A outra entrevista legal que eu fiz este ano
Entre um encontro e outro com Paul McCartney, eu estive com um outro gênio do rock. Talvez você o conheça. O nome dele é Keith Richards.
Falei com ele apenas alguns dias depois de ter entrevistado Sir Paul – e o efeito foi meio desorientador. Imagine, em menos de duas semanas, ter a oportunidade de falar com duas das figuras mais importantes da música do meu (do nosso) tempo! Eu brincava com meus amigos que parecia uma daquelas propagandas de lojas de eletrodomésticos com uma mega promoção: SEMANA DO ROCK N’ROLL – mas só até sábado!!
Uma coincidência dessas não se encomenda – elas acontecem! A entrevista com Paul McCartney já estava pré-marcada, quando surgiu o convite para conversar com Keith. O motivo – que todo fã dos Rolling Stones já sabia desde meados deste ano – era o lançamento de sua biografia, que acaba de chegar às livrarias aqui no Brasil: “Vida” (editora Globo). Fiquei com medo de as datas jogarem contra mim – ou que Keith marcasse num dia próximo à de Paul (ou até no mesmo dia!), ou que ele só tivesse um fim-de-semana disponível (o que, para mim, seria inviável, uma vez que ela aconteceria fora do Brasil, e eu apresento um programa ao vivo no domingo). Mas o acaso geralmente joga a meu favor, e quando me informaram que a entrevista seria numa terça-feira, respirei aliviado…
O problema foi que eu não tinha como me ocupar de Keith até o dia anterior do nosso encontro. A prova de “Vida” (mais de seiscentas folhas soltas, uma vez que o livro ainda não havia saído oficialmente da gráfica) chegou às minhas mãos praticamente quando eu estava saindo para o aeroporto – a entrevista era em Paris. A sorte era que, com 12 horas pela frente dentro de um avião, eu tinha um bom tempo para encarar aquele volume… Ah, e o fato de o livro ser muito bem escrito também ajudou.
Você, talvez como eu, também duvidava que Keith Richards seria capaz de lembrar de momentos marcantes para contar numa biografia? Pois não se preocupe: com a ajuda do jornalista James Fox, “Vida” é um dos mais deliciosos livros que li este ano – e parte desse encanto tem a ver com o fato de você ter que se convencer o tempo todo que aquelas histórias, nunca menos que fantásticas, não são ficção…
A começar pelo primeiro capítulo, que traz, de cara, um episódio em que Keith, seu colega de Stones Ronnie Wood, e mais um amigo são presos por envolvimento com drogas, em 1975, enquanto cruzava o estado norte-americano de Arkansas. “Envolvimento”, aliás, é pouco: os caras tinham drogas jorrando pelos poros – sem falar do que estava escondido no carro. A polícia, no entanto, sabia que tinha umas figuras meio “famosas” nas mãos, e sem decidir se era mais importante colocar todo mundo na cadeia para “dar o exemplo” (na época, acredite, eles não eram muito bem-vindos nos Estados Unidos) ou evitar a enorme repercussão que o caso inevitavelmente traria. Não vou contar o desfecho porque tenho certeza que você vai se divertir tanto com a história quanto eu. Mas quero só ressaltar que a escolha desse episódio para abrir o livro não poderia ser mais feliz, pois ele dá o tom das centenas de páginas que vem em seguida: honesto, íntimo, pessoal, bem-humorado e até leve. Especialmente quando se leva em conta que, aos ingredientes básicos de qualquer boa história de roqueiro – sexo, drogas e rock n’roll – Keith acrescenta mais uma sem qualquer cerimônia: armas!
Tudo de mais bizarro que você pode imaginar que acontece nos bastidores de uma banda como os Rolling Stones, bem, acontece. E depois vem as coisas que você nem imagina! Pelas páginas “Vida”, você encontra casos escabrosos o suficiente para, se não chocar, pelo menos enrubescer mesmo o mais devasso dos “roadies”. Mas isso, acredite, não é nem o melhor do livro…
O que mais divertiu esse fã tardio dos Stones – confissão: só comecei a me apaixonar pela banda no final dos anos 70 – foi o olhar de Keith sobre as pessoas a sua volta. Mick Jagger, nesse sentido, é, claro, a atração principal (já falo mais disso). Mas preciosas observações brotam também da dinâmica da banda – em suas diferentes formações –, e sobretudo sobre sua família. Mamãe e papai, Doris e Bert, são constantemente citados. Ela, pela curiosa inspiração musical (Richards tocou “Malagueña” para Doris no seu leito de morte); e ele pela relação interrompida e retomada, contada com tanto carinho, que a gente quase acredita na versão que ele dá para a notícia de que ele teria cheirado as cinzas de Bert (que, ele garante, não estava misturada com cocaína). Quase.
Keith também é generoso com a família que veio depois. Se você acha que tem uma relação conjugal tumultuada, recomendo em especial a leitura dos conflitos do Stone com sua primeira mulher, Anita – você nunca mais vai reclamar de nada! Pasme: segundo Richards, ela conseguia consumir drogas em quantidades cavalares (e olha que para ele dizer isso…). Por toda a loucura que era o casamento, eles até que ficaram juntos um bom tempo – e superaram até mesmo a morte do segundo filho, com pouco mais de dois meses de vida. Tara teria mais de trinta anos hoje, e Keith admite que ele não sai de sua cabeça. Para ambos, Keith tem palavras de carinho – à sua maneira. Sobre Tara:
“Nunca cheguei realmente a conhecer o filho da puta. Talvez tenha trocado a fralda dele umas duas vezes (…) Mas deixar um recém-nascido é algo que não posso me perdoar”.
Sobre Anita:
“Hoje em dia Anita e eu podemos sentar no Natal com nossos netos e trocar um sorriso perplexo: ‘Oi, sua vaca velha e idiota, como estão as coisas?’. Anita agora está bem. Ela se tornou um espírito benigno. É uma avó maravilhosa. Conseguiu sobreviver. Mas, querida, as coisas poderiam ter sido bem melhores”.
Keith separou-se dela depois de um inacreditável incidente que envolvia Anita, seu filho Marlon (ainda adolescente), um namorado de Anita de 17 anos, uma roleta russa e alguns miolos no chão da mansão onde eles moravam. O episódio é tão sinistro, que você entenderia se Keith não quisesse nunca mais casar com alguém. No entanto, as mulheres não paravam de passar por sua vida. Como ele conta a certa altura do livro, a iniciativa era sempre delas: “Eu nunca dei uma cantada numa garota na minha vida. Simplesmente não sei como fazer”. Seu sucesso com as mulheres sempre o deixava surpreso. A melhor evidência disso, foi o texto que ele mesmo escreveu num diário, quando conheceu sua atual mulher, Patti Hansen:
“Parece incrível, mas eu encontrei uma mulher. É um milagre! Transas eu consigo num estalar de dedos, mas eu encontrei uma mulher! Inacreditavelmente, ela é (fisicamente) o espécime mais lindo do PLANETA! Mas não é só isso! É claro que a beleza ajuda, mas é a cabeça dela, sua alegria de viver e (miraculosamente) ela acha que esse junkie acabado é o cara que ela ama”.
Incrível mesmo, mas foi Patti que “deu jeito” no tal “junkie acabado”… Na entrevista com ele, esse foi nosso primeiro assunto – inevitavelmente, talvez. Keith parece estar mudado, “limpo”, e quer convencer você de que não quer mais emplacar a imagem do cara decadente que, aliás, ele mesmo ajudou a formar. Veja este outro trecho de “Vida”:
“A imagem é como uma longa sombra. Mesmo quando o sol se põe, ela continua ali. Acho que uma parte disso vem de haver uma pressão para você ser aquela pessoa a qual e tornou, talvez até o ponto em que você não possa suportar. É impossível não acabar por ser uma paródia do que você pensou que era”.
Keith Richards, arrependido? Dificilmente. Mesmo sobre esse passado de drogas pesadas – as mais “punks” ele garante que abandonou há anos – ele não tem problemas em assumir seu “currículo junkie”… Nesse sentido, sua carreira (com duplo sentido, por favor!) começou logo depois de os Stones estourarem: “E claro, no início de 1965, começo a ficar chapado – um hábito de vida inteira”… Mais adiante, já nos anos 70, quando as drogas faziam parte da rotina, ele assume: “Se eu contasse o número de vezes em que me virei e vomitei atrás dos amplificadores ninguém acreditaria” (em seguida, conta que Mick e Ronnie também eram bons nisso). Até que um dia ele chega à conclusão óbvia: “A maioria dos junkies se torna idiota. Foi isso que eventualmente me fez mudar de vida”. E acrescenta: “Ninguém se torna um herói só porque usa drogas. Herói é quem consegue se livrar delas”.
Só existe um assunto no livro sobre o qual Keith fala com mais entusiasmo do que as drogas – a música. “São bebês”, escreve ele, justificando que algumas de suas composições já tem 35 anos e “eu ainda não as terminei”… Confessa ainda que “Satisfaction” é uma música “danada” de tocar no palco: “Por anos e anos nunca a tocávamos”. E admite que “Exile in main st.” talvez tenha sido a melhor coisa que os Stones já fizeram. Além de desfilar uma verdadeira árvore genealógica de músicos do século 20 – e alguns do 21! -, Keith ainda esbanja referências musicais em todos os capítulos (não se esquece nem do mega show na praia de Copacabana, em fevereiro de 2006 – um dos maiores da história do rock). “Tudo que sei, aprendi com os discos”, assume.
Os discos só não ensinaram Keith a ter uma boa relação com Mick Jagger… Aliás, foi por causa dos discos, ou ainda, da música, que a relação maravilhosa que eles tinham começou a degringolar. Quer uma prova só, entre tantas que ele dá no livro? “A grande traição de Mick – que eu acho difícil perdoar, uma atitude que pareceu quase deliberadamente planejada para acabar com os Rolling Stones – foi quando ele anunciou em março de 1987 que estaria saindo numa turnê do seu segundo álbum, ‘Primitive cool” (no lugar de fazer uma excursão com a banda). “Era um tapa forte demais na nossa cara”…
Foi isso então: Mick quis se dedicar mais à sua carreira solo – e ainda começou a implicar quando, mais sóbrio, Keith começou a dar palpites no destino da banda. “A frase que Mick costumava usar naquela época e que continua ressoando nos meus ouvidos até hoje é: “Cala a boca, Keith”. Aí a coisa realmente desandou. “Deve fazer uns vinte anos que eu não vou ao camarim dele”, confessa. Entre outras coisas (a referência ao tamanho do órgão sexual de Mick é muito sutil), Keith chama Mick de desconfiado, traidor, artificial, e ainda o acusa de ter perdido seu ritmo natural: “É quase como se Mick estivesse aspirando a ser Mick Jagger, correndo atrás do próprio fantasma”. Mas ele não odeia o companheiro… Sério! Aqui vai sua explicação:
“Talvez Mick e eu não sejamos amigos – nosso relacionamento está muito desgastado para isso -, mas somos os irmãos mais chegados, e esse é um vínculo que não pode ser cortado. Como você pode descrever uma relação tão antiga? Melhores amigos são melhores amigos. Mas irmãos brigam”.
Surpreso? Surpresa? Veja, eu trouxe para cá apenas uma fração das farpas que Keith joga em Mick no livro. A carga é ainda mais pesada. Tanto que, no meio da entrevista, não resisti e perguntei se Mick ficaria ofendido com alguma coisa que ele pudesse ler em “Vida”. A resposta veio rápida: “Não”, disse Keith, “não tem nada que eu escrevi ali que ele já não soubesse”… Longa vida aos irmãos, então!
Queria falar hoje aqui dessa entrevista, mas meu entusiasmo com o livro (que eu recomendo fortemente, para fãs ou não dos Stones – alguém não é?) acabou ocupando já um bom espaço. Mas garanto que os bastidores da conversa foram também divertidos. Por isso mesmo, podemos combinar de voltar a esse assunto, que tal? Quem sabe depois de a entrevista ir ao ar – provavelmente neste próximo domingo, no “Fantástico”. Assim você conta suas impressões – e eu conto as minhas…