Os perigos da escrita criativa
“O sexo é um sistema estável de formas egoístas que giram ao redor do sol da vaidade”. Desenvolva.
Esta é uma das frases mais simples que Pola Oloixarac oferece a certa altura de seu curioso livro “As teorias selvagens” – recém lançado aqui no Brasil pela editora Benvirá. Escolhi-a para abrir o post de hoje porque achei que tinha apelo – afinal de contas, falava de sexo! Porém, como tudo neste curioso livro dessa escritora argentina, nada é muito simples…
“As teorias selvagens” é um dos livros mais irritantes que já li ultimamente – o que não significa que ele não seja interessante (aliás, muito interessante). O problema é a maneira como você encara sua leitura. Se você foi atrás de uma boa história, de jovens universitários que se envolvem em peculiares jogos românticos e eróticos (e ainda discutem beleza, feiúra, e a nunca fácil relação afetiva entre professores e alunos), cuidado. Você vai encontrar tudo isso lá, mas vai te dar trabalho. Muito trabalho.
O truque de Oloixarac – que é uma das autoras convidadas para a Flip deste ano (que acontece semana que vem) – é deixar o leitor atordoado com um turbilhão de referências acadêmica, discursos eruditos, e (sim) teorias tão “selvagens”, que cada capítulo – ou melhor, cada parágrafo – é um convite à descontinuação da leitura. Até que você percebe que o enigma dessa esfínge não tem nada de ameaçador. Mesmo depois de atravessar as duzentas e poucas páginas da edição brasileira, ninguém corre o risco de ser devorado por nenhuma criatura, já que todos os floreios da autora não passam de uma distração.
Não que a autora não tenha erudição. Pela quantidade de referências e elucubrações que ela salpica a cada página, fica claro que ela sabe do que está falando. A grande sacada de Oloixarac, porém, é que nada disso seria necessário para contar sua história. Ela simplesmente abusa desses recursos porque pode – e, como consequência, consegue pintar com fina ironia o universo acadêmico. Teria feito isso de propósito, para provar que o circuito universitário – sobretudo o que se debruça sobre a filosofia – não deveria se levar muito a sério? Talvez. Mas talvez a autora tenha escrito esse livro apenas como um exercício inteligente. Em ambos os casos, porém, tenho que admirar seu esforço – e mais: aplaudir sua coragem em aceitar o risco de alienar vários leitores em função de uma boa ideia.
Esse é um dos perigos da escrita criativa – a expressão que usei para o título de hoje do post, e que, como qualquer modismo, é uma espécie de praga que assola mais de uma geração contemporânea de escritores. Como toda praga, no entanto, ela esconde belas espécies que crescem no mesmo campo. E é delas que eu quero falar hoje. Pois além de “As teorias selvagens”, por coincidência (ou não!), recentemente eu me deparei com outros três livros que, como o de Oloixarac, flertam com os preceitos dessa escrita criativa – com diferentes níveis de acertos…
Em “Teorias”, por pouco a autora não me perde de vez. Já desde o primeiro capítulo, me senti provocado, perguntando-me: será que essas frases têm algum sentido maior (que me foge)? Aquela que usei para abrir o post de hoje é relativamente simples se comparada com essas: “Kamtchowsky observou que a diferença talvez se apoiasse na distância entre sufixos e prefixos. Uma geração de sufixos, como exibe a morfologia de ‘consciência-em-si’ ou ‘consciência-para-si’, centra sua atenção naquilo que resulta, que se solta a posteriori (a sintaxe não mente) da consciência; pelo contrário, uma geração seguinte que coloca a questão da consciência nos preconceitos inerentes de seu olhar opta pelo prefixo, pela característica prévia e intrínseca da mesma capacidade de raciocínio (p.ex. autoconsciência)”. Uma aula de desconstrução gramatical? Não, apenas dois amantes discutindo sua geração depois de uma tarde (ou seria uma noite) de sexo. Se é que eu entendi direito…
Se você empacou na frase que citei acima, tem toda a minha solidariedade. Eu também teria empacado, se, a essa altura do livro, eu já não estivesse acostumado a elas – e percebido que sua compreensão não é sequer necessária para que você siga na leitura! Lá no final, “As teorias selvagens” te espera com uma recompensa – e até com um sorriso no canto da boca… Sorriso esse, que é mais difícil de tirar de “Ilustrado”, do jovem escritor de origem filipina Miguel Syjuco (Companhia das Letras).
Como se o próprio fato de termos um elogiado romance que veio de um filipino não fosse surpresa o suficiente, “Ilustrado” – que recebeu ótimas críticas quando foi lançado nos Estados Unidos – vem com uma “ambição criativa” nas alturas. Como em “Teorias”, a princípio você acha que vai ler uma história simples: Crispin Salvador, consagrado autor filipino (laureado com o Nobel), morre em Manhattan (NY), provavelmente sem acabar sua “obra maior”, “As pontes em chama”. Descobri-la, passa a ser a coisa mais importante para o jovem escritor (também filipino) que era seu assistente nos seus últimos dias de vida. Simples, não é? Só que Syjuco faz de tudo para complicar.
“Ilustrado” – como são chamados os intelectuais nas Filipinas – conta não apenas essa história (a viagem do jovem escritor para as Filipinas, em buscas de pistas de “As pontes em chamas”), como oferece vários fragmentos de outras obras de Crispin (pelo menos seis outras histórias que o leitor se vê obrigado a seguir); esboça trechos de uma biografia desse autor consagrado, “Oito vidas vividas” (além da própria autobiografia “escrita” por Crispin); relata fragmentos da história do próprio jovem escritor (que sai criança das Filipinas para morar no Canadá com os avós); e quando você acha que não há mais espaço para sua atenção acompanhar mais nada, surge uma outra narrativa, que parece ser de um “observador de fora”, que olha o jovem escritor de longe, descrevendo suas ações e seus pensamentos. Uau!
Até o primeiro terço de “Ilustrado” você desconfia de duas coisas: que Syjuco não vai ter fôlego para sustentar a curiosidade do leitor até o final; e que você mesmo não terá paciência para atravessar tamanho labirinto narrativo. Aos poucos, porém, você se acostuma com as guinadas de foco – muitas “interferências” não são maiores que um bom parágrafo – e… aceita o desafio! Como se feliz diante das opções que Syjuco oferece, sua inteligência responde com uma “seleção natural”, escolhendo que histórias você quer mesmo seguir.
No meu caso, por exemplo, a própria biografia de Crispin me pareceu bastante aborrecida – e passava rápido por ela. Já a tal “narrativa de fora” capturou minha atenção. Dos livros de Crispin, um chamado “O iluminado” me fez desejar que eu lesse a obra por inteiro (e não só as “migalhas” que Syjuco resolveu nos revelar). Já a trilogia “Kaputol” não despertou em mim o menor interesse… Assim, com esse equilíbrio de forças, a leitura ia se adiantando – cada vez menos desafiadora (já que minha atenção aprendia a administrar as mudanças), mas não sem seus percalços.
O problema com Syjuco, é que ele passou um pouco da conta da experimentação. As trocas de narrativas, a certa altura, tem um efeito quase anestésico – e seu texto então passa querer inventar não no foco, mas no estilo. E aí seu exercício parece gratuito. Já na segunda metade de “Ilustrado”, quando o jovem autor vai jantar na casa de uma universitária que conheceu em Manila (Sandie, que também é uma personagem da vida de Crispin – olha a confusão!), os diálogos são escritos como um texto de teatro – um recurso que me pareceu ligeiramente irritante. E não vamos nem falar das entradas de blog – que vêm com comentários e tudo mais! Contudo, as boas histórias – isto é, aquelas que você escolheu para acompanhar – empurram a leitura para frente e, no final, é bem provável que você se divirta com o livro de Syjuco. Eu me diverti – mas não sem amaldiçoar, pelo menos um pouquinho, a tal “escrita criativa”…
Ela pode ser muito bem usada – “Tudo se ilumina”, de Jonathan Safran Foer (Rocco), é o primeiro nome que me vem à mente. Mas quando ela aparece como um recurso supérfluo, criando um ruído numa história que no fundo é boa, aí fico um pouco incomodado. Veja o caso de “Todo terrorista é sentimental” (Record), ótimo romance de estréia do carioca Márcio Menezes. Há tempos eu não lia uma história tão original por aqui. Fui “sequestrado” pelo livro desde suas primeiras páginas – que, de maneira breve, descrevem uma série de atentados fatais a políticos corruptos (a história se passa nos anos 90, mas não é preciso nenhum esforço de abstração para considerá-la bastante contemporânea – basta ver o noticiário…). A partir daí, Cito nos conta como começou a criar um pequeno, porém eficiente (e atrapalhado) movimento terrorista, que tinha como único objetivo assustar os políticos para que eles fossem mais honestos.
Se a missão do “Comando Terrorista Anti-Corrupção” parece um tanto quixotesca, é isso mesmo! Movidos por puro idealismo e inocência, Ciro e Gonzáles (e mais tarde Ana), a partir de um estopim bem criativo e verossímil – especialmente para quem acompanha a realidade brasileira -, resolvem “tomar uma atitude”. Escolhem um político envolvido num escândalo de remédios falsos (que, indiretamente, teria levado à morte de uma senhora que a própria dupla de protagonista socorreu na rua) e fazem dele a primeira vítima. Dali para os próximos atentados, seria um pequeno salto… no escuro!
Só por essa sedutora premissa, “Todo terrorista” já ganha o leitor comum – talvez não dos políticos. Mas ele tem ainda um aspecto irresistível – pelo menos para a minha geração (e a do próprio autor, que é uma depois da minha…): o cenário cultural daquela época. Referências estão por toda a parte (Chico Science!), como parte do cotidiano desses personagens – que poderiam ser seus amigos. E isso torna a leitura irresistivelmente envolvente. O único senão… é um certo abuso da “escrita criativa”…
Como nas passagens inteiras que nos alugam com a história do grupo terrorista basco ETA. Didáticas demais, elas estão lá (imagino) para nos dar um “pano de fundo” da evolução “profissional” do próprio movimento de Cito e Gonzáles. Mas acabam sendo detalhistas demais, e nos enchem de informações que nos distraem da trama principal. O recurso de intercalar uma entrevista com um ex-membro do ETA no meio da história funciona um pouco melhor, mas também afrouxa nossa atenção – e nos distrai do melhor de Menezes, que é a descrição de cenas e situações muito próximas da nossa própria experiência. Como essa:
“No Posto 9, a palhaçada de sempre. Os de teatro com a turminha de teatro, os muito vaidosos e um pouquinho cultos com a turminha do teatro, os gays que não sabem que são gays com a turminha do teatro. E todos aqueles músicos adolescentes recém-saídos do disco Transa do Caetano, e todos aqueles professores de capoeira cujo futuro seria fazer filhos na Suécia e na Dinamarca”.
Brilhante! E é por momentos como esse (e outros como o suspense do derradeiro atentado que eles executam) que eu recomendo “Todo terrorista é sentimental” – mesmo sem desculpar seu autor pelas “fugas criativas”…
Aliás, o único desses livros que li recentemente que passa nesse teste é, ironicamente, o único que ainda não está disponível em português: “A visit from the goon squad”, da americana Jennnifer Egan. Mas, creio, não deve demorar a ser lançado por aqui, devido às ótimas críticas que recebeu – para não falar de um certo prêmio que ganhou há pouco, um tal de Pulitzer…
Se eu tivesse que resumir seu argumento, seria impossível… Até porque, como vários críticos já assinalaram, “Goon squad” pode ser lido simplesmente como uma coleção de contos em torno do universo da indústria fonográfica. Mas isso seria diminuir a inteligência do projeto de Egan, que abusou da tal “escrita criativa”, contudo sem desperdício algum de talento. Para você ter uma idéia da vocação da autora para isso, um capítulo é narrado inteiramente em “power point”! Irritante, não é? (para usar mais uma vez o adjetivo que predomina no post de hoje). Não, respondo eu. O “artifício” acaba sendo engenhoso, assim como todas as outras maneiras que ela inventa para contar sua história.
O melhor é descrever tudo como “um punhado de fragmentos”, ligeiramente alinhavados com esse tema da indústria fonográfica. Mas você talvez nem desconfie disso se ler apenas o primeiro capítulo – que narra uma confusão que se inicia no banheiro de um bar. Ou o estranho oitavo capítulo, onde três “amigas” vão visitar um general. Cada parte do livro é uma ótima surpresa, sem repetições, sem maneirismos, sem soluções fáceis.
Se as leituras de “As teorias selvagens”, “Ilustrado” e “Todo terrorista é sentimental” me fizeram acreditar em uma nova geração de escritores (de várias partes do mundo) que flertam perigosamente com a tal “escrita criativa”, “A visit from the goon squad” aumentou minha esperança de que se dar bem nesse flerte é possível. É só tentar um pouquinho mais…
O refrão nosso de cada dia
“Da da da da”, Martina Topley-Bird – enfim, uma música que é quase que só refrão! E que você consegue cantar inteira! Quer apostar? (Em tempo, muita gente não conseguiu ouvir “You and me”, do Penny & The Quarters no link que indiquei no último post; por isso, aqui vai um novo link ).