthpop”. Depois é que fui na original – e me apaixonei mais ainda. Conheci depois várias outras versões (inclusive uma interessante do White Stripes). Mas a de Dolly continua insuperável.
Foi com uma certa decepção que reparei que o plástico que envolvia o CD estava ligeiramente rasgado. Isso sempre acontece quando levo um disco no bolso. O que, por sua vez, sempre acontece quando viajo. Por uma tola superstição, quando saio do Brasil, e compro CDs, aqueles que mais quero ouvir eu não despacho na mala. Vão direto comigo, junto ao corpo – como se dessa proximidade dependesse a probabilidade de eles chegarem ao Brasil. Um hábito atávico, talvez, que vem dos tempos em que nossas bagagens eram sumariamente “bolinadas” no trajeto de uma viagem transatlântica ao Brasil. Essa preocupação, com a intensificação das viagens e a melhoria da qualidade do serviço nos aeroportos, tornou-se quase irrelevante – mas eu continuo firme no propósito de deixar os CDs mais “preciosos” bem perto de mim. Com esse do WU LYF não foi diferente.
“Go tell fire to the mountain” era um dos discos mais esperados do ano – pelo simples fato de que a banda por trás dele, WU LYF é um enorme mistério. Um enorme e calculado mistério. Desde o início de 2010, na sempre terrorista imprensa musical inglesa (incluindo aqui os fanzines virtuais), muito barulho se fazia em cima dessa banda de Manchester, Inglaterra, cujo grande charme era justamente não falar nada sobre si mesma. Os shows deles eram sempre “surpresas”, anunciados no boca a boca – e, com isso, claro, criavam uma enorme expectativa. Ninguém sabia muito sobre a banda – e mesmo até hoje, ninguém sabe direito quem são esses caras. No máximo, já dá para entender que o nome deles é uma abreviação de World Unite Lucifer Youth Foundation (“Fundação Juventude Lucifer do Mundo Unido” – numa tradução bem apressada). Que eles são, claro, de Manchester. Que gravaram seu primeiro álbum ao vivo, em uma igreja (Saint Peter). E que o som deles é genial.
Com toda essa informação, você pode entender a excitação com que eu peguei o CD do WU LYF hoje de manhã, recém-tirado do casaco que usava numa rapidisíssima viagem ao exterior esta semana. Abrir o plástico que envolvia “Go tell fire to the mountain” era uma ação com um componente quase erótico que só quem desenvolveu, como eu, um fetiche por esse objeto chamado CD pode entender. Há o estalar do próprio plástico; o primeiro contato com a superfície áspera da capa do disco (que, nesse caso, como em muitos, não vem em uma genérica embalagem de acrílico transparente, mas num elaborado livreto com pinta de “arte”); o sensual cheiro de páginas de um encarte folheadas pela primeira vez; o estalar na hora da primeira retirada do CD do seu encaixe, com leve relutância, como um parto que não contava com uma ligeira complicação; a surpresa de uma imagem inusitada estampada na superfície do disco (em “Go tell fire”, uma curiosa pintura de um homem sorrindo à beira de um lago); o sutil ruído do próprio CD sendo processado no seu aparelho antes de ele oferecer os primeiros acordes da faixa de abertura.
Há anos repito esse processo – mais precisamente desde 1985, quando comprei meu primeiro CD (que, apenas para registro, foi um do Eurythmics, “Be yourself tonight”). Porém, não sei por quantos anos mais vou poder repetir esse ritual. Não sei nem se devo contar esse tempo que me resta em anos – quem sabe em meses. A música digital é uma realidade tão presente, que seria, no mínimo, tacanho apresentá-la aqui como novidade. Porém, amantes da música em sua forma “física” – muitas delas, eu sei, só possíveis de ser absorvidas por um público mais jovem através da Wikipédia (procure por “vinil” ou “fita cassete”) – há anos fingem que ela não está nos seus últimos dias. Mega lojas de CDs já não existem há um bom tempo (com raríssimas exceções) – e os poucos redutos “independentes” raspam o tacho para sobreviver, enquanto fazem uma lenta e relutante transição para o comércio inteiramente virtual. Não só no Brasil, mas também pelas grandes cidades por onde passo com certa frequência (Londres, Paris, Buenos Aires, Nova York), os endereços onde você pode comprar um CD são cada vez mais escassos – e mesmos aqueles estabelecimentos teimosos, cujos donos só continuam abertos por pura paixão, estão cada vez mais vazios (isto é, visitados apenas por mim e um ou dois turistas asiáticos de passagem pela mesma cidade).
O fim é inevitável – mas seguimos cegamente negando esse desfecho, como se uma grande (e improvável) reviravolta faria as pessoas finalmente reconhecerem o valor de um produto físico que contém algo intangível: uma invenção divina chamada “música”. Acuados, tentamos buscar conforto em outros gurus da música que, vez por outra, escrevem exatamente o que queremos ler: que o dia do “juízo final”, quando a última loja de CD finalmente vender seu último exemplar e fechar suas portas para sempre, não vai chegar.
Um dos caras que eu sempre achei que estavam do meu lado nessa utopia musical quixotesca era o ultra influente crítico de música do jornal “The New York Times”, Jon Pareles. Cada texto seu – seja uma entrevista com veteranos do escalão do U2 ou a mais obscura indicação de um relançamento de uma banda “soul” brasileira dos anos 70 – me enchia de esperança. Este, pensava, é um cara que ama os discos (antes em vinil, hoje em CD), como eu: uma relação não apenas criativa, como amorosa. Do toque do próprio objeto aos mistérios que transformavam sulcos – e, mais tarde, números – em perfeitos momentos pop, eles eram (e sempre seriam) a fonte de nosso prazer maior, aquele instante em que ouvimos a in tradução de uma canção que jamais deixaria de fazer parte das nossas vidas. Jon Pareles era meu parceiro. Meu “bróder”. Ele se relacionava com os discos exatamente como quanto eu!
Até que, há algumas semanas, o próprio Pareles publicou um artigo chamado “The cloud that ate my music” (ou, em português, “A nuvem que comeu minha música). E meu mundo caiu.
Escreve Pareles:
“Desde que a música começou a migrar ‘online’ eu desejei que minha coleção de discos evaporasse – simplesmente para ter disponível qualquer canção que eu quisesse, a qualquer momento, sem precisar estocar o resto. Mas eu tenho, digamos, necessidades especiais. Em três décadas como crítico, eu acumulei mais vinis, CDs e arquivos digitais do que eu posso administrar. Uma capinada periódica não segura os 20 ou 30 discos que chegam diariamente na minha caixa postal; as sobrecarregadas estantes do chão ao teto já estão cedendo sob o peso de milhares de CDs e LPs. Qualquer carinho que eu já tive por essas embalagens físicas, não importa quão elegantes ou especiais, já desapareceu há muito tempo; é um arquivo de referência, não uma coleção de arte. E ela cresce e cresce, porque eu nunca sei do que vou precisar: o 45 rotações de uma edição limitada, o CD baixado em casa. Mesmo assim, eu preferia ter tudo numa nuvem do que no meu apartamento”.
Você consegue entender o meu choque? Um dos meus grandes ídolos, uma espécie de guardião dos discos enquanto formato, estava admitindo publicamente que preferia ter todas as suas canções numa “nuvem” do que em casa – em prateleiras que ele podia admirar a qualquer momento que adentrasse a sala. Como assim? Se Jon Pareles foi finalmente vencido pela imaterialidade da música, se ele enfim considerava os aspectos matérias da música (as “elegantes embalagens”) como secundários, se ele não podia mais encarar o volume que uma coleção de música é capaz de acumular, se ele mesmo não considerava esse seu acervo (que certamente é muito maior e mais valioso que o meu) como uma coleção de obras de arte – que esperanças tinha eu para garantir que meus milhares de discos também teriam um futuro?
A “nuvem” da qual Pareles falava, claro, é um termo genérico para a maneira como as pessoas consomem música hoje em dia – e mais ainda no futuro. Engloba não só o novo “produto” da Apple – o iCloud, capaz de armazenar não só todo seu acervo musical como toda sua informação, de toda sua vida, num espaço imaterial, ao mesmo tempo etéreo e disponível a todo tempo –, mas também as inúmeras possibilidades de acessar canções atualmente (sobretudo as incríveis variações de “rádios”, na falta de uma palavra melhor, que disponibilizam infinitas – e personalizadas – seleções musicais para cada tipo de ouvinte, como Rdio, Napster, ou Rhapsody. E o que ficou claro é que Pareles estava caminhando para ela. Será que devo eu fazer o mesmo? Você faria? É essa pergunta que me inquieta há alguns dias.
Eu adoro música – como qualquer pessoa que passa os olhos por este espaço pelo menos um par de vezes já percebeu. Mas tudo indica que eu estou diante de um momento crucial em que eu tenho que estabelecer talvez uma nova relação com ela. Aquelas longas tardes, perdido em lojas com prateleiras recheadas de capas misteriosas, intercaladas com estações de escuta que não te ofereciam alguns segundos de poucas faixas já são definitivamente coisas do passado. Se eu quiser ouvir música agora, eu vou primeiro ao computador – e aí sim eu decido o que eu quero comprar ou não. Se eu quiser comprar alguma coisa, claro. Mas será essa a melhor maneira de consumir a música? Ou melhor, de possuí-la? Ou ainda: será que eu (ou você), num futuro que já está entre nós, onde é possível ter acesso, virtualmente, a todas as músicas do mundo, vamos precisar “possuir” música?
Como disse, não paro de pensar nisso. E mesmo ao escutar o disco do WU LYF pela terceira ou quarta vez, não penso em outra coisa. “Go tell fire to the mountain” é mesmo genial – bem acima das minhas expectativas (a última vez que ouvi uma voz que vinha tão das entranhas assim, como eles mostram em “Cave song”, por exemplo, ela tinha um dono chamado Kurt Cobain). As faixas transitam numa zona até hoje para mim desconhecida, entre o fantasmagórico e o pop. São divinas e assustadoras; familiares e enigmáticas; sedutoras e repelentes. Gostei tanto que, com uma humildade que só Montaigne talvez possa acatar, vou negar a própria afirmação que fiz aqui (a de que o melhor disco do ano, até agora, é “The english riviera”, do Metronomy) para afirmar que bom mesmo é esse trabalho de estréia do WU LYF. Mas será que eu sentiria o mesmo prazer de ouvir esse disco se meu primeiro contato com a banda fosse exclusivamente pelo meu computador?
Tenho certeza de que não – de que essa experiência é mesmo diferente. Uma certeza tão forte quanto a de que vem aí uma geração inteira que não está nem aí para isso. Em breve, haverá uma legião de adoradores de música que não conseguirá nem imaginar que um dia já foi possível “tocá-la”. As mesmas pessoas que, um dia, tenho certeza, olhará para a ilustração que coloquei lá em cima, que está na capa interna de um outro CD muito bom que comprei (sim, comprei!) recentemente – “Let the dog drive home”, de uma banda chamada Teitur – e não terá idéia do que se trata a inscrição que está na lápide (aliás, mal saberá o que é lápide…).
E a culpa é sua, Jon Pareles!!
O refrão nosso de cada dia
“Cool cat”, Queen – sim, o Queen, esse mesmo que você está pensando. A banda que deu ao mundo “Bohemian rhapsody”, “Under pressure”, “We are the champions” – e principalmente “Love of my life”. Em 1982, uma das bandas mais veneradas do planeta (se já é até hoje, imagine naquela época) lançou um disco muito à frente do seu tempo, “Hot space”. Eu me apaixonei pelo álbum instantaneamente, mas todas as críticas que lia pareciam querer me convencer de que eu estava errado, de que o disco era um “grande erro”, uma deslizada “feia” de uma banda que havia perdido o rumo – tentando sair do patamar do rock clássico para o duvidoso universo do eletrônico, então moderno. “Under pressure”, na verdade, era uma faixa de “Hot space”, mas a maioria dos fãs do Queen prefere esquecer o resto do álbum e ficar só com esse sucesso. Quero fazer diferente: lembrar de outra canção desse trabalho, que, para mim, é uma obra-prima negligenciada – “Cool cat”. Cantando num falsete malandríssimo, Freddie Mercury oferece uma de suas músicas mais sensuais. Por que eu lembrar dela agora? Porque eu a ouvi outro dia no meu iPod – e tive a certeza de que só os fãs mais dedicados se lembram dela (e talvez, não com carinho). Vamos tentar reparar essa injustiça.
Não entendeu a diferença entre “humor inteligente” e “humor para pessoas inteligentes”? Não faz mal. A gente explica.
iCloud. Era sobre isso que eu me preparei para falar hoje – inspirado por um esperto artigo que li na semana passada, que significou o fim da ilusão da minha relação com a música (algo que, não só eu, mas inúmeros outros representantes da minha geração devem estar sentindo na pele). Mas me senti em dívida com alguns leitores sobre o assunto que levantei aqui na última segunda-feira, como se eu estivesse instalado uma confusão na cabeça de algumas pessoas que passaram aqui – e, por conta disso, resolvi adiar as ponderações sobre o iCloud para a semana que vem, e fazer uma pequena pausa para um esclarecimento.
A confusão não foi geral. A maioria dos leitores absorveu boa parte – se não totalmente – a minha proposta de discussão sobre o humor atual na TV. E se não chegaram a concordar na íntegra com meu questionamento, ao menos vieram com belas contribuições ao debate. No entanto, uma pequena parte dos visitantes do blog – muitos, quero achar, de primeira viagem (que vieram aqui talvez seduzidos pelo tema e/ou pelos exemplos dados) – partiu para o ataque simplista, com a desculpa de que (e aqui eu generalizo, mas sem o risco de exagerar) eu estaria “esnobando” uma facção do humor feito na TV (e, por conseguinte, os humoristas por trás dele), porque eu teria talvez uma visão, hum, elitista do que deveria ser esse humor. E que ela não era popular…
Essa brigada, admito, é formada de “velhos conhecidos”. São pessoas que, sem nenhuma reflexão, têm por “esporte” tentar desacreditar a opinião de alguém que tem uma projeção mais pública – muitas vezes até confundindo a minha figura com a do programa onde trabalho -, e que, de maneira ainda mais tacanha, acha que justamente por eu ter essa projeção, eu tenho idéias pré-concebidas sobre o que deve ser “cultura” – mesmo a cultura pop, sobre a qual escrevo aqui duas vezes por semana. Nessa pressa em julgar uma opinião que conhecem apenas superficialmente (tenho certeza, como disse, que muitos dos que deixaram comentários desse tipo eram “marinheiros de primeira viagem” por aqui), eles confundem as próprias idéias, misturam os conceitos, reduzem qualquer análise a um plano bidimensional – e acabam fazendo um certo barulho, pela veemência e suposta coragem em atacar (preciso explicar o “suposta”? bem, digamos que tem a ver com os endereços de email totalmente improváveis que muitas dessas pessoas usam para assinar seus comentários). Só que o fazem com os instrumentos errados.
Bem, pedindo um pouco de paciência para você que não se enquadra nessa definição – e que talvez preferisse ler agora um texto sobre música e iCloud -, eu vou usar o post de hoje para tentar explicar com exemplo bem práticos e acessíveis o que é “humor inteligente” (que pode e deve ser popular) – que não é a mesma coisa que “humor para pessoas inteligentes” (que é direcionado para poucos – aqueles poucos que se julgam mais inteligentes que os outros). Para isso, eu gostaria de convocar aqui a evidência número 1:
Acho que assim começamos bem. Charles Chaplin é universalmente reconhecido como um gênio do humor – e por gerações que, obviamente, vieram muito antes da minha. A foto acima é, claro, tirada de “Tempos modernos”, geralmente reconhecido como um dos melhores trabalhos de um conjunto que já é excepcional. E então? Vai dizer que Chapin não é popular? Experimente mostrar essa sequência dele inteira no filme, que se passa numa linha de montagem – para qualquer tipo de público – e ver a reação. Ninguém vai ficar sem nem um sorriso no rosto. E isso – é importante acrescentar – sem precisar emitir uma só palavra (é do tempo do cinema mudo, lembra?). Agora… vai dizer que o humor que ele fazia não é (e uso o verbo no presente de propósito) inteligente?
Onde foi mesmo ao longo dessas décadas (quase um século!), que a gente começou a achar que humor, para ser popular, tem que ser escrachado. Ou melhor, “escrachado” não é o melhor adjetivo – já que isso é sinônimo de “debochado”, uma característica saudável do humor. Refazendo a pergunta: quando é que, nessa linha do tempo, passamos a achar que só o que é baixaria e apelativo (e pouco inteligente) é engraçado? E, pior, quando é que começamos a achar que só isso que é humor popular? Acho incrível como hoje vivemos essa distorção – como se o único caminho para tirar risadas dos outros fosse o da apelação.
Podia aqui fazer uma breve história do humor popular no cinema – saindo de outros contemporâneos de Chaplin (já teve o prazer de ver alguma coisa de Harold Lloyd, ou Buster Keaton?), passando por alguns dos meus primeiros heróis da comédia no cinema (Jerry Lewis, Dean Martin), até chegar aos títulos recentes que me tiram o fôlego de tanto rir (por exemplo, qualquer coisa com Steve Carrell). Mazzaropi, evidentemente, teria lugar de honra nessa cronologia (apesar de nunca ter visto algo dele no cinema, quando eu era criança, a TV aberta ainda passava seus filmes – algo impensável hoje). Mas, como escrevi antes, o post de hoje é só um breve esclarecimento – e, para não me alongar, prefiro me concentrar em exemplos mais contemporâneos, e não exigir tanto da memória de um certo tipo de internauta.
Pense em “Os normais”. Sim, um “sitcom” brasileiro, recente, que não só foi lembrado por algumas pessoas em seus comentários, como também é sempre citado como exemplo de uma série que deveria voltar a ser produzida. Popular? Sem dúvida! Inteligente? Sem dúvida! E lembrando dos filmes que ela rendeu (também sucessos), tenho que citar ainda os campeões de audiência “Se eu fosse você 1 e 2″. Você acha que se esses filmes não fossem populares eles teriam levado os milhões de brasileiros ao cinema? (Lembrando inclusive que, dependendo de para quem você pergunta, o próprio cinema já é um “programa de elite” – não confunda com “Tropa de elite”-, mas que nesse caso, atraiu público de todas as classes). Com exceção de uma ou outra escorregada para uma piada mais apelativa, referente à troca de sexo dos personagens principais, o sucesso desses filmes está, sim, nas ótimas atuações de Tony Ramos e Gloria Pires – mas está também (e sobretudo) num bom roteiro, onde as piadas não são apenas uma colagem de gracinhas, mas peças de um roteiro maior, feito com… inteligência!
Precisa de mais exemplos de que “inteligência” e “popular” não são excludentes? Vamos para os palcos então. Você sabe me dizer o nome de uma comédia que está em cartaz há nada menos do que 25 anos – e é um sucesso absoluto de público? Chama-se “Trair e coçar é só começar” – e foi criada pelo genial Marcos Caruso. Não há uma cena de nudez, nenhuma baixaria. Há sim várias piadas picantes, mas a maioria delas com um jogo de palavras – muitas vezes de duplo sentido – que, para fazer efeito (isto é, para fazer rir) é necessário uma boa dose de inteligência para criar (e até um mínimo dela para se divertir). Popular, sim. Apelativo, não.
Há muita coisa boa na “descoberta” recente do “stand up” no Brasil – e não necessariamente com piadas de gente sem braço… Um das coisas mais engraçadas que já vi – e que está no meu cânone de humor – é a irmã Selma interpretada por Octávio Mendes, um dos pontos altos de um espetáculo que fez história na comédia paulistana chamado “Terça insana” (eu até daria o link aqui para você, mas digamos que é mais honesto você correr atrás desse DVD…). A não ser por uma ou outra alusão à sexualidade duvidosa da freira, o esquete quase te mata de rir apenas virando de cabeça para baixo a sua expectativa de como deve se comportar uma religiosa…
Marcelo Médici está há anos em cartaz com seu “Cada um com seus pobrema” – uma série de personagens hilários, construídos com humor e, insisto, com inteligência! Já viu? Conseguiu ficar de olho aberto durante o esquete da Mãe Jatira? Eu não – minhas pálpebras se recusavam a abrir de tanto que eu ria. Paulo Gustavo vive há cinco anos uma mãe hilária no palco (“Minha mãe é uma piada”) – e sabe qual a graça maior da peça? Certamente não é nenhuma baixaria, mas a capacidade de a personagem falar coisas cotidianas que todos ouviram e mostrar o absurdo delas – algo que, para fazer, é preciso ter o que mesmo gente? Todos juntos: inteligência. E se você precisar de um exemplo mais “fresquinho”, recentemente estreou em São Paulo (depois de seis meses de sucesso no Rio) o esperto monólogo “Clichê”, escrito por Marcelo Pedreira e interpretado magistralmente por Lucio Mauro Filho. Sabe do que se trata? De um texto todo feito quase que exclusivamente de… clichês! Vai dizer que não tem uma inteligência por trás de uma construção dessas? E nem duvide que isso não seja popular – a platéia, de todas as idades e “tribos”, vai ao delírio!
Mas teatro, dirão os que ainda acham que humor inteligente não é popular, é também coisa de elite (esquecendo-se, talvez, que muitos dos comediantes que eles admiram por representar um humor mais “moderno” e “popular” usa mesmo é a TV para ficarem mais conhecidos e sair em turnê pelos teatros do Brasil ganhando uma boa bilheteria…). Então vamos voltar para a TV – onde toda a discussão começou.
Não citei “A grande família” no post anterior, primeiro porque não é um programa exatamente novo – é um sucesso desde a sua reestréia em 2001. Depois porque seria “chover no molhado”: quem tem dúvidas de que o programa é bom – e popular? Mas quando eu trago a inteligência para a discussão me sinto obrigado a citar a série, uma vez que nada do que a gente vê no ar poderia existir se não fosse feito com muita inteligência – não só nos roteiros, nas falas dos personagens e na direção das cenas, mas também inteligência na interpretação daquele elenco sensacional. Mas o pessoal vai achar que sou obrigado a “pagar” esse elogio só porque trabalho na mesma emissora que exibe “A grande família”… Então vamos procurar outros exemplos, mesmo na TV a cabo (que de fechada não tem nada… não venha me dizer que TV por assinatura é “coisa de elite”, porque antes mesmo de você escrever seu comentário maldoso, já deve ter alguém fazendo um “gato net” aí mesmo na sua vizinhança…).
“Larica total” – serve? Se você não tem idéia do que eu estou falando, clique aqui. Quem já conhece sabe que a inclusão do programa nessa minha breve lista (ou melhor, já não tão breve assim) deve-se à maneira extremamente original como Paulo Tiefenthaler apresenta suas receitas, hum, pouco ortodoxas. Ainda: deixei de fora no meu último post (injustamente), e fui fortemente alertado por vários comentários, o Marcelo Adnet – se bem que, como eu elogiei a Dani Calabresa, você poderia achar que eu estava protegendo o casal… “Comédia MTV” é um sopro de vitalidade num nicho que já é batido desde que eu liguei a televisão pela primeira vez na minha vida: imitações e paródias! Você está insinuando que Adnet não é inteligente, só porque ele faz um humor popular? Sentiu o que eu quero dizer?
Eu poderia continuar por mais tempo ainda – e ainda divagar com gosto por aquela outra categoria tão confundida com a do “humor inteligente”: o “humor para pessoas inteligentes”. O exemplo mais fácil – e que talvez confunda mais quem não consegue separar as duas coisas – é Shakespeare! Ah, não sabia que ele escreveu comédias? Pois eu recomendo que você seja introduzido nesse universo por “Noite de reis” – lembrando ainda, que quem frequentava as peças do “bardo” na época em que elas foram criadas e montadas pela primeira vez não era a fina flor da intelectualidade inglesa, mas o “povaréu” – quase sempre a escória da sociedade na época, que circulava ali pelo Globe Theatre… Ou então poderia enveredar pelos filmes de Woody Allen – mas aí este post não teria mais fim…
Vou ficar por aqui, convidando você a, se quiser, contribuir para a discussão sobre “humor inteligente” – se mantivermos o nível dos comentários do post passado, já vou ficar satisfeito! Agora, se mesmo depois dessa explicação toda, rica em exemplos, você ainda tiver dúvidas sobre a relação entre o humor popular e a inteligência de quem está por trás deles, aqui vai só mais um toque. Não se esqueça que, além dessas categorias que usei no título de hoje, existem duas outras que, talvez, valham a pena você discutir também: o “humor burro” (que é simplesmente sem graça) e o “humor para pessoas burras”.
Mas não vamos entrar nisso, vamos?
O refrão nosso de cada dia
“Ina mina dika”, Kishore Kumar – qualquer coisa que eu tentar dizer sobre essa pérola do baú do pop indiano (mais uma, claro, tirada de uma trilha sonora de um filme) não será suficiente. Assista e viva a experiência. Se você ver tantas vezes, com eu vi, vai acabar decorando também o refrão (dou minha palavra que sei cantá-lo inteirinho!).
Não assisti ao programa ontem por motivos óbvios (estou, digamos, meio ocupado no domingo à noite), mas parece que o “Pânico” lançou uma campanha para eu ganhar alguns quilos de volta (aqueles 7 que, como você acompanhou, perdi ao longo do projeto “Medida Certa”, no “Fantástico”). Parece que é uma nova, hum, piada que eles, hum, inventaram. Ou pelo menos alguém lá achou que isso era uma piada: oferecer comida para quem não precisa, quando poderia estar driblando o desperdício e dando a tal “guloseima” para uma criança que tem fome – um problema que qualquer brasileiro conhece bem (desde quando desperdício é engraçado?).
Felizmente, isso não é a única coisa que passa por humor hoje em dia na TV – um assunto que, por coincidência, mesmo antes de saber da nova “piada da guloseima”, já era o assunto que eu queria discutir aqui hoje – um tema que surgiu, aliás, de outra coincidência, ou melhor, de dois eventos simultâneos que unem (e ao mesmo tempo separam) uma “dinastia de humoristas”. O primeiro deles é a estreia de “Cilada.com” – o filme de Bruno Mazzeo, que surgiu de um programa de TV a cabo, que migrou para um quadro do próprio “Fantástico” e agora chega à grande tela. Ainda não o vi por inteiro, mas em função que uma matéria que exibimos no próprio “Fantástico” ontem, tive acesso a alguns trechos – que achei bem engraçados.
O que poderia ser uma “piada de uma nota só” (por vingança, uma mulher coloca na internet um vídeo de uma transa sua com um cara – o personagem de Bruno Mazzeo – e ele vira motivo de chacota geral), parece que é uma história completa, com bom roteiro, viradas e até um certo suspense. Quero conferir assim que estrear – já que o quadro “Cilada” é um bom exemplo de uma inovação do jeito de fazer as pessoas rirem na TV.
O outro “gancho” que me fez pensar no assunto, tem a ver com o pai de Mazzeo, um humorista que sempre admirei. Mais que isso: tenho um respeito enorme por Chico Anysio – um artista e comediante único, que fez a minha geração (e outras) rir durante décadas. Eu, que sou um péssimo comediante, tenho boas lembranças de, no pátio do colégio onde estudava (o saudoso Externato Nossa Senhora de Lourdes, em São Paulo), imitar seus personagens que eram verdadeira mania nacional, num clássico da TV brasileira chamado “Chico City”. “É mentira, Terta?”, “papagaiava” eu, achando que estava abafando… Para não ficar na nostalgia, tive o prazer de reencontrá-lo recentemente na telinha – prazer porque, primeiro, estava com saúde (que é o mais importante), e depois, porque ele está revivendo um de seus melhores personagens de todos os tempos, a Salomé – de Passo Fundo!
Toda essa introdução – que é honesta e emocionada – serve para que os cínicos de plantão não se atrevam a sugerir que estou “falando mal” de Chico, só porque vou usar algo que ele declarou para desenvolver o assunto de hoje, que é justamente o “estado das coisas” no humor na televisão. Explico melhor: já queria escrever, há tempos, sobre um dos melhores “sitcoms” que acompanho nos últimos anos (já falo dele). Estava adiando o assunto – sempre tem tanta coisa pra gente escrever sobre… Mas neste fim-de-semana me deparei com uma entrevista de Chico na revista “Veja” – e vi nisso um bom gancho para, mais uma vez, chamar você para uma discussão interessante sobre nossa cultura pop. O “gancho” foi esse: entre tantos assuntos, Chico lançou algumas farpas sobre o humor hoje na TV brasileira – e o que ele disse, segundo a entrevista, me deixou ligeiramente inquieto. E é justamente isso que eu queria dividir com você.
Insisto: o fato de eu querer usar suas “aspas” para abrir um debate, não tem nada a ver com minha opinião sobre o talento de Chico – e sua capacidade (comprovada durante anos) de entreter (leia-se, fazer rir) o público brasileiro. Por isso, aliás, que estou tomando todo o cuidado de deixar claro meu respeito por ele. Entendido? Posso continuar? Muito bem! O que me chamou a atenção nessa entrevista de Chico foi um comentário na linha “não se faz mais humor na TV como antigamente”. Mais especificamente, ele foi incisivo ao dizer que não se faz mais o humor “de bordão” – aquela expressão que é a “marca registrada” de um personagem, e que o público vê e repete nas ruas (como o “mentira Terta”, que citei acima). Esse formato, segundo ele, seria a única maneira de agradar ao popular – na linha “se está na boca do povo, é porque pegou”. Será mesmo?
Eu cresci vendo programas humorísticos recheados de bordões. Além dos clássicos criados por Chico Anysio, Jô Soares contribuiu, entre o final dos anos 70 e início dos 80, com boa parte de seu repertório de personagens impagáveis para o imaginário (humorístico) nacional – pense em “tem pai que é cego”… ou “casa, separa, casa, separa”! Um dos meus bordões favoritos, porém, era criação de um outro ótimo comediante, Agildo Ribeiro (de quem eu já era fã desde os tempos de Topo Gigio – olha eu entregando a idade…): sua encarnação de um professor de mitologia grega, que era apaixonado pela Bruna Lombardi, e que nunca conseguia enunciar o teorema de Pitágoras, era um clássico, cuja imitação, mesmo tosca como era a minha, me garantiu relativo sucesso em festas da adolescência (para os que não têm idéia do que eu estou falando, tem sempre o youtube…). Coisa horrorosa!
Mas, como tudo em televisão – e em qualquer manifestação cultural – as coisas evoluem. Será que hoje, em pleno 2011, a solução para o humor na TV seria voltarmos a ter um punhado de bordões que todo mundo repete? Isso é ser popular?
As coisas não andam muito engraçadas, é verdade. O que predomina hoje é o que a gente poderia chamar de “humor (fake) verité” – aquela modalidade tão maneirista, e tão reproduzida, que, de original – e era mesmo original há uns dois ou três anos –, virou um ruído meio insosso. Sabe do que eu estou falando, não? Daquela fórmula que se tornou tão comum que é possível até ser descrita como um manual de instruções – como fiz aqui num post recente –, onde você humilha uma pessoa insistentemente até alguém achar graça… Hoje, quem faz isso de maneira menos dolorosa (e mais próximo do engraçado) é, claro, o “CQC”. O que não significa, como discuti naquele mesmo post, que seus humoristas têm passe livre para fazer graça com qualquer assunto (mas não quero divagar sobre isso agora – já o fiz naquele texto). Reforçando, desses “genéricos” do humor dito “sem script” (que, muitas vezes, tem mais roteiro do que um esquete de humor), “CQC” é, sem dúvida, o melhor e mais inteligente.
Há ainda um esboço de graça num formato que é, obviamente, inspirado no icônico “Daily Show”, de Jon Stewart (exibido no Brasil pelo canal a cabo da Sony), que vez por outra também é divertido – ou melhor, se não provoca ataques de riso, pelo menos acena com um humor inteligente e “antenado”, que aproveita os absurdos do nosso noticiário cotidiano para tirar daí alguma graça. Dessa leva, quem brilha mais é o “Furo”, da MTV, onde Dani Calabresa e Bento Ribeiro, mesmo quando atravessam longos segmentos de piadas surradas (em cima de políticos e/ou celebridades), recompensam sua audiência com uma pérola: o esperto – e hilário – quadro “Você não pode dormir sem saber”! Destacando “notícias” totalmente irrelevantes – que a internet durante o dia se esforçou para te convencer que eram relevantes! –, a dupla faz o que deve ser feito para uma piada funcionar: conta-a da maneira mais séria possível…
Mas fora essas, hum, tendências, o que temos de engraçado na TV? Essa é uma pergunta que eu queria fazer para você que passa por aqui.
Eu tenho aqui minhas apostas… Na produção nacional, sem dúvidas, fico com “Tapas e beijos” – que, como se não bastasse as impecáveis atuações de Fernanda Torres e Andrea Beltrão, tem um texto excelente, um ritmo bem amarrado e um elenco de apoio que está a altura do que a gente pode chamar de um humor moderno. Desde de “S.O.S. emergência” – que eu considero um dos melhores textos (e elenco) da última década de humor na TV, bem como um dos menos compreendidos – eu não via algo tão divertido nos canais abertos. Já nos canais por assinatura, as melhores opções são importadas – e não me venha com aquela bandeira do “imperialismo cultural” (que coisa mais velha, não?). Nesse sentido, além do mega elogiado “30 Rock” (também já comentado no mesmo post em que falei do “manual do humor”), eu estou totalmente encantado com um “sitcom” chamado “Modern family”.
Não é uma novidade, eu sei. Em setembro, agora, os Estados Unidos vão assistir já à terceira temporada. Mas eu só entrei em contato com a primeira há algumas semanas, quando assisti ao DVD dos primeiros episódios. Todos, sensacionais. Sensacionais mesmo – sem exagero.
Para quem nunca esbarrou no seriado (que, no Brasil, é exibido pela Fox), trata-se de uma grande família – mas não da maneira que você imagina. O patriarca sessentão, Jay Pritchett (interpretado pelo veterano Ed O’Neill, que você talvez conheça do antigo “Married with children”), separou-se depois de décadas de casado, e uniu-se a uma colombiana de “vinte e poucos” – provavelmente imigrante ilegal… A filha dele, Claire, por sua vez, é casada com um mané (Phil), que tenta ser um pai moderno, mas é um constrangimento ambulante – quem manda em casa mesmo são os três filhos (adolescentes e pré-adolescentes). O filho de Jay, Mitchell, é casado com Cameron (não se deixe enganar pelo nome… Cameron no caso é um homem, daqueles que se emocionam só de lembrar de Meryl Streep em “A escolha de Sophia”…) – e os dois começam o “sitcom” voltando do Vietnã, onde adotaram um bebê, Lily.
Conforme o ângulo que você escolher para ver, nada disso está muito certo – ou então, tudo se encaixa! Mas além da discussão (quase sempre hipócrita) sobre a moral de “Modern family”, o que interessa aqui é que ele é engraçadíssimo! Tem um ritmo único, que mistura depoimentos para a câmera (aquele tipo “confessionário”, que nem é novidade, mas aqui recebe uma “demão” rejuvenescedora), com um tomadas intimistas, além de interpretações irretocáveis (eu mal consigo assistir ao constrangimento que o “papai transado” se impõe a cada episódio), e, sobretudo, um texto genial. E é disso que é feito o humor.
Quando li o comentário de Chico Anysio sobre os bordões, inevitavelmente me lembrei de seus quadros – ou melhor, me lembrei dos seus bordões! As circunstâncias de cada episódio, previsivelmente, se perderam na minha memória – e, posso apostar, na sua também. A única coisa que fica é o refrão. As situações, as nuances, e mesmo as performances, ficam em segundo plano quando você tem um bordão poderoso. Ele vira o centro da sua piada – a ponto de tornar irrelevante todo o resto. Funciona, claro, mas como uma muleta. E eu prefiro achar que existem outras maneiras de fazer você rir.
Pense em “Seinfeld”, por exemplo. Com exceção, talvez, da entrada sempre teatral de Kramer no apartamento do protagonista (que era um bordão sem palavras), o “sitcom” fazia sucesso pelos temas que abordava – a camisa bufante! o “nazista” da sopa! a mulher com mão de homem! Isso significa que é possível criar enredos memoráveis – e variados – toda semana! E não precisa nem ser sobre o mesmo assunto… “Modern family”, pelo menos na primeira temporada (que é a única a que assisti até agora), faz isso de maneira brilhante. Mexe com clichês (sessentão casando com mulher de 20 anos), estereótipos (latina gostosa, gay afetado), “vacas sagradas” (o pai de família) – bagunça com todos esses conceitos e ainda faz você gargalhar. Ah, e, de quebra, ainda oferece tudo isso numa enxuta meia hora, com começo, meio e fim!
(Cheguei a falar que todo episódio tem ainda uma mensagem linda sobre o que significa fazer parte de uma família hoje – sem ser nem um pouco piegas? Se você quiser se apaixonar pela série, assista primeiro, claro, ao piloto, que apresenta todos esses laços familiares ligeiramente disfuncionais… Mas pule em seguida para o episódio onde a ex-mulher de Jay, que arruinou a festa de casamento dele com a colombiana dando uma baixaria homérica, reaparece para pedir desculpas, e unir a família. É emocionante, de tirar lágrimas. De chorar e de rir).
Mas antes que eu me alongue demais, vamos retomar a pergunta que fiz lá atrás: o que você considera engraçado hoje na TV? Vamos ver, pela sua resposta – e a de outros que se animarem a participar – se temos mesmo algum motivo para rir…
(Ah! E se você encontrar na rua e quiser fazer a “piada da guloseima”, pense duas vezes, e compre uma comida para alguém que realmente tem fome…).
O refrão nosso de cada dia
“No room to bleed”, Ben Lee – como você sabe bem, as escolhas para os refrões que aparecem nesse espaço são bastante idiossincráticas. Essa canção de hoje, por exemplo, que é belíssima, não tem nenhuma razão especial para ter sido selecionado a não ser ter tocado no “shuffle” do meu iPod enquanto eu estava escrevendo este texto. O que foi uma sorte, porque eu poderia passar mais um bom período de tempo sem me lembrar dessa faixa que é uma preciosidade. Apaixonado demais? Ou de saco cheio de uma relação? O que Lee quer dizer com esses versos? Você decide