Meu problema com o novo álbum do Arcade Fire

seg, 30/08/10
por Zeca Camargo |
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“The suburbs” é estupendo. O terceiro trabalho do Arcade Fire é tudo aquilo que os fãs da banda esperavam: um som rico, capaz de ao mesmo tempo funcionar bem num show num grande estádio e num pequeno e esfumaçado clube de rock alternativo; faixa por faixa, “The suburbs” cresce na ambição de colocar o grupo no mesmo patamar de nomes consagrados como U2 e Coldplay (e as comparações com Radiohead também não são poucas); é a música de uma banda madura, que avança segura explorando texturas que ainda não havia experimentado e ousando na poesia (mais de uma música fala de sonho – uma inclusive cita sem querer “A origem”, com um sonho dentro de um sonho); fica clara até a intenção de que o álbum não seja apenas um punhado de músicas soltas, mas uma espécie de grande obra conectada – um “tableau”, se você preferir, da vida nos subúrbios americanos. “The suburbs” é imponente, preciso e grandioso – como disse, tudo aquilo que os fãs da banda esperavam. E esse é meu problema com o novo álbum do Arcade Fire: não tem surpresa alguma.

O que é quase previsível. Esse é o “difícil terceiro álbum” – anda mais difícil do que o segundo trabalho de uma banda –, e com as expectativas nas alturas, depois de “Neon bible” ter sido aclamado como “a (milésima) tábua de salvação do rock alternativo”, segurar a onda é praticamente impossível. Não são muitos artistas que conseguem essa façanha – a não ser, claro, que você tenha um talento excepcional. Será o caso do Arcade Fire? Vamos conferir isso melhor daqui a pouco, pois antes de entrar nesse assunto, acho que seria prudente eu dar alguns exemplos de bandas que conseguiram se superar nessa marca.

É justamente num terceiro álbum que – livres da “badalação” (os mais jovens podem substituir pela palavra “hype”), da novidade de uma estreia retumbante, e da boa vontade do público (e da crítica) em aceitar um segundo disco por inércia – as bandas realmente “dizem ao que vieram”. A “referência de ouro” desse fenômeno, pelo menos para a minha geração, é – claro – Radiohead, com seu “OK computer”.

Precisa explicar? Então vamos lá, rapidamente. Ninguém tem dúvida de que, desde a sua estreia (“Pablo honey”), o Radiohead mostrou que tinha todo o potencial para ser uma das bandas mais importantes da história do pop (ok, da história do rock, se você insistir). Tal potencial foi então projetado com arrojo em “The bends”, o segundo álbum. Mas aí vem “OK computer” – e você se pega perguntando: “de que lado veio o soco”? Foi ali que o Radiohead educou seus admiradores a esperar qualquer coisa deles – e qualquer coisa brilhante. Depois de “OK computer”, eles fariam discos ainda mais intrigantes – como “In rainbows” e “Kid A” (nesta ordem). Mas, sem o tal terceiro (e decisivo) álbum, eles jamais teriam a credibilidade – e o “passe livre” – para fazer o que quisessem do seu som (e continuar a ter a mesma devoção dos fãs, inclusive deste que vos escreve).

Outros casos como esse (ainda que em menor escala de impacto)? Pense em “London calling”, do The Clash – que catapultou a banda para um patamar muito acima da vala comum do punk inglês. Ou, ainda no pop britânico, lembre-se de “The queen is dead”, dos Smiths (por favor, não que “The Smiths” e “Meat is murder” sejam insignificantes, “au contraire”, mas se eu tivesse de escolher um só disco deles para ouvir o resto da minha vida, só poderia ser este, que tem “There’s a light that never goes out” – vai discutir?). Outra banda mestre em se reinventar é o Talking Heads – e o trabalho que definitivamente redirecionou o som da banda para os ventos africanos é “Fear of music”, o terceiro também!

Referências antigas de um quarentão apaixonado por música? Então aqui vão alguns exemplos mais recentes: Blur, com a explosão pop de seu “Parklife”; Manic Street Preacher e o clássico atemporal “The holy bible”; The Strokes, que quase enterrou sua carreira com o fraquíssimo segundo álbum, para depois ressuscitar com “First impressions on Earth”; ou mesmo a quase obscura banda “pseudo-nova-iorquina” The National, que me conquistou (junto com boa parte do público) apenas quando lançou seu terceiro CD, “Alligator”.

Agora, os “maus alunos” – aqueles que por pura falta de inspiração, cansaço, ou mesmo pressão (de uma gravadora, quando elas ainda eram decisivas na vida dos artistas), acabaram apresentando terceiros discos desinteressantes. Até bons, mas desinteressantes. (Antes, um aviso: o fato de eu incluir uma banda nessa lista não significa que eu não a admire – e muito; quer dizer apenas que ela me decepcionou em relação aos trabalhos que vieram antes, e que tanto me encheram de entusiasmo).

Honestamente, você acha “Be here now” o melhor trabalho do Oasis? Esse terceiro álbum tem, concordo, pelo menos um clássico: “Don’t go away”. Mas e o resto? Uma boa reciclagem da genialidade que a banda já havia apresentado nos dois primeiros trabalhos, sem dúvida – mas a sensação é a de que, àquela altura, os irmãos Gallagher estavam mais preocupados em ver quem aparecia mais na mídia do que em fazer boas músicas. Franz Ferdinand… Você ouviu “Tonight: Franz Ferdinand” inteirinho? Ah, ouviu? Mais de uma vez? É capaz de se lembrar de uma música assim, de cabeça? Ou ainda – para falar de uma banda cujos dois primeiros discos realmente mexeram comigo –, Arctic Monkeys. Dá para levar “Humbug” a sério? Um dos discos mais esperados de 2010 era… o terceiro de M.I.A. – e aí, quando “Maya” saiu, o que aconteceu? Nada… Kings of Leon, que tanto prometia lá no início, chega ao terceiro “round” apresentando o decepcionante “Because of the times”. E o Keane? Lembra quando eles eram a coisa mais excitante que havia saído da Inglaterra? E o que você acha de “Perfect symmetry”? Fraco, não é?

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Tanto essa lista quando a anterior são enormes – e você está convidado/convidada a contribuir, com seu comentário sobre um “difícil terceiro álbum” que provou que uma banda ainda era interessante, ou que enterrou de vez determinada carreira. Poderia me alongar aqui por mais alguns parágrafos dando exemplos de um e de outro caso. Mas eu queria mesmo era falar de “The suburbs” – então vamos lá.

Como já escrevi no início do post de hoje, o disco é muito bom. Chega a ser envolvente e sedutor, logo na primeira vez que você o ouve. Mas a euforia vai baixando na segunda escutada, um pouco mais na terceira – e quando foi para encarar a quarta, já sabia quais eram as duas únicas faixas que eu queria incluir no meu iPod (já conto), e pulei direto para elas.

A faixa-título, que abre o álbum, é muito boa, quase perfeita – mas está longe de ser original. Na verdade, eu não entendi por que ela não funcionou melhor – por que ela não ficou grudada na minha memória? Estranho… “Modern man” também entusiasma da primeira vez – eu acredito até que vá ser a segunda faixa de trabalho. Mas, assim como algumas músicas que vêm depois dela, me pareceu derivativa demais – sons que, apesar de você não conseguir identificar bem de onde eles vêm, deixam aquela estranha sensação de que você já os ouviu antes. Outras vezes você identifica a fonte (ainda que involuntariamente), e fica ligeiramente decepcionado, como em “City with children” (Oasis) e “Deep blue” (veja só… America, mais precisamente “A horse with no name” – esse mesmo America que vem tocar no Brasil agora no Brasil junto com Chicago… Proteja-se!). A certa altura achei que tinha gostado em especial de “Month of May” – mas estava enganado.

“The suburbs” – o álbum – traz, porém, duas pequenas obras-primas: “We used to wait” e “Suburban war”. A primeira – apesar de também lembrar uma certa banda irlandesa… – é uma longa faixa de proporções épicas e evolução perfeita. Complexa, surpreende não só da primeira vez que você a ouve, mas em todas as seguintes também. E a segunda, “Suburban war”, é simplesmente uma das três melhores canções de 2010 até agora (as outras duas são “Everything you wanted”, de Kele, e “Here lies love”, de David Byrne e Fatboy Slim, com Florence Welch – que faz parte de um ciclo de canções sobre Imelda Marcos, a ser comentado aqui em breve). Com uma introdução belíssima, que deve ter feito Peter Buck (do R.E.M.) roer algumas unhas de inveja, ela te sequestra nos primeiros dez segundos – e apesar do seu final divergir para um caminho totalmente inesperado, o resultado final é sublime!

Dito isto, em que lista será que devo colocar “The suburbs”? Acho que este terceiro álbum – de uma das maiores promessas deste início de século – fica na das bandas que, no lugar de surpreender, vieram apenas com mais do mesmo. O que não significa que eu não vá ter vontade de ver o que eles vão aprontar no quarto disco. Afinal, para citar novamente o R.E.M., depois do médio “Fables of reconstruction”, eles vieram simplesmente com “Lifes rich pageant” – talvez o melhor momento de toda a carreira deles…

E enquanto você decide se vai me crucificar ou não por esse veredicto, será que posso lhe apresentar uma banda relativamente nova que, quem sabe chegará com sucesso ao terceiro disco? Já ouviu Here We Go Magic, “Pigeons”?

Quem imita quem?

qui, 26/08/10
por Zeca Camargo |
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livros_zecaOak-hee, Mi-ran, Jung-sang, sra. Song, Hyuch, e a Dra. Kim são personagens da vida real. Moravam em uma cidade chamada Chongjin – e viveram histórias horrorosas, que você imagina que nem a ficção seria capaz de contar. O sr. e a sra. Hua, Kai, Han, Nini, Tong, Bashi, e o sr. e a sra. Gu são personagens de ficção. Vivem em uma cidade chamada Rio Lamacento – e suas histórias, embora narradas em uma obra de ficção, trazem uma incômoda ressonância do mundo real.

Todas essas “pessoas” saíram de dois livros que li recentemente. O primeiro, fruto de trabalho de uma jornalista americana, Barbara Demick – correspondente do jornal “Los Angeles Times”  na Coréia do Sul –, chama-se “Nothing to envy” (recém-lançado nos Estados Unidos, ainda sem previsão de ser traduzido para o português). O segundo, chama-se “Os excluídos”, foi lançado aqui há pouco tempo pela editora Nova Fronteira, e é um romance escrito por uma autora chinesa, Yiyun Li – nascida em Pequim, mas radicada nos Estados Unidos desde 1996.

Apesar de as histórias do primeiro se passarem na Coréia do Norte e serem verdadeiras, e as histórias do segundo serem inventadas num vilarejo do interior da China, ambos os livros tratam de temas muito parecidos: as condições de vida de indivíduos cuja liberdade de expressão lhes foi tirada por um regime totalitário. O que sobra para viver quando nada lhe resta – nem seus direitos mais básicos, nem suas necessidades mais primárias, nem mesmo suas emoções? As semelhanças entre as duas narrativas são tão assustadoras, que nesse caso específico a velha pergunta-clichê nem faz mais sentido: a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Um questionamento assim, só é possível quando o que você tem a sua volta pode ser chamado de vida… O que não é o caso nem em Chongjin nem em Rio Lamacento.

Será melhor começar pela ficção que parece não-ficção? Ou pelo inverso? Talvez seja mais didático falar primeiro da realidade, uma vez que os horrores que os habitantes da terceira maior cidade da Coréia do Norte, apesar de verdadeiros (ou até por isso mesmo), preparam melhor nossa mente para aceitar os horrores criados pela ficção… No seu livro – que faço votos de que seja um dia traduzido para o português (e rápido!) –, Barbara Demick reúne com uma incrível fluência, relatos de dissidentes de um dos regimes mais opressores do mundo atual. Seus entrevistados hoje moram todos na Coréia do Sul – depois de terem passado um dos piores períodos de fome da história da humanidade em seu país de origem, na segunda metade dos anos 90 (sim, apesar de as situações parecerem bizarras demais para terem acontecido na Idade Média, elas são tão frescas quanto a adoção do Real como nossa moeda nacional…). Vivem entre uma saudade nostálgica de um sistema que nunca cumpriu o que prometeu, o sofrimento da distância de parentes e amigos que ficaram para trás, a confusão de uma vida moderna para o qual nunca haviam sido preparados, e a esperança infinita de que o poder de Kim Jong-il vá desmoronar a qualquer momento. Mas todos têm a certeza, mesmo no meio dessa confusão de sensações, de que não querem nunca mais voltar para aquilo que viveram.

O retrato que Demick pinta é forte – e o mais triste de tudo é perceber que para produzir um quadro tão chocante, ela não precisou carregar nem um pouco nas tintas. As tragédias que seus personagens (da vida real, só lembrando) viveram, vão desde a incerteza da incomunicabilidade (quase ninguém, ainda nos anos 90, tinha telefone na Coréia do Norte, e cartas entre dois jovens apaixonados – Jung-sang e Mi-ran, que levaram três anos para darem as mãos, e seis parta trocarem um beijo no rosto – levavam semanas para chegar; às vezes meses), à humilhação de acostumar seu estômago a processar folhas e raízes que nunca foram digeríveis…

Ao longo do período descrito no livro – meados dos anos 90 e começo do século 21 –, fábricas vão sendo fechadas, colégios vão sendo esvaziados, mercados livres (algo impensável no regime comunista “linha dura” imposto pela dinastia Kim) vão florescendo, hospitais vão se tornando inoperantes. E as pessoas vão morrendo.

Para quem não é iniciado na história recente da Coréia, aqui vai um resumo bem superficial: o país foi dividido logo após a Segunda Guerra Mundial. O norte alinhou-se com a então União Soviética (e com sua ideologia comunista) e o sul aproximou-se do Japão e do mundo ocidental (leia-se, capitalista). Mesmo os mais desatentos à geopolítica talvez tenham percebido, durante alguns jogos da Copa do Mundo de 2002, que a Coréia do Sul é um exemplo de desenvolvimento. Enquanto que a Coréia do Norte… bem, pelo menos o que se sabe desse que é um dos países mais “secretos” do mundo é que depois do colapso da União Soviética e da maioria dos regimes comunistas ele foi ficando cada vez mais isolado e miserável – e, pior, fazendo com que seus cidadãos acreditassem que viviam numa das nações mais prósperas do mundo, ao mesmo tempo que eram tratados com indiferença pelo próprio governo.

Ao escolher Chongjin – e não Pyongyang – como o foco das vidas que queria retratar, Demick descreve uma realidade ainda mais surreal do que a do “cartão postal” coreografado e maquiado da capital (virtualmente, único lugar por onde circulam os poucos turistas que visitam o país). Das peripécias da sra. Song para transformar seus dotes culinários em dinheiro para a família (que seriam um exemplo de criatividade não fossem as situações desesperadoras que a obrigavam a fazer de tudo para sobreviver) aos golpes que Hyuch inventava para arrumar alguns trocados (inclusive contrabandear produtos chineses – um crime gravíssimo), o cotidiano de Chongjin parece ser cruel demais para ser verdade. Mas é…

Cada uma dessas histórias merecia ser recontada aqui em detalhes – especialmente a da Dra. Kim, que mostra uma tenacidade no exercício da medicina que é exemplar até no Ocidente! Mas, para não tirar o prazer (ou o choque) de sua possível leitura – mesmo que você só arranhe no inglês, já vale a pena –, nem me alongar demais (ainda tenho o outro livro para comentar), vou falar brevemente da relação amorosa entre Mi-ran e Jung-sang. Ele (Jung-sang) tem origem japonesa – e embora isso significasse uma vida um pouco melhor (uma vez que seus familiares mandavam dinheiro e roupas boas do Japão,  entregues depois que as autoridades norte-coreanas tiravam sua comissão, claro), ele não era considerado um verdadeiro “filho da terra”. Suas chances de entrar para o “Partido” eram melhores que as de um cidadão comum, mas sua situação não podia ser descrita como confortável. Já Mi-ran tinha um pai “sul-coreano” – que chegou a lutar do lado dos americanos na guerra da Coréia. Com um passado como esse, seu sangue era considerado “sujo”  – e sua perspectiva de vida, desgraçada.

Apesar dessas diferenças, os dois se apaixonaram – isto é, se dá para chamar de paixão o que eles viviam. Depois de anos encontrando escondidos à noite (sem se tocar), Jung-sang foi estudar em Pyongyang e só ia a Chongjin duas vezes por ano, nas férias. Os dois conversavam por horas e mal se encostavam. Mas por maior que fosse o amor, eles nunca chegaram a confiar totalmente um no outro. Quase dez anos depois de “namoro”, Mi-ran escapou para a China (e depois para a Coréia do Sul), sem dizer uma palavra ao seu grande amor. Ele, sem notícias dela, partiu quase dois anos depois – e hoje os dois vivem separados. Dissidentes e separados.

Imagine não confiar em ninguém – nem em quem você ama?

Os personagens fictícios de “Os excluídos”  sabem bem o que é isso. O contexto é outro: interior da China, no final dos anos 70 – logo depois da Revolução Cultural de Mao. Mas o regime por trás daquele cotidiano não é muito diferente daquele imposto pelos Kim aos norte-coreanos.

Para situar o leitor logo de cara, Yiyun Li começa com a execução de uma jovem chamada Gu Shan. A “criminosa” é uma contra-revolucionária de apenas 28 anos, que foi presa aos 18 (por ter escrito uma carta ao seu namorado em que deixava claro suas dívidas quanto ao regime do camarada Mao – namorado esse que entregou suas cartas ao governo em troca de uma “permissão para se alistar no Exército”). Ao final da pena – de dez anos – seu caso foi revisto: ela não havia mostrado sinal de melhoras, pois ainda falava mal do governo (na verdade, ela já havia enlouquecido há anos na prisão), e foi condenada à morte (execução essa que, logo sabemos, é apenas um teatro para que seus órgãos possam ser retirados e serem transplantados no corpo de um alto oficial do Partido…).

O “espetáculo” da execução – que é reservada, mas não sem antes a ré passar por uma “cerimônia acusatória” (onde ela foi apresentada, já moribunda e com as cordas vocais cortadas para não gritar protestos contra o governo, para boa parte da população da cidade reunida num estádio) – toma a primeira parte inteira do livro (153 páginas). E reverbera nas partes seguintes.

Com a habilidade de uma boa escritora, Li vai envolvendo seus personagens – todos tão ou mais miseráveis do que os entrevistados de Barbara Demick – numa história só. Que é, claro, uma história de tristeza, de abandono, de falta de esperança. Como os norte-coreanos de Chongjin, os habitantes de Rio Lamacento não acreditam em mais nada. Ou melhor, fingem que acreditam no seu governo, mas tentam preservar sua tristeza para que a vida não se torne ainda mais miserável.

Diferente do elenco de “Nothing to envy”, porém, “Os excluídos” traz algumas crianças na sua trama. Elas ainda não têm muita noção do “sistema maior” que afeta – e afetará ainda mais no futuro – as suas vidas. Mas não são menos vítimas que os adultos. Mimi, por exemplo, nasceu com o rosto marcado e parte do seu corpo paralisado. Aos 12 anos, já sabe que será escrava da sua condição: condenada a cuidar de seus pais até a morte, sem direito a se casar. Sua amizade inesperada com Bashi (órfão de um “herói da revolução”, que tem uma vida boa bancada pelo governo), promete um sopro de esperança. Mas engana-se quem acha que naquele lugar pode existir felicidade…

Outro menino, Tong, canta hinos comunistas com o mesmo entusiasmo com que xinga a contra-revolucionária prestes a ser assassinada. Tanta lealdade, porém, será paga de maneira trágica – e mesmo antes de concluir o livro, você já se prepara para o pior. E aí está a grande ironia dessas duas leituras: enquanto a ficção te leva para um caminho cada vez mais obscuro, a não-ficção apresenta uma espécie de redenção para os que escaparam do sistema.

É bom lembrar, no entanto, que para cada norte-coreano que consegue escapar para a Coréia do Sul, dezenas de milhares de compatriotas continuam sofrendo as piores agruras na sua pátria. E, falando da China, ao mesmo tempo em que o mundo comemora o sucesso comercial dessa que é agora a segunda maior economia do planeta (passou o Japão há alguns dias, como você talvez tenha visto no noticiário), fica cada vez mais difícil negar a falta de liberdade com a qual seus habitantes são obrigados a conviver – ou você já se esqueceu que a Google saiu de lá por questões de censura e privacidade de seus usuários?

O que fica dessas duas leituras preciosas é a lição de que não há possibilidade de o ser humano ser feliz sem poder se expressar livremente. E uma das mais importantes manifestações dessa liberdade é justamente poder escolher quem queremos que nos governe – e ter esse direito garantido pelos próprios governantes. Que, por sua vez, têm a obrigação de nos devolver o direito de ter opiniões.

Uma boa reflexão para esses tempos de eleição, não acha?

Eu queria ter estado lá para ver!

seg, 23/08/10
por Zeca Camargo |
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O convite que fiz no último post era para  participar de “um grande painel com lembranças do Rock in Rio” – e podia ser de qualquer uma das versões do evento que o Brasil já assistiu. Mas, não entendi bem como, acabou virando um grande confessionário sobre “o melhor show da minha vida!” – e ficou sensacional…

Muita gente, claro, escreveu para contar do seu melhor momento no Rock in Rio (que, em muitos casos, havia sido também “o melhor show de todos os tempos”…). Mas teve de tudo – de Duran Duran e Simply Red, a Foo Fighters e Nazareth (no Planeta Atlântida); de DJ Marky a Metallica; de AC/DC a Massive Attack; de Skank (ao vivo, no Mineirão) a James Taylor; de Fito Paez (em Cuba!) a Pink Floyd (em Lisboa!); de Barão Vermelho (no Recife, ainda com Cazuza) a Yes! E será que preciso assinalar que entre os mais votados estão os perenemente favoritos Iron Maiden, Rolling Stones e… Queen – com o momento “Love of my life”, do primeiro Rock in Rio, disparado na ponta?

Fiquei absolutamente encantado com a diversidade de gostos – uma bandeira que já defendi mais de uma vez neste espaço. Uma lista tão eclética assim, ainda que longe de ser completa, só mostra como nós somos capazes de produzir coisas diferentes, seduzir platéias de várias maneiras e estilos, e, finalmente, gostar das mais diversas manifestações musicais – quando não simultaneamente de várias delas! Viva!

Tentado pelo devaneio dos comentários, eu mesmo quase preparei para hoje uma lista com alguns dos melhores shows que já assisti. Mesmo não sendo um grande admirador de performances ao vivo – algo que não é novidade para o frequentadores deste blog nem para quem já passou os olhos pelo meu livro “De a-ha a U2″ -, coleciono nessas mais de quatro décadas de “show business” que vivi, momentos memoráveis. Do primeiro concerto de rock que assisti (Alice Cooper em São Paulo, em 1974 – sim, eu tinha apenas 11 anos!) ao que eu desejei que fosse o último (Arctic Monkeys, em 2007, quando decretei, aqui mesmo, em um post, que eu tinha ficado  irreversivelmente velho). Nirvana em São Paulo, visto das coxias do enorme palco do “Hollywood Rock”; Alanis Morrisette na Cidade do México; Eurythmics, no Madison Square Garden; Marisa Monte num palco escuro; Legião no Palmeiras; Rufus Wainright em Paris – a lista é longa. Mas se eu mesmo não for fiel à minha proposta, estaria cometendo uma traição muito pessoal…

Assim, deixo o comentário sobre esses shows para uma outra hora, e vou começar este post (começar? isso aqui vai longe hoje…), falando do meu momento favorito do Rock in Rio. Foi no segundo, o de 1991. E foi George Michael cantando “Freedom 90″, no Maracanã. Melhor eu me explicar, certo?

Não vou nem entrar em discussão sobre a genialidade do disco “Listen without prejudice vol. 1″ – que, como um dos álbuns de maior sucesso no universo naquela época, era o foco do repertório de Michael trouxe para cá (explorarei esse trabalho, prometo, em outro momento oportuno). Todas as canções dessa fase de Michael são tão incríveis, que eu teria gostado do show de qualquer maneira. Mas o que tornava tudo mais especial para mim era um certo verso de “Freedom”.

Recapitulando: naquela época, 1991, eu trabalhava na MTV. A versão brasileira de TV que redefiniu a música pop nos anos 80/90 (mais sobre isso quando, em outubro, eu escrever sobre os 20 anos da MTV Brasil), não tinha nem seis meses de existência, e já se viu diante de um enorme desafio: a cobertura de um evento de proporções descomunais como aquele – nove dias ininterruptos de muita música (e de todo o tipo). Nove dias!

O que mais me lembro desse período é de olhar no meu chachá – que tenho até hoje – para conferir (quase sempre me decepcionando) se mais um dia daqueles impressos ao lado da minha foto havia sido perfurado… Como disse no post anterior, não me lembro de ter dormido por mais de quatro horas seguidas da abertura ao fechamento do festival.

Para encarar uma cobertura como aquela, nossa equipe (90% iniciante em TV) pegou carona no pequeno exército da MTV americana que desembarcou no Rio de Janeiro para gravar uma semana inteira de programação (num detalhe curioso, o Rock in Rio, para o público americano, aconteceu duas semanas depois, com todos os programas normais da emissora usando o festival como pano de fundo – num incrível esforço de produção e reportagem; nós, por aqui, não tínhamos essa opção: com todo mundo cobrindo o evento ao vivo, tínhamos de colocar tudo no ar enquanto tudo acontecia mesmo!). E o esquema era puxado…

Todos os dias, às 8h da manhã, participávamos de uma grande reunião de produção com a equipe deles, onde as tarefas, as entrevistas e os artistas eram divididos. Pegávamos uma bela “rabeira” nas gravações deles – muitas vezes, conseguindo encontros exclusivos com artistas que não facilitavam para a cobertura oficial (que, ironicamente, era da TV Globo, onde hoje trabalho), mas que “abriam seu coração” para uma “exótica” sucursal da poderosa MTV americana – no caso… nós!

O problema é que nós organizávamos toda nossa agenda e, como se diz, só faltava combinar com os artistas – sempre imprevisíveis. Ficávamos à mercê das vontades desses superastros. Entre tantos “tiros n’água”, lembro-me de passar uma tarde na piscina do hotel Copacabana Palace tentando entregar uma camiseta da MTV Brasil para o próprio George Michael – e tudo que consegui foi passar o presente para um de seus seguranças… Sem falar na entrevista com Axl Rose (que não falou com mais ninguém, nem com a MTV americana, só com a gente), que aconteceu algumas horas depois do show do Guns no Maracanã – e “horas” aqui não é figura de linguagem (leia-se, alta madrugada!). Enfim, não tínhamos tempo para nada – nem para dormir! Mas eu era o cara mais feliz do mundo…

E essa sensação foi levada às alturas justamente no show de George Michael, quando, no meio de “Freedom 90″ ele cantou: “I went back home, got a brand new face, for the boys on MTV” (traduzindo apressadamente: “Voltei pra casa, descolei um novo visual, para os caras da MTV). “The boys from MTV”! Era comigo! Eu achava, claro, que Michael estava cantando aquilo para mim… Quando na verdade, era eu que estava cantando para ele, como que um agradecimento (num dos raros momentos em que me permiti assistir a um show da platéia, abusei do crachá que liberava minha circulação por áreas restritas, e, nesse show, cheguei tão perto do palco, que tive a sensação de que estava fazendo “backing vocals” para Michael!). Acho que nunca estive tão próximo do céu…

Tenho um registro forte também do show de Prince, do INXS, do próprio Guns N’Roses, e do azarão do festival, o Dee-lite. Mas nada superou esse momento “Freedom” – e é a primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em Rock in Rio… Foi de fato, um grande evento, e sou grato (ao destino, talvez) de ter tido a chance de participar daquilo de maneira tão próxima – e numa idade em que eu ainda tinha energia para tanto… Mesmo assim…

Mesmo assim, não sou um homem realizado, no que diz respeito a estar presente em grandes eventos musicais – e olha que não posso esquecer que fui o apresentador de dois dos maiores show recentes no Brasil: Rolling Stones em Copacabana e U2 no Morumbi (que aconteceram, é bom lembrar, num espaço de apenas alguns dias, no longínquo fevereiro de 2006…). A grande lacuna no meu “currículo” musical, o acontecimento que eu “queria ter estado lá para ver” – como disse no título do post de hoje -, existiu em duas noites de 28 e 29 de outubro de 1964, em Santa Mônica, na Califórnia: era o “T.A.M.I. Show” – que comentei brevemente no post anterior

O nome do festival significava “Teen Age Music International” (Música Internacional Adolescente) – ou “Teenage Award Music International” (Prêmio da Música Internacional Adolescente – ainda que nenhum prêmio tenha distribuído…). Mas isso pouco importa. A idéia, aparentemente, era fazer um evento desses por ano: reunir os melhores nomes da música “jovem” – de “todas as partes do mundo” (isto é… Estados Unidos e Inglaterra…), filmar com as técnicas mais avançadas da época, e juntar tudo num filme para ser lançado comercialmente nos cinemas. E, com efeito, em dezembro daquele mesmo ano, o “T.A.M.I. Show” chegava às telas americanas – e foi imediatamente consagrado como um evento!

Depois de anos de esquecimento – e brigas por direitos autorais – o filme foi finalmente lançado em DVD (e você consegue comprar com facilidade pela internet). Minha cópia chegou recentemente – e finalmente pude ver que tudo aquilo que falavam era verdade. E mais…

Tudo começa num clima tranquilo, meio de “making of”, com vários artistas convidados encaminhando-se ou preparando-se para o grande concerto. Ao fundo – enquanto Lesley Gore rodava no que parece ser um brinquedo de criança tipo gira-gira sem tirar um fio de seu cabelo ondulado do lugar -, a música-tema do show que, num clima de “Arrombou a festa”, de Rita Lee, listava os artistas que todos esperavam para ver. “Eles estão vindo, te todas as partes do mundo”, insistia o refrão – como se o “mundo todo” fosse aqueles dois pedaços de terra (americano e inglês) divididos pelo Oceano Atlântico…

E então, um público aparentemente bem comportada (todos, a princípio, sentados), é recebida pelos apresentadores Jan e Dean (que também eram, casualmente, uma dupla então popular de “surf music”), que entram de skate no palco. Quanta rebeldia! Mas essa “loucura” toda era mesmo necessária, porque, afinal, quem abria a noite era ninguém menos que Chuck Berry – e já atacando de “Johnny B. Goode”! Histeria entre o público, que só se agravou quando Gerry and the Pacemakers entrou para dividir o palco com Chuck, cantando, entre outros sucessos, “Maybellene”… Muito antes desse refrão sequer ser inventado, qualquer um que assistir ao “T.A.M.I. show” pode ver que, na platéia,  “elas estão descontroladas”!!!

Para dar uma, digamos, “abaixada no facho”, somos introduzidos a um momento soul, com Smokey Robinson and the Miracles, seguidos por Marvin Gaye – Marvin Gaye! E para dar o recado final de que era para todo mundo se comportar, entra no palco Lesley Gore – desculpe não apresentá-la há pouco, quando a mencionei acima, mas é que seu maior sucesso, “It’s my party” é tão presente na minha vida (estava no topo das paradas americanas quando eu nasci!) que eu às vezes acho que todo mundo já o conhece… Gore vem com seu cabelo impecável, um tailleur para lá de sóbrio, e pequenas pérolas de pop (inclusive, claro, “It’s my party”).

Jan e Dean entram para um rápido número musical – mostrando que não eram especialmente bons nem como artistas nem como apresentadores – e tudo ameaça pegar fogo de novo, com The Beach Boys (curiosamente na performance com menos tesão de toda a noite – o que dá margem a várias interpretações…), Billy J. Kramer and the Dakotas (bem… nem todo mundo naquele elenco sobreviveu ao tempo…), e The Supremes! Com seu charme irresistível (e aquelas músicas perfeitas), Diana Ross hipnotiza a audiência – que dança quase tão freneticamente quanto os bailarinos de palco (aliás, que queria saber o que eles tomaram antes de entrar em cena… o “negócio” era bom…). Mas, mesmo com toda essa energia, ninguém estava preparado para o que viria dali a pouco.

Uma banda totalmente esquecida – e, tenho que admitir, desconhecida para mim -, entra para cantar apenas uma canção: são os Barbarians, com “Hey little bird”. Mal marcaram presença – até porque, o que estava prestes a acontecer no palco apagaria qualquer memória recente daquele público: James Brown entrava para fazer história…

Os Rolling Stones fechavam a noite, mas parece que essa não foi uma decisão sábia. Como Keith Richards notoriamente dizia, entrar no palco depois daquela performance de James Brown talvez tenha sido o maior passo em falso da carreira da banda. Por que? Porque nada – absolutamente nada – seria capaz de super a apresentação de Brown.

O frisson começou logo na sua entrada – ou melhor, era mais uma “deslizada” – no palco. O “padrinho do soul” vinha ensandecido – ou, se você preferir, endiabrado! Seus tremeliques (reproduzidos ao fundo pelos Flames, mas sem o mesmo efeito) tomaram a público de reféns – e a gritaria não parava mais. Nem poderia. O clima só esquentava na noite – e quando Brown entrou na terceira música, “Please, please, please”, todos ali presentes já estavam em outra dimensão…

Numa versão que não parecia terminar nunca (para o delírio dos fãs), ele se jogava no chão, arrastava-se, seus companheiros lhe cobriam com uma capa, ele tirava a capa, ia até o microfone, não dizia nada, jogava-se mais outra vez no chão – estava possuído. É impressionante. E é sublime. Ah, e não era nem o fim… Fechando seu “set” com “Night train”, James Brown se supera na coreografia, na energia e na loucura. Quem viu, provavelmente jamais esqueceu. E era lá que eu queria estar – ainda que com um ano de idade…

(Essa performance indescritível – eu bem que tentei – é o ponto alto do “T.A.M.I. Show”, e vale comprar o DVD só por isso. Eu não deveria nem sugerir isso, mas, para você não achar que eu estou inventando, é possível encontrar essas imagens na internet – basta dar uma busca no nome do show mais o de James Brown… E se não ofereço o link direto aqui é porque não aprovo essas coisas…).

Por fim, entram os Rolling Stones. O público, já devidamente aquecido (ou melhor, chamuscado) por James Brown, reage como que por inércia – a performance é impecável, de dar saudades dos Stones daquele tempo, mas quem conseguia tirar James Brown da cabeça? A sorte é que depois de uma ótima versão para “I’m alright”, ele volta ao palco, junto com todo o elenco, para uma grande “jam”. No meio daquele mar de talentos, a chama fogosa de Brown fica relativamente diminuída. Mas vendo-o ali, ao lado das Supremes, de Marvin Gaye, de Chuck Berry, e do próprio Mick Jagger, não fica dúvidas de quem era realmente o dono da noite…

Apesar desse sucesso todo, o plano de fazer do T.A.M.I. um evento anual não vingou. Pelo menos não até hoje… Mas se eu souber que estão organizando uma outra noite assim, juro que corro para pegar lugar na primeira fila!

O maior espetáculo da Terra

qui, 19/08/10
por Zeca Camargo |
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Vem aí mais um Rock in Rio, como você provavelmente ficou sabendo nos últimos dias. O anúncio oficial, inevitavelmente, trouxe várias memórias para este que vos escreve – e, imagino, para você também, quem tem, no mínimo, uns 25 anos, e pode, talvez, ver de perto a última edição do evento no Brasil, que foi em 2001.

Desse festival, tenho uma vaga lembrança – fiz apenas algumas entrevista com seletos artistas então convidados (a mais memorável delas, com Beck). Do Rock in Rio de 1991, o segundo, o registro é bem mais forte: trabalhei intensamente durante seus nove dias de duração – sem poder dizer, com certeza, se cheguei a dormir durante este período. Já do primeiro, não tenho nada para contar – a não ser o que vi depois, em vídeos e documentários (e, hoje, obviamente, no Youtube): estava fora do Brasil, numa viagem que já havia planejado antes mesmo de o Rock in Rio ter sido anunciado…

Quero dividir essas memórias aqui com você, mas não sem antes perguntar se você tem algum momento também inesquecível para contar para quem passa por aqui. Animado com o lúcido e saudável debate que floresceu no post anterior (as palavras me faltam para descrever o meu prazer em ler esses comentários), queria agora baixar o tom, mas não a intensidade. Se meu último texto propunha uma discussão sobre os limites da crítica – e da “crítica da crítica” – na internet, convido você agora a me ajudar a montar um grade painel de “lembranças do rock in Rio”.

Pode ser de qualquer versão. Qual foi o melhor show para você? O melhor bastidor? A melhor plateia? E a melhor “coisa que você não contou até hoje, mas agora que já se passaram tantos anos acho que você já pode liberar”? Mande a sua história num comentário – e eu prometo que na segunda divido as minhas histórias de palco, plateia e bastidor… E não são poucas…

E, enquanto você puxa pela memória, deixo aqui um breve “aperitivo”: um trailer daquele que é por muitos considerado o melhor show de rock de todos os tempos – o T.A.M.I. show. Achou que eu estava falando do Rock in Rio quando coloquei no título “o maior espetáculo da Terra”? Nada disso! Recentemente coloquei as mãos nessa preciosidade, que finalmente foi lançado em DVD para o público – encerrando uma espera de décadas para muitos que só ouviam falar desse show histórico.

É sensacional mesmo! E vou comentá-lo também na segunda. Junto com o que foi, então talvez, “o segundo maior espetáculo da Terra”… Até lá!

zeca3

“Como ousa não gostar daquilo que gosto?”

seg, 16/08/10
por Zeca Camargo |
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A pergunta que peguei emprestada para o título de hoje está entre aspas porque foi tirada de um texto recente do principal crítico de cinema do jornal “The New York Times”, A.O. Scott – cuja leitura recomendei no meu post anterior, sobre o filme “A origem”. Para dar um contexto maior, vale a pena explicar que a pergunta vem logo depois de um dos argumentos mais lúcidos do crítico – que embarcou numa guerra de insultos furiosa com os fãs de “A origem”, só porque (resumindo bem) ele não achou o filme uma obra-prima, apesar de não ter poupado elogios na sua primeira resenha. Escreve Scott: “A fúria dos defensores do filme era motivo especial de preocupação, uma vez que os uivos destemperados pareciam atacar a própria base de uma discussão civilizada e transmitir um tom pessoal, emocional para o debate como um todo”. E conclui: “Como ousa não gostar daquilo que gosto?”.

Evoquei esse texto na última quinta-feira porque o meu próprio comentário sobre “A origem”, embora positivo, trazia também reservas ao filme – e, mesmo tendo gostado muitíssimo da produção (e até achar que eu a tinha entendido!) estava longe de colocá-la no ainda vago pedestal da “primeira obra-prima do cinema do século 21” (não, “Avatar” não ocupou o lugar, nem “O cavaleiro das trevas” – desculpe). E já me preparei para o ataque…

A julgar pelos comentários que chegaram até agora, ele foi brando. Mas pude encontrar aqui e ali indiretas insinuando que meus elogios ao mais recente trabalho do diretor Christopher Nolan não haviam sido suficientes (para o fã obcecado, nunca é). Mas se aqui o tom foi o de fúria moderada, fora deste micro universo deste blog, a agitação toma proporções colossais.

Não quero hoje entrar nessa discussão específica dos méritos do filme – minha opinião sobre ele já foi apresentada na semana passada (e, mesmo que vários comentários me fizeram ter vontade de revisitar o desfecho de “A origem”, minha apreciação final, acredito, não vai mudar em nada). Mas o que gostaria de propor é uma reflexão maior sobre a natureza dessas críticas modernas – na verdade, as “críticas às críticas” -, que hoje, com a ajuda de ferramentas poderosas como o twitter (e semelhantes), são catapultadas da condição de incômodos sussurros a estrondosos manifestos. Significativos, de alguma forma? Vejamos…

Do chilique desses fãs de “A origem” – os mais radicais, aos quais chamei de “hidrófobos” –, à mania mais recente de mandar todo mundo “calar a boca” (todo mundo, claro, que não tem a mesma opinião que quem “twita”…), os grandes “debates culturais” contemporâneos estão se tornando histéricos protestos populares. Engraçadinhos, e certamente divertidos de participar – ninguém quer ficar de fora dessa “malandragem”, de “retwitar” uma piada, mesmo que ninguém leve o crédito como autor dela (é virtualmente impossível descobrir quem a mandou pela primeira vez).  Mas, assim como A.O.Scott, fico um pouco preocupado com o distanciamento entre essa agitação contagiante (e vazia) e a tal “base de uma discussão civilizada”.

Deixe-me voltar uns instantes para o documentário sobre o qual escrevi aqui há alguns dias, “Uma noite em 67”. Entre tantas coisas surpreendentes que encontrei no filme, está a passeata contra a “invasão das guitarras”, que alguns músicos e artistas – liderados por ninguém menos que Elis Regina – fizeram em São Paulo, mais ou menos na época do festival de música que é o tema do trabalho. Você leu direito: uma passeata contra a invasão das guitarras… (é por coisas assim, que eu adoro os anos 60 – mas eu divago…).

A idéia era impedir – ou, no mínimo, retardar – a chegada das guitarras na nosso música popular. Não deu muito certo, claro. A Tropicália os aguardava ali na esquina – e Caetano Veloso não demoraria a sacudir o próprio festival com aquela abertura inquestionavelmente elétrica de “Alegria, alegria”. Mas o que eu achei mais curioso foi o comentário do próprio Caetano hoje, relembrando o episódio. Sem concordar com a nobre causa da passeata, ele e Nara (Leão) ficaram no quarto do hotel (Danúbio, se não me engano), olhando aquela “banda” passar – e achando que tudo aquilo tinha um toque fascista.

E tinha mesmo. Qualquer manifestação que simplesmente diz “não” a alguma coisa, sem justificar o seu protesto tem, sim, um quê de fascista. Por que? Porque qualquer slogan fácil de protesto é um atalho para cortar o debate e a… discussão civilizada! Claro que alguns deles funcionam – mas desde que sejam o resultado de uma reflexão, ou de um processo genuíno de mudança. Quer um bom exemplo? “Abaixo a ditadura”. Ou “Diretas já”. Um exemplo ruim? “Cala a boca (complete com o nome do seu desafeto da hora)”!

Mas esses, como já mencionei, são slogans fáceis. O que eu acho mais complicado é quando ele vem disfarçado de opinião – por exemplo, algo como “Se você não achou ‘A origem’ o melhor filme de todos os tempos você não deveria escrever sobre ele”… Aí, as “vítimas” são não apenas os críticos de cinema, como apontou A.O. Scott, mas qualquer um que emitir uma opinião dissonante. Scott sentiu “na pele” essa guerrilha: recebeu inúmeras agressões por escrito, que tinham o claro objetivo de ao mesmo tempo barbarizar a discussão, liberar os impulsos mais adolescentes de quem atacava, e ainda impedir que dali qualquer argumentação prosseguisse de maneira razoável. É isso que deixou o crítico do “New York Times” tão incomodado – menos o fato de essas pessoas não terem gostado (ou terem simplesmente discordado) do que ele escreveu, e mais o teor virulento da resposta que não convida ao diálogo e parece apenas querer dizer que aquele que escreveu de maneira não tão positiva sobre alguma coisa que para elas é, hum, a melhor coisa do mundo é um (ou uma) imbecil!

Em escala bem menor, este blog também me ofereceu experiências semelhantes. Entre os comentário que são aprovados – isto é, aqueles que não usam palavrões indiscriminadamente, ou se aproveitam para falar de outras coisas que não o assunto proposto -, não são poucas as palavras pesadas (quando não intencionalmente maldosas) que chegam por aqui, simplesmente porque o artista (e/ou sua obra) não foi canonizado no meu texto. Como já disse anteriormente, o “debate” sobre “O cavaleiro das trevas” talvez seja o mais emblemático – mas houve outros. De Michael Jackson a Celine Dion, de Harry Potter a … Deus! Ai de mim que não descrevi essas “divindades” (perdão pelas aspas, fiéis!) como…bem, como… divindades!

Perdi a conta de quantos comentários já li aqui que deixavam claro que quem enviou não se deu ao trabalho de ler o que estava criticando – e não vamos nem exigir o “luxo” de uma interpretação de texto… Eles não me incomodam enquanto comentários – opiniões contrárias são sempre bem-vindas (sem contar que boa parte delas, como também fica fácil de perceber, quer atingir não o texto, mas este que escreve, às vezes até no nível do pessoal, ou mesmo o programa no qual trabalho… esses a gente tira de letra!). O que me desanima, é que isso reflete uma constrangedora preguiça de… argumentar.

Felizmente, aqui neste espaço, tenho a chance de conferir boas argumentações elogiosas – reflexões que ampliam e levam para outros cantos assuntos que propus em um determinado post (só isso, já me dá motivos para continuar a escrever por mais quatro anos!). Mas quando vou ler uma crítica, alguém que tenha discordado que algo que escrevi, raramente ela é bem desenvolvida – como se aqueles que não aprovam as idéias aqui colocadas achassem que bastaria apenas falar que eles não gostaram para fechar a discussão. “Magoei”, parecem dizer. “Feio”, parecem decretar…

Se lamento esse desequilíbrio – uma boa quantidade de argumentos, muito  bem estruturados, a favor de um assunto, contra poucas críticas “fundamentadas” (e muitos protestos azedos e superficiais) – é tão simplesmente porque gostaria que este espaço fosse cada vez mais um grande fórum. Já o é, mas sempre pode ser mais. Por isso, às vésperas de completar quatro anos de existência deste blog, eu faço votos de que esse debate seja cada vez melhor.

Provavelmente aqueles (e aquelas) que gostam só de “retwitar” seus vitupérios inócuos sequer chegaram a esta altura do texto. Deveria eu respirar aliviado, uma vez que eles não vão nem entender toda a construção do meu pensamento de hoje, e assim nem vão poder criticar? Não. Pelo contrário, eu lamento que eles não vieram até aqui para, quem sabe, serem seduzidos pelo meu convite para uma discussão mais interessante – e, quem sabe, civilizada (o mais provável é que, quando alguém dessa turma perceber que eu estou “criticando a crítica deles”, eles simplesmente já terão me mandado uma frase de 140 toques desaforada…).

Nem por isso, deixo de celebrar aqui você, que corajosamente me seguiu até este parágrafo – e com quem eu quero continuar sempre. Seja para falar de novo disco do Arcade Fire; de histórias absurdas de regimes autoritários (contadas em dois livros fascinantes que estou lendo – um de ficção e o outro não); “Um jantar para idiotas”; os 20 anos da MTV no Brasil; a confirmação de “The Boxer”, como melhor disco do ano; a mais nova bizarrice de Lady Gaga; Julia Roberts; um ciclo de canções pop sobre Imelda Marcos; o melhor show de rock de todos os tempos; a arte da revista literária McSweeney’s; ou, se eu realmente terminar de lê-lo algum dia, o indescritível romance de Roberto Bolaño “2666″ – só para dar um gostinho do que vem por aí.

E já que aqui eu dou a minha opinião genuína sobre  literalmente o que eu quiser, acho que vale a pena citar mais dois trechos do excelente texto de A.O. Scott:

“Assim como os críticos costumam escrever de boa fé, quem consome essa produção crítica deve assumir a mesma boa fé. Podemos até estar errados, mas sempre assinamos embaixo do que dizemos. É uma das responsabilidades dessa função, assim como um das suas vantagens”.

E, para aqueles que se sentem ofendidos toda vez que não virem o enorme talento de seus artistas refletidos numa crítica dessas – ou mesmo num despretensioso blog como este, Scott conclui brilhantemente:

“A cultura de cinema na internet não apenas acelera o processo de absorção de um filme na corrente sanguínea cultural mas também inverte a ordem das coisas. Talvez minha memória esteja um pouco confusa, ou talvez eu esteja sonhando, mas eu acho que ‘obra-prima’ costumava ser a palavra final, o fim de uma discussão, e não o seu ponto de partida”.

Se alguém conseguir colocar esse estado caótico do nosso debate cultural melhor do que nessa frase, parabéns!

Eu acho que eu entendi “A origem”

qui, 12/08/10
por Zeca Camargo |
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Pode ser só uma primeira impressão, mas acho que entendi sim. Mas também fui preparado para o cinema! Depois de tudo que já tinha lido – boa parte das críticas da imprensa americana – sabia que “A origem” não era exatamente uma história linear. Aliás, era isso mesmo que o grande público – inclusive eu – estava esperando de um diretor (e roteirista) como Christopher Nolan…

Você se lembra de “Amnésia”, não se lembra? (Engraçado como essa pergunta parece estranha – lembrar de uma amnésia… mas eu divago… e está muito cedo para isso!) Você se lembra de quantas vezes teve vontade de assistir a esse filme de estreia de Nolan, lançado há exatos 10 anos, e que era contado em fragmentos “de trás para frente”? Lembra-se de sentir-se extremamente provocado para fazer tudo encaixar – e desejar, sem sucesso, que alguma coisa estivesse faltando no roteiro super bem amarrado?

inception1 “Amnésia” era (é!) tão sensacional, que até hoje, mesmo com a edição de luxo em DVD, que me permite assistir o filme “na ordem natural das coisas” – isto é, começar do começo, passar pelo meio, e chegar ao fim, como qualquer filme comum -, eu nunca quis usar esse artifício. Para mim, o que é exatamente brilhante é o desafio ali proposto por Nolan: ver como cada detalhe é relevante, cutucar o espectador até aquele momento no qual ele diz “a-ha!”, e sair da sessão sentindo-se um pouco mais esperto do que entrou (exatamente o contrário do que acontece com a maioria das atuais grandes produções de Hollywood, que te fazem sair do cinema com a sensação de estar ligeiramente mais imbecil do que você entrou… mas eu divago novamente – hoje está demais… será o efeito “A origem”?).

Tornei-me instantaneamente um fã de Nolan. Acho que fui dos poucos que gostei muito de seu filme seguinte, “Insônia” (dei o desconto da grande expectativa com a qual esse filme era aguardado e acabei apreciando-o mais do que eu esperava). Fiquei absolutamente encantado com “Batman begins” – aquele que eu acho, hoje em dia, que é o melhor filme jamais feito com o “cruzado encapuzado”. Gostei moderadamente de “O grande truque” – que era, obviamente, apenas um exercício de estilo (e um exercício muito bem feito, diga-se, onde os truques de um mágico serviam de metáfora para os próprios truques que o diretor gosta de apresentar em seus trabalhos). E tive lá meu problemas com “O cavaleiro das trevas” (ampla e apaixonadamente debatido aqui neste espaço), mas que não arranharam nem um pouco a reputação que Nolan tinha comigo. (Estou aqui coçando para reabrir os argumentos sobre o “Cavaleiro das trevas”, sobretudo à luz de “A origem” – que é um filme que, por incrível que pareça, faz bem mais sentido do que “Cavaleiro” – mas vou tentar me controlar…).

Quando vi o trailer de seu novo trabalho (comentado num post recente, com avaliações sobre o que esperar da atual temporada cinematográfica – avaliações essas que, com exceção de “Sex and the city 2″ eu assino embaixo até agora), fiquei extasiado. Os efeitos visuais eram sim impressionantes (estão, claro, todos lá no filme), mas havia ali uma promessa maior: a de que você assistiria a uma obra realmente interessante e desafiadora. O assunto era o universo dos sonhos – o que em si, já era animador. A possibilidade de explorá-los então era por demais tentadora…

inception2 Com a estreia do filme nas telas americanas se aproximando, o youtube foi inundado com “falsos trailers” e paródias que envolviam elementos já revelados – como aquele pião simples que não para de rodar… Abordei todos que pude, sempre com um certo receio de que algum pudesse conter um “spoiler” (vários tinham), que pudesse revelar algo que me estragasse o prazer de assistir ao filme (nenhum chegou a esse ponto). Depois do sucesso do primeiro fim-de-semana de exibição por lá (bilheteria de quase 63 milhões de dólares – que hoje, quatro semanas depois, já está em 227 milhões, só nos Estados Unidos!), fui atrás das críticas – e gostei de tudo que li. Mesmo das que não admitiam que “A origem” era a primeira grande obra-prima do século 21 (não faltou gente que o chamou de “2001 – uma odisseia no espaço” dos tempos modernos…) – algo que, inevitavelmente em tempos de twitter, quando todo mundo que descobre uma opinião diferente da sua “cai matando”, causou uma considerável onda de protestos virtuais (assunto que retomo ainda hoje).

E “armado” com todas essas informações, segunda-feira passada fui então, sozinho, assistir “A origem”. Fui sozinho mesmo – não queria nenhuma interferência. Procurei uma sessão da tarde (geralmente mais vazia, especialmente no começo da semana), e num cinema que tem um preço diferenciado (para mais!), já que oferece uma poltrona para lá de confortável para a sessão… Estava no clima perfeito, pensei, e poderia então me dedicar com afinco ao filme – e aos novos desafios que Nolan tinha preparado para seu público. Assim, salivando de expectativa, concentrei-me na primeira cena, onde Leonardo DiCaprio (Cobb, é o nome do seu personagem) chega como um náufrago numa praia. Logo na sequência seguinte, já somos apresentados oficialmente ao pequeno pião – que funciona como uma espécie de amuleto oficial para os viajantes dos sonhos – e as coisas começam a ficar um pouco confusas. Sim, amigo, amiga: em menos de cinco minutos, toda a minha preparação estava indo por água abaixo…

(Caro leitor, cara leitora, você que ainda não viu “A origem”, prossiga no texto assumindo que você corre o risco de saber mais sobre a história do que gostaria – coisas que eu mesmo gostaria de ter lido antes de ver o filme, mas que a sempre terrorista “brigada do spoiler” pode usar para me enquadrar como grande usurpador do prazer de ver mais essa obra de do grande diretor… As coisas com as quais a gente tem que lidar hoje em dia…).

Para onde Cobb é levado quando o encontram na praia? Que casa com toques orientais é aquela? Quem era aquele ator, maquiado para parecer que tinha cem anos a mais? E a mulher que distraía Cobb? Num quarto em uma cidade em revolta – que podia ser em qualquer lugar, no Oriente Médio, ou mesmo na América Latina -, as mesmas pessoas parecem estar dormindo, todas conectadas por um estranho aparelho, enquanto uma grande rebelião popular se aproxima. À medida em que o cenário do que parece ser um sonho vai de desfazendo, o momento de aqueles que dormem acordar está perto. Mas é preciso revelar algo que estava dentro de um cofre no sonho… Quase ficamos sabendo o que é – mas aos poucos todos vão acordando, o quarto é invadido por rebeldes, e um dos companheiros de Cobb é levado a pauladas.

Em seguida, vemos o mesmo cara num helicóptero, que vai transportar Cobb, seu braço direito, Arthur (o ótimo Joseph Gordon-Levitt), e o mais novo cliente dos dois, Saito (Ken Watanabe), no perigoso negócio de invadir o sonho alheio para roubar segredos. O tal cara é retirado sumariamente do helicóptero, para que eles possam discutir um novo negócio – ainda mais arriscado: colocar, ao invés de tirar, uma ideia no sonho de alguém (por que “colocar” é mais difícil do que “tirar”, nunca fica muito claro, como bem observou David Edelstein na “New York” – uma das vozes dissidente do coro de aprovação de “A origem”).

O serviço é aceito – e aí as coisas começam a ficar realmente complicadas. Porém, inesperadamente, elas começam a ficar também mais simples. Uma vez que você acompanha o raciocínio e estabelece a compreensão das regras dos sonhos compartilhados, tudo que precisa fazer é relaxar e seguir vendo o filme (não piscar, ajuda).

Para a nova missão, Cobb precisa de um novo “arquiteto” na equipe – alguém capaz de “construir” os cenários dos sonhos, com muita imaginação e criatividade (algo que o próprio Cobb já não consegue fazer com perfeição, por motivos que só conheceremos mais tarde). Entra na história Ariadne (vivida por Ellen Page, num claro erro de escalação de elenco), a “mocinha” que, com um mínimo de questionamento, aceita entrar para a “gangue”. Um outro antigo companheiro deles, Eames (Tom Hardy) é escalado – e ele leva consigo Yusuf (Dileep Rao), especialista em “elixires” capazes de induzir ao sono profundo… É essa galera que vai entrar no subconsciente de Robert Fischer (Cillian Murphy) para lá “plantar” a ideia que Saito quer. Só que para isso não basta eles entrarem em um sonho… Eles precisam entrar em um sonho, dentro de um sonho… e dentro de um outro sonho – no mais profundo nível do inconsciente!

inception3 E aí as coisas começam a ficar realmente complicadas. Porém, inesperadamente, elas começam a ficar também mais simples. No primeiro sonho, Fischer “leva” seus seguranças (que atiram para todo o lado) para a situação sonhada – o que complica (e muito) a tarefa de induzi-lo novamente ao sonho (dentro do sonho). Dentro de uma van em fuga, dirigida por Yusuf, eles finalmente conseguem dormir de novo…

E aí as coisas começam a ficar realmente complicadas. Porém, inesperadamente, elas começam a ficar também mais simples. Cobb convence Fischer de que ele está num sonho (se você um dia tiver uma dúvida assim, pergunte a si mesmo como chegou até aquela situação – como Cobb lembra bem, um sonho nunca tem um começo…). Agora eles estão num hotel – cenário de alguns dos mais estupendos efeitos especiais. E precisam convencer Fischer a dormir de novo…

E aí as coisas começam a ficar realmente complicadas. Porém, inesperadamente, elas começam a ficar também mais simples…

Percebeu? Uma vez que sua mente, seu raciocínio entram nesse enquadramento – uma vez que você começa a pensar do mesmo jeito que seus personagens, o filme vira quase um conto da carochinha… Quase. Para complicar um pouco as coisas, ficamos sabendo que o passado de Cobb interfere em todos seus sonhos – como um “bug” – e que é preciso lutar contra ele a cada nível onírico. Ah, e será que eu mencionei que os tempos vão se alargando conforme o sonho em que você está? É assim: segundos no primeiro sonho equivalem a minutos no nível seguinte – que equivalem a horas no seguinte, e dias no próximo. Mas tudo – e esse é o grande lance do filme – tem que acabar ao mesmo tempo!

Isso permite que, primeiro, “A origem” seja sim uma obra-prima – se não de maneira geral, pelo menos na edição: os minutos finais do filme, na minha modesta opinião, já entraram para a história das artes cinematográficas! Depois, esse “sincronia maluca” é uma bela variantes das sofisticadas narrativa que Nolan gosta de oferecer – o que só pode dar muito prazer a quem, como já citei, quer sair de uma sessão de cinema mais (e não menos) esperto!

O que resta depois dessa sequência de tirar o fôlego, é a conclusão final – que aceitei sem maiores problemas, e fui feliz para casa. Mas aí… Mas aí eu resolvi dar uma espiada em alguns outro blogs, grupos de discussão, e críticas que eu ainda não tinha lido e… Comecei a ficar surtado, achando que o que eu tinha entendido como final da história, seria, na verdade, uma outra coisa – um final, digamos, mais aberto a interpretações… Será mesmo? Eu tinha “concluído” a minha missão tão satisfeito, que me vi ali recusando a aceitar, de uma hora para a outra, o meu próprio argumento – e não estava acreditando no que estava acontecendo!

O mais grave é que, em vários debates, pobres simplórios (como eu), que tinham achado que o final do filme é “bonitinho”, eram acusados de não terem entendido nada – nada! – e relegados a um plano inferior da compreensão humana! (Não muito diferente, aliás, de alguns comentários que – estou preparado! – devem chegar para este post…). Essa reação, de fãs mais, hum, “hidrófobos” do filme, abriu então um espaço para uma generalização sobre o “o estado das coisas” – de como as opiniões sobre cultura (sobretudo cultura pop) são assimiladas, digeridas e – “gasp”! – cuspidas hoje em dia.

Esse é o tema que, como escrevi antes, queria retomar ainda hoje – inspirado, também por um texto do principal crítico de cinema do jornal “The New York Times”, A.O.Scott, que li recentemente. Mas percebo também que este post já está um tanto longo… Por isso, proponho continuar a discussão na segunda-feira. Assim, quem sabe, você ganha mais tempo para assistir ao filme “A origem” (no  fim-de-semana) – e quem sabe até ler o próprio artigo de A.O.Scott. A assunto promete…

Prazer com culpa

seg, 09/08/10
por Zeca Camargo |
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glee300 Foi preciso um time de futebol americano dançar uma coreografia em cima de “Single ladies”, de Beyoncé, para eu me convencer. Resisti por um bom tempo antes de decidir dedicar um tempo à primeira temporada de “Glee”. Desde o final do ano passado, a série da TV americana já vinha sendo comentada como uma das coisas mais divertidas que apareceram na última temporada. Quando ela começou a aparecer na programação a cabo por aqui, tentei pegar pelo menos um episódio – mas, confesso, não me esforcei muito. Há uns dois meses, quando encontrei a caixa de DVDs com a primeira temporada numa livraria, comprei-a imediatamente, com o firme propósito de conferir por que falavam tanto da série. Ficou na prateleira ao lado da minha TV, pegando poeira…

Mas então, há alguns dias, pesquisando uns vídeos interessantes justamente para escrever um post aqui neste espaço, pelos caminhos “serendípticos” que só a internet é capaz de nos oferecer, deparei-me com a tal sequência de um episódio dessa primeira temporada de “Glee”: essa, onde o time colegial de futebol americano, numa estratégia desesperada para não perder a enésima partida, resolve adotar a ousada estratégia de distrair a equipe adversária com uma dança inspirada no vídeo de “Single ladies” – sugestão de Kurt (interpretado por Chris Colfer), incidentalmente o personagem mais gay da série.

A cena é tão surreal e tão inesperada (mesmo entre os milhares de clones do vídeo de Beyoncé que circulam pela internet, ela leva pontos por sua originalidade), que, quando percebi, já estava rindo. Muito. E resolvi dar uma chance a “Glee”.

Ainda não terminei de ver essa primeira temporada – estou assistindo “a conta-gotas”, para não acabar de uma só vez com a diversão. Mas já cheguei à metade dos episódios e posso afirmar que “Glee” é mesmo uma das coisas mais divertidas que já apareceram na TV recentemente – e não só na americana, mas na brasileira também (na nossa produção humorística nacional, gostaria de destacar também uma série que eu adorei, e que você talvez tenha gostado também, chamada “S.O.S. emergência”, que encerrou recentemente sua primeira temporada; poucas vezes na nossa TV vi um texto tão afinado com o elenco, emprestando um ritmo tal ao humor que eu já tinha desistido de encontrar – e estou me preparando para escrever especificamente sobre isso por aqui, dando apenas uma “distância histórica”, para não ser acusado de ser cabotino com uma produção da mesma TV onde trabalho… tenho certeza de que você entende o que eu quero dizer; mas eu divago…).

E o que “Glee” tem de tão divertido assim? À primeira vista, não muita coisa. Primeiro acho interessante esclarecer, sobretudo para os “xiitas da MPB” (uma variante dessa expressão surgiu espontaneamente num comentário recente a um post que escrevi sobre o melhor disco deste ano, e agora não consigo parar de usá-la!), que a música – o tema central da série – não tem nada a ver com o gosto popular brasileiro. Como o foco da história é o coral de estudantes de um colégio americano, o repertório que eles escolhem a cada episódio gira em torno, claro, de referências americanas. (Na verdade, devo confessar que alguns dos números são estranhos até para mim, que acho que tenho um bom conhecimento no assunto…). A rotina dessas escolas, com seus corredores com armários individuais (entre tantos outros detalhes), também é bastante estranha para quem está acostumado com nossas instituições educacionais… A própria tradição de escalar alunos para fazer parte de um coral é tão comum por aqui quanto recrutar estudantes para um time de futebol americano – ou seja, praticamente zero. Nem por isso, identificar-se com aqueles personagens (e com o próprio enredo em si) não é nem um pouco difícil. No meu caso, não foi preciso mais do que o primeiro episódio para que eu fosse irreversivelmente fisgado por “Glee”!

glee2300 Para os não iniciados, mais algumas explicações. O coral em questão não é formado por estudantes, hum, comuns. O epicentro do grupo é constituído por gente que poderíamos chamar de párias dentro de uma população regular de um colégio – ou, para usar uma expressão bem contemporânea, aqueles alunos que seriam as vítimas mais óbvias de um “bulling”: o garoto na cadeira de rodas, a negra “ligeiramente” fora do seu peso, a “oriental”, a menina feia (mas muito talentosa), e o gay – não qualquer gay, mas aquele mais “sacudido”, do tipo que, ao enfrentar mais uma humilhação dos seus colegas (que ritualmente o atiram na caçamba de lixo), implora que ele pelo menos possa tirar sua jaqueta Marc Jacobs da última coleção (o pedido é misericordiosamente atendido).

Logo no primeiro episódio, o coral (batizado de Glee Club – que pode ser traduzido apressadamente por “Clube da Alegria”) está à beira de um colapso, apenas uma sombra do mesmo Glee Club que conquistou glórias passadas. Seu diretor musical foi afastado por ter se insinuado para um aluno durante um ensaio – e um professor de espanhol (Will, interpretado por Matthew Morrison) vê nisso a oportunidade ideal para reacender seu sonho de estrelato da adolescência. Porém, as únicas pessoas a se inscrever para o coral são os “E.T.s” (como o resto do colégio os vê) que já mencionei acima…

O futuro do coral não parece muito promissor – situação que se complica ainda mais quando a diretora do time das “cheerleaders” (Sue Sylvester, vivida de maneira sensacional pela atriz Jane Lynch) resolve declarar guerra ao Glee Club. Mas então, as coisas começam a mudar: um dos caras mais populares do colégio, Finn (Cory Monteith), líder do time de futebol americano, é convencido por Will, a entrar para o coral e explorar seu talento para a música. Em seguida, na qualidade de espiãs de Sue, três “cheerleadres” – inclusive Quinn (Dianna Agron), que é namorada de Finn – entram também para o Glee. E, mais tarde, outros três caras do time de futebol americano vão para a equipe. E aí, com o quórum completo, eles podem enfim disputar os torneios de coral do circuito colegial – e, quem sabe, reviver os “tempos de ouro” do Glee Club.

É só isso. Mas, é claro, é muito mais que isso. A mulher de Will não tem coragem de contar para ele que sua gravidez (do primeiro filho) é psicológica. Quinn fica grávida – e diz que o pai é Finn. Kurt, depois do sucesso no time de futebol, decide contar para o pai que é gay. Sue ganha um quadro na TV local para divulgar suas idéias reacionárias – e vai enlouquecendo um pouco mais no seu radicalismo a cada episódio (a certa altura, ela faz uma convocação dos membros do Glee, não pelos nomes, mas por adjetivos que fariam corar até os mais politicamente incorretos!). O técnico do time de futebol, Ken Tanaka (Patrick Gallagher) também declara guerra ao coral – que está “roubando” seus atletas. Não sem antes pedir em casamento a “orientadora educacional” Emma (a ótima Jayma Mays), que sofre de “TOC agudo” – ela chega a “polir” cada mini cenoura que tira do saquinho antes de comer – e é apaixonada por Will!

São tantos atropelos, mal-entendidos, desencontros e confusões, que cada episódio de “Glee” é um paraíso para os roteiristas – e ainda tem os números musicais! O ritmo de cada sequência é para lá de frenético – e os atores (dos veteranos aos mais jovens) respondem a cada exigência do texto com um “timing” preciso. E mesmo a construção dos personagens – que inevitavelmente, como em qualquer comédia, estão sempre esbarrando na caricatura – é cuidadosa a ponto de os exageros não tirarem a credibilidades deles. Conseguir isso é especialmente difícil quando se trata de adolescentes: é facílimo fazer graça da inocência ou ingenuidade (e muitas vezes da falta de cultura) dessa faixa etária. Mas, em “Glee”, os diálogos são tão bem construídos que ninguém faz papel de idiota – apenas de… adolescentes!

(Finn, nesse sentido, é o melhor deles. Primeiro porque ele acredita, com convicção, ter engravidado Quinn, no dia em que ejaculou prematuramente quando os dois estavam juntos numa banheira de água quente – ela engana ele que é virgem, e os dois nunca transaram de fato. Depois, porque ele tem algumas das piadas mais engraçadas do seriado, como quando ele “descobre” que é possível pegar livros emprestados numa biblioteca – um lugar onde ele provavelmente nunca havia pisado até então…).

Alguns argumentos de episódio são ligeiramente forçados – mas eu me vejo obrigado a dar um certo desconto ao conjunto de uma obra que me diverte tanto. Mesmo quando o número musical não fica entre os meus favoritos, é impossível não reconhecer o talento desse elenco – em especial o da “menina feia”, Rachel (interpretada pela estupenda Lea Michele). Não é à toa que a série já rendeu um punhado de CDs de sucesso – não apenas três coletâneas com as músicas do seriado (a terceira tem até uma interpretação de “Safety dance”, do Men Without Hats, que eu mal posso esperar para ver!), mas outros “filhotes”, como um álbum inteiro de versões para canções de Madonna!

Mas o que eu mais gosto nessa história toda é ver uma idéia diferente triunfar. Juntar música com seriado de televisão não é exatamente uma novidade. Só para dar um exemplo, aqueles da minha geração (nascidos nos longínquos anos 60) certamente têm a lembrança de passar tardes e tardes embaladas pelas aventuras da “Família Do-ré-mi”! Mas a centelha de “Glee” vai muito além de uma fórmula batida. Seu sucesso – que, pelo que tudo que li na imprensa, surpreendeu até mesmo seus produtores – não me parece resultado da “variação de um tema” de um formato seguro, mas da espontaneidade e da despretensão, que só um trabalho genuinamente apaixonado pode oferecer.

glee3300 De um episódio para o outro, sobram algumas pontas soltas – e detalhes específicos às vezes desafiam a lógica (como a evolução das duas gravidezes da história, a de Quinn e a da mulher de Will, que não “batem”). Mas passar por cima disso é um preço pequeno a pagar para em troca e tanto prazer. “Glee” é uma delícia – ou, para usar uma expressão desconfortavelmente traduzida do inglês, um “prazer com culpa” – daqueles que a gente (por vergonha, timidez, ou simples falta de personalidade) têm dificuldade de admitir.

Ainda ontem, eu estava almoçando numa mesa com amigos – um encontro, obviamente, de dia dos pais – e, ao comentar sobre “Glee”, a filha adolescente de um conhecido, que mora nos Estados Unidos e está aqui de férias, só reconheceu depois de muita insistência, que assistia sim ao seriado. Primeiro, falou que não gostava de ver – que era “horrível”! Mas seu irmão (mais velho) insistiu no assunto até ela assumir que era fã. Fico imaginando quantos admiradores “secretos” de “Glee” não andam soltos por aí…

Coisa boa é não ser mais adolescente e poder dizer sem inibição do que a gente gosta…

O “mácsimo”

qui, 05/08/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Se até Caetano Veloso teve dificuldade em explicar o que é cultura pop, quem sou eu para vir com uma “definição definitiva” nesses quase quatro anos de blog? A cena, na qual Caetano se enrola para responder a singela pergunta do entrevistador (Randal Juliano – mais sobre ele daqui a pouco) é uma das mais divertidas – entre tantas – dos bastidores de um dos festivais mais importantes da já bastante importante “era dos festivais” – que durou entre o final dos anos 60 e o comecinho dos anos 70. Estou falando, claro, de “Uma noite em 67″, título e tema de um documentário sensacional que está em cartaz – infelizmente, em pouquíssimas salas pelo Brasil.

Se você dá um mínimo de atenção à história da MPB, já esbarrou pelo menos em algumas dessas imagens de arquivo. Esse foi o “ano de ouro” do então incrivelmente popular “Festival de Música Popular Brasileira da TV Record”, que, na sua terceira edição, premiou nada menos que este “modesto” conjunto de canções”: “Maria, Carnaval e cinzas”, interpretada (mas não composta) por Roberto Carlos, em quinto lugar; “Alegria, alegria”, música e interpretação de Caetano Veloso, em quarto lugar; “Roda viva”, composta por Chico Buarque e cantada por ele (com o MPB4), ficou em terceiro lugar (terceiro!); “Domingo no parque”, de Gilberto Gil, com ele e os Mutantes (mais também sobre eles daqui a pouco), em segundo lugar (!!); e “Ponteio”, de Edu Lobo, com ele e Marília Medalha, foi a grande vencedora naquele ano!

O nível era tão bom que, para você ter uma ideia, Elis Regina não conseguiu colocar sua “O cantador” (de Dori Caymmi e Nelson Motta) nesse “top 5″ – se bem que ela levou o prêmio de melhor intérprete… E “Beto bom de bola”, de Sérgio Ricardo, foi desclassificada por uma questão, digamos, “técnica” – numa cena antológica (da qual eu já tinha visto fragmentos, mas não ela inteira, como o documentário apresenta), ele desiste de cantar, diante das vaias intermitentes do público, abandona o palco, mas não sem antes quebrar seu violão e atirá-lo na plateia.

O episódio foi tão inesperado que os apresentadores da noite – em mais uma cena hilária (olhando, claro, retrospectivamente) – entram meio assustados no palco para avaliar a situação. O áudio não é bem claro, mas sem precisar de muita técnica em leitura labial, é possível ver Blota Jr. perguntando com genuíno transtorno, se alguém havia se machucado. “Não machucou?”, ele parece dizer, “Então, tudo bem!”… Tudo bem? Tudo ótimo!

A noite já vinha com a promessa de que seria o “máximo” – ou, como o próprio Blota Jr. reforçava na pronúncia da época, o “mácsimo”! Depois de três eliminatórias acaloradas, a expectativa estava nas alturas – mais ou menos junto com os microfones que foram espertamente instalados no teto do teatro Record, em São Paulo, pelo então engenheiro de som do festival, o hoje respeitadíssimo musicólogo, Zuza Homem de Mello – como ele conta em um dos preciosos depoimentos atuais do documentário.

edu_lobo

Seus diretores, Renato Terra e Ricardo Calil (que, em nome da transparência, foi meu colega quando trabalhamos juntos na “Ilustrada”, da “Folha de S.Paulo” – “hace tiempo…”), reuniram sonoras pontuais, bem-humoradas, e quase sempre instrutivas – não só para este quarentão que vos escreve, que tem uma memória ligeiramente turva dessa época, mas principalmente para as gerações que vieram depois da minha e que só têm um registro desse evento pelo youtube (aliás, pode procurar: o material sobre esse de 67 e outros festivais é vastíssimo – e delicioso). Além de, claro, se divertirem muito com elas – em alguns momentos é possível ouvir até as risadas abafadas deles quando o entrevistado falava alguma coisa engraçada.

Aliás, não faltaram momentos assim. O mais bizarro deles, talvez, é quando Chico Buarque “confessa” ter “perdido o trem” da Tropicália, por ter bebido demais nas festas em que o movimento musical começava a ser esboçado… Mas tem mais: como quando Paulo Machado de Carvalho Jr (que era diretor dos festivais, e “filho do dono”, ou melhor, do fundador da Record) conta do banho frio que teve de dar em Gilberto Gil (junto com Nana Caymmi, no hotel onde eles estavam hospedados), quando, duas horas antes do festival recebeu a notícia de que o cantor não tinha condições de se apresentar; ou quando o próprio Gil diz que não reconhece, nas imagens que viu depois, o “fantasma” que estava ali no palco; Sérgio Cabral descrevendo a trajetória de um ovo lançado da plateia em direção ao palco; a história por trás do estranho blazer que Caetano usava sobre sua gola “rolê”; e as várias referências ao coro de vaia, que, acredite, tinha até uma musa (uma mulher que ia com um vestido onde estava estampada a letra “u”!).

Mas além de uma boa costura entre os números musicais (uma dica, para você que já vou muito essas imagens: tente reparar nas pessoas do público!) e esses depoimentos contemporâneos, o que deu um charme especial ao documentário são as entrevistas feitas nos bastidores do festival! Para este que ainda se lembra da loucura que foi cobrir eventos como o Rock in Rio 2 (e vários Hollywood Rock), bateu uma certa nostalgia – se bem que de uma outra ordem…

Quando eu fazia esses eventos (um assunto que prefiro comentar em outubro, quando vou marcar os 20 anos da MTV brasileira), o nível de estresse era tão absurdo, que o normal era tirar alguns dias de folga depois da cobertura. Os artistas nunca estavam disponíveis – conceder uma entrevista era um ato de generosidade! -, as equipes nunca eram suficientes, nem sempre a gente tinha acesso aos espaços que queríamos… Era um caos!

O caos dos bastidores do festival mostrado no documentário era diferente: no lugar de tensão e nervosismo, era só descontração e alegria. Os repórteres designados para o evento estavam literalmente em casa – e não digo isso só pelo fato de várias entrevistas terem sido conduzidas com um cigarro numa mão e um microfone na outra… As perguntas geralmente eram introduzidas num clima de “vem cá Veloso”, “Diz aí, Chico”, “Mas então Edu”… E podia vir qualquer coisa. Desde o pedido de uma definição do que significava cultura pop – como citei no começo deste texto – até uma introdução “pra lá de informal” de uns “garotos” chamados Mutantes! Acho que a hora em que eu mais ri foi quando Randal Juliano (o repórter que dividia o microfone com Cidinha Campos) dispara algo como “Como é seu nome mesmo, meu filho?”, e o artista meio sem jeito responde, com aquele “r” bem puxado do interior: “Arnaldo”… (O motivo da risada, claro, não é o “r”, mas a timidez de um dos loucos mais geniais do pop brasileiro, Arnaldo Baptista – ali “revelado” por Gilberto Gil).

Em outro momento, num hiato de conversa, Randal pergunta a Cidinha qual a cor do seu vestido (lembrando, sempre, que as imagens ainda são do tempo da TV em branco e preto). Cidinha, bem à vontade, responde que, de acordo com a moda corrente de dar nome de vegetais para as cores, ela está vestida de “rosa schoking” com… chuchu! As perguntas iam brotando desordenadamente, e as respostas seguiam a mesma linha – não só com muita informalidade, como também, não poucas vezes beirando o non-sense (exemplo: Randal pergunta a Caetano de onde veio a ideia de juntar Coca-Cola e Brigitte Bardot em “Alegria, alegria”, ao que ele responde algo como, “Bem, veio da própria Coca-cola e da Brigitte Bardot…”; e ainda tem o momento em que o mesmo Randal pede umas palavras de Chico para o público e a resposta vem num balbucio constrangedor).

É com passagens assim, involuntariamente hilárias, que “Uma noite em 67″ triunfa na missão de um bom documentário – um tripé que eu costumo definir como “recordar, divertir e informar”.

Informação, não falta – não só sobre o próprio festival e suas músicas e talentos, como de fatos relacionados ao cenário da MPB daquele tempo. Por exemplo, você sabia que, naquela época, artistas e intelectuais organizaram uma “passeata contra a guitarra”? Isso mesmo! Um protesto público para banir a guitarra (essa “alienígena”) da nossa música popular brasileira. Elis ia logo na primeira fila – arrastando Gilberto Gil, que, segundo conta no documentário, nem entendeu direito o que estava fazendo ali -, enquanto Caetano e Nara Leão preferiram ficar no quarto de hotel na hora da passeata (que consideraram um ato “fascista”…).

E o filme ainda para alguns minutos para fazer uma reflexão sobre esse passado. Perguntados pelos diretores se sentem saudades desse tempo, nenhum artista respondeu “sim”. Edu Lobo, numa das lembranças talvez mais amargas, diz que se sentia um cavalo de corrida disputando um páreo de apostas. Chico Buarque admite que quase não pensa naquela noite. E Caetano – sempre Caetano – oferece a resposta mais cândida (e lúcida): só sente saudades da juventude “física”.

Nem toda essa relativa frieza dos entrevistados, porém, é capaz de fazer com que você, espectador, deixe de sentir saudades daquele tempo – mesmo que seja um tempo que você não viveu. Saudades de ouvir tanta música boa de uma só vez – parafraseando a letra de “Ponteio”, não era uma só, “era uma, era duas, era cem”… Saudades de ver uma público com tanta paixão por uma coisa tão simples quanto uma música popular. Saudades da importância que esses festivais tinham no nosso cenário pop. E ainda, saudades de um tempo em que ousadia numa entrevista para a televisão era revelar para o telespectador que uma cantora (Marília Medalha) estava usando cílios postiços – e não arrotar na cara de quem está sendo entrevistado (que, em última análise, significa arrotar na cara do próprio telespectador, que sem refletir, até acha isso a coisa mais engraçada do mundo… mas eu divago…).

Os três melhores videoclipes do ano

seg, 02/08/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Xiitas do rock, voltei! A expressão não foi cunhada por mim, mas lembrada pelo comentário do Augusto, com relação ao meu último post – no qual eu elegia, desde já, o melhor disco de 2010. E eu achei que ela seria perfeita para dar as boas-vindas a um certo tipo de leitor para o texto de hoje. Aliás, sejam bem-vindos também os xiitas da MPB, os da música soul, e até mesmo os da pista de dança – ou da música eletrônica. Bem-vindos ainda os que acham que, para ter uma opinião sobre cultura pop, é necessário ter uma informação acadêmica sobre o assunto – afinal, como todos sabem, a cultura pop é justamente direcionada à “Academia”… Sobretudo, seja bem-vindo, ou bem-vinda, você que não demonstra nem humor bem flexibilidade ao se deparar com uma opinião que não é a sua (como é mesmo aquele verso de “Sampa”, de Caetano… “Narciso acha feio o que não é espelho”, não é isso?).

Dedico este post de hoje, em segundo lugar, a esse pessoal – já que vou dar mais uma opinião prematura sobre um produto de cultura pop, o videoclipe. Por que em segundo lugar? Porque em primeiro lugar, dedico este post a você, que sempre se propõe a ler o que escrevo, não com a obrigação de gostar – ou mesmo seguir minha indicação – mas com a firme intenção de descobrir alguma coisa que não conhecia antes (ou, pelo menos, ter a chance de confrontar suas idéias sobre algo que já lhe era familiar).

Chame isso de uma preparação para minha vindoura reflexão sobre os 20 anos da MTV brasileira. Ou simplesmente de mais um truque para atrair leitores desavisados… Fato é que, a partir da curiosa reação à minha escolha, ainda em julho, do melhor álbum do ano, decidi perguntar: por que não escolher também desde já também os melhores vídeos de 2010?

A razão para essa decisão tão apressada, não vem de uma crença de que seja impossível alguém vir com um álbum melhor do que “The boxer”, de Kele (minha escolha, minha opinião) – ou clipes melhores do que esses que vou comentar hoje. Mas é que, para “roubar” esse título até dezembro de 2010, qualquer disco (ou vídeo) que vier vai ter que caprichar muito, mas muito mesmo – sobretudo criativamente (uma vez que meu critério principal nessa escolha é a criatividade).

Resolvi falar de videoclipes pois, como já sugeri aqui recentemente, essa é uma forma de arte que experimenta atualmente uma feliz ressurreição. Depois de quase uma década de esquecimento –como manifestação artística –, o formato parece ter ganho novo fôlego nos últimos anos. E 2010, em especial, tem sido um ano particularmente feliz nesse sentido! Primeiro porque é o ano que nos trouxe “Telephone”, de Lady Gaga com Beyoncé – algo tão extraordinário que sequer pode estar numa lista de “melhores” do ano… É uma obra única, grandiosa, ousada, irreverente, engraçada, espalhafatosa, irônica, “escrachada” – e brilhante (como também já comentei neste espaço). Depois, porque, como essas três escolhas que divido com você hoje podem comprovar, as boas idéias parecem mesmo estar voltando aos espremidos 3 ou 4 minutos (ou 9, no caso de um dos meus palpites) daquilo que um dia já foi simplesmente uma ferramenta para, hum, vender mais música.

Essa mudança do “papel” de um videoclipe vai ser amplamente discutida por volta do dia 20 de outubro – no tal aniversário que já citei. Mas vale a pena dizer, antes de passar aos “três melhores clipes do ano”, que eles estão aqui menos pelas músicas que representam do que pelo próprio apelo visual/criativo/ideológico que oferecem. As músicas que servem de suporte a esses três clipes não são, nem de longe, ruins – mas também não são fortes candidatas a entrar na minha lista de faixas favoritas de 2010.

O que me fez elegê-las, foi a originalidade de cada um desses vídeos como um todo – sobretudo a capacidade de cada um deles de prender minha atenção durante toda a sua duração (um feito que você, que certamente sofre, como eu, de uma “deficiência de atenção moderna”, sabe como é difícil de alcançar). Aliás, por isso mesmo, eu recomendo que você veja todos até o fim (no primeiro deles, tenho certeza, você não vai ter dificuldade em esperar por cada sequência seguinte; no segundo e no terceiro, porém, resista à tentação de ver se chegou alguma coisa nova do seu facebook antes de ele acabar – você será recompensado ou recompensada).

O melhor videoclipe do ano, encontrei-o quase sem querer. Procurava por um vídeo de uma outra banda, quando me deparei com ele. A banda, Clogs, era totalmente estranha para mim – e só fui parar nela, porque estava atrás de material sobre o The National. E o Clogs é um espécie de projeto paralelo de Matt Berninger, o vocalista do National. Os autores das imagens são irmãos gêmeos (Benjami e Stefan Remirez-Pérez), dois artistas da animação, que, sem exageros, ajudam a colocar (de novo) o formato na categoria de Arte (com maiúscula mesmo). O nome da música é “Last song”.

clog620

O segundo melhor vídeo do ano, talvez até você já o tenha visto. Eu mesmo já coloquei um link para ele no tal post recente em que falava sobre “a volta do videoclipe”. É o de M.I.A. – para a faixa “Born free”. A música – como talvez todo terceiro álbum da cantora – não é o melhor que ela já ofereceu. Já a tinha ouvido no CD – sem ter achado grande coisa. Porém, acompanhada das imagens (dirigidas pelo jovem Romain Gravas, filho do influente diretor “greco-francês” Costa-Gavras), “Born free” torna-se uma das mais poderosas canções que já foram lançadas. A violência mostrada ali é tão forte, tão real – e (pelo menos para este brasileiro que vos escreve) tão familiar –, que é impossível assistir a tudo e não ficar, no mínimo, perturbado. Não quero contar nada sobre o conteúdo desses seus nove minutos – especialmente para não tirar o impacto de quem o verá pela primeira vez. Veja tudo. Se possível, duas vezes. E espere para ver o que acontece com sua cabeça…

costa620

E o terceiro videoclipe do ano… bem… Ele deve ter custado menos do que R$ 500,00. É de uma simplicidade absurda – e de um humor fino. Muito fino. Também veio de um artista do qual eu nunca tinha ouvido falar, Twin Shadow. A música chama-se “Slow”, e o que assistimos é o que parece ser um teste para um clipe – mas, pelas orientações do diretor (que nunca vemos, mas que provavelmente é o próprio diretor do clipe, Alex Markman), tem o tom de um teste para um filme pornô… O “candidato” é o próprio cara do Twin Shadow, George Lewis Jr – e sua “performance” cantando e tocando bateria é de uma “desanimação contagiante”! E o resultado é hilário e genial.

bateria620

Algo a acrescentar à lista dos melhores videoclipes de 2010? Ou simplesmente, algo a acrescentar? Mesmo um comentário xiita? Você tem até dia 31 de dezembro para recorrer…



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