Os perigos da escrita criativa

qui, 30/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

“O sexo é um sistema estável de formas egoístas que giram ao redor do sol da vaidade”. Desenvolva.

Esta é uma das frases mais simples que Pola Oloixarac oferece a certa altura de seu curioso livro “As teorias selvagens” – recém lançado aqui no Brasil pela editora Benvirá. Escolhi-a para abrir o post de hoje porque achei que tinha apelo – afinal de contas, falava de sexo! Porém, como tudo neste curioso livro dessa escritora argentina, nada é muito simples…

“As teorias selvagens” é um dos livros mais irritantes que já li ultimamente – o que não significa que ele não seja interessante (aliás, muito interessante). O problema é a maneira como você encara sua leitura. Se você foi atrás de uma boa história, de jovens universitários que se envolvem em peculiares jogos românticos e eróticos (e ainda discutem beleza, feiúra, e a nunca fácil relação afetiva entre professores e alunos), cuidado. Você vai encontrar tudo isso lá, mas vai te dar trabalho. Muito trabalho.

O truque de Oloixarac – que é uma das autoras convidadas para a Flip deste ano (que acontece semana que vem) – é deixar o leitor atordoado com um turbilhão de referências acadêmica, discursos eruditos, e (sim) teorias tão “selvagens”, que cada capítulo – ou melhor, cada parágrafo – é um convite à descontinuação da leitura. Até que você percebe que o enigma dessa esfínge não tem nada de ameaçador. Mesmo depois de atravessar as duzentas e poucas páginas da edição brasileira, ninguém corre o risco de ser devorado por nenhuma criatura, já que todos os floreios da autora não passam de uma distração.

Não que a autora não tenha erudição. Pela quantidade de referências e elucubrações que ela salpica a cada página, fica claro que ela sabe do que está falando. A grande sacada de Oloixarac, porém, é que nada disso seria necessário para contar sua história. Ela simplesmente abusa desses recursos porque pode – e, como consequência, consegue pintar com fina ironia o universo acadêmico. Teria feito isso de propósito, para provar que o circuito universitário – sobretudo o que se debruça sobre a filosofia – não deveria se levar muito a sério? Talvez. Mas talvez a autora tenha escrito esse livro apenas como um exercício inteligente. Em ambos os casos, porém, tenho que admirar seu esforço – e mais: aplaudir sua coragem em aceitar o risco de alienar vários leitores em função de uma boa ideia.

Esse é um dos perigos da escrita criativa – a expressão que usei para o título de hoje do post, e que, como qualquer modismo, é uma espécie de praga que assola mais de uma geração contemporânea de escritores. Como toda praga, no entanto, ela esconde belas espécies que crescem no mesmo campo. E é delas que eu quero falar hoje. Pois além de “As teorias selvagens”, por coincidência (ou não!), recentemente eu me deparei com outros três livros que, como o de Oloixarac, flertam com os preceitos dessa escrita criativa – com diferentes níveis de acertos…

Em “Teorias”, por pouco a autora não me perde de vez. Já desde o primeiro capítulo, me senti provocado, perguntando-me: será que essas frases têm algum sentido maior (que me foge)? Aquela que usei para abrir o post de hoje é relativamente simples se comparada com essas: “Kamtchowsky observou que a diferença talvez se apoiasse na distância entre sufixos e prefixos. Uma geração de sufixos, como exibe a morfologia de ‘consciência-em-si’ ou ‘consciência-para-si’, centra sua atenção naquilo que resulta, que se solta a posteriori (a sintaxe não mente) da consciência; pelo contrário, uma geração seguinte que coloca a questão da consciência nos preconceitos inerentes de seu olhar opta pelo prefixo, pela característica prévia e intrínseca da mesma capacidade de raciocínio (p.ex. autoconsciência)”. Uma aula de desconstrução gramatical? Não, apenas dois amantes discutindo sua geração depois de uma tarde (ou seria uma noite) de sexo. Se é que eu entendi direito…

Se você empacou na frase que citei acima, tem toda a minha solidariedade. Eu também teria empacado, se, a essa altura do livro, eu já não estivesse acostumado a elas – e percebido que sua compreensão não é sequer necessária para que você siga na leitura! Lá no final, “As teorias selvagens” te espera com uma recompensa – e até com um sorriso no canto da boca… Sorriso esse, que é mais difícil de tirar de “Ilustrado”, do jovem escritor de origem filipina Miguel Syjuco (Companhia das Letras).

Como se o próprio fato de termos um elogiado romance que veio de um filipino não fosse surpresa o suficiente, “Ilustrado” – que recebeu ótimas críticas quando foi lançado nos Estados Unidos – vem com uma “ambição criativa” nas alturas. Como em “Teorias”, a princípio você acha que vai ler uma história simples: Crispin Salvador, consagrado autor filipino (laureado com o Nobel), morre em Manhattan (NY), provavelmente sem acabar sua “obra maior”, “As pontes em chama”. Descobri-la, passa a ser a coisa mais importante para o jovem escritor (também filipino) que era seu assistente nos seus últimos dias de vida. Simples, não é? Só que Syjuco faz de tudo para complicar.

“Ilustrado” – como são chamados os intelectuais nas Filipinas – conta não apenas essa história (a viagem do jovem escritor para as Filipinas, em buscas de pistas de “As pontes em chamas”), como oferece vários fragmentos de outras obras de Crispin (pelo menos seis outras histórias que o leitor se vê obrigado a seguir); esboça trechos de uma biografia desse autor consagrado, “Oito vidas vividas” (além da própria autobiografia “escrita” por Crispin); relata fragmentos da história do próprio jovem escritor (que sai criança das Filipinas para morar no Canadá com os avós); e quando você acha que não há mais espaço para sua atenção acompanhar mais nada, surge uma outra narrativa, que parece ser de um “observador de fora”, que olha o jovem escritor de longe, descrevendo suas ações e seus pensamentos. Uau!

Até o primeiro terço de “Ilustrado” você desconfia de duas coisas: que Syjuco não vai ter fôlego para sustentar a curiosidade do leitor até o final; e que você mesmo não terá paciência para atravessar tamanho labirinto narrativo. Aos poucos, porém, você se acostuma com as guinadas de foco – muitas “interferências” não são maiores que um bom parágrafo – e… aceita o desafio! Como se feliz diante das opções que Syjuco oferece, sua inteligência responde com uma “seleção natural”, escolhendo que histórias você quer mesmo seguir.

No meu caso, por exemplo, a própria biografia de Crispin me pareceu bastante aborrecida – e passava rápido por ela. Já a tal “narrativa de fora” capturou minha atenção. Dos livros de Crispin, um chamado “O iluminado” me fez desejar que eu lesse a obra por inteiro (e não só as “migalhas” que Syjuco resolveu nos revelar). Já a trilogia “Kaputol” não despertou em mim o menor interesse… Assim, com esse equilíbrio de forças, a leitura ia se adiantando – cada vez menos desafiadora (já que minha atenção aprendia a administrar as mudanças), mas não sem seus percalços.

O problema com Syjuco, é que ele passou um pouco da conta da experimentação. As trocas de narrativas, a certa altura, tem um efeito quase anestésico – e seu texto então passa querer inventar não no foco, mas no estilo. E aí seu exercício parece gratuito. Já na segunda metade de “Ilustrado”, quando o jovem autor vai jantar na casa de uma universitária que conheceu em Manila (Sandie, que também é uma personagem da vida de Crispin – olha a confusão!), os diálogos são escritos como um texto de teatro – um recurso que me pareceu ligeiramente irritante. E não vamos nem falar das entradas de blog – que vêm com comentários e tudo mais! Contudo, as boas histórias – isto é, aquelas que você escolheu para acompanhar – empurram a leitura para frente e, no final, é bem provável que você se divirta com o livro de Syjuco. Eu me diverti – mas não sem amaldiçoar, pelo menos um pouquinho, a tal “escrita criativa”…

Ela pode ser muito bem usada – “Tudo se ilumina”, de Jonathan Safran Foer (Rocco), é o primeiro nome que me vem à mente. Mas quando ela aparece como um recurso supérfluo, criando um ruído numa história que no fundo é boa, aí fico um pouco incomodado. Veja o caso de “Todo terrorista é sentimental” (Record), ótimo romance de estréia do carioca Márcio Menezes. Há tempos eu não lia uma história tão original por aqui. Fui “sequestrado” pelo livro desde suas primeiras páginas – que, de maneira breve, descrevem uma série de atentados fatais a políticos corruptos (a história se passa nos anos 90, mas não é preciso nenhum esforço de abstração para considerá-la bastante contemporânea – basta ver o noticiário…). A partir daí, Cito nos conta como começou a criar um pequeno, porém eficiente (e atrapalhado) movimento terrorista, que tinha como único objetivo assustar os políticos para que eles fossem mais honestos.

Se a missão do “Comando Terrorista Anti-Corrupção” parece um tanto quixotesca, é isso mesmo! Movidos por puro idealismo e inocência, Ciro e Gonzáles (e mais tarde Ana), a partir de um estopim bem criativo e verossímil – especialmente para quem acompanha a realidade brasileira -, resolvem “tomar uma atitude”. Escolhem um político envolvido num escândalo de remédios falsos (que, indiretamente, teria levado à morte de uma senhora que a própria dupla de protagonista socorreu na rua) e fazem dele a primeira vítima. Dali para os próximos atentados, seria um pequeno salto… no escuro!

Só por essa sedutora premissa, “Todo terrorista” já ganha o leitor comum – talvez não dos políticos. Mas ele tem ainda um aspecto irresistível – pelo menos para a minha geração (e a do próprio autor, que é uma depois da minha…): o cenário cultural daquela época. Referências estão por toda a parte (Chico Science!), como parte do cotidiano desses personagens – que poderiam ser seus amigos. E isso torna a leitura irresistivelmente envolvente. O único senão… é um certo abuso da “escrita criativa”…

Como nas passagens inteiras que nos alugam com a história do grupo terrorista basco ETA. Didáticas demais, elas estão lá (imagino) para nos dar um “pano de fundo” da evolução “profissional” do próprio movimento de Cito e Gonzáles. Mas acabam sendo detalhistas demais, e nos enchem de informações que nos distraem da trama principal. O recurso de intercalar uma entrevista com um ex-membro do ETA no meio da história funciona um pouco melhor, mas também afrouxa nossa atenção – e nos distrai do melhor de Menezes, que é a descrição de cenas e situações muito próximas da nossa própria experiência. Como essa:

“No Posto 9, a palhaçada de sempre. Os de teatro com a turminha de teatro, os muito vaidosos e um pouquinho cultos com a turminha do teatro, os gays que não sabem que são gays com a turminha do teatro. E todos aqueles músicos adolescentes recém-saídos do disco Transa do Caetano, e todos aqueles professores de capoeira cujo futuro seria fazer filhos na Suécia e na Dinamarca”.

Brilhante! E é por momentos como esse (e outros como o suspense do derradeiro atentado que eles executam) que eu recomendo “Todo terrorista é sentimental” – mesmo sem desculpar seu autor pelas “fugas criativas”…

Aliás, o único desses livros que li recentemente que passa nesse teste é, ironicamente, o único que ainda não está disponível em português: “A visit from the goon squad”, da americana Jennnifer Egan. Mas, creio, não deve demorar a ser lançado por aqui, devido às ótimas críticas que recebeu – para não falar de um certo prêmio que ganhou há pouco, um tal de Pulitzer…

Se eu tivesse que resumir seu argumento, seria impossível… Até porque, como vários críticos já assinalaram, “Goon squad” pode ser lido simplesmente como uma coleção de contos em torno do universo da indústria fonográfica. Mas isso seria diminuir a inteligência do projeto de Egan, que abusou da tal “escrita criativa”, contudo sem desperdício algum de talento. Para você ter uma idéia da vocação da autora para isso, um capítulo é narrado inteiramente em “power point”! Irritante, não é? (para usar mais uma vez o adjetivo que predomina no post de hoje). Não, respondo eu. O “artifício” acaba sendo engenhoso, assim como todas as outras maneiras que ela inventa para contar sua história.

O melhor é descrever tudo como “um punhado de fragmentos”, ligeiramente alinhavados com esse tema da indústria fonográfica. Mas você talvez nem desconfie disso se ler apenas o primeiro capítulo – que narra uma confusão que se inicia no banheiro de um bar. Ou o estranho oitavo capítulo, onde três “amigas” vão visitar um general. Cada parte do livro é uma ótima surpresa, sem repetições, sem maneirismos, sem soluções fáceis.

Se as leituras de “As teorias selvagens”, “Ilustrado” e “Todo terrorista é sentimental” me fizeram acreditar em uma nova geração de escritores (de várias partes do mundo) que flertam perigosamente com a tal “escrita criativa”, “A visit from the goon squad” aumentou minha esperança de que se dar bem nesse flerte é possível. É só tentar um pouquinho mais…

O refrão nosso de cada dia

“Da da da da”, Martina Topley-Bird – enfim, uma música que é quase que só refrão! E que você consegue cantar inteira! Quer apostar? (Em tempo, muita gente não conseguiu ouvir “You and me”, do Penny & The Quarters no link que indiquei no último post; por isso, aqui vai um novo link ).

Quem tem medo de um filme de arte? E de “Transformers”?

seg, 27/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Os livros vão ter de esperar – pelo menos por mais alguns dias. Combinei com você que hoje discutiríamos os perigos da escrita criativa – algo que achei que seria oportuno depois de ler três livros bastante diferentes com essa, digamos, proposta. Mas aí apareceu um quarto para ler, que encontrei justamente neste fim-de-semana numa livraria – e posso provar! Trata-se de “As teorias selvagens” (Editora Benvirá), da argentina Pola Oloixarac, que vai se juntar maravilhosamente aos outros autores que já tinha selecionado – para manter um certo suspense, adianto que trata-se de uma americana, um filipino, e um brasileiro! Devo terminá-lo até quinta-feira – e, aí sim, espero falar do assunto com mais, digamos, propriedade.

Como assunto não falta por aqui, achei oportuno então te convidar para um outro debate, que está rolando há algumas semanas na imprensa cultural americana – mas que qualquer pessoa que gosta de uma certa arte chamada cinema pode participar, e com prazer. No início deste mês, deparei-me no caderno de cultura de domingo do jornal “The New York Times”, com um curioso artigo a quatro mãos. Os dois principais críticos de cinema do jornal assinavam um texto cujo título era “Em defesa do chato e longo” . Como não ficar curioso diante disso?

Trata-se de uma deliciosa resposta de Manhola Dargis e A.O. Scott a um outro artigo que havia sido publicado em maio pela revista do próprio jornal. Nele, Dan Kois, num gesto que a princípio parecia corajoso (mas que, numa leitura atenta, estava mais para o provocante), admitia que certos filmes – daqueles que no Brasil costumamos chamar de “filmes de arte” (ou, “filmes difíceis”) – são como os vegetais que temos de comer a cada refeição, algo que somos obrigados a suportar, ou até mesmo fingir que gostamos, para poder “cair de boca” em atrações mais acessíveis e divertidas (o equivalente a um bom bife com batatas fritas). Na própria internet, fui atrás do artigo – que achei relativamente divertido. A ponto de me deixar confuso…

De um lado, Kois mantinha um tom irônico na sua “confissão” (veja esta frase, por exemplo: “Parte da missão de ser um espectador civilizado, eu acreditava firmemente, tem a ver com a tarefa de ver filmes que não se importam com meu curto intervalo de atenção – filmes que encontram maneiras de cavar embaixo do meu tédio para criar uma impressão duradoura”). Por outro, Dargis e Scott encararam a provocação de frente, e vieram com um punhado de argumentos bem convincentes, a favor, claro dos filmes ditos difíceis. Convincentes e espertos – eu acrescentaria. Veja como A.O. Scott abre sua defesa:

“O cinema talvez seja a única forma de arte cujo público principal é, como se acredita amplamente, ativamente hostil a qualquer ambição, dificuldade, ou qualquer outra coisa que exija demais de sua atenção. Em outras palavras, existe – em qualquer nível cultural – entre executivos de Hollywood, repórteres de entretenimento, fãs, e até em alguns críticos – um persistente preconceito contra a noção de que cinema deve aspirar aos altos níveis de realização artística”.

Alguém já leu alguma coisa mais brilhante – e mais esclarecedora – sobre a complicada relação entre os fãs de filmes populares e os de filmes de arte? Fiquei tão impressionado com essa simples colocação, que tive de parar alguns minutos para refletir sobre essa estranha realidade (fiz isso em vários trechos do texto que ainda vou comentar). Não é verdade?

Por que as pessoas que não têm nem a paciência nem a vocação de assistir a um filme de arte têm tanta raiva de um trabalho desse tipo – e, pior, de quem admira um filme desse tipo? Do outro lado, por que existe um preconceito tão grande com filmes que são recordistas de bilheteria? Por que as pessoas são tão divididas entre filmes “cabeça” e filmes “sem cabeça”? Será tão difícil reconhecer que, entre tantos filmes de arte, tem também muita bobagem? Ou que, entre os filmes “blockbusters”, existem algumas preciosidades?

Muitas vezes, críticos e fãs de cinema parecem estar travando uma batalha que não existe. Quem gosta de filmes populares tende a desprezar quem gosta de filmes de arte – como se fossem um bando de esnobes. Por sua vez, o pessoal da segunda turma muitas vezes ri do primeiro grupo, achando que para gostar de “uma coisa daquelas”, só mesmo se você for um imbecil. Nenhuma das duas partes, claro, tem razão.

Manhola Dargis tem uma sacada maravilhosa ao dizer que ela acha “Se beber não case 2” (um filme já comentado aqui) é, de fato, muito aborrecido: “A continuação maçantemente repetitiva e tem cena após cena com os personagens olhando um para o outro de maneira estúpida, flagelando-se loucamente e perguntando-se o que aconteceu. Esse é o tipo de chatice que Andy Warhol, que gostava de chatice, acharia, bem, chato”. E segue em frente destacando o valor de filmes lentos, como o recente “Meek’s cutoff” (que, creio, ainda é inédito no Brasil, mas agradou bastante no último festival de Sundance), e um curioso título do qual eu nunca havia ouvido falar: “Jeane Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, de Chantal Akerman, que, entre outras coisas, tem uma sequência em que a dona-de-casa (e protagonista) do título, faz um prato em sua cozinha em tempo real!

Mas o melhor argumento, para mim, é um de A.O. Scott: “Eu certamente não acho que a diversão deve ser banida das telas, ou que entretenimento popular é essencialmente anti-ético com relação à arte. E embora eu tiro um grande prazer de alguns filmes que podem ser descritos como ‘devagar’ ou ‘tediosos’, eu também alimento a minha cabeça com filmes rápidos e fáceis. Eu gostaria de pensar que existe espaço para uma dieta cinematográfica de vários sabores, inclusive alguns que possam parecer, num primeiro momento, estranhos ou mesmo desagradáveis”.

Ou seja, “Transformers”, “X-Men”, “Crepúsculos”, “Harry Potters”, “Velozes e furiosos” – e mesmo “Se beber, não case” – da vida, não se preocupem! Vocês não estão em perigo de extinção! Não é uma mini brigada de filmes de Godard, Malick, Allen, Almodóvar, (Karim) Ainouz, Wenders, Solondz (e outros dos meus heróis) que vai impedir os estúdios aprovar que vocês sejam produzidos e lançados – e nem de agradar e ampliar a legião de seus fãs. Esses, por sua vez, não precisam odiar abnegadamente qualquer coisa que desafie sua paciência – ou até faça o atrevido convite de fazer você pensar por umas duas horas (ou até mesmo um pouco mais, depois que você sair do cinema). E é por isso mesmo, que eu gostaria de recomendar que você, que orgulhosamente comprou ingresso para ver um dos filmes que citei neste parágrafo (ou qualquer um de seus episódios), fosse assistir a “Namorados para sempre”.

Não viu que este filme entrou em cartaz? Nem sabe do que eu estou falando? A culpa não é sua… Primeiro porque essa tradução para o título original (“Blue Valentine”) é das mais infelizes – eu mesmo, se não estivesse esperando pela sua estreia (e soubesse desse seu “batizado”), jamais me interessaria por um filme chamado assim. Pensaria que se tratava de uma comédia romântica leve – o que não poderia ser mais distante da verdade. Imagino que esse nome escolhido em função da data estratégica que a distribuidora escolheu para lançá-lo em um punhado de telas por aqui – o fim-de-semana de 12 de junho. Na esperança, quem sabe, de que namorados apaixonados amolecessem o coração e comprassem um ingresso para uma noite de romance com suas parceiras. Novamente, nada poderia ser mais distante da premissa do filme.

Ocorre que “Namorados para sempre” – como me dói ter de escrever isso! – é simplesmente um dos filmes mais verdadeiros sobre o que é o amor nos dias de hoje. E, por isso mesmo, um dos mais tristes. Digo mais: esse é um dos filmes mais tristes que eu já vi na minha vida. E eu ainda garanto: se você for ao cinema conferir “Namorados” e não concordar comigo, é porque nunca se apaixonou na vida. Nem nunca se separou de alguém que gostou muito. Em ambos os casos, claro, você estará mentindo…

Desde o ano passado, eu já ouvia coisas ótimas sobre esse trabalho de Derek Cianfrance. Não só pelas performances incríveis de Michelle Williams e Ryan Goslin – nos papéis do casal protagonista –, mas também pela estrutura do filme (que viaja sem cerimônia, e sem aviso, pelo passado e pelo presente), bem como pelos seus bastidores: para conseguir tamanho envolvimento entre os atores, “Namorados” foi filmado durante quase um ano – e com muitas seqüências espontâneas.

Eu não quero nem falar demais sobre “Namorados para sempre” – eu nem saberia muito o que falar, uma vez que eu nem entendi direito o que ele causou em mim (a palavra “devastado” me vem à cabeça, mas nem ela é muito própria para descrever como eu saí do cinema). O que eu quero mesmo é insistir para que você o procure nas raras salas onde ele ainda está em cartaz – e dê a esse filme uma chance. Ele não tem nenhum efeito especial. A trilha sonora não é de uma banda de já vendeu centenas de milhares de disco. Seus atores principais são relativamente desconhecidos. A história não é contada de maneira direta. E ninguém garante que o final é feliz (tudo depende do seu ponto de vista!). Vai te dar um pouco de trabalho – não acho exatamente que você vai relaxar durante o filme. Mas eu garanto que… bem, que você vai se emocionar. (Queria garantir também que você vai gostar, mas, de repente, não sei, você não gosta de se emocionar…).

Se você me der esse voto de confiança, eu prometo que vou assistir – sem preconceitos – a “Lanterna Verde”. Vou até mesmo ver “Capitão América”! Quem sabe até “Transformers: o lado oculto da lua”?

O refrão nosso de cada dia

“You and me”, Penny & The Quarters – como disse acima, a trilha sonora de “Namorados para sempre” não tem nenhuma música nem vagamente conhecida. Mas tem esse pérola do soul do início dos anos 70. Mais simples, impossível. E o refrão então, quase nada. Mas é uma linda canção de amor. Quando a gente pensa que já ouviu tudo na vida…

O melhor disco de 2011 (e o de 1986)

qui, 23/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Sim, é chegada aquela hora crucial – e dramática – em que eu, na metade do ano, anuncio o melhor álbum do corrente, para indignação de muitos, chacota de uns, e revelação de outros. Se a experiência me ensina alguma coisa é que uma parte das pessoas que gosta de música pop não pode conceber, meses antes de 2011 terminar, que alguém tenha a empáfia de decretar qual é o melhor disco para representar todos os doze meses no ano! Há, felizmente, exceções: pessoas genuinamente curiosas que, se não concordam comigo, no mínimo agradecem o achado. Mas, tirando pela primeira vez que fiz isso, em meados de 2010, elegendo “The boxer”, de Kele, para tal honra, a reação (prevejo) vai ser próxima ao ultraje. Então, já que ele é inevitável, vamos a ele!

Mas antes – e este “mas antes” é minha homenagem a você, que sempre reclama que eu dou voltas antes de entrar no assunto principal (você que, se pudesse, resumiria todo o meu texto em uma mensagem em letras vermelhas lá em cima, para não dar trabalho nenhum de ler…) -, enfim, mas antes, eu gostaria de apresentar o melhor disco de 1986 – um ano muito longínquo mas que foi de importância crucial para o mundo do pop. Por que ele foi tão importante assim? Porque foi o ano em que “The queen is dead” veio ao mundo, cortesia de uma banda que talvez você tenha ouvido falar chamada The Smiths.

Esta não é a primeira vez que cito eles aqui – pelo contrário. Nem preciso de muitas desculpas para jogar os Smiths na conversa. Mas estamos falando de um aniversário – e dos mais importantes. Há 25 anos – quando você talvez ainda não tivesse nascido – “The queen is dead” chegava para mudar todas as regras de um pop que nem sonhava que o “grunge” estava ali na esquina. Não chegou a ser uma surpresa – afinal, os dois discos anteriores da banda (o primeiro, com o nome deles; e o segundo, o sensacional “Meat is murder”) já tinham criado suas pequenas revoluções, ressuscitado a então incerta cena alternativa inglesa, sacudido a letárgica parada britânica, apresentado a incomparável guitarra de Johnny Marr e a delirante poesia de Morrisey, conquistado legiões de fãs (inclusive, para não perder o trocadilho, um certo líder de uma legião urbana aqui mesmo no Brasil) e confundido uma boa parte deles com suas letras (“O que eu estou fazendo cantando ‘This charming man’ a plenos pulmões?”, perguntou-se mais de um admirador heterossexual da banda…).

Mas “Queen” era diferente: mais poderoso, mais melódico, mais radical, mais poético, mais sonoro, mais sedutor, mais nervoso, mais irreverente, mais sério, mais atrevido, mais impossível, mais genial. Enfim, um clássico.

Não que o pop inglês estivesse parado. 1986 foi também o ano do lançamento do icônico “C86″ – uma fita cassete compilada pelo não menos icônico semanário musical inglês “NME”, com o melhor das bandas então desconhecidas, e que se tornou uma referência para a música daquela década (boa parte dos artistas que estavam na coletânea, com exceção talvez de Primal Scream e The Wedding Present, tiveram fôlego para ir além de um ou dois álbuns, mas, de qualquer maneira, só o mérito de ter participado do “C86″ já garantiu o lugar deles na História). Mas “The queen is dead” veio para estabelecer um outro patamar. Era como se Marr e Morrissey estivessem dizendo: “Se vocês querem fazer música, de agora em diante, é assim – tem que ter melodia, tem que ter um refrão que você registra logo na primeira vez que ouve, e tem que ter versos como você mesmo escreveria se estivesse tomado de uma paixão infinita”.

Essa paixão não precisava ser exatamente por alguém. Podia ser pelo ódio à família real britânica (como na faixa-título). Ou pelas pessoas realmente estranhas (“Vicar in a tutu”). Pela liberdade (“Frankly Mr. Shankly”). Paixão pelo fim de uma paixão (“Bigmouth strikes again”). Ou pelo começo de uma (“There’s a light that never goes out” – será que alguém se lembra de uma declaração de amor, em forma de refrão, mais bonita e delirante do que essa, onde um amante diz ao outro que morrer ao seu lado, atropelado por um ônibus de dois andares, seria um privilégio, e que nenhum prazer seria maior do que esse fim trágico?). Fato é que essa paixão pingava de cada verso, de cada frase musical, de cada coro, de cada abertura (o que é aquela introdução de “The boy with the thorn in his side”?), de cada encerramento (garanto que aquela flauta do final de “There’s a light” está até hoje na cabeça de quem ouviu a canção pelo menos uma vez!).

Apreciadores da boa música comemoraram recentemente os 25 anos de “The queen is dead” – lançado oficialmente em 16 de junho de 1986 – e garantiram que ele ainda seja ouvido por muitas e muitas gerações. Afinal, o que os Smiths conseguiram ali foi fazer uma obra atemporal. Não importa sua idade, eu tenho certeza de que você vai ser capaz de dançar ao som de “Some girls are bigger than others”. Independente de qual o seu gosto musical, posso apostar que você vai se embalar com “Cemetry gates”. E basta apenas você ser humano para um dia ter se sentido como personagem principal de “I know it’s over” (ah… nunca teve seu coração completamente destruído? sei…).

Brinquei no início do texto que esse era (e foi, de fato) o melhor disco de 1986, mas um título como esse só diminui a obra. “The queen is dead” é uma das melhores coisas que já surgiram na história do rock (o próprio “NME”, em edição recente, que celebrou os 25 anos na capa, também não teve pudor de colocar o álbum no cânone dos melhores da história da Grã-Bretanha). Se fosse possível ele entraria também na lista dos melhores de 1987 – e 88, 89, 90, 91… E século 21 adentro. “Queen” é tão perfeito, que, depois de tantos elogios, fico até sem graça de falar do tal melhor disco deste ano, 2011, que eu vou revelar hoje aqui…

Mas vamos a ele: o escolhido (a ser depois confirmado ou desmentido por todas as listas que começam a aparecer nos sites de música que a gente gosta já no final de novembro) é… “The English riviera”, do Metronomy. Quem?

Pois então. Se você não for um fã de música eletrônica, talvez esse nome lhe escape por completo. Mas espere: se você não é um fã de música eletrônica, não pare de ler por aqui. “The English riviera” é uma espécie de guinada na trajetória dessa banda inglesa, que chamou atenção pela primeira vez em 2006, com o álbum “Pip paine” – um trabalho (vamos ser francos) muito chato. Fui atrás do Metronomy porque a crítica, na época, se entusiasmou com esse lançamento. Mas fiquei extremamente decepcionado.

Depois disso, nem me animei a conferir o álbum seguinte, “Nights out”. Mas, de repente, há algumas semanas, comecei a detectar o nome deles novamente no meu radar – e os elogios para “Riviera” eram tantos (e vindos de fontes que eu realmente respeito) -, que resolvi (olha que antigo!) comprar esse CD, numa viagem recente. Ficou na minha mala de mão uns bons dez dias, até que numa noite cansada, coloquei-o para tocar, menos por curiosidade do que iria ouvir, e mais para procurar uma trilha sonora que me convidasse ao sono. Não dormi.

Ou pelo menos não dormi tão rápido quanto eu pensava. Senti-me quase que obrigado a escutar “The English riviera” mais de uma vez – e só parei quando fui realmente vencido pelo cansaço. Fiquei completamente entusiasmo pela riqueza do álbum – e olha que esse é um atributo que uso com muita parcimônia. Tudo que eu já esperava da banda estava lá – especialmente os arranjos eletrônicos tão despojados que lembravam o melhor do “synthpop” dos anos 80. Mas o que me surpreendeu foi a inventividade que cada faixa trazia.

O começo até que foi meio lento. Depois de uma breve introdução, ao som de pássaros (numa encosta? numa “riviera”?) e violinos, a segunda faixa vem mansa. “We broke free” traz vocais suaves, modestas guitarras e familiares sintetizadores. Mas aí chega “Everything goes my way” – e você começa a prestar atenção! Como um mantra, “Love, I’m in love again” entra pelos seus ouvidos e se recusa a sair – e o ritmo é tão irresistível quanto o refrão. “The look” – a música seguinte – te desloca sem aviso para os anos 80. Quando você está quase se recuperando da viagem no tempo, “She wants” oferece o conforto das canções bem construídas dos anos 90 – e apenas mais duas faixas depois você já está em pleno século 21 (“Loving arm”), com um pé no 22 (“Corinne”).

Essa última canção é tão maravilhosa, que mesmo sabendo que eu já queria escrever sobre “The English riviera” mais adiante, eu não aguentei e indiquei ela para você logo no início deste mês, aqui no nosso já tradicional “pé de página” onde se lê “O refrão nosso de cada dia”. E com um bom motivo – fora o meu entusiasmo geral com a banda. “Corinne” é uma coisa esquisita – uma música que parece feita de partes desconjuntadas, mas que depois que você ouve pela segunda ou terceira vez, faz todo o sentido. E mais: ela se torna brilhante! (Não sou a favor, a princípio, de músicas “difíceis” – um dia até quero escrever um post sobre elas. Mas é que “Corinne” é verdadeiramente excepcional, ainda que ela te dê algum trabalho para você gostar dela!).

No finalzinho, Metronomy vem com mais uma faixa deliciosa (“Some written”), e fecha o jogo com uma espécie de enigma: “Love underlined” – parte Depeche Mode, parte Of Montreal, parte The Big Pink, parte Atlas Sound. Hum… Nem sei se é isso mesmo – mas qualquer banda que me faz lembrar de todas essas outras ao mesmo tempo, já merece o meu respeito.

Assim, senhoras e senhores, está apresentado aqui “o melhor disco de 2011″ (do meio do ano). Sei o que vem por aí – e estou preparado. Pode mandar! Ah! E já que eu vou levar pedra mesmo, aproveito para escolher também o melhor videoclipe do ano: “The greeks”, de uma banda chamada Is Tropical . Sim, mais uma banda britânica (hoje o post está cheio delas). Mas não vou gastar muito tempo com esses caras (pelo menos não agora). Só quero mesmo é chamar atenção para o vídeo de “The greeks”, que é estupendo. É até simples – feito todo em cima de uma ideia só. Mas essa ideia é genial, espertamente subversiva, e, apesar de serem extremamente violentas (aliás, essa é a questão!), as imagens são quase líricas… Afinal, o que você espera de um clipe feito com crianças?

Veja lá se você concorda com minhas escolhas (acho que já sei as respostas!) e segunda-feira falamos dos perigos da escrita criativa…

O refrão nosso de cada dia

“El galán de la Paternal”, Alvy, Nacho y Rubin – uma estranha associação de idéias me levou a esse refrão de hoje. Já mencionei minha paixão por esse projeto de ótimos músicos argentinos (ok, um uruguaio), quando escrevi sobre “Como un pollo degollado” há algumas semanas. Eles tiveram a coragem – e a inspiração – de fazer versões (para o castelhano) de algumas das melhores músicas de um clássico moderno chamado “69 love songs”, do Magnetic Fields (leia-se, Stephen Merritt). Mas isso não vem ao caso agora. Lembrei de “Galán” por que estava ouvindo justamente “There is a light that never goes out”, para escrever o post acima – e logo meu pensamento foi parar em outra música dos Smiths que também falava de um romance (mais ou menos) dentro de um carro: “This charming man”. “Por que se preocupar com as complexidades da vida, quando o couro desliza macio no banco de passageiros?”, pergunta Morrissey (na minha tradução apressada), numa clara alusão a um bom amasso entre duas portas… E isso me levou ao refrão de “Galán”, que, de maneira até mais romântica que “This charming man”, convida quem ouve a um passeio de carro cheio de possibilidades: “Tengo un Renault y vos querés ir a pasear”… Enfim, acho que viajei legal – mas pelo menos deixo aqui um belíssimo refrão para você aproveitar o feriado.

Sobre Berlim

seg, 20/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Quando alguém me pergunta quantos países eu conheço, a resposta sempre causa um certo estranhamento. Não exatamente pelo número de lugares visitados (que, felizmente, sempre aumenta), mas pela fração que a resposta traz. Quer ver? Na última contagem, foram 94,5 países por onde já viajei. Talvez até você tenha ficado admirado, ou admirada, com o número absoluto – 94 é bastante, reconheço (e comemoro). Mas posso apostar que você se perguntou: como assim, 94… e meio? A explicação é simples: o “meio” justifica um país que visitei e que já não existe mais. E ele é justamente a Alemanha Oriental.

Mais precisamente, estive em Berlim Oriental, antes de a Alemanha ser unificada, quando o muro ainda dividia a cidade, em 1986. Passei por lá a convite de uma artista plástica com quem tinha trabalhado (e ficado bastante amigo) nos idos nos anos 80. Hella Santarossa fazia parte de um movimento chamado “neo-expessionimo”, que era “o bicho” na Alemanha naquele início de década. Já falei sobre meu encontro com ela aqui neste espaço, quando fiz um post sobre uma rápida passagem por Frankfurt, mas quis lembrá-la novamente porque nosso contato teve uma influência enorme na minha relação com Berlim – a cidade em que estava, quando tirei a foto que publiquei na última quinta-feira.

(Em tempo, não achei que seria muito difícil acertar a resposta para a pergunta “onde estou?” desta vez, mas foi mais fácil do que imaginei… Sobretudo porque, como descobri, muitas pessoas que passam por aqui moram… em Berlim! Eva Pfannes, Camila R.I., Clarisse, “Dude”… O que é uma ótima notícia – não tenho certeza se para eles, mas pelo menos para mim, garanto que é! Além disso, muita gente parece ter passado por lá, apenas visitando – o que também é algo alvissareiro: saber que a curiosidade de um turista brasileiro chega até aqueles cantos… Eu talvez gostaria de uma resposta com mais detalhes – alguém dizendo que a obra instalada, ou melhor, “acidentada” na porta do Alte Postfuhramt, uma antiga escola, hoje transformada num centro cultural dedicado à fotografia (C/O Berlin), era de um artista genial, que eu não conhecia até agora, chamado Sascha Weidner, que não só faz instalações impressionantes, como também capta imagens fascinantes em fotografias, como essa que está logo abaixo. Mas o nível de acertos já foi muito bom – e tenho que agradecer aqui todos os esforços de quem tentou chegar à resposta correta!).

Enfim, voltando àquela primeira viagem a Berlim, 25 nos atrás, a intensidade da programação que Hella me impôs então, me deixou quase que sem fôlego. Eu voltava de minha primeira viagem à Índia, e passar pela Alemanha era só uma escala divertida – para qual eu não tinha grandes expectativas. Hella não demoraria a mudar isso. Driblava as noites geladas que passava dormindo na sala principal de seu atelier (sem aquecimento, no nunca menos que rigoroso inverno alemão), com uma variedade de programas culturais.

Tinha de tudo: de uma noite na ópera – onde ela quase foi expulsa do teatro por criticar, em voz alta, do balcão, a performance que acontecia no palco (“Die valkyrie”!) – a um concerto de última hora na Filarmônica de Berlim – ela tinha uma entrada só, a dela, e “me obrigou” a ficar ao relento na porta daquela bizarra construção, com um pequeno cartaz que ela mesma escreveu com as palavras “eine ticket” (uma entrada), na esperança de uma alma generosa me oferecer um “passe livre” que estivesse sobrando… (estratégia que, aliás, deu certo). Numa noite, um bando de artistas se reunia no estúdio dela, noutra, um passeio por cafés que ela costumava freqüentar… E de dia, claro, visitas a museus, galerias – e eventualmente, um pulinho “do outro lado do mundo” para conferir Berlim Oriental.

No meu caso, foi só um dia mesmo por lá – uma tarde comprida. Mas foi um dia que me marcou demais. E não exatamente de uma maneira positiva. Fazia um frio horroroso, claro, e o céu estava longe de ter sequer uma mancha azul. O cinza-chumbo era a primeira coisa que te recebia depois de você passar pela pesada burocracia entre fronteiras e desembocar na já famosa Alexander Platz. Quer dizer, pelo menos ela era famosa para mim, que nos meus tempos de faculdade (meros três anos antes disso), assisti às mais de 15 horas do icônico filme originalmente feito para a televisão, “Berlin Alexanderplatz”, dirigido por um dos meus ídolos na época, Rainer Fassbinder (penso logo em “Querelle”, em Jeanne Moreau cantando, “each man kill the things he loves, da da da, da da da da…” – mas eu divago…).

Eu estava li, visitando “ao vivo”, o cenário que eu já conhecia tão bem na minha imaginação, mas nada ali inspirava uma comemoração. A atmosfera era pesada – mesmo descontando todos os clichês do “mundo comunista” que ainda eram assunto na época, a visão era de uma cidade triste. Meio sem rumo, fui a uma livraria (sempre uma livraria!) gastar os poucos marcos (“orientais”?) que eu fui obrigado a comprar para cruzar o muro – recebi ordens expressas de não voltar com nenhum centavo daquele dinheiro. Gastei parte com um livro de capa vermelha, sobre música clássica (em alemão, claro), e com o troco, tomei uma sopa gordurosa no que parecia ser uma versão socialista de um “diner” americano. Andei bastante pela praça – apesar do frio e da escuridão – e só pensava em voltar logo para o lado ocidental. Mesmo minhas gélidas acomodações pareciam mais aconchegantes do que aquilo que eu estava presenciando. Queria esquecer tudo. E logo.

No dia seguinte fui ver o muro de fora – um dos trechos que os turistas costumavam visitar. E essa a experiência do dia anterior se repetiu. Eu já estava indo embora de Berlim, depois de 5 dias frenéticos – e quando Hella Santarossa me pediu que eu levasse para ela uma maquete de vidro de uma escultura sua e a entregasse a alguém em Colônia – uma das escalas do meu trem de volta para o “ocidente” – eu me senti feliz por ter um motivo “importante” para deixar Berlim… Na memória, mais do que a vibração de uma cidade movida por inspirações de grandes artistas (escritores, músicos, pintores, bailarinos, arquitetos), as lembranças de uma tarde triste.

Só voltaria lá 20 anos depois. Era o ano da Copa do Mundo na Alemanha, e dois amigos (entre eles, uma colega jornalista entusiasta do design e da arquitetura que veríamos por lá) me convenceram a visitar “a nova Berlim”. Era, de fato, outra cidade. Unificada (e numa gloriosa primavera), minha impressão tinha tudo para ser mais positiva. E foi, de fato, pelo menos no que se refere ao, digamos, “espírito das ruas”. Essa Berlim era, sem dúvida, bem mais animada, bem mais alegre – e bem mais… jovem. Jovem demais, eu diria. Ofensivamente jovem. E foi isso que me incomodou desta vez. Em maio de 2006, eu já com 43 anos, me senti ligeiramente deslocado da “vibração” de Berlim. Era como se uma grande festa estivesse mesmo rolando – e eu não tivesse sido convidado. Ou melhor, era como se eu nem tivesse chance de pedir um convite…

De certa maneira, achei a cidade meio provinciana. Com menos de 4 milhões de habitantes, ela não chega a ser uma metrópole como aquelas onde eu mais me sinto bem – Nova York, Istambul, Buenos Aires, São Paulo, Bombaim (falando nisso, preciso assinalar, finalmente, o lançamento em português, pela Companhia das Letras, de “Bombaim: cidade máxima”, do meu ídolo, Suketu Metha, o livro que inspirou uma série que fiz no “Fantástico” no ano passado, sobre mega cidades). Mas voltando a Berlim, ao mesmo tempo, ela tem um leque de atrações culturais que consegue me seduzir mesmo em cidades nem tão grandes assim – Lisboa, por exemplo. Colocando tudo na balança, porém, ainda não foi daquela vez que me senti à vontade em Berlim.

Movido por outra caravana – desta vez, um grupo de dez amigos que estaria, coincidentemente, passando por lá para visitar um outro amigo que está morando lá desde março –, senti que seria minha chance de finalmente me deixar conquistar por Berlim. Afinal de contas, havia toda a euforia de estar numa cidade que todos dizem que é muito legal, com “a minha turma” – as pessoas com quem já viajei e me diverti em diversos cantos do mundo! Além disso, esse amigo residente, que ganhou uma bolsa de um ano para desenvolver um trabalho lá, me contava que estava tão apaixonado pela cidade, que já fazia planos para se mudar para lá definitivamente! O problema, claro, era eu – e não Berlim. E fui disposto a “consertar” isso de uma vez por todas!

Bem, é com um certo constrangimento que anuncio que… não rolou…

Tive três dias fascinantes. Andei de bicicleta por todo lado – uma das grandes vantagens de morar lá é essa mobilidade (isso sim é que é uma cidade que respeita o ciclista). Visitei museus que ainda não conhecia – em especial, o Hamburger Beinhof (Museum für Gegenwart), que tinha uma boa exposição de Richard Long (além de uma considerável galeria dedicada a Joseph Beyus, e outra a um dos meus artistas favoritos de todos os tempos, Alsem Kiefer – onde tirei a foto ao lado). E outros lugares por onde já havia passado, como o impressionante Memorial do Holocausto (onde a foto que abre o post de hoje foi tirada) – aqueles blocos de concreto que despertam sensações intraduzíveis, só de você passear entre eles. Jantei cardápios variados – apesar de não poder ter desfrutado da cerveja local, por conta do meu “projeto de reprogramação corporal” (um eufemismo para a série que estou terminando no “Fantástico”, “Medida certa” ). Sobretudo, ri muito com meus amigos e admirei pelas paisagens.

Mas Berlim, para mim, continua a ser um lugar que ainda não decifrei. Aquela sensação que tive em 2006, de que era um lugar exclusivamente jovem, só ficou mais forte. Um outro brasileiro que conheci por lá, me contou que aquela é uma cidade sem muito dinheiro – onde as ideias são mais valorizadas do que os projetos em si. Ou seja, um ótimo lugar para artistas se desenvolverem, mas não exatamente auspicioso para quem quer ver suas ideias serem concretizadas. Isso, se for verdade mesmo, explica muita coisa. Mas não explica minha falta de intimidade com Berlim.

O que não significa que não quero voltar lá. Nem que seja por teimosia, fica aqui o desafio de um dia, quem sabe, me apaixonar por Berlim. Queria pedir até para quem mora por lá (e passa por aqui) que junte alguns argumentos para tentar me convencer de que esse esforço um dia vai ser recompensado. Se existe tanta gente que gosta de lá, Berlim deve ter alguma coisa irresistivelmente encantadora, só que eu ainda não descobri o que é. Quem sabe numa quarta visita?

Enquanto isso, vamos em frente, porque, como estamos já no meio de 2011, está na hora de, a exemplo de como fiz em 2010, anunciar (prematuramente, claro) “o melhor disco do ano”. E esperar pelo meu “apredrejamento público”. Algum palpite? Então até quinta!

O refrão nosso de cada dia

“Everything you wanted”, Kele – aproveitando o gancho da minha escolha (duvidosa) de “melhor disco de 2010”, que acabei de mencionar, deixe-me resgatar esse refrão do álbum “The Boxer”, de Kele – que eu ainda acho que foi um dos grandes injustiçados do ano passado. Perdi a conta de quantas vezes cantei “I could have given you everything you wanted, everything you needed” – a plenos pulmões. Infelizmente, não tinha ninguém ouvindo. O que não faz desse refrão algo menos belo. E forte. E pungente. De deixar meu coração pequeno assim…

Onde estou?

qui, 16/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Um amigo que está morando aqui (e que vim visitar) diz que quer viver aqui para sempre… Esta é a terceira vez que visito esta cidade, mas ainda não estou convencido. Culturalmente vibrante, ela é – 0 que pode ser atestado pela escultura que encontrei na frente deste centro cultural (não, isto não é uma cena de acidente urbano – ademais, a cidade não é nem um pouco perigosa, nem mesmo nesse sentido). Mas minha impressão é a de que ela é ligeiramente provinciana – apesar de ser notoriamente cosmopolita… Bem, sem querer dar pistas demais (e de olho no relógio para aproveitar essa breve folga no meio da semana), deixo você agora com essa imagem – e a pergunta já tradicional: “onde estou?”. Segunda-feira, claro, discorremos sobre este lugar…

Notícias, fofocas, mamilos

seg, 13/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Alguém se lembra de Danadinha e Papudinha? A primeira novela que eu tenho o registro de ter assistido com atenção chamava-se “Estúpido cupido”. Era o ano de 1976 – e embora eu, aos 13 anos, já fosse um ávido consumidor de TV, foi essa história de Mário Prata, que se passava nos anos 60 (uma mera década separava a novela da própria História – com maiúscula mesmo), numa cidade do interior paulista, que primeiro cativou meu imaginário “novelesco”. Quem sabe um dia, em nome da pura nostalgia, não escrevo um post só sobre ela? Não será hoje, claro, pois evoco “Estúpido cupido” apenas para prestar uma homenagem a essas duas memoráveis personagens – e lembrar como, apesar de todo o anacronismo, elas são muito atuais.

Danadinha, na verdade, chamava-se Adelaide – e nunca me esqueço (sem precisar recorrer à wikipédia) que quem a interpretava era a ótima Célia Biar. Já Papudinha (que, como refresquei minha memória na internet, era vivida por Kléber Macedo – um pouco estranho, mas é o que está lá na página da novela… ) era o apelido de Adelaide. Mas ninguém da cidade as conhecia pelo nome de batismo. Elas eram apenas Danadinha e Papudinha, as fofoqueiras “master” de Albuquerque – e nada escapava delas. Cada namorico, cada traição, cada deslize, cada “pecadillo” dos pobres habitantes daquele lugar era imediatamente registrado por elas – e comentado com requintes de intriga que só fofoqueiros profissionais são capazes de desenvolver. Muitas vezes elas nem o faziam com maldade, apenas pelo puro prazer de estar especulando sobre a vida dos outros – provavelmente uma triste consequência de as vidas delas mesmas serem um tanto sem graça…

Recentemente tenho me lembrado bastante delas – desde que fiz um curioso paralelo entre a duvidosa “atividade” das duas personagens inesquecíveis e o exército de Danadinhas e Papudinhas que hoje se expressa em pseudo manifestações coletivas através do Twitter e outras redes sociais (formado, ouso sugerir, por pessoas que, como elas, acham que a vida dos outros tem mais graça que a delas mesmas…). Acha que eu estou exagerando? Que nada! O nosso maravilhoso desenvolvimento tecnológico – que nos deu tanta coisa boa (inclusive esse contato nosso aqui duas vezes por semana) – abriu também essa incrível possibilidade de bisbilhotar passivamente a vida de quem bem entendermos.

Tenho citado as fofoqueiras de “Estúpido cupido” com certa frequência, mas me lembrei especialmente delas no início da semana passada (mais ou menos 2.500 anos atrás na linha do tempo da internet), quando uma verdadeira comoção surgiu no Twitter por conta do figurino que minha colega Patrícia Poeta estava vestindo no programa que apresentamos todos os domingos.

(Antes de continuar, quero deixar claro aos mais desavisados – e aos cínicos de plantão – que este não é um post em defesa ao visual da apresentadora naquele dia específico. Muito menos escrevo para preservar a imagem dela – uma vez que já tendo conquistado o público, e eu mesmo, por sua competência, carisma, beleza e simpatia, a última coisa que Patrícia precisa é de mim para “sobreviver” a este episódio. Pretendo usar o fato apenas para falar sobre o que a gente assimila como informação hoje em dia. Por isso, se você tiver algo a acrescentar – negativa ou positivamente – à “polêmica”, não perca seu tempo: guarde seu comentário perspicaz para si. Ou então ligue, ou tecle, correndo para sua “Danadinha” preferida para desenvolver o tema).

Para minha surpresa, na última segunda-feira, quando recebi o relatório de “trending topics” (“TT, para os íntimos, ou simplesmente “o babado”, como se perguntava antigamente, tipo: “qual é o babado?”), lá estava a roupa de Patrícia como um dos assuntos que haviam criado maior circulação de mensagens nas últimas 24 horas. A surpresa, como você pode imaginar, não era o fato de o nome dela, nem mesmo o programa onde nós trabalhamos, ter entrado para aqueles TT – eu mesmo já figurei algumas vezes na lista (a mais notória delas, pode apostar, há cerca de um ano, por conta de um certo bocejo…). Lady Gaga – e tantos outros artistas pop – ajudam sempre o “Fantástico” a estar entre os assuntos mais comentados – e a gente, sem dúvida, acha isso ótimo. O que me chamava a atenção dessa vez era o tom de boa parte dos comentários – que ia da piada sem graça (já passou pela cabeça de alguém que retwitta uma gracinha que piada contada mais de uma vez perde a graça?) ao mais sarcástico dos escárnios. E tudo isso por quê? Por conta de um vestido? Danadinha! Papudinha! Eis o vosso legado!

Tudo bem. Twitter, Facebook – a própria internet serve para isso (entre outras coisa, que fique bem entendido). O que eu acho verdadeiramente bizarro é que fatos como esse acabem ganhando o tratamento de notícia. Isso, sim, é grave – não para o alvo do comentário em questão (não foi esse o caso com o tal vestido), mas para o nível da troca de informações no qual estamos nos acostumando a trafegar. Vamos ao contraponto, para você entender melhor aonde eu quero chegar.

No dia seguinte ao “escândalo da roupa”, um fato de ligeira maior gravidade marcou a semana: a saída de Antonio Palocci do governo, meros cinco meses depois da posse da presidente Dilma Rousseff. Depois de uma denúncia de enriquecimento estrondoso, por meio de uma nota oficial, Palocci entregava o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, com prováveis desdobramentos políticos que nem os maiores “experts” nos bastidores de Brasília ainda foram capazes de prever.

Não preciso exatamente me alongar sobre a diferença de importância entre os dois fatos aqui assinalados – um, um certo frisson causado por um “look” na televisão, e o outro, um perigoso “desvio de percurso” de uma gestão que parecia se afirmar diante de todo um país. A julgar apenas pelos twitts de ambos os assuntos, é como se as duas coisas tivesses a mesma dimensão! Ou até pior: pela brevidade dos comentários (pelo menos os que li) sobre a (segunda) queda de Palocci, a decisão que “sacudiu Brasília” parecia até mais inconsequente do que a escolha do figurino de Patrícia. Sei que seria um pouco demais exigir de um público tão grande quanto a brigada de twitteiros no Brasil um “compromisso mais engajado” com o cenário político do país – ou mesmo uma análise, por mais breve que fosse do que a saída abrupta de um chefe da Casa Civil pode significar. Mas o que acho ruim disso tudo, uma verdadeira distorção, é essa tendência (aparentemente irreversível) que temos hoje em dia de dar o mesmo peso para tudo…

Talvez você se lembre que, no início do ano, fiz um comentário sobre esse tema aqui mesmo neste espaço. Numa vaga analogia ao mito da caverna de Platão (via o ótimo livro “Quarto”, de Emma Donoghue, agora traduzido para o português, e lançado pela Verus) eu “reclamava” que quem só se informa pela internet (e por micro manchetes, que assumiam o lugar de uma informação apurada) tende a achar que o mundo é só aquilo. E a verdadeira essência do que é notícia – e não apenas fofoca – estava, lamentavelmente, se perdendo. De lá para cá, parece que as coisas só estão piorando…

Uma breve esperança, contudo, parece surgir não exatamente das semelhanças entre as abordagens das duas histórias que citei – Palocci/vestido -, mas das suas diferenças. Ao mesmo tempo em que o tratamento dado a elas é muito parecido, bem como sua disseminação, a fonte – ou a origem – de cada uma delas, é radicalmente distinta. A “polêmica” (insisto nas aspas) da roupa de Patrícia surgiu de um mero rumor – uma reação de algumas pessoas com relação ao que estavam vendo (e não aprovando). E a internet – o Twitter, mais precisamente – ajudou isso a se transformar em uma forte opinião coletiva. Porém, por mais reproduzida que essa opinião fosse, ela não passou de um rumor – e, como todas eles, teve o fôlego curto.

Uma semana depois, quando veio um novo “Fantástico” (e um novo visual da sua apresentadora), sua imagem em nada havia sido abalada – e nem mesmo os mais desocupados de plantão perderam seu precioso tempo comparando a roupa que ela usou ontem com a do domingo anterior. Assim como os fuxicos de Danadinha e Papudinha, não levantaram onda alguma – só uma marola. E o que parecia tomar a forma de uma coisa séria, diante de um tsunami de retwitts, já caiu praticamente no esquecimento.

No caso da notícia de Palocci, a origem da informação é outra. Surgiu de um questionamento a partir de uma reportagem de um jornal respeitado (“Folha de S.Paulo”) – um material apurado e sério, que detonou todo um processo de levantamento de dados e indícios de que um problema realmente existia. Diferentemente do “vestido da Patrícia”, enquanto os mais desavisados retwittavam reações tépidas de indignação ao ministro Palocci (sem entender direito o que estava acontecendo), uma investigação séria estava em curso. E a força do que foi descoberto ao longo desse processo ajudou a provocar uma verdadeira mudança – a queda no ministro. Isso, de fato, é notícia. O resto, é fofoca…

Nessa nossa confusão midiática, onde todo mundo com 14o caracteres na mão acha que é repórter, esses dois universos – o da informação e o do rumor – estão cada vez mais próximos. Só que, por mais que os defensores da “democratização da informação” achem que isso é o futuro – e que esse futuro é que é legal -, eu lamento informar que, pelo menos pela próxima geração (duas talvez), ainda vai haver um pouco de lucidez para que a gente consiga distinguir entre uma coisa e outra. As Papudinhas e Danadinhas do Twitter vivem dias de glória – e de ilusão -, achando que são elas que estão gerando informação no mundo de hoje. Queridas, quando muito vocês estão apenas circulando rumores. Desculpem-me por estragar esse momento de festa, mas tenho que dizer que, como o caso de Palocci mostra, informação “de verdade” ainda “é o bicho”!

E quem fala aqui não é um chato rabugento, que se recusa a ver que o mundo está mudando. Gosto de todas as bobagens e de todos os “fenômenos” que a própria internet me oferece diariamente. De “Dança do quadrado” à Banda Mais Bonita da Cidade, sou imensamente grato às possibilidades desse meio. Mas, como jornalista – e mesmo como leitor -, eu prefiro que meu cardápio de informações seja servido, digamos, “com sustança”. Fico sempre com a notícia. Pode ficar com a fofoca, se assim lhe aprouver…

Ah, e o mamilos? Só mais uma mini febre da temporada, cortesia, claro, dessa fonte infinita de operação chamada youtube. Vai dizer que você ainda não soube da “polêmica dos mamilos” ? Divirta-se! Mas atenção hein, vai com cuidado – se não, daqui a pouco alguém até faz um programa sobre isso. O quê? Já fizeram? Ah…

O refrão nosso de cada dia

“Pumping on your stereo”, Supergrass – não exatamente uma faixa “obscura”, mas uma das minhas favoritas de todos os tempos, especialmente no que se refere ao refrão. Uma pergunta simples (“Can you hear us humping on your stereo”?), repetida à exaustão, fazendo você entrar no clima de total desprendimento da faixa de uma das melhores bandas inglesas dos últimos 20 anos (não, não quero criar polêmica, só estou sendo honesto com meu coração). Ouça e veja se até o final dela você não tem a sensação de que está com os caras na festa que fica evidente que está acontecendo no estúdio depois que a música acaba…

“Se beber não case 1 & 2″ – estudo comparativo

qui, 09/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Para a abordagem “científica” que pretendo usar aqui hoje, é preciso que se esclareça, logo de início, um dado importante: “Se beber não case” está mais para um filme de suspense do que para uma comédia. Esta afirmação é fundamental, primeiro para entendermos a razão pela qual se ouvem tão poucos risos no cinema, durante sua projeção. E, depois, para que a gente corrija a bravata – tão alardeada na semana anterior – que anuncia que a parte dois, recém-lançada mundialmente, é “a comédia restrita (isto é, que não ganhou o selo de censura livre nos Estados Unidos) de maior bilheteria de todos os tempos”.

De fato, “Se beber 2″ estreou nos cinemas americanos com a impressionante bilheteria de 135 milhões de dólares – e por aqui, pela popularidade do filme, não deve ter feito feio também. Ocorre que este é um título duvidoso. A classificação que ele recebeu – “R” (de “restricted”, ou “restrito”) – deve-se tão e unicamente às aparições, ainda que breves, de alguns não menos duvidosos órgão sexuais masculinos (durante uma sequência que deveria ser engraçada). O que está longe de manchar a produção com um rótulo de “pornografia” – aliás, sequer de “filme erótico”. Além disso, como já disse – e repito -, “Se beber não case” quase não merece ser chamado de comédia.

Para desenvolvermos o assunto então, tenho de admitir que até a semana passada eu não havia assistido nem ao primeiro filme – de uma série que ainda promete alguns desdobramentos (Alan ainda não se casou, certo? E Teddy tem tudo para entrar para a turma e… querer se casar! Mas eu estou me adiantando…). A notícia do sucesso da estréia da parte dois, porém, aguçou a minha curiosidade. Estava decidido a conferir o filme logo no fim-de-semana. Para minha sorte, porém, quando voltava de viagem ao Brasil, na última quinta-feira, o primeiro “Se beber” estava no cardápio de filmes do avião. E eu disse: por que não?

Ver filmes em avião nem sempre é o ideal. Mas funciona bem para alguma coisa que você já tenha assistido e quer rever, ou para produções mais simples – me lembro de ficar muito emocionado (para o constrangimento de estranhos que estavam nos assentos ao meu lado) com “Gran Torino”, por exemplo -, ou ainda para comédias totalmente descartáveis (pense em “Sex and the city 2″, que estava em todos os vôos que peguei quando fiz a série sobre megacidades em 2010). Achei que “Se beber não case” estava mais para a terceira categoria, e resolvi investir no filme logo após a decolagem – não sem um certo temor de que eu fosse rir tanto, que seria capaz de perturbar o sossego de quem estava perto de mim.

O temor, como percebi logo nos primeiros minutos, era totalmente infundado. Esbocei o primeiro sorriso quase meia hora depois dos créditos iniciais – e não estou exagerando quando uso o verbo “esboçar”. Com efeito, o primeiro momento realmente engraçado é quando, ao pedirem o carro para o manobrista de um hotel em Las Vegas, nosso três heróis – Phil (Bradley Cooper), Stu (ed Helms), e Alan (Zach Galifianakis) – se deparam com um carro de polícia! Que, como tudo que eles encontram nessa sequência inicial, quando ainda estão acordando de uma ressaca numa suíte de luxo (onde enfrentam um tigre, um bebê, um dente faltando…), eles não fazem ideia de como foi parar lá!

Para quem talvez não tenha assistido a esse grande sucesso – eu até queria ver na época, mas acabei não o priorizando -, aqui vai uma breve sinopse: turma de amigos vai a Las Vegas para uma despedida de solteiro, tomam um porre (potencializado por algum alucinógeno ilícito) e acordam em estado deplorável, cercado de indícios de que eles aprontaram bem além da conta na noite anterior, mas ninguém tem idéia do que realmente aconteceu; e, pior, um dos amigos (justamente o noivo) está desaparecido, e eles têm que reconstituir o que aconteceu para tentar reencontrar esse amigo – e, com sorte, chegar a tempo para o casamento. Ah, e com pequenas variações, esse é também o roteiro da parte 2…

Eu acabei gostando desse primeiro “Se beber”, mas, insisto, menos pelos momentos cômicos do que pela habilidade do roteiro em segurar nossa curiosidade e oferecer aos poucos as pistas do que tinha acontecido com os caras – a engenhosidade é tal que me lembrei rapidamente de “Os suspeitos” (e isso é um baita elogio!). Foi isso que me fez sentir  provocado o suficiente para ver o novo filme. Mesmo um pouco intrigado pela improvável relação entre o potencial engraçado da história e sua marca nas bilheterias mundiais – como pode um filme com tão poucas piadas engraçadas ter sido uma das comédias mais lucrativas de todos os tempos? – fiz questão de assistir à continuação – e dessa vez, num cinema. E tive uma curiosa experiência “neurológica”.

Sabe aquela sensação, que às vezes temos, de que já vivemos uma cena que acabou de acontecer no nosso dia-a-dia? Já li várias explicações sobre isso – a melhor delas é a de que, por uma sinapse maluca, seu cérebro “bate duas fotos” do que está acontecendo: uma fica no presente e outra vai imediatamente para a memória, e aí você tem a sensação de que já viveu aquilo que está no presente (eu divago, eu sei…). Mas com os dois “Se beber” eu fiquei realmente perplexo: com a diferença de apenas alguns dias, era como se eu estivesse vendo o mesmo filme duas vezes! Exagero? Pois estou aqui justamente para fazer esse estudo comparado dos dois títulos – e provar que eles são praticamente um só!

Vamos do início? Os créditos rolam em cima de imagens deslumbrantes da preparação de uma festa de casamento – tanto em um quanto no outro. Em off, ouve-se recados de secretária eletrônica, informando que os personagens principais estão fora de casa ou do trabalho, em viagem. Corta para uma noiva tensa, que não consegue falar nem com os noivos nem com seus melhores amigos – que foram para uma despedida de solteiro. Bingo! A sequência está presente no primeiro e no segundo filme.

Phil – sempre ele – finalmente liga e informa (para o desespero da noiva e de sua família) que eles estão ferrados, que não vai dar para chegar para a cerimônia – e somos então convidados para um rápido flashback de alguns dias antes desse, que mostra como eles se prepararam para a despedida de solteiro. No segundo filme, traumatizado pelos acontecimentos do primeiro, Stu (o noivo da vez) dispensa a “despedida”, mas uma pacata celebração em volta de uma fogueira numa praia tailandesa (o segundo casamento é num mega “resort” na Tailândia) é o estopim para tudo acontecer de novo. E tudo acontece… de novo!

Vamos rir tudo de novo? – eu já me perguntava logo de cara, sabendo que a resposta seria um não. Mas me senti compulsivamente ligado no filme – “seduzido” é a melhor palavra, uma vez que tudo que eu queria, depois de descobrir que estava praticamente vendo o mesmo filme pela segunda vez, era saber como eles tinham se metido em tanta confusão… de novo! As diferenças eram só aparentes: no lugar de uma “suíte de luxo em Las Vegas”, um hotel barato em Bangcoc; no lugar de um tigre, um mico amestrado; no lugar de um dente faltando, um dedo amputado; no lugar de um noivo desaparecido, um garoto de 16 anos que é o xodó do pai da noiva (sua irmã); no lugar de uma aliança no dedo de Stu, uma tatuagem (tipo Mike Tyson) bem no seu rosto. Como eles conseguiram tudo isso? Mesmo sabendo que teria de enfrentar dezenas de piadas sem graça, não tive como resistir: eu queria acompanhar aqueles caras até o fim.

Não quero ser ranzinza. Os filmes – tanto o primeiro quanto o segundo – têm momentos engraçados sim. Talvez isso não conte muito a favor, mas a cena mais engraçada do primeiro é quando Alan faz um bebê se masturbar – um momento que é curiosamente repetido na parte dois, quando ele faz quase a mesma piada com um monge tibetano octogenário…

Mas, no geral, o riso, pelo menos para mim, vem das situações altamente improváveis – e não da performance,  no mínimo, exagerada desses atores caricatos.

Fiquei particularmente incomodado com Zach Galiafinakis. Ele é o novo queridinho da comédia americana – e eu não entendo bem porquê. Não vi nenhum outro filme seu, mas a tirar por esses dois, o tipo de humor que ele faz eu já conhecia desde os tempos em que de um dos maiores comediantes que o Brasil já conheceu, Ronald Golias, emprestava sua graça para um programa chamado “Família Trapo” (que você encontra facilmente no youtube). Naquele programa de humor dos anos 60, Golias encarnava o antológico Carlos Bronco Dinossauro – e fazia um humor não muito diferente do Alan de Galiafinakis: encarando as situações mais absurdas com a inocência de uma criança, numa espécie de encarnação do id, só que sério. Como você vê, no humor nada se cria… E muito pouca coisa se transforma!

Mas voltando ao filme – ou melhor, aos filmes – seu desenrolar inteligente é o que prende o telespectador. As revelações que vão sendo passadas a conta-gotas são cada vez mais surpreendentes. Da “queda” de Stu por prostitutas (no primeiro filme, ele se casa com uma delas em Las Vegas, e no segundo… bem, vamos dizer que as cenas que dera o tal “R” para “Se beber 2″ têm justamente a ver com isso…), à quantia absurda de dinheiro que eles têm que arrumar da noite para o dia, todas as situações se repetem. Mas, ao contrário de me irritar com isso, eu ia me sentindo bem à vontade para me entregar àquela trama. Uma vez que tirei das costas o peso de ter que achar graça do que estava vendo, “Se beber 2″ tornou-se realmente interessante. Não só pelo que ia sendo revelado, mas pela próprio desafio que os roteirista tinha de ter que contar a mesma história de uma maneira ligeiramente diferente.

As semelhanças entre os dois filmes, que tanto me incomodavam no começo, acabaram contando a favor da segunda produção. E as coincidências entre os dois roteiros – que seguem até o momento em que eles descobrem onde está a pessoa desaparecida (a “epifania” que revela o mistério, incorporada, em ambos os casos por Stu, é tão simples, até fácil demais, tanto no primeiro quanto no segundo filme), ou mesmo na festa de casamento que fecha a história – já não são um incômodo, mas sim uma atração. Até Mike Tyson está de volta em “Se beber 2″ – se bem que se eu contar como, a “patrulha do spoiler” vai cair matando…

(Devo acrescentar ainda, que a única hora em que você ri bastante é a das fotos – que sempre são “descobertas” no final do filme, e passam junto dos os créditos finais. Eu recomendo: não vá embora da sala antes de ver isso. É aí que você que pagou para assistir a uma comédia, e não a um policial, vai se sentir recompensado!).

No final, fiquei tão encantando com o filme, que saí no cinema com uma sensação rara: a de querer ver a parte 3! Sim, porque não tenha dúvidas de que ela já está em pré-produção – ainda mais depois do sucesso dessa sequência. Afinal, como já disse hoje mesmo aqui, ainda falta gente para casar naquela turma. E Phil, Stu e Alan, sempre podem descobrir as armadilhas, os perigos e as revezes de um lugar tão “exótico” quanto Las Vegas ou Bangcoc para se meter em novas aventuras. Alguém aí sugeriu Rio?

Bem, mas vamos ficar por aqui hoje e nos preparar para segunda-feira, quando quero falar sobre a curiosa relação que encontrei entre a queda do ministro Palocci e o vestido que minha genuinamente querida colega de apresentação, Patrícia Poeta, usou no programa de domingo passado. Sim, vou divagar – e com prazer…

O refrão nosso de cada dia

“Corrine”, Metronomy – este refrão vem fresco dessa viagem recente que fiz. É de uma banda alternativa que sempre chamou uma atenção moderada, mas que com seu novo álbum. “The english riviera”, tem tudo para conquistar um público maior. Eu já virei fã devoto – e a faixa que foi a maior responsável por isso é esta. Seu refrão é um dos mais estranhos dessa coleção que estamos juntando aqui desde o começo do ano. É como se ele nos desafiasse a acompanhá-lo – exatamente o contrário do que um bom refrão deve fazer, que é se instalar imediatamente na sua cabeça. Primeiro ele é apresentado só como uma frase musical – já em si enigmática. E quando vem a letra as coisas parecem ficar ainda mais confusas, como se as duas partes não se encaixassem. Mas uma vez que essa esfinge é decifrada, “Corrine” estará para sempre impregnada na sua memória… E você não vai se arrepender.

 

 

 

Passado é um lugar que não existe

seg, 06/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Não sei bem quantos olhos que passarem por aqui vão reconhecer a (espero) fina ironia do título de hoje. Para identificá-la, é preciso que você tenha sido um apaixonado por livros – e nos anos 70. Eu mesmo era ainda garoto, e na minha, digamos, precocidade literária, mas me lembro muito bem de um volume com o nome muito parecido com essa expressão que usei acima – e que se tornou um açucarado clichê. Mas sugiro que a gente deixe essas explicações para o final do texto de hoje, pois agora estou mais interessado em contar por que fiquei pensando sobre a noção de passado nos últimos dias. Tem a ver com o novo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. E tem a ver com a exposição de Anish Kapoor no Grand Palais – sim, em Paris.

Tive a sorte de conferir esses dois “eventos culturais” na semana passada, durante uma passagem rápida pela cidade. “Rápida”, no caso, não é força de expressão. Passei apenas uma noite na cidade, com uma agenda lotada de compromissos – e com apenas algumas horas livres, justamente no dia do retorno ao Brasil. O que um apressado turista eternamente faminto de cultura pode fazer numa cidade que é referência mundial nesse assunto? Tentar encaixar pelo menos um filme e uma visita a uma exposição nessa sua breve passagem por Paris.

O cinema, foi relativamente fácil, pois explorei mais uma vez a sempre bem-vinda sessão de cinema às 9h da manhã (já amplamente elogiada aqui mesmo neste espaço) – driblando assim os compromissos que teria durante o dia. Na verdade, tive de “empurrar” uma dessas reuniões uma meia horinha por conta do horário de término dessa “matinê”… Mas vai dizer que a causa não era justa! Como eu poderia perder a chance de ver um filme de Woody Allen sobre Paris… em Paris? (Por outra feliz coincidência, seu primeiro filme rodado lá, “Todos dizem eu te amo”, eu já tinha conferido lá mesmo – e chorado como uma criança na cena em que o diretor e a atriz Goldie Hawn dançam às margens do Sena… mas eu divago). Eu já havia visto o trailer do filme e colocado na minha cabeça que aquela seria uma prioridade dessa visita. Não me arrependi, claro.

Em breves linhas, para não tirar o prazer de quem ainda vai assistir ao filme (pelo que apurei, parece que esse não vai demorar meses para chegar às salas brasileiras de cinema), “Meia-noite em Paris” conta a história de um casal de americanos que acompanha os pais da futura noiva numa viagem de negócios à… cidade mais linda do mundo! Ela, Inez (Rachel McAdams, ótima no papel), não entende o encantamento do marido, Gil (Owen Wilson, na melhor encarnação do próprio Woody Allen desde… Woody Allen!), com Paris. Para ela, o lugar é uma distração – e um sofisticado shopping center. Para ele, é o cenário que um dia, nos seus “tempos áureos”, abrigou artistas, escritores, e gênios em geral, do calibre de Ernest Hemingway, Picasso, Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Salvador Dali, Luis Buñuel… Gil é um roteirista – até de certo sucesso – em Hollywood, e seu ideal de criação literária pode ser resumido a Paris dos anos 20!

Na sua primeira meia-hora, o filme de Allen é um curioso cartão postal da capital francesa. Para te dar uma idéia, o filme abre com quase quatro minutos apenas de imagens da cidade sobre uma trilha antiga – nada demais, apenas um dia normal em Paris, com ruas cheias, trânsito, um pouco de chuva, gente na rua, pontos turísticos, luzes se acendendo. Desnecessário dizer que só nesse início ele já tinha me ganho, né? Ou melhor, se a intenção do diretor era mostrar Paris como uma cidade qualquer, eu diria que ele fracassou. Mas fracassou triunfalmente!! Mesmo lotada, mesmo com chuva, mesmo cansada – não tem cidade no mundo igual a essa. A não ser…

A não ser a própria Paris, só que nos anos 20 – como diria Gil! Sua fixação é tanta, que sua fantasia torna-se, numa noite (mais precisamente, à meia-noite), realidade. E, de repente, diante de seus olhos, estão todos eles: Picasso, Fitzgerald, Buñuel – e mais a própria Gertude Stein (Katy Bates, no papel que ela esperou a vida inteira para interpretar!), mentora, dentre tantos, do próprio Hemingway, que se oferece para dar uns palpites no livro que Gil está escrevendo. Ah, e ele “esbarra” também na então namorada de Picasso, Adriana (vivida pela nunca menos que interessante Marion Cotillard). E é nesse passado que ele se realiza – e dele, Gil não quer mais sair…

Só que esse passado, claro, não existe – ou será que existe? Usando uma ilusão paralela à que nos propôs em “A rosa púrpura do Cairo”, Allen nos faz acreditar que não só é possível voltar no tempo como dialogar com todas as pessoas que admiramos de uma era longínqua. O envolvimento de Gil com esses artistas é tão grande que ele descobre até que eles mesmos não estão muito felizes com a época em que vivem – e olha que estamos falando de Paris nos anos 20! Envolvidos pela atmosfera quase malvada (de tão irresistível) da cidade, nós, espectadores, somos convidados a embarcar numa divertida vertigem no tempo, de onde só é possível voltar quando tivermos a certeza clara de que passado e presente – ou mesmo o futuro – são definições totalmente irrelevantes se quisermos viver plenamente.

Essa lição poderia facilmente ser pinçada de um livro barato de auto-ajuda – se o diretor por trás dela não fosse Woody Allen. Por trás dessa grande mensagem, há cenas de extrema beleza (quase todas na chuva), outras hilárias (o momento em que Inez pega Gil saindo do quarto do hotel para uma noitada é um clássico instantâneo), e sequências de puro encantamento (tente ficar de boca  fechada durante uma festa de aniversário onde Gil vai reencontrar Adriana).

Desta vez o diretor não está mirando seu olhar para as sempre atribuladas – e imprevisíveis – relações humanas. Seu alvo é a poesia – talvez até uma nostalgia sem pieguice. E ele acerta em cheio. A ponto de fazer este humilde admirador sair mais uma vez com lágrimas da sessão do cinema…

Era por volta das 11h da manhã – e o céu de Paris estava explodindo em tons de turquesa. O choque de estar na mesma cidade onde o filme havia sido rodado mal imprimia na minha consciência. O que eu tinha mais forte no meu pensamento, andando em direção da Pont Neuf, era o poder que o passado tem sobre a gente – e as armadilhas que ele nos traz. “Meia-noite em Paris”, insisto, é o melhor antídoto contra esse tipo de armadilha – e foi com o filme que eu segui para mais alguns compromissos, tentando ver em que parte do dia eu poderia encaixar uma visita ao Grand Palais para ver a instalação de Anish Kapoor.

Há anos ele é um de meus artistas plásticos favoritos. Bem no início deste blog já estava falando sobre ele, quando pude conferir umas esculturas gigantescas que estavam temporariamente no Rockfeller Center, em Nova York. Tive outras oportunidades de escrever sobre ele – inclusive quando ele ganhou uma retrospectiva sensacional no CCBB, no Rio -, mas deixei passar. E guardei esse arrependimento até agora, quando finalmente eu não tenho opção senão dedicar alguns parágrafos a um trabalho seu que mexeu tanto comigo.

Eu sabia que sua, hum, escultura no Grand Palais, era monumental – e uma das sensações da temporada das artes parisienses. Acompanhado de uma boa amiga que mora por lá, encarei uma fila de meia-hora (tempo era tudo para mim nesta viagem!), e finalmente consegui ver “Leviathan”. Fiquei menos tempo em contato com a obra do que na fila – mas o efeito em mim foi devastador. Tanto que, ao tentar expressar o que tinha sentido no post da semana passada, fui roubado das palavras – e publiquei somente uma foto. Não tinha o que falar – não tinha como explicar o que eu havia experimentado.

Da última vez que estive em Paris – como contei aqui, vi a homenagem que o diretor Wim Wendes fez à coreógrafa Pina Bausch. Num dos raros momentos em que ela aparecia falando, num material de arquivo, Pina tentava dar uma explicação sobre o que a fazia criar coreografias – e falava, mais ou menos, de coisas que são impossíveis de ser ditas com palavras, cenas, emoções, conflitos, que mesmo o teatro mais verborrágico não pode expressar. Para isso, segundo ela, existia a dança. Lembrei-me imediatamente dessa passagem quando tentei escrever sobre o “Leviatahn” de Kapoor.

As primeiras associações que vieram foram justamente sobre o contraste entre passado e presente. Naquele espaço onde ferro e vidro não deixavam dúvidas de que evocavam um passado de glórias (inclusive estéticas), uma imensa bolha colorida tomava conta de tudo – inegavelmente alardeando o presente. E na disputa entre os dois cenários, simplesmente não havia campeão, mas sim uma convivência pacífica (ainda que ensurdecedora) entre os dois “espíritos”: o de ontem e o de hoje.

Visitei primeiro o seu interior, acolhido por um bafo quente, junto com uma pequena multidão murmurosa, e envolto por uma vibrante cor vermelha, onde as sombras da estrutura do próprio Grand Palais faziam desenhos conforme o sol avançava. Ainda maravilhado com esse efeito, saí para ver a escultura de fora – e fui quase que nocauteado pela enormidade daquela forma (além de ter tido uma inexplicável sensação claustrofóbica, num lugar que era tudo menos apertado).

As perturbações que “Leviatahn” me apresentava eram visuais, mas seus efeitos eram sensíveis quase como tremores. Novamente sons – em volumes altíssimos – me ocorriam, sendo que o único barulho ali produzido era o dos passos (e eventuais conversas) dos visitantes. As escalas – humanas e de percepção – eram ali nada além de obsoletas. E se as medidas eram tão irrelevantes assim, imagine o tempo. Como disse, passei menos minutos com a obra do que os que gastei na fila para vê-la. Mas o registro é de uma vida inteira vivida na companhia daquele gigante.

(Quando eu era pequeno, tinha um sonho recorrente de um quarto que se enchia, inesperadamente, de moedas – ou qualquer outro objeto pequeno – pelos seus buracos, portas e janelas. E essa foi uma das imagens que cruzou minha memória durante a visita à exposição. Será que as duas coisas tinham a ver? Eu estava predestinado a um dia encarar esse meu sonho na forma de um “Leviatahn”? Eu sei, divago de novo…).

Voltei para o Brasil naquela noite – no fim do mesmo dia em que passei por duas fortes experiências – sensoriais e de memória. E, como você pode imaginar, mal dormi no avião, de tanta excitação. E sem parar de pensar nas ligações que temos com o passado – Paris sendo, justamente no meu caso, uma cidade onde colecionei também algumas lembranças. Até que cheguei ao Brasil, quase insone, e resolvi declarar que eu estava perdendo muito tempo com isso – e que o passado era uma bobagem. Ou, como diria Richard Bach, “um lugar que não existe”…

(Só para amarrar aquele começo, Bach foi autor de grandes “bestsellers” nos anos 70 – entre eles, um chamado “Longe é um lugar que não existe”. Seu carro-chefe, porém, é outro trabalho chamado “Fernão Capelo Gaivota”, sobre uma gaivota que decide dar vôos mais altos – literalmente. Uma espécie de “livro de auto-ajuda antes do seu tempo”, “Fernão” era leitura obrigatória para qualquer adolescente naquela década – e eu não escapei dele. Uma passagem típica: “Não acredite no que seus olhos veem. Tudo que eles mostram são os limites. Aprenda a olhar com sua compreensão”. Lembro-me de ter gostado dele menos do que meus amigos que o recomendaram. Décadas depois, acho que não mudei de opinião. O que não significa que não posso brincar com as palavras do seus autor…).

O refrão nosso de cada dia

“Secret meeting”, The National – de uma das bandas menos reconhecidas (injustamente) do nosso tempo, um refrão “cerebral” que combina com tudo que escrevi aqui hoje – e com tudo que tem passado pela minha cabeça nos últimos dias… “I had a secret meeting in the basement of my brain”… Brilhante!

O indizível

qui, 02/06/11
por Zeca Camargo |
categoria Todas

(Foto: Reuters)



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade