Hipoteticamente, claro

qui, 28/10/10
por Zeca Camargo |
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Digamos… Digamos que por uma série de circunstâncias inesperadas, você se visse diante da possibilidade de entrevistar alguém que realmente te desafiasse. Um artista que, embora não muito novo, ainda é uma referência tão importante para o rock e para a música pop, que fizesse você, que até tem certa experiência em entrevistar gente desse meio, balançar. Digamos que, na sua carreira de repórter, você gosta de falar que já encontrou de tudo: de uma diva alternativa que o deixasse esperando nove horas para uma conversa (Courtney Love) até um ídolo que esnobava descaradamente a própria entrevista que estava dando (Damon Albarn); de uma super estrela saindo chorando de um quarto de hotel (Britney Spears), até um vovô do rock gentilmente pedindo para não ser perguntado sobre sua vida pessoal (Mick Jagger); de nomes que ficaram esquecidos ao longo do tempo (Shannon Hoon) a gênios que vão deixar sua marca para sempre (Bono).

Mas digamos que mesmo com esse elenco maravilhoso reunido em seu currículo, ainda faltam alguns nomes que você sonha em um dia poder entrevistar. Alguns deles já estão fora do seu alcance – Michael Jackson, por exemplo. Outros ainda estão, digamos, “por aí”, mas as chances de realmente aparecer uma oportunidade de você entrevistar esse artistas são tão remotas que você nem mais pensa no assunto – digamos, Sade. Até que um dia…

Digamos que um dia você descobre que um desses artistas aparentemente fora do seu alcance vem tocar no Brasil, e então surge essa oportunidade, aquela para a qual você se preparou toda sua vida, mas, quando ela surge, você percebe que não está preparado o suficiente – aliás, nunca vai estar…

Digamos então que você é convidado a entrevistar ninguém menos do que Sir Paul McCartney…

Não estou garantindo que vou entrevistá-lo. Ao escrever isso, essa é ainda apenas uma possibilidade. Mas digamos que, só de ela existir, eu já esteja ligeiramente alterado – para não dizer ansioso. E que, para tentar aliviar a tensão, enquanto as coisas não se confirmam, digamos que eu queira dividir com você, caro leitor, cara leitora, essa responsabilidade. E que, por isso então, diante dessa que, reforço, por enquanto é apenas uma hipótese, eu lançasse então o desafio para você:

Se você pudesse fazer uma pergunta, apenas uma pergunta, a Paul McCartney, que pergunta seria essa?

Não estou garantindo que ela será feita – aliás, insisto, não estou nem garantindo que a entrevista vai acontecer. Mas não quer fazer exatamente o que estou fazendo neste momento e exercitar sua imaginação? Que pergunta você faria a Paul McCartney?

Hipoteticamente, claro…

O segredo de um bom show

seg, 25/10/10
por Zeca Camargo |
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Qual desses shows é melhor: um em que a plateia fica hipnotizada, quase em silêncio, ouvindo a banda que está no palco tocar ou aquele em que o público canta praticamente todas as músicas com a banda? Tive a oportunidade de assistir a esses dois tipos de espetáculos recentemente, e posso garantir: ambos são bons no mesmo nível – cada um a sua maneira.

Vou começar pela segunda categoria, porque é esse show que está mais fresco na minha cabeça. Sexta-feira passada estive em Brasília para conferir a passagem do Black Eyes Peas por lá – uma das nove escalas da gigantesca turnê que eles fazem pelo Brasil (não me lembro de uma banda tão importante – no sentido de ser um sucesso no seu próprio tempo, e não um “chorinho” de uma banda do passado para fãs que somam mais de quatro décadas – que tenha nos agraciado com uma passagem tão generosa por aqui; se você se recordar de um bom exemplo para me contradizer, fique à vontade). E pude ver de perto o que significa mesmerizar uma multidão.

Fui menos para ver o show – como os leitores assíduos daqui sabem bem, não sou o maior fã de apresentações ao vivo de música – do que para trabalhar. A idéia era fazer uma reportagem sobre os bastidores de um concerto tão elaborado que, entre outras coisas, exige dois aviões e vinte caminhões gigantes para se deslocar pelo país. E, claro, falar com os membros do Black Eyed Peas. A entrevista, como sempre acontece, seria o “gran finale” – o doce que dariam para nós depois de cobríssemos cada detalhe técnico daquele imenso palco, mais os detalhes de bastidores e camarins que permitem que tudo funcione bem como numa engrenagem azeitada. Mas essas coisas talvez você tenha visto no último “Fantástico” – ou, se não deu para assistir, pode conferir tudo aqui no site do programa. O que quero falar aqui hoje sobre o que você não viu – ou melhor, não ouviu (ainda). E comentar sobre o show, claro.

O que você não ouviu, para começar, é o novo álbum do Black Eyed Peas, que sai agora no final de novembro. E será, não tenho dúvida, mais um sucesso. Por que? Porque, como todos os álbuns anteriores da banda, está cheio de batidas poderosas e refrões impecáveis – e música pop tem sempre a ver com o refrão não é mesmo? (No momento faço uma nota mental para voltar a falar desse assunto qualquer dia desses).

A rigor, eu não deveria ter ouvido esse disco… O que aconteceu foi que eu estava bem lá, nos corredores dos camarins, quando Will.i.am  (entre tantas possibilidades de grafia, com minúsculas e maiúsculas, escolhi essa) chega às pressas para a apresentação. Só que ele não estava vindo exatamente do hotel, depois de um descanso vespertino, mas de Los Angeles, para onde ele tinha ido “rapidinho”, na última quarta-feira, conferir o que talvez fosse a última mixagem desse novo trabalho – que, como qualquer fã dedicado já sabe, vai se chamar “The beginning”.  “Time”, o novo “single”, já apareceu no próprio site da banda, mas, pelo que ouvi do resto do disco, prepare-se por que vem mais “chumbo grosso”!

Mas eu não deveria estar falando de “The beginning” agora – sobretudo porque as pessoas da banda que estavam me acompanhando, quando perceberam que havia um jornalista nas redondezas ouvindo as novas músicas saírem das poderosas caixas do camarim de Fergie (onde todos se concentraram para a audição), pediram “gentilmente” que eu não dissesse nada sobre o material, sob pena de que eles falariam com o serviço secreto americano e impediriam minha entrada no país pelos próximos 25 anos (e possivelmente me barrariam também em todos os países membros da OTAN). Foram gentis assim, e por isso, quero encerrar esse tema dizendo apenas que, pelo que escutei, eles tem pelo menos mais uma turnê mundial garantida – e com milhares de pessoas gritando as músicas e pulando exatamente no ritmo que eles, do Black Eyed Peas, ordenarem.

Porque foi exatamente isso que eu vi acontecer quando, minutos depois da entrevista, eles invadiram o palco e enlouqueceram todo mundo que estava lá para vê-los. Eu, preocupado com a matéria que estava fazendo, fiquei de início ali atrás do palco – entre outras coisas, queria registrar o “grande abraço” que a banda dá em toda a equipe antes de o show começar (uma espécie de ritual/oração que eles fazem toda noite de apresentação). Mas logo na segunda música eu já estava em um lugar privilegiado (ou ainda, nem tão privilegiado assim,uma vez que sempre havia um ambulante com seu caixote de isopor a obstruir nossa visão), e comecei imediatamente a me divertir.

Seria fácil atribuir o sucesso do show dessa turnê “The E.N.D.” aos efeitos pirotécnicos no palco. As imagens que se esparramam pelos enormes painéis luminosos são em si lisérgicas o suficiente para sequestrar o seu olhar. O grande truque, porém, não tem a ver com o universo visual, mas com o auditivo. Como lembrou bem o crítico de música da “The New Yorker” Alex Ross (num texto recente sobre uma biografia do controverso compositor americano John Cage, “o ouvido humano tem uma vulnerabilidade felina a sons que não são familiares” – e o Black Eyed Peas, com sua torrente de “hits” ultra acessíveis usa exatamente o oposto dessa explicação para dominar por completo nosso sistema auditivo. Sem o menor aviso, você é totalmente dominado por aquelas músicas e, quando percebe, já está fazendo exatamente o que as meninas do Las Ketchup cantavam no seu duvidoso sucesso “Asereje”: “Y la baila, y la goza, y la canta…” (nunca achei que ia colocar John Cage e Las Ketchup num mesmo parágrafo, mas eu divago…).

E isso se estende por pouco mais de duas horas. Banda e platéia entram numa espontânea simbiose energética, onde um lado alimenta o outro – e quando tudo acaba na gentil apoteose de “I gotta feeling”, exausto, você não consegue descrever de onde tirou forças para dançar tanto. Mas tem certeza de uma coisa: de que a noite foi maravilhosa…

Para você não sair dizendo que eu sou um deslumbrado, eu estaria sendo desonesto se dissesse que o show é perfeito… Se tiver mesmo de encontrar um defeito, eu diria que o visual futurista é ligeiramente ultrapassado – uma espécie de “futuro do pretérito”, como se a inspiração de todo o “look” fosse “Tron” (não essa versão ultra “estilosa”, “Tron: o legado”, que está para ser lançada nos cinemas até o final do ano e que eu estou louco para ver, mas o “velho Tron”, de 1982…). Fora esse detalhe, porém, não tem como não dizer que o Black Eyed Peas acertou de novo com o público brasileiro – e que venha “The beginning – The tour”!

Alguns dias antes, porém, como já indiquei no começo do texto de hoje, fui conferir um outro tipo de show – aquele onde a platéia é hipnotizada não pela histeria do que acontece no palco, mas pelo fascínio que a banda exerce sobre seus fãs. Era uma quinta-feira à noite quando uma amiga me convidou para ver o Air tocar no Circo Voador, no Rio de Janeiro. A princípio, achei que não tivesse entendido. Air? Aquela banda francesa, que há mais de dez anos – e mesmo com uma carreira de muitos altos e baixos – é quase sinônimo de “cool”? E no Circo Voador? Seria possível isso?

Depois de uma pesquisada na internet, fui lembrado de que eles estavam mesmo no Brasil para um festival – mas era em São Paulo! Por que ninguém havia me alertado sobre esse show no Rio? Bem, para meu consolo, quando cheguei lá, percebi que não fui o único “desavisado”. Dos amigos que encontrei por lá – jornalista musical é mesmo uma espécie curiosa… quase previsível… –, quase todos também souberam na última hora. E a ocupação do lugar – bem aquém da “lotação esgotada” – indicava o mesmo: pouca gente sabia do evento. (Sei que o Circo Voador não estava muito cheio porque eu mesmo já toquei lá como DJ numa festa, o Chá de Alice, para uma casa abarrotada – um mérito da festa, claro, e não meu –, o que me coloca numa curiosa posição de poder dizer que já pisei no mesmo palco que o Air… mas eu divago, novamente).

Com ingressos esgotados ou não, lá estava eu – e mais algumas parcas centenas de pessoas – para assistir a um show, e não sabíamos muito o que esperar. Tenho certeza de que todos que foram até lá já acreditavam de antemão que a música era boa – o Air, mesmo nos seus momentos mais fracos, tem a capacidade de instigar nossa curiosidade sonora. Mas quanto à performance, o que sairia daqueles dois caras magros cercados de instrumentos eletrônicos? Um mistério…

E foi talvez por essa ausência de expectativa – e ainda pelo “susto” de ver uma banda que eu nem estava esperando – que eu gostei tanto do que vi. Aliás, eu e mais aquela “torcida”(miúda, mas devota) que estava naquela quinta no Circo Voador. Raramente preenchidas com letras, as músicas do Air dependem de criar um clima para agradar – e nisso parece que Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel se superaram. Como pirotecnia, eles até exploraram bons efeitos óticos eletrônicos psicodélicos – que, claro, não chegavam aos pés do que se vê no palco do Black Eyed Peas. Mas o que contava mesmo ali era a textura das músicas, que iam gradativamente envolvendo a platéia, como num grande transe coletivo – e sublime!

Assim, por dois caminhos diferentes, acabei assistindo dois ótimos shows. Os artistas, como acho que deixei bem claro, não poderiam também ser mais diversos – mas ambos agradaram e muito a este bissexto freqüentador de concertos que vos escreve. Cabe então perguntar: o que esses dois eventos têm em comum? A música, ora… Quando ela é boa, mas boa mesmo, não tem como derrubar uma noite! Preciso dar alguns contra-exemplos?

Fale, memória

sex, 22/10/10
por Zeca Camargo |
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Fui demitido da MTV em março de 1994.

Foi um choque, claro. Não um choque como o de muitos universitários que, quando vou dar palestras em faculdades, descobrem estupefatos que eu um dia trabalhei lá (um “susto” natural, pois uma vez que eu deixei a emissora há 16 anos, um aluno médio de um curso superior não teria idade – sequer teria nascido – para ter assistido a um “MTV no ar”). Foi um choque de verdade, que me deixou sem ação naquele começo de noite de sexta-feira (sempre um “bom” dia para demissões, não é mesmo?), e que teria deixado profundas sequelas se dois dos meus melhores amigos – na verdade, um amigo e uma amiga – não tivessem me dado um porre e me levado desacordado para uma casa de praia no litoral paulista. Para limpar a minha cabeça e segurar meu coração…

Até hoje não entendo bem o motivo da demissão, e a própria lembrança da cena é um tanto confusa. Um pequeno grupo comemorava na minha sala algumas coisas legais que tinham acontecido recentemente – lembro-me até de ter ido buscar uma champanhe em casa, no meio da tarde, para a ocasião. Entre elas, o sucesso de um “Top 50 verão”, que havíamos gravado num enorme veleiro, e a gravidez de uma das VJs mais populares então do canal. O diretor entra na sala e, naquela cena clássica, diz que quer falar comigo em particular, mas, creio, ao ver a festa que estava rolando, diz que ia voltar mais tarde – como, de fato, voltou. E disse então que a MTV estava sendo reestruturada, e que no meu nível hierárquico – há menos de dois meses eu havia sido promovido de diretor de jornalismo a diretor de programação – só havia espaço para um “executivo”. E a escolha da “direção”, obviamente, não era eu, mas outra pessoa que, por ironia, deixou a própria MTV alguns meses depois e nem seguiu carreira em TV – nem na frente nem por trás das câmeras.

Descrevo essas memórias – o título do post de hoje é “surrupiado” de Nabokov, uma tradução minha para sua magistral autobiografia (parcial), “Speak, memory”- com a segurança que uma distância histórica de 16 anos me dá. Não as recordo com rancor, nem mesmo mágoa. Eu diria até que, se você parar para analisar o arco do meu trajeto profissional, essa demissão foi uma das melhores coisas que aconteceram comigo desde que comecei a ser jornalista… Mas fiz questão de registrar o episódio aqui, porque ele é um bom parâmetro do caos e da imprevisibilidade que sempre reinavam desde o começo da MTV. Que eram, diga-se, as melhores coisas que poderiam existir quando você precisa de um monte de gente jovem trabalhando junto e contando com a criatividade, mas é também uma situação extremamente perigosa quando você tem um negócio para tocar – ou, sendo mais específico, uma TV para colocar no ar.

Daquela conversa confusa no início de noite de uma sexta-feira, lembro-me de poucos detalhes. A explicação para a demissão, por exemplo, certamente foi mais elaborada do que a frase sobre “reestruturação” que escrevi há pouco. Mas minha memória tem bem guardada o final da conversa com meu diretor. Eu disse: “Bom, se eu entendi direito, vocês estão demitindo o diretor de programação, mas quem vai apresentar o ‘MTV no ar’ na segunda-feira?”. E a resposta foi tipicamente MTV: “É mesmo… Ainda não pensamos nisso…”.

É assim que a gente trabalhava lá: resolvendo as coisas na última hora, contando com inspirações que “caíam do céu”, e nos permitindo fazer (quase) tudo. E, mais, importante de tudo, nos divertindo horrores.

Hoje reflito que aquele choque que mencionei no começo do texto era menos pela própria notícia da demissão do que pelas “saudades instantâneas” que eu iria sentir “daquela farra” toda. A alegria, a espontaneidade, a “vibração” que as pessoas viam no ar, fosse nos programas de clipes com os VJs, fosse nos boletins do “MTV no ar”, nos “Rockstórias”, ou nos outros programas especiais, eram reflexos diretos disso tudo – e se muitas pessoas reclamam hoje de que a MTV Brasil de hoje não é mais “aquela MTV”, desconfio que isso tem mais a ver com essa “vibe” do que com a própria programação.

Já vou fazer uma listinha aqui de cinco momentos favoritos dessa passagem por lá, mas antes quero explicar melhor essa minha posição que acabei de colocar – que de superficial não tem nada. E quero começar contando uma conversa rápida que tive com o Didi Effe, na última quarta-feira, na ótima festa que a MTV deu no Rio para comemorar seus 20 anos (onde a foto que ilustra o post de hoje foi tirada). Depois de fazer um entrevista rápida com ele, que estava dividindo com a Marina Person e o Cazé as entradas da transmissão da noite ao vivo, ele me disse que tinha gostado bastante do meu post anterior, a primeira parte dessa minha “comemoração” do aniversário da MTV do B. Só não gostou mais, segundo ele, porque a certa altura, segundo ele, eu não teria resistido e dado uma “alfinetada” no canal… E aí a conversa tomou um rumo surpreendente.

Eu achei que ele estava falando do momento no texto onde eu comento que os monitores de TV da recepção da MTV mostravam propaganda política, e não música – erro que, “no meu tempo”, seria imperdoável: a entrada da emissora é o seu cartão de visitas, não dá para chegar lá e assistir vídeos de candidatos disputando uma eleição… (minha sugestão foi a de que eles colocassem um material pré-gravado só com melhores momentos da sua programação, claro!). Mas a “alfinetada” à qual Didi se referia era outra – algo que, no meu entender não coloquei com maldade, mas sim como um questionamento quase filosófico: será que as pessoas hoje ainda querem sua MTV, como a campanha de lançamento do canal martelava há 20 anos?

O que argumentei com Didi então foi que essa minha “preocupação” não era negativa, mas apenas pertinente. Vinte anos depois, e, como já disse, num mundo de informação pulverizada, videoclipe é algo que você vê no seu telefone celular – entre tantas outras opções -, questionar o que as pessoas querem da “sua” MTV deveria ser a preocupação maior de quem está tocando o canal. E não quero dizer com isso apenas seus diretores, mas também, os VJs, produtores e jornalistas envolvidos no processo.

Hoje, claro, assisto à MTV de longe, como uma das centenas de referências de cultura pop que coleciono. E, sem querer ofender os fãs de música, não acho que ela está tão fora dos trilhos assim. Por exemplo, muitas pessoas reclamam que a MTV não passa mais tanta música como antigamente, mas, sinceramente, eu desafio essas mesmas pessoas que martelam esse refrão a ficar na frente de uma TV por meia hora que seja vendo uma seleção de vídeos que duram, em média, quatro minutos cada. Aliás, eu desafio esses que reclamam a assistir um vídeo na totalidade de seus quatro minutos, sentando no sofá de sua casa… Pela quarta vez! Percebeu a contradição?

Certa está a MTV de não dar ouvidos a essas reclamações e procurar novos caminhos. A “crise de identidade”, se podemos chamar assim, não é exclusividade do canal brasileiro. A MTV americana passa pela mesma dificuldade – e, se a aposta que mais deu certo aqui foi a do humor (viva Marcelo Adnet e Dani Calabresa!), lá nos Estados Unidos todas as fichas foram para o formato de “reality”, com sucessos notórios como “Jersey Shore”, por exemplo. No mesmo espírito que reinava “no meu tempo”, de caos e imprevisibilidade, creio que a MTV brasileira vai achando seu jeito de ainda se conectar com os jovens – e, admito, com as outras mídias, que nunca deixaram de olhar para o canal como fonte de inspiração. É “tentativa e erro”, mesmo, e só vejo risco de que isso se torne uma estratégia preocupante se começar a haver um distanciamento do que é o DNA da própria emissora: a música.

Ela não precisa, porém, estar presente sob o formato de videoclipes. Mas ela tem que estar “no sangue” de tudo que a MTV fizer – a começar pelos monitores na sua recepção… Será que quem está lá hoje está… “respirando” música – como “no meu tempo”? Essa é a pergunta capciosa que me parece a mais difícil de fazer…

Na visita que fiz semana passada ao “velho” prédio da Alfondo Bovero, em São Paulo, enquanto esperava o estúdio onde gravaria uma entrevista com Cazé (para o “Notícias” que deve ir ao ar hoje), pedi que me mostrassem onde era o jornalismo hoje em dia – um exercício de atrevimento nostálgico… Quando cheguei lá no sexto andar, onde a equipe do “Notícias” trabalha, custei a acreditar que ali funcionava uma redação. Vazia, o espaço me lembrava mais uma sala de operadores de telemarketing: quase nada nas paredes (cartazes de bandas e artistas, nem pensar), baias com computadores em mesas ultra “clean”, e um silêncio de assustar – tudo bem que eram umas 9h da noite, mas eles ainda tinham um programa para ser gravado (comigo), e… onde estava o movimento, onde estava a excitação, onde estavam as pessoas “babando” para entrevistar as dezenas de bandas interessantes que estão passando pelo Brasil neste final de ano?

(Num contraste cruel com a MTV do início dos anos 90, um quadro lotado na sala de relações artísticas listava todos esses show que estavam por vir – se fosse “no meu tempo” a gente teria no máximo uns dois ou três nomes ali para “brincar”… Esse pessoal agora tem de Paul McCartney a Of Montreal para se divertir e… onde está a diversão? Como costumava dizer uma colega “das antigas” que ainda é referência para a MTV brasileira – ela o fazia, claro, citando Madonna – “GET INTO THE F***ING GROOVE FOLKS!”).

De lá desci para o estúdio e a conversa para o “Notícias” aconteceu logo em seguida. Foi o máximo. Em parte por eu ser um mega admirador do Cazé, mas também por eu estar de volta lá depois de tanto tempo. Como num filme – e eu sempre quis usar essa expressão-clichê… consegui! -, as lembranças vieram rapidamente num flash. Foram muitos momentos inesquecíveis – citamos vários na entrevista -, mas se tiver que fechar em apenas cinco deles, aqui vai uma lista rápida:

1) Cobertura do Rock in Rio 2 – já falei sobre esse evento aqui mesmo no blog, por isso serei ainda mais breve. Se já trabalhávamos 18 horas por dia naquele começo de MTV, o sono então foi dispensado por completo durante aquela enlouquecida cobertura de nove dias. Entrevistas às 4h da manhã, reunião de produção às 8h, saltos de asa delta com bandas e horas sob o sol esperando uma frase de uma mega artista – e muito mais… Mas quem disse que eu estou reclamando?

2) Entrevista com Michael Stipe, VMA de 1991 – o VMB não era sequer um sonho. Assim, o ponto alto da nossa cobertura jornalística era esperar para falar com todos os artistas na premiação da MTV americana. Com quase um ano no ar, eu já deveria estar acostumado ao contato com celebridades, mas aí eu encontrei um dos meus maiores ídolos e… foi um desastre. Aliás, instrutivo. Eu estava conversando com Stipe, o líder do R.E.M. – na época, “bombando” com o disco “Out of time” (que, entre outros sucessos, trazia “Losing my religion”), quando literalmente “viajei”. Como conto no meu livro “De a-ha a U2″, comecei a pensar em outras coisas… Desencanei da entrevista enquanto Stipe dava uma resposta longa, e dizia a mim mesmo: “Nossa, não acredito que estou entrevistando esse cara…”. Ele, óbvio, percebeu – e encerrou a entrevista ali na hora. A grande lição? Primeiro o trabalho, depois a tietagem… Anos depois, no Rock in Rio 3, quando tive a oportunidade de estar com a banda de novo, contei essa história a Michael Stipe – que, como eu esperava, não se lembrava do incidente, mas disse que era bem possível que ele tivesse feito isso…

3) Chegada do clipe de “Black or white”, de Michael Jackson, novembro de 1991 – difícil alguém imaginar hoje que o lançamento de um videoclipe pudesse estar envolto em tanto mistério… Pois este estava. Michael Jackson, em 1991 – “tá ligado”? Estávamos todos reunidos na sala do jornalismo, produtores, diretores e VJs, para assistir à fita que havia acabado de chegar dos Estados Unidos – ultra confidencial! Um silêncio absurdo até aquele início com Macaulay Culkin – e depois um festival de comentários espontâneos. Ali, reunidos diante de uma mesma inspiração, uma garotada que vibrava com música, sintonizada na mesma expectativa. Revimos o clipe umas dez vezes seguidas – e eu só ficava pensando: “esse é o lugar mais legal do mundo onde eu poderia estar trabalhando”… “One nation under a groove” – eu divagava (está vendo… não é de hoje…).

4) Entrevista com Kurt Cobain, Hollywood Rock, 1993 – também contada em detalhes no meu já citado livro, não foi um evento simples. Essa mesma entrevista que você pode ver hoje no youtube, aconteceu de madrugada, várias horas depois do previsto, no Rio de Janeiro, depois de a gente ter chegado lá, esperado ele terminar uma sessão no estúdio com a banda de sua hoje viúva (Hole), esperado ele cochilar (“Kurt está dormindo”, nos vociferava Courtney Love, “e ninguém fala com ele enquanto Kurt não acordar, ninguém acorda Kurt!”), esperado ele acordar, e esperado ele se compor… Depois de tudo isso, porém, eu tive diante de mim o artista mais doce e genial que eu jamais entrevistei.

5) Entrevista com Renato Russo, 1993 – mais um capítulo do livro (e isso não é um esforço de “merchan”, juro!). Passamos um dia na casa do Renato – que começou com ele nos recebendo no seu quarto, embaixo de lençóis, dizendo que nós tínhamos errado o dia do encontro e que ele queria dormir… Uma brincadeira dele, claro, que em seguida levantou-se já vestido da cama e deu o depoimento mais transparente que eu já testemunhei de um artista. Revendo o programa – coisa que não fiz quando escrevi “De a-ha a U2″, de propósito -, fiquei ainda mais encantado com a honestidade e a candura de Renato. Um raro momento para me orgulhar – e não ter vergonha de declarar esse orgulho. Ídolo não é ídolo à toa… e ali estava o atestado de Renato Russo de que ele veio para inspirar não só a minha, como muitas gerações.

O resto são memórias soltas, tantas boas, outras nem tanto, que eu revirava naquele fim-de-semana da demissão com certa angústia, e que hoje revisito com enorme prazer. E com a certeza de que sempre vai ter gente para levar aquilo tudo, aquela idéia, essa “coisa de MTV” adiante. Desde de que seja com música – porque sem música, francamente, não dá.

Ela tem que estar lá, não necessariamente como clipe – já disse – mas em qualquer formato: humorístico, auditório, cerimônia de premiação, telejornal interativo, festa, parada de sucessos, acústicos, documentários de bastidores, shows na praia, biografias, reportagens de comportamento, ou simplesmente na singela imagem de um “mané” quase colado numa parede azul (ou verde) de “chroma key”, mexendo os braços sem direção enquanto um fundo eletrônico rola lá atrás, falando de um artistas que ele ou ela realmente gosta. Porque foi assim que tudo começou…

Quando as pessoas queriam sua MTV

seg, 18/10/10
por Zeca Camargo |
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Dez entre dez VJs daquele primeiro time da MTV brasileira – éramos dez? –, se perguntados qual a música que os faz lembrar do começo da MTV vão responder “Garota de Ipanema”, naquela regravação “ultra cool” de Marina, ou “Groove is in the heart”, do Dee-lite – os primeiros clipes de música brasileira e internacional que foram ao ar naquele longínquo 20 de outubro de 1990. Para mim, porém, a música que marcou minha entrada nesse universo fascinante – dentro do qual eu me diverti (e muito) durante mais de três anos, enquanto fazia todo meu aprendizado num veículo onde eu ainda não tinha nenhuma experiência (justamente a TV) –, enfim, a música que me fez sentir que eu estava mesmo trabalhando na MTV foi outra: “Come together”, do Primal Scream.

Eu estava em Londres, na sala de espera do que era conhecida como MTV UK – a MTV do Reino Unido. Apenas algumas semanas antes de a nossa MTV estrear, fui até lá fazer um estágio no departamento de jornalismo – que era exatamente o que eu ia cuidar por aqui (o primeiro convite que recebi foi para ser diretor do jornalismo, e a parte da apresentação do jornal foi uma consequência disso). As pessoas da MTV americana, que estavam no Brasil ajudando a colocar a emissora de pé, acharam que seria melhor eu acompanhar a estrutura de reportagem da MTV inglesa, pois, pelo tamanho pequeno, ela tinha mais a ver com o departamento que estávamos montando – a MTV dos EUA, aparentemente, era grande demais para nos inspirar… Não que eu estivesse achando ruim: para Londres, eu vou por qualquer motivo, pode chamar!

Ali então estava eu, esperando para uma primeira reunião com o pessoal do “News”, quando no monitor pregado na parede começa a rolar o clipe de “Come together”. Eu já sabia o que significava uma epifania, mas nunca havia experimentado uma – foi ali, naquele momento, que eu senti que estava passando para uma outra fase da minha vida. Eu estava entrando de cabeça num território totalmente desconhecido (o da televisão) para trabalhar com um assunto que eu dominava – e, penso, domino até hoje – com orgulho: a música pop. No que isso iria dar? Era o que eu iria descobrir nos anos seguintes…

E que anos…

A música a qual “assisti” – naquela época ainda causava certa estranheza falar que a gente “assistia” a uma música –, antes de embarcar numa agitada semana de acompanhamento de gravações com bandas inglesas e horas dentro dos estúdios na Mandela Street sem fazer nada, anunciava o clima perfeito para o que estava prestes a acontecer comigo e com todas as pessoas que estavam naquela “viagem”: todo mundo seguindo junto, indo junto. Ou, se você preferir, numa tradução alternativa para “Come together”, todo mundo gozando junto. E, de fato, esse foi o clima daquele princípio de MTV.

Como qualquer biografia universitária do canal informa, nossas primeiras instalações eram mais que improvisadas. Em uma casa semi-abandonada no bairro paulistano de Pinheiros, amontoávamos mesas em salas apertadas, nos esbarrávamos com atrevimento pelos  corredores estreitos, e gravávamos os programas em um galpão cuja cobertura – de uma frágil telha ondulada – impedia que fizéssemos qualquer coisa por lá quando estava chovendo (o barulho dos pingos batendo era tão forte que o áudio ficava totalmente prejudicado). Fora as goteiras…

No entanto, foi nesse mesmo galpão que saíram as primeiras “cabeças” de VJ, que eternizariam para sempre a coreografia de braços “tipo ventilador”, que tornou-se marca registrada do nascimento do canal. E foi lá também que torturamos sob um calor insuportável alguns dos maiores nomes da música pop daquela época (de Titãs a Engenheiros do Hawaii), com entrevistas longuíssimas que usaríamos ao longo de várias matérias nos primeiros meses do “MTV no Ar” – o programa que eu dirigia e apresentava. Mas acho que estou me adiantando…

Antes de sequer gravarmos essas entrevistas – mais uma dica do pessoal da MTV americana, para que tivéssemos “gaveta”, ou seja, material para colocar no ar quando faltasse algum assunto – tínhamos de montar uma estrutura de jornalismo para garantir que teríamos um boletim diário no ar, com assuntos que interessassem àquele público que nos esperava como uma “salvação purificadora”. Resumindo: eles queriam música – e reportagens sobre música. E era isso que tínhamos que apresentar, de uma maneira nova, ousada, diferente, e, se possível, provocadora.

Montei minha equipe da maneira como faço até hoje: intuitivamente. De cara, criei uma cumplicidade instantânea com uma pessoa que já tinha alguma experiência em TV (o que era uma raridade entre nós) – e que até hoje trabalha com isso em várias partes do mundo: Jacqueline Cantore. Com ela, juntei uma pequena trupe enlouquecida que nem ligava para nosso alerta de que, nesse período inicial, trabalharíamos uma média de 18 horas por dia – e isso não é um erro de digitação. Nesse primeiro time, entrou um monte de gente boa, desde um ótimo repórter que só foi contratado porque, apesar de não entender muito de música, falava russo com fluência – era a época da “perestroika”, que estava reapresentando a Rússia para o mundo (resumindo bem um processo político bem maior), e achamos que ele seria útil por isso – até a própria Cris Lobo, que hoje é diretora da própria MTV. E mais Lorena Calábria, Cris Couto, Renata Netto… Uma equipe que só foi crescendo ao longo dos anos: Chris Nicklas, Marina Person, Marcio Garcia, Rita Lobo, e mesmo o Zico Góes, que foi diretor durante um bom período – um grupo bem heterogêneo, é verdade, mas todo mundo com o mesmo espírito semi anárquico.  E foi assim que estreamos.

A promessa de trabalhar pelo menos 18 horas por dia foi cumprida à risca. Não tínhamos opção. Ocupando um espaço ainda relativamente pequeno na programação, não tínhamos prioridade em nada: nem nos horários de estúdio nem nos equipamentos de edição. Mas como tínhamos a certeza de que queríamos colocar algo estupendo no ar – sem falsa modéstia, por favor… –, a saída era  trabalhar em horários alternativos (leia-se, madrugada). E gravar horas de material. E editar tudo. E fazer as cabeças. E o espelho do programa. E ainda, no meu caso específico, aparecer diante das câmeras. O que era, então, um pequeno obstáculo a ser vencido.

Eu costumo brincar que se o piloto que gravei antes da estréia, para apresentar o “MTV no ar” a grupos de pesquisa e anunciantes, caísse hoje no YouTube, talvez minha carreira televisiva pudesse ser colocada em cheque… Ou isso, ou as pessoas iriam começar a acreditar em milagres… Seria possível alguém com tão pouca intimidade com a câmera perseverar e crescer numa profissão que depende dessa desenvoltura? Bem, sou talvez uma boa prova viva de que sim… De qualquer maneira, esse piloto está perdido – isto é, eu tenho uma cópia em VHS lá em casa, e só eu sei o segredo do cofre… É coisa do passado…

O que importava naquele princípio de MTV, porém, era muito mais o que a gente estava mostrando do que a nossa performance individual. Todo mundo queria a sua MTV. A campanha de lançamento, escorada na do canal americano, pediu aos maiores artistas da música na época que gravassem a frase “Eu quero minha MTV” (Caetano Veloso notoriamente dispensou o sotaque inglês para pronunciar “Eme-tê-vê”). Foi um sucesso. Além disso, a MTV chegava já ajudada pela extrema boa vontade das pessoas – dos jovens, sobretudo –, que mal podiam esperar para começar a ver aqueles clipes. Não que isso fosse tarefa simples. Em São Paulo, ela só era disponível na (até hoje) obscura tecnologia do UHF – TV a cabo ainda era um projeto. Os cariocas, no entanto, levaram a melhor: durante seu primeiro ano, a MTV no Rio era transmitida, depois do meio-dia, num canal aberto – o que foi fundamental para que a gente fizesse o barulho necessário.

Necessário para quê? Para marcar presença. Éramos pequenos, mas queríamos chamar atenção. Chegávamos com a obrigação de surpreender e, para isso, abusávamos da liberdade criativa. Começava pelos videoclipes – até então, algo que no Brasil só existia oficialmente (veja que ironia) no “Fantástico”. Como você pode comprovar numa pesquisa rápida aqui mesmo na internet, eles eram superproduções – experimente dar uma busca em “Casanova”, de Ritchie, ou mesmo “Os alquimistas estão chegando”, de Jorge Benjor para entender o que estou dizendo (e dê um desconto histórico antes de criticar a estética da época…) –, e quem as bancava era o próprio “Fantástico”. As gravadoras nem se preocupavam com isso, e mesmo naquele início da MTV, elas quando muito coproduziam os clipes com o canal. Foi só depois dessa “fase de transição” que elas assumiram a responsabilidade (e os custos) de “vender” seus artistas também visualmente – e a criatividade do formato explodiu.

Nós ali no jornalismo também tínhamos que inventar. Não só no formato, mas na própria pauta. Claro que era legal contar com o material que chegava da MTV americana – entrevistas exclusivas com artistas que nunca haviam falado para o público brasileiro –, bem como com a força de nomes nacionais do calibre de Kid Abelha, Lulu Santos, Titãs, Engenheiros, Capital Inicial, Legião Urbana, Marina Lima, Rita Lee e tantos outros, sempre ultra disponíveis para aparecerem no nosso jornal. Mas depois que você colocava a terceira entrevista com algum deles no ar… o que viria? Como continuar surpreendendo?

Um lado bom de trabalhar com música pop é que ela sempre se renova (eu sei, eu sei, os mais engraçadinhos vão dizer que, pelos nomes que citei acima – e que continuamos celebrando até hoje – nosso cenário musical não mudou muito… mas isso é outra discussão, que não cabe aqui). Mesmo assim, para um jornal diário, ainda faltava assunto – e nossa saída foi partir para o comportamento. Com a brecha que a MTV abriu junto ao público adolescente, percebemos que ali havia uma oportunidade: colocar esses jovens, que geralmente só apareciam na mídia sob o ponto de vista de pais e professores, falando exatamente o que pensavam, sem filtros. E tomamos uma decisão: o microfone iria para a mão deles!

Olhando para trás, isso não parece nada demais. Especialmente para a geração (ou as gerações) que já cresceu (cresceram) com a MTV, aqueles acostumados a ver o microfone na mãos desse público (deles mesmos), o que estou contando aqui parece uma bobagem. Mas, acredite, foi uma pequena revolução.

E era nessa frequência que trabalhávamos como uns loucos. Batendo muita cabeça – dentro e fora da MTV. Tivemos, veja só, “brigas” homéricas com o programa que apresento hoje pelo privilégio de estrear um clipe – a mais notória delas talvez, foi no caso de “Erotica”, de Madonna, que terminou em empate, com MTV e “Fantástico” passando o clipe quase ao mesmo tempo (Reconheço que a própria noção de que uma estréia de um vídeo musical, algo que hoje você pode ver no seu telefone celular, na hora que quiser, provocasse disputas apaixonadas parece surreal, mas esses eram os tempos…). E por vezes, lá dentro mesmo, tínhamos nossas diferenças, por exemplo, na hora de decidir que programas este ou aquele artista deveria fazer primeiro. Mas quem se lembra dessas coisas ruins? A memória é sempre seletiva, e eu escolho hoje ficar com o que aquela farra toda tinha de bom.

Ainda outro dia, conversando com o Jorjão e a Cris – dois colegas que são meus amigos até hoje (e que, por uma grande coincidência, agora estão novamente juntos em um programa da mesma emissora em que eu trabalho) – nos lembramos que a Redação do Jornalismo era um dos cantos mais animados da MTV: eu costumava chegar mais cedo que todo mundo, e já programar a trilha sonora que daria o tom para o dia. Nunca, diga-se, tocada em volume baixo. Dançar era opcional, mas quem resistia?

Esse clima, que já era meio caótico naquelas instalações em Pinheiros, ganhou ainda mais espaço quando nos mudamos para o edifício na Alfonso Bovero ¬– onde a MTV funciona até hoje. Por isso, não foi sem uma certa estranheza que adentrei aquele prédio mais de 15 anos depois de ter deixado a “music televison”…

Fui lá semana passada, dar uma entrevista ao “Notícias MTV”, hoje ancorado pelo Cazé – um dos últimos VJs que vi entrar lá antes de eu sair. Fazia um frio incomum em São Paulo na última terça-feira – e nos minutos que esperava para subir ao estúdio (ironias das ironias: eu aguardava uma autorização para entrar por aquelas catracas…), enquanto os monitores da recepção transmitiam horário eleitoral gratuito (seria demais programar 20 minutos de música por dia apenas para exibição interna, para não fugir muito do “espírito da coisa”?), cruzou-me pela cabeça uma música que era um clássico alternativo de quase dez anos antes de a MTV chegar ao Brasil: “Ghost town”, The Specials – fácil, fácil de achar aqui.

Logo fui liberado, e fiz uma entrevista deliciosa com o Cazé – que deve ir ao ar nesta sexta-feira. Lembramos, nos brevíssimos 15 minutos de conversa, bons momentos da minha passagem por lá, que é exatamente o que quero fazer na quinta-feira, na segunda parte dessas memórias “mtvilescas”. Mas foi tudo muito rápido. Depois da gravação, lá embaixo, novamente na recepção, uma outra inquietação já me dominava. Enquanto o próprio Cazé se despedia correndo, o Zé Antônio (que é da equipe do “Notícias”) fazia um carinhoso “link” entre o trabalho que eu tinha feito por lá e o que ele faz hoje, e eu me perguntava se as pessoas ainda querem sua MTV… Na calçada, como se para me distrair (ou cutucar), um vento gelado vinha do parque logo do outro lado da rua, trazendo um som que parecia cantar o arrepiante coro fantasmagórico do tal sucesso de 1981 dos Specials – aquele, que vinha logo depois de versos como esses:

“Bands won’t play no more
too much fighting on the dance floor…”

‘Prender roubar matar 2′?

qui, 14/10/10
por Zeca Camargo |
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Por volta dos 50 minutos de exibição, “Tropa de elite 2″ começa a ficar realmente interessante. Antes disso, admiradores do primeiro filme – entre os quais me incluo -  são servidos de um cardápio quase previsível: perseguições policiais, rebeliões em presídio, militares corruptos e a implacável frieza do Capitão Nascimento – ôpa, perdão senhor, agora é Coronel Nascimento! Ou seja, com exceção da promoção do personagem do nunca menos que impecável Wagner Moura (na verdade uma “caída para cima”, como ele mesmo explica na sua narração), o que vemos até a metade do filme é mais do mesmo.

E digo isso não só com o “Tropa de elite” original em mente. O próprio noticiário ao qual acabamos nos acostumando, com sua obsessão policialesca – um reflexo dúbio dos próprios anseios da audiência – vive a nos inundar de imagens como as que o filme mostra no seu início. Está certo que as cenas são roteirizadas e atuadas, mas o talento do elenco de “Tropa 2″ – e digo isso como um elogio – oferece ao espectador uma veracidade tal que é como se estivéssemos vendo o melhor do jornalismo policial na grande tela.

Seu Jorge, magistral como o líder de uma rebelião de presos que acontece logo no início do filme, chega a nos convencer mais do que se estivéssemos vendo um documentário – mais até do que alguns momentos do próprio trabalho em que José Padilha estreou na direção, “Ônibus 174″. E todo o estilo do filme – marca do diretor – também empresta uma “realidade incômoda” ao que estamos vendo, que, ao mesmo tempo que faz um registro fiel da engrenagem do crime (e do pseudo combate a ele) num grande complexo urbano, também serve ironicamente para destacar a banalidade com a qual encaramos essa mesma violência no nosso cotidiano.

Assisti a essa quase primeira hora de “Tropa de elite 2″ ligeiramente desconfortável, com medo de que fosse apenas uma sequência despreocupada daquele que foi um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro contemporâneo – um mero repeteco, que pela quase monotonia do que exibia, mereceria ganhar um título zen na linha do último trabalho de Julia Roberts, como esse que sugeri lá em cima… Mas aí o filho do Coronel Nascimento é pego numa blitz com uma quantidade considerável de maconha – e, como disse logo no início, as coisas começam a ficar realmente interessantes.

Brigada do “spoiler”: antes de dar seus chiliques por ter lido aqui que Rafael (filho de Nascimento, interpretado na adolescência por Pedro Van-Held) tem um envolvimento com drogas, entenda que a “revelação” não prejudica em nada o prazer de ver “Tropa de elite 2″. Pelo contrário, o filme só fica muito melhor depois disso. Como aliás, quero demonstrar – então, vamos em frente.

No primeiro “Tropa”, a vida pessoal de Nascimento era só um pano de fundo. Seu trabalho – que nunca se encaixa muito na clássica carga horária tipo “das nove às cinco” – sempre interferiu no seu casamento e mesmo no seu trajeto rumo à paternidade. O nascimento de Rafael no filme anterior era uma mera distração da “carga pesada” que o capitão enfrentava no seu dia-a-dia. Embora tortuosa e conflitante, a gravidez de sua mulher (Rosane, interpretada por Maria Ribeiro) era uma curiosidade, um detalhe, uma preocupação menor. Em “Tropa 2″, porém, Bráulio Mantovani e o próprio José Padilha – que assinam juntos o roteiro – têm algo mais interessante a nos mostrar sobre o lado pessoal de Nascimento.

Para começar, ele está separado. Sua mulher agora está casada com outro homem que é exatamente a antítese de tudo que Nascimento representa: o ativista de direitos humanos Fraga, vivido de maneira mais que apaixonada pelo ator Irandhir Santos. Por conta desse contraste, o filho de Nascimento e Rosane vive uma espécie de dilema na linha “será que meu pai é mais bandido que os bandidos?” – que, diga-se, só fica pior à medida em que Rafael vai se tornando adolescente.

Os quatro anos que vemos passar rapidamente, na primeira parte de “Tropa 2″ fazem uma diferença enorme no relacionamento entre pai e filho – agravam as diferenças e aumentam a distância entre eles. A “caída para cima” a que Nascimento se refere no início do filme tem a ver com o afastamento do capitão do comando do seu tão amado Bope, depois do desfecho da tal rebelião comandada por Beirada (Seu Jorge) ter terminado em desastrosa carnificina, com repercussões internacionais. Visto como herói pela opinião pública, o governador do Rio vê-se obrigado a não demiti-lo sumariamente do cargo, e assim, para livrar sua pele (e a do próprio capitão) da fogueira, ele promove Nascimento a um megachefe da segurança do Estado.

De certa maneira, ele fica, sim, mais poderoso. Fica também mais perto do “alto poder” - e, com isso, consegue farejar de perto a podridão da disputa por interesses políticos, que envolve bandidos, policiais, agentes corruptos, milícias (a grande “novidade” de “Tropa 2″) e os próprios políticos. Determinado, ele decide encarar todos esses inimigos – resumidos então pelo simples nome de “o sistema”. Mesmo sabendo que as consequências podem ser desastrosas para ele mesmo, Nascimento é “cavêra” – nada pode detê-lo.

Se o que você vai procurar no filme é algo para satisfazer sua “sede de conspiração”, “Tropa de elite 2″ tem muito a lhe oferecer – ainda mais em tempos de eleição presidencial (o filme não encerra com uma generosa vista do Congresso Nacional à toa…). Para esse tipo de público, eu recomendo assistir ao filme uma, duas, ou mesmo cinco vezes – ou então rever a trilogia “Matrix”. Agora, se você está mais interessando em saber como uma realidade tão brutal como a nossa é capaz de afetar as relações humanas, aí sim: você tem em “Tropa 2″ o filme do ano!

Quando o filho de Nascimento é pego na blitz, ele não tem nada a ver com a maconha. Tudo não passou de um infeliz acidente, quando uma colega sua de gabinete – Fraga, seu padrasto, foi eleito deputado, por conta de seu papel na confusão do presídio, e chamou o enteado para trabalhar com ele – oferece carona a Rafael e resolve fazer uma escala para pegar a droga. Você já viu o capitão, agora coronel, bravo. Mas você não pode imaginar o estado em que ele chega para encarar a situação de ver seu filho na delegacia, onde sua ex-mulher e seu marido estão o esperando – um clima que só piora quando Fraga resolve defender o garoto e sua funcionária. Inesperadamente, Rafael declara (falsamente, apenas para livrar a colega) que o “tijolo” estava com ele. O caso é abafado “na camaradagem”, mas a questão mais interessante do filme – pelo menos para este que vos escreve – está então colocada: quem vai ganhar a disputa pelo coração e pela mente do menino?

O circo de drogas, bandidagem e corrupção segue em frente. Nascimento vai descobrindo que o “poder” (entre aspas mesmo) relaciona-se de maneira mais libidinosa do que ele imaginava com o crime – e seu desafio pessoal de desmascarar todo o esquema só aumenta. No entanto, o que vai ganhando o público na segunda metade do filme é menos a revelação desse “fétido porão” da política do que o que se passa na vida pessoal do personagem de Wagner Moura – que, só insistindo no elogio, nos passa isso com uma emoção ao mesmo tempo econômica e precisa.

Do lado podre da política – e da polícia – já estamos abarrotados. Escândalos no poder estão na TV todos os dias – e nem preciso citar os mais recentes para evocá-los com frescor na sua memória. As fortes cenas na prisão e mesmo as das invasões nas favelas, apesar de todo o esforço de direção, não chegam a nos impactar mais do que as imagens do “crime da semana” do noticiário do fim da tarde. E mesmo um acidente brutal envolvendo personagens inspirados em colegas da minha profissão – que, ainda que de maneira distante, reflete fatos que aconteceram de verdade – são pálidos reflexos do que a gente acompanha na realidade. (Fiquei especialmente perturbado pelo fato de uma cena onde um bandido tira os dentes de uma caveira – parte de um corpo que ele acabara de incinerar – não ter… justamente me perturbado! Acho que você sabe do que estou falando).

Acima de tudo isso, porém, está a força dos conflitos pessoais de Nascimento. O roteiro de “Tropa 2″ – que é, na minha opinião, ainda mais sofisticado que o da primeira história – garante que nossa atenção seja sempre despertada da anestesia que as cenas de violência insistem em nos induzir. As inesperadas guinadas da trama não vêm das revelações “chocantes” de que políticos estão associados a bandidos – quem diria… Mas a maneira como Nascimento e Fraga são envolvidos num curiosos cortejo de parceria e desconfiança (de amor e ódio, se você preferir), isso sim é que faz do filme um trabalho original.

É por essa preocupação em contar uma boa história que “Tropa de elite 2″ escapa da brincadeira proposta pelo título do post de hoje. Não se trata de um “Prender roubar matar 2″, mas de um fascinante estudo de como ninguém sabe direito o que é o bem nem o mal. Numa das cenas finais, Nascimento conta que Rafael uma vez o perguntou por que no seu trabalho ele matava tanta gente. A resposta, para não tirar o prazer de quem ainda não assistiu ao filme, eu não vou transcrever aqui. Mas basta dizer que ao tentar explicar o inexplicável ao filho, ele oferece o melhor desfecho que uma história como essa poderia ter – um encerramento quase, hum, socrático…

E, mesmo sem imaginar como Mantovani e Padilha vão levar adiante essa narrativa no mesmo altíssimo nível que apresentaram até agora, tudo está aberto para a possibilidade de que a gente ganhe em breve um “Tropa de elite 3″. E eu vou assistir… “Ganhou, playboy!”.

(Semana que vem, conforme o combinado, uma breve viagem ao passado – e, quem sabe, ao futuro – para marcar os 20 anos da MTV Brasil. Em duas partes – segunda e quinta. Como diria Bette Davis em “A malvada”: “Fasten your seatbelts, it’s going to be a bumpy ride” – eu sei, no filme mesmo, ela diz “night” no lugar de “ride”, mas a confusão de décadas já entrou para o imaginário popular… Apertem, de fato, os cintos – e até lá!)

Breve post com sabor de América Latina

seg, 11/10/10
por Zeca Camargo |
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Sim, eu poderia estar escrevendo sobre o festival SWU – e evitando o gerúndio… Eu poderia discorrer aqui sobre a banda que toca hoje lá, o Pixies – fundamental na minha formação de música pop e que, felizmente, continua vital até hoje (banda que, aliás, nunca assisti ao vivo e, por questões de agenda, também não será desta vez que vou passar por essa experiência…). Poderia comentar, pelo que vi da cobertura do evento, da peculiar presença de Regina Spektor, e da quase inacreditável participação do Rage Against the Machine.

Mas então, hoje de manhã, as coisas tomaram um caminho inesperado – e cá estou eu com esse assunto, digamos, inusitado. O que aconteceu foi o seguinte: o shuffle do meu iPod – responsável por várias inspirações diárias – selecionou uma curiosa versão de “The flash failures” para tocar: um dos carros-chefes do clássico musical “Hair” (que, vale citar, está prestes a ganhar uma remontagem no Brasil!), sabiamente reinterpretado por um dos músicos mais talentosos deste século, Devonté Haynes (ex-Test Icicles, mais conhecido hoje como Lightspeed Champion). Poucas canções elevam tanto meu espírito quanto essa, e a releitura de Haynes empresta uma candura inédita ao que seria basicamente mais uma “música com mensagem”. Assim, “Failures” cresceu ainda mais na sua missão que é a de fazer você se levantar da cadeira e ter certeza de que quer mudar alguma coisa – na sua vida, na dos outros, na de toda humanidade. E para melhor. Mas isso não foi tudo.

Na sequência, meu iPod selecionou uma outra canção – e essa sim, mudou os rumos do que eu iria escrever aqui hoje: “Es largo el camino”, da dupla de irmão e irmã colombianos Ana y Jaime, extremamente populares em seu país durante os anos 60 (com relativa repercussão por outras terras latinas deste hemisfério). Eles faziam sucesso com um gênero hoje extremamente “fora de mora”: a música de protesto. “Cafe y petroleo” é uma canção das mais conhecidas – e mais típicas, como comprovam os versos que Jaime canta ao final (depois que sua irmã declara “Simón Bolívar libertador, murió en Santa Marta, em Caracas nasció”…): “No importa donde se nasce ni donde si muere, sino donde se lucha!”.

Para mim, porém, a mais comovente de suas composições é “Es largo el camino”. Em seus curtíssimos dois minutos e 15 segundos, Ana e Jaime fazem uma pequena ode ao amor, à “revolução”, e ao amor à revolução. “Seu homem sob as amendoeiras morria guerreiro!”, diz um verso. “O grito de amor crescendo em meu corpo – tu és meu amor, o mundo de hoje, mudando no grito”, brada um outro. E pouco antes de as lágrimas chegarem, você ouve o refrão indo embora: “É bom chorar, meu amor, e pensar que o caminho é longo… o caminho é longo… o caminho é longo…”.
Misturei as emoções que ali vieram mais uma vez (isso acontece sempre que ouço “Es largo el camino”) com as lembranças recentes de uma viagem que fiz ao Chile – destino onde tirei a foto que publiquei há alguns dias aqui , perguntando onde eu estava (para ser preciso, estava perto dos observatórios Gemini e Soar, nas cercanias da cidade de La Serena; surpreendentemente, ninguém acertou o desafio dessa vez). O que me remeteu, por associação, ao recém-anunciado prêmio Nobel de literatura, que este ano foi para o escritor peruano Mario Vargas Llosa – cuja trinca “Conversa na catedral”, “Pantaleão e as visitadoras”, e “Tia Júlia e o escrevinhador”, eu devorei na minha época de faculdade. O que me fez comprar, assim que saí do avião (pois é, já peguei um logo pela manhã!), numa daquelas fartas livrarias de aeroporto, seu mais recente livro: “Sabres e utopias” (Editora Objetiva), uma coleção de textos de não-ficção.

No caminho do táxi, folheando as páginas densas de informação, deparei-me aleatoriamente com um artigo chamado “O elefante e a cultura” – e tive minha atenção sequestrada ali mesmo. O trânsito matinal de São Paulo colaborou para que eu tivesse tempo de ler todo o texto – ao fim do qual, eu decidi, entusiasmado, que iria me dedicar a este breve texto hoje aqui, e que ele teria um certo sabor de América Latina.

Bem, breve não será – já que gastei uns bons parágrafos até aqui apenas para justificar minha idéia, imagine onde posso chegar quando começar a entrar no assunto… Mas a América Latina certamente é o pano de fundo do que quero escrever. Primeiro porque, nos últimos anos, por conta de algumas viagens que fiz, tenho me sentido mais “latino-americano” do que nunca – algo que ainda é um pouco estranho para nós, brasileiros, que muitas vezes nos escoramos na geografia de nosso continente para literalmente dar as costas para esses países maravilhosos que nos cercam. E segundo porque o texto que li no novo livro de Llosa tem tudo a ver não apenas com o que eu penso sobre a cultura latino-americana, mas também sobre a “cultura nacionalista” em geral – algo que, talvez contraditoriamente, tem a ver com a importância de uma nação ter uma identidade cultural forte e, ao mesmo tempo, deixar que ela seja contaminada. Sobre isso, escreve Llosa:

“É principalmente no Terceiro Mundo, nos países subdesenvolvidos, onde o nacionalismo cultural é pregado com mais estridência e conta com um número maior de adeptos. Seus defensores partem de um pressuposto falacioso: o de que a cultura de um país é, como as riquezas naturais, e as matérias-primas existentes em seu solo, algo que deve ser protegido da cobiça voraz do imperialismo e mantido estável, intato e impoluto, pois sua contaminação com o de fora o adulteraria e envileceria”.

No mesmo parágrafo, conclui no mesmo: “O nacionalismo é a cultura dos incultos, e esses fazem legião”. Quase chorei! Ali estava, exposta de maneira brilhante – pelo escritor agora mais imortalizado ainda com um Nobel -, a síntese de tudo que eu defendo aqui neste espaço desde seu início, há pouco mais de quatro anos: viva a contaminação cultural!

Às vezes defendo isso de forma mais explícita – como quando comentei o sensacional encontro musical entre a cubana Omara Portuondo e a brasileira Maria Bethânia por aqui ; ou quando fiz elogios a uma certa rádio de Istambul. Às vezes, de maneira mais sutil – como quando falo das minhas viagens. Mas essa é, confesso, minha bandeira mais importante: o mundo só é interessante porque a gente se mistura!

Caso a “defesa” de Llosa não tenha ficado clara, aqui vai mais um trecho:

“Na verdade, não existem culturas ‘dependentes’ e culturas ‘emancipadas’, nem nada que se pareça com isso. Há culturas pobres e culturas ricas, arcaicas e modernas, frágeis e poderosas. Dependentes são todas, inevitavelmente. Sempre o foram, e são ainda mais agora, quando o avanço extraordinário das comunicações lançou pelos ares as barreiras entre nações e transformou todos os povos em coparticipantes imediatos e simultâneo da atualidade. Nenhuma cultura nasceu, desenvolveu-se e atingiu a plenitude sem se alimentar de outra e sem, por sua vez, nutrir as demais”.

Um processo, segundo Llosa, que “apaga” a idéia da origem de um traço cultural, mas que, creio (e acho, o autor também), ao invés de diminuir o que vem antes, só aumenta o que vem depois.

Para mim, ainda mais neste espaço do blog, sempre é mais fácil apresentar essa idéia usando música – e, para um “curso-relâmpago” disso, sempre recomendo o álbum “Alegranza!”, de El Gincho. Llosa, claro, vai pelo caminho do que lhe é mais próximo: a poesia e a literatura – e para isso cita até “nosso” Machado de Assis, que “jamais teria escrito sua bela comédia humana se antes não tivesse lido a de Balzac”. E seu pensamento o leva, inevitavelmente, ao mais cosmopolita dos autores argentinos, Borges!

Coincidentemente estou relendo um trabalho incrível que encontrei recentemente em nova edição: “A descoberta da Europa pelo Islã”, de Bernard Lewis (Editora Perspectiva). Quando morei em Nova York, em 1989, encontrei esse livro na loja do Metropolitan Museum – e me apaixonei por ele. De maneira nada sutil o professor e historiador britânico descreve como nossa cultura, que tanto se orgulha de ser “ocidental”, recebeu uma enorme influência do “orientalíssimo” Islã – e como “nós”, tão, hum, “normais” no nosso “ocidentalismo”, parecíamos por vezes bárbaros aos olhos islâmicos. (O livro, claro, é bem mais que isso, como estou redescobrindo depois de 20 anos, mas isso fica para uma outra ocasião). O Islã, que hoje tanto assusta a sociedade ocidental – ainda que por um injusto viés – é que se assustava com “a gente”… Não é incrível?

Por que será que temos tanto medo do “outro”, do estranho? Llosa, para apresentar o tema do cosmopolitanismo, começa falando no seu texto de uma crença dos índios mapuche – que já estavam aqui na América Latina antes de os espanhóis chegarem. Para eles, tudo que acontecia de ruim era culpa de “terceiros”, do “outro” – um tipo de raciocínio que, segundo o autor, também está por trás do “nacionalismo” que vemos no nosso pensamento contemporâneo.

Nas suas breves nove páginas, a leitura de “O elefante e a cultura” – que, a título de curiosidade, é de 1981, um ano antes de o trabalho de Lewis ter sido publicado -, é algo que poderia chamar de “refrescante”. Cansado como estou de inócuos debates culturais, ter sido lembrado – ainda mais por Vargas Llosa! – que o que importa mesmo é a contaminação foi um enorme prazer. E foi com alegria que, a partir daí, revisitei minha simpatia por tudo que é desse nosso continente latino-americano, mas que também é do mundo.

Aceita um convite para um passeio rápido? Bem, podemos começar com “Carancho”, o novo filme do argentino Pablo Trapero (com o sempre genial Ricardo Darín). Não conseguir vê-lo ainda, mas me contam que foi uma das melhores coisas do último Festival do Rio. A Companhia das Letras acaba de traduzir o último livro do sensacional escritor também argentino Juan José Saer, “O grande” – que planejo comprar e começar a ler ainda hoje. Roberto Bolaño, autor chileno “da hora”, não para de crescer em admiração mundial (sim, me lembro, estou devendo “2666″ aqui para você – paciência!). Na última leva que coloquei no meu iPod, você pode encontrar Aterciopelados (Colômbia); Jorge Drexler (Uruguai) – o último CD, “Amar la trama”, é um deleite; Migue García (Argentina) – filho de outro músico excelente, Charly García; Electrofónica (Colômbia); Sinergia (Chile); Los Amigos Invisibles (Venezuela). E se jogarmos uma Larissa Riquelme nessa mistura tudo fica ainda mais divertido – e mais pop!

E nós, aqui no Brasil, como olhamos essa “latinidad” toda? Creio que ainda com certa desconfiança – ainda como “os outros”. Arriscaria até dizer que vimos o Nobel de Vargas Llosa com uma ponta de inveja… Mas estou aqui para insistir que isso é uma bobagem…

Tenho certeza de que vamos ver, nas próximas semanas, caprichadas edições dos “clássicos” do escritor peruano nas nossas prateleiras. Aproveitemos! Eu mesmo vou procurar ler algo que não conheço dele – “Elogio da madrasta”, por exemplo – e sugiro que você faça o mesmo. Entre um capítulo e outro, dê uma rodada no seu cardápio musical e acostume seus ouvidos a essa “sonoridade castelhana”. E depois vá mais além: com o  embalo da língua, escute “Sálvase quien pueda”, uma pequena obra-prima que ficou de fora da discografia do Radiohead, mas foi resgatada pela banda espanhola Vetusta Morla. E abra a última parte da trilogia “Seu rosto amanhã – Veneno, sombra e adeus”, do (também) espanhol Javier Marías.

E continue avançando sem fronteiras. Citando mais uma vez “O elefante e a cultura”, “a maneira como um país fortalece e desenvolve sua cultura é abrindo suas portas de janelas”. Se, com a permissão de Llosa, trocarmos “país” por “ser humano”, chegamos exatamente ao que eu nunca vou me cansar de defender.

Para terminar também com palavras do mais novo Nobel – juro que é a última citação, se não daqui a pouco vou ter que pagar direitos autorais! -, aqui vai uma consideração final: “Somente assim, submetida a esse desafio e arejamento contínuos, nossa cultura será autêntica, contemporânea e criativa, a melhor ferramenta para o nosso progresso econômico e social”. Palavras de Vargas Llosa, que, só lembrando, tentou (sem sucesso) ser presidente do Peru…

Fico imaginando o que os candidatos à vaga de governante do nosso país pensariam dessa idéia – se não se vissem inexplicavelmente obrigados a debater temas que mais remetem aos tempos medievais do que ao futuro… Mas eu, claro, divago…

Rock’n'roll

qui, 07/10/10
por Zeca Camargo |
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Soldado americano em serviço na Alemanha Oriental no final dos anos 80, apaixona-se por adolescente nascido em Berlim, propõe casamento, mas exige antes que o garoto troque de sexo (para que possam viver como “marido e mulher”). Mãe do garoto oferece não só seu passaporte, para o filho poder viver o sonho capitalista “do outro lado do muro”, mas também a própria operação, depois da qual Hansel (seu rebento) torna-se Hedwig, e vai viver em Kansas onde é feliz por um ano até que o soldado o abandona e não o deixa sem opção a não ser formar uma banda de rock.

Em duas frases curtas – ok, nem tão curtas assim -, essa é a base da história de “Hedwig e O Centímetro Enfurecido”, o musical mais rock’n'roll que você jamais vai ver na sua vida. Mas “Hedwig”, claro, é muito mais – ou muito menos, se você olhar pelo ponto de vista do centímetro enfurecido… O nome da banda que acompanha o “cantor/cantora” (The Angry Inch, no original) é inspirado no obtuso naco de carne que sobrou entre a virilha do nosso herói durante sua transformação de Hensel para Hedwig – culpa do “açougueiro” que fez a “cirurgia”… Se o seu estômago já revirou só de ler a última frase, recomendo que abandone a leitura deste post por aqui. Caso contrário, siga em frente – “let’s rock”! “And roll”!

Assisti a “Hedwig and The Angry Inch” pela primeira vez em 1999. Pela imprensa internacional, já tinha ouvido falar do sucesso histérico que a peça criada e interpretada por John Cameron Mitchell (com músicas de Stephen Trask) fazia no circuito “off-Broaway” – o cenário alternativo (e geralmente mais interessante) das artes cênicas nova-iorquinas. Estava de passagem pela cidade e, mesmo sem ter seu criador no papel original durante aquela temporada, fiz questão de ir ver.

Amarguei uma caminhada numa noite chuvosa até o West Village, rumo ao então decadente Jane Theater – instalado numa espécie de albergue, ainda mais decadente (que, segundo algumas versões, abrigou parte dos sobreviventes do Titanic!) -, onde comprei um ingresso sem muita certeza do que ia assistir. Já tinha lido algumas críticas e sinopses, que traziam mais ou menos o mesmo tipo de informação que o primeiro parágrafo deste texto. Mas nada poderia ter me preparado para o que eu vi no palco.

A sensação de desconforto já vinha da entrada do teatro. O tal albergue hoje é um “design hotel” até que descolado, mas há pouco mais de dez anos o aspecto era o de um pardieiro. Com uma iluminação claudicante, o único sinal de vida que o local tinha era um velho porteiro aboletado num canto e encapotado como se estivesse pronto para uma expedição no ártico, que sequer se preocupava com quem entrava ou saía do local. Porém, quando as fracas luzes do teatro se apagaram e os poderosos holofotes no palco foram acesos, o que eu presenciei foi uma explosão de vida, de energia, de malícia, de vibração, de libido, de música, de sacanagem, de ironia, de humor, de tudo. De rock’n'roll.

E o que era mais maluco era que o espetáculo conseguia isso com muito pouco. Toda a saga de Hedwig é contada como um monólogo, pelo próprio personagem, com poderosas canções de rock costurando tudo – como se fosse um grande espetáculo de cabaré alternativo. A banda está sempre no palco (que está quase vazio), mas o único outro personagem com quem Hedwig “conversa” é Yitzhak, o “assistente de palco” do show, que faz as vezes também da companhia amorosa, e que também é de origem sexual duvidosa (eu apostaria numa “drag king” – e não estou inventando essa expressão…).

Há ainda Tommy Gnosis, mas ele nunca estava no placo nessa versão original – era apenas evocado em distantes ecos de seus shows em grandes estádios… Ele foi o verdadeiro amor de Hedwig, que o encontrou logo depois que o soldado americano foi embora, deixando sua vida na mais completa miséria. Para Tony, Hedwig compôs um álbum que tornou-se um sucesso. Ele estourou na música pop, mas fugiu assustado quando Hedwig pediu para transar com ele, pela primeira vez, hum, de frente… Por conta disso, todo o show que assistimos, mais que uma biografia do pequeno garoto dissidente da Alemanha Oriental, é um grande lamento ao verdadeiro amor da sua vida… Como não se identificar com isso?

As músicas – totalmente calcadas no espírito do “glam rock” (pense em David Bowie, na primeira metade dos anos 70) – são irresistíveis. Mesmo hoje, mais de dez anos depois, sei cantar o grande tema, “The angry inch”, de cor – bem como “The origin of love” e “Midnight radio” (as outras, sei pelo menos assobiar…). A banda no palco é básica: baixo, guitarra, bateria. Mas quem precisa de mais quando o barulho que eles querem fazer é tão simples e poderoso? Mas o grande segredo mesmo do sucesso da peça – que já foi montada em dezenas de países, além de ter ganho várias encenações nos Estados Unidos mesmo – é quem faz o papel de Hedwig. E nisso a versão brasileira acertou em cheio!

Cheguei a ver a peça em Nova York mais duas vezes – uma com o próprio Mitchell no papel principal (indescritível!) e outra com uma atriz como Hedwig (inesperadamente sem graça). E, claro, assisti à adaptação para o cinema, cujo DVD é daqueles itens que eu salvo em primeiro lugar se minha casa estiver pegando fogo (também é Micthell que faz o papel no filme). Por isso, acho que tenho uma certa “bagagem” para poder afirmar que Paulo Vilhena e Pierre Baitelli encarnaram com perfeição o, hum, espírito de Hedwig!

Isso mesmo! Na montagem brasileira (que está no Rio até o começo de novembro e que torço para que viaje depois pelo Brasil), espertamente dirigida por Evandro Mesquita, o personagem se reveza entre os dois atores – até que um deles (Pierre) se transforma em Tommy, e estabelece, a partir dali, uma nova perspectiva para o espetáculo. Conversando com o próprio Evandro – que coincidentemente estava lá no dia em que fui assistir (é uma sessão “maldita”, quase à meia-noite, no Teatro das Artes, na Gávea) -, ele me explicou que o próprio Cameron gostou da idéia. “No texto”, me contava Evandro, “ele diz pra gente se divertir com a história, e foi isso que eu fiz”.

A adaptação para o português é mais que feliz – e acho que o crédito disso tem que ser dado ao tradutor Jonas Calmon Klabin, que conseguiu não perder nada ao transportar, entre outras coisas, o perturbador (e genial) refrão da música principal do inglês para nossa língua: “I got an angry inch” virou “Agora não me enche”! Cantei junto, sem culpa… E a dupla Klabin/Mesquita também acertou ao adaptar as referências à cultura pop que o texto original faz, situando a trajetória de Hedwig num contexto brasileiro, sem apelação. Mas o brilho maior dessa montagem sem dúvida é da parceria entre Vilhena e Baitelli.

Seria fácil aqui elogiá-los pela coragem de encarnar um personagem tão ousado quanto Hedwig. Enquanto a maioria dos atores da geração deles (a diferença de idade entre os dois é de apenas cinco anos) procura trabalhos seguros, desdobramentos da projeção que a exposição na TV certamente traz, mas nunca sem se distanciar demais da “boa imagem” que possa comprometê-los, esses dois caras dão um passo maior e se atiram à androginia com a segurança de quem sabe que não existe aventura teatral ruim quando você acredita no personagem – e é bom no que faz!

O trabalho de Vilhena é bem mais conhecido na televisão, mas, como sempre, é no teatro que você pode ver que ele não está brincando – apensar de “Hedwig” ser, no fundo, uma grande brincadeira (se for para levar a sério, melhor nem ir assistir…). E Pierre, que ainda experimenta pequenos papéis televisivos como quem coloca o dedo na água de uma lagoa para ver se não está muito gelada, só vem colecionando elogios, tanto na própria TV, como no cinema (“Como esquecer”) e no teatro (“O despertar da primavera”). Os dois juntos? Dinamite! E a mais pura vibração roqueira…

Você que lê sempre este blog certamente já percebeu que teatro não é um assunto ao qual me dedico com frequencia. E a explicação para isso é que esse é um assunto com o qual não tenho muita intimidade – não me sinto muito à vontade para escrever sobre o que não conheço bem. Apesar de ter atravessado, com certo louvor, três anos de Teatro Escola Macunaíma, em São Paulo (um dia ainda vou falar mais sobre isso), e ter de fato atuado profissionalmente nos palcos pelo menos uma vez (em 1994, numa peça chamada “Futebol”, dirigida por Bia Lessa, onde eu fazia o papel de um padre – um assunto que também renderia um bom post um dia desses), o teatro ainda é algo sobre o qual eu consigo elaborar pouco. Mas se me sinto à vontade para escrever hoje aqui sobre “Hedwig e O Centímetro Enfurecido” é porque o espetáculo “fala comigo” através da sua música. E essa música é o rock!

Vivemos tempos bons para essa mistura desse gênero musical com o teatro. O próprio “Despertar da primavera” – que vi há algum tempo na Broadway e cheguei a comentar por aqui – teve uma ótima recepção com sua montagem brasileira. “Hair” – também aqui já comentado – chega nas próximas semanas para o público brasileiro (e pode ter a certeza de que vou estar na primeira fila). Ainda não vi a adaptação para a Broadway de “American idiot”, do Green Day, mas está na minha lista – assim como o próprio show da banda por aqui daqui a pouco!!! Nesse clima bom, Hedwing é mais que bem-vinda. Junto com seu “centímetro furioso” e o que mais vier…

“Sempre quis montar uma ópera-rock”, falou ainda Evandro Mesquita na conversa informal que tive com ele – e, espero, que ele me perdoe por citá-la aqui como entrevista. Desde que viu o filme (que no Brasil foi batizado de “Hedwig – Rock, amor e traição”), Evando foi atrás de tentar montar o texto por aqui. Mesmo sem ter visto a versão original num teatro, ele teve a “mão” certa para oferecer, pelo menos para esse humilde espectador que vos escreve, uma noite inesquecível. Que, aliás, quero viver ainda outras vezes. “Rocking”. “And rolling”.

“Comer rezar amar”, com um viés

seg, 04/10/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Já comi muito bem na Itália, já rezei profundamente na Índia e já amei “como se não houvesse amanhã” em Bali. Ainda que sem a intenção sabática da escritora Elizabeth Gilbert – autora do imenso sucesso editorial “Comer, rezar, amar” -, conheço cada etapa da peregrinação que essa jornalista impôs a si mesma. Viés que faria de mim talvez uma pessoa qualificada para avaliar a validade das experiências que resultaram de seu projeto – se não no livro (que até hoje não li), pelo menos na adaptação do “best seller” mundial para o cinema, que estreou no Brasil na última semana, estrelando ninguém menos do que Julia Roberts no papel principal.

Porém, diferente de Liz (como ela se apresenta aos seus leitores), eu tinha outras prioridades quando visitei – mais de uma vez – os três destinos que mudaram sua vida. Na Itália, por exemplo, tenho até hoje dificuldades de me sentir em casa – a melhor viagem que fiz ao país até hoje foi uma temporada em que passeei de carro pela Sicília (quando então, comer, rezar, amar, eram meras consequências naturais e bem-vindas das belezas que me cercavam). Amigos e conhecidos que sabem bem do prazer que tiro de cada viagem acham essa minha “implicância” com a Itália – que, obviamente, não tem nada a ver com a culinária – é um enigma. Eu também acho, mas não tenho pressa de resolvê-lo: sei que um dia ainda vou descobrir um roteiro que finalmente coloque a paisagem e o estilo de vida italianos como prioridade na minha vida.

À Índia, foram várias visitas. Do inesquecível impacto da primeira vez que aterrissei em Nova Déli, nos idos de 1984 – experiência que poderia ter me traumatizado para o resto da vida – ao entusiasmo frenético de Mumbai que me contagiou quando passei por lá no início deste ano (passando, claro, pelas maravilhas do Rajastão aliadas à hospitalidade que encontrei na casa de amigos em Déli mesmo, quando estive lá em 2004), não houve nenhuma vez em que pisei no país e não me senti provocado espiritualmente. Se cheguei a flertar com o hinduísmo, e tenho dezenas de estátuas e imagens de Ganesh espalhadas pela minha casa e meu trabalho, a “culpa” – no caso, uma culpa positiva – é da Índia. Se isso me ajudou a encontrar um eixo mais elevado na minha insignificante existência terrena, isso já é outra história…

Já Bali… Bem, minhas memórias de lá são bem antigas – e profundas. Visitei a “ilha da beleza” pela primeira vez em 1984 (na mesma oportunidade em que conheci a Índia), e fiquei por lá por cerca de dois meses. Eram outros tempos, claro, quando a vida ainda me permitia tirar “férias” longas como essas. Viajando com um grupo de dança, fomos com o objetivo de aprender um pouco daquele gestual tão expressivo da cultura balinesa – e é interessante lembrar que, mesmo com todo nosso empenho em fazer aulas diárias antes das 6h da manhã (o único momento do dia em que a temperatura favorecia algum exercício!), tudo que consegui, graças ao dedicado professor Dimat, foi aprender uma dança de adolescentes, e mesmo assim… Mas eu divago…

Ainda voltaria a Bali em 2001, apenas por um par de dias, para fazer uma reportagem (enquanto visitava o Timor Leste), mas a memória mais forte daquele lugar extraordinário são aquelas de mais de 25 anos. Os amores naquela época eram mais fáceis que os passos da dança que ensaiávamos – disso não tenho dúvidas. Fins de tarde embalados por trilhas sonoras que misturavam gamelãos com Duran Duran (era o ano 1984, lembre-se!), convidavam sempre para um clima, se não romântico, pelo menos sensual o suficiente para que fosse possível adaptar a sinuosidade das coreografias que aprendíamos (éramos um grupo de 11 pessoas) às frementes demandas da juventude que eu atravessava.

Bem servido então dos lugares e dos atrativos que esses lugares oferecem, fui então assistir a “Comer rezar amar”. E foi esse meu passado que me fez entrar na sessão animado e de boa vontade – se dependesse nas críticas ao filme, tanto aqui, quanto nos Estados Unidos, que eram no mínimo tépidas, talvez eu nem teria comprado um ingresso… Mesmo tarde da noite (minha projeção começava às 23h30!), guardava sim uma expectativa – não só no que diz respeito a minha identificação com aqueles destinos, mas também por um fascínio pessoal que tenho por Julia Roberts (e que, sei bem, divido com mais da metade da população do nosso planeta…).

Tudo começou (como também deve ter começado para mais da metade da população do planeta) com “Uma linda mulher”, em 1990. Menos encantado pela trama “cinderelesca” do filme do que pelo carisma daquele rosto enorme e sorridente na tela de um cinema – as pessoas naquela época, acredite, ainda compareciam em massa às salas escuras para ver pessoas de verdade! -, fui desde então enfeitiçado por Julia Roberts.

Não exatamente como um símbolo sexual – que, mesmo hoje, considero que ela nunca tenha sido. Sharon Stone era o mulherão da vez – em “Total recal”, e mais ainda em “Instinto selvagem”, dois anos depois. Demi Moore, em “Ghost” era a “namoradinha” dos sonhos masculinos. E Madonna, em “Dick Tracy” certamente colocava o patamar da sensualidade nas telas da época bem acima do que Julia Roberts poderia alcançar. Mas aquele sorriso tinha alguma coisa – alguma coisa que conquistou a simpatia de milhões de pessoas no mundo inteiro. Inclusive a deste então jovem que vos escreve aos 47 anos…

Julia (se me permite a intimidade) completa 44 anos agora no fim do mês, e eu mesmo que acompanho sua carreira com dedicação, não me lembro de tê-la visto tão radiante num filme como nesse seu último trabalho. (Aquela cena do museu em “12 homens e um segredo” é memorável, mas é uma cena só…). Há um momento em “Comer rezar amar” onde ela se senta no chão do apartamento que aluga em Roma, e decide escrever para o namorado que deixou em Nova York antes de viajar, em que ela está simplesmente resplendorosa! E foi aí que o filme – que até então eu estava tendo dificuldades de “abraçar” – começou a me ganhar.

Mas que namorado é esse que ela deixou para trás – e do que exatamente seu personagem estava fugindo? Bem, vamos a um resumo breve – se você não está entre os milhões de admiradores da saga pessoal de Elizabeth Gilbert. Repórter e escritora de relativo sucesso, ela decide um dia que não aguenta mais sua “vida perfeita”. Fora a carreira bem-sucedida, seu casamento é, pelo menos visto de fora, irretocável. Curiosamente – ou não, para quem já passou por uma separação “braba” – essa é a primeira coisa da qual ela decide cair fora. Um novo caso amoroso surge com um ator emergente do teatro nova-iorquino (interpretado por James Franco), mas ela vê que logo está de volta às mesmas armadilhas de seu casamento – alguém se identifica com isso? Posso prosseguir?

Enfim, cansada de repetir as mesmas fórmulas em busca de harmonia em sua vida (a maioria da vezes que achamos que estamos vivendo em harmonia estamos na verdade bem longe dela, como você já deve ter reparado, adormecidos por uma rotina que supostamente se encaixa, mas cujo único objetivo é desviar nossa atenção para o quão tudo por trás dela está errado… mas, nossa!, eu divago “master” agora, perdão…) – enfim, procurando uma saida, Liz/Julia parte para três ciclos que, ela acredita, vão purificá-la.

Quem ganha com isso, aparentemente mais que a própria autora (que não só voltou renovada da viagem, casada com um brasileiro tipo “homem da sua vida” que conheceu em Bali, mas também escreveu um dos maiores sucessos de vendas neste início do século 21), é a leitora – e a espectadora (e se uso as duas palavras no feminino, é na certeza de que a maior parte de seu público pertence a este sexo). O livro (que, repito, não li) parece mesmo transformador – percebo isso no rosto das mulheres que vejo lendo em salas de espera de aeroportos e mesmo no depoimento de amigas que já o devoraram. E o filme, por analogia, tem tudo para replicar esse efeito – potencializado, é claro, pelas dimensões da grande tela…

Curiosamente, apesar de não ser exatamente o público-alvo da história que Liz conta, não me aborreci assistindo a “Comer rezar amar”. Pelo contrário! O filme é, talvez, um pouco longo – sobretudo na sua parte final, a balinesa (e olha que, como já apresentei acima, eu tenho tudo para me identificar com a visita a essa ilha, inclusive com aquele xamã que ela conhece por lá… o meu não se chamava Ketut como o dela, mas Saprek, apesar de eu sempre achar que entre eles seus discípulos diziam “Saprong”, e mais do que “consultas espirituais”, o meu xamã passava sua mensagem aplicando doloridíssimos toques de massagem oriental… mas eu divago pela terceira vez, melhor eu me controlar…). Porém, toda vez que a sensação de que uma cena ou uma sequência estava durando além do necessário, Julia Roberts vinha me salvar com aquele rosto que definitivamente não é desse mundo!

Nem mesmo Javier Bardem, que faz o papel do “brasileiro” que se apaixona por Liz em Bali, é páreo para a luz de Roberts. Se ao lado de sua mulher, a atriz Penélope Cruz (como pudemos ver em “Vicky Cristina Barcelona”), uma sinergia entra em ação e ele funciona como um vulcão de testosterona, aqui Bardem é um mero espelho da beleza de Roberts, “condenado” a apenas refletir o seu brilho. Sei que boa parte do público feminino, e das minhas leitoras, talvez discordem de mim nesse aspecto, mas foi assim que eu vi…

“Comer rezar amar” é sim um grande veículo para Julia Roberts – que há um bom tempo não ganha um filme capaz de fazer justiça ao seu talento e seu magnetismo. Eu me diverti bastante e, como deixei claro, sei bem que o filme não é para mim – a não ser pela coincidência de conhecer bem Roma, Índia e Bali, não passo nem perto dos dilemas de Liz (apesar de estar lutando com impasses de outra ordem – eu sei, divago pela quarta vez). E considero um mistério o fato de essa produção – que ainda conta com a direção do cara responsável pelo sucesso da série de TV “Glee”, Ryan Murphy – não ter feito o sucesso esperado (pouco menos de 80 milhões de dólares, em dois meses nos EUA). Por que você não vai assistir e me ajuda a entender o que aconteceu?



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