‘Ninguém me esperava. Tudo me aguardava’
Acho que exagerei um pouco, no último post, na escolha da passagem para ilustrar o livro que estou terminando de ler. “Just kids” é o relato de Patti Smith sobre sua educação e evolução artística junto com seu então companheiro Robert Mapplethorpe, na Nova York do final dos anos 60, meados dos anos 70. Patti Smith – sempre é bom refrescar a memória – é uma das artistas mais influentes do rock americano deste período – seu álbum “Horses”, de 1975 é um indisputável clássico. Mapplethorpe é simplesmente um dos fotógrafos mais importantes do final do século 20, criador de um estilo único – imitado até hoje em inúmeras imagens do nosso saturado mundo ilustrado…
Os dois fizeram, durante muito tempo, um casal dos mais inspiradores do cenário alternativo americano. E a histórias desses dois heróis do “underground”, contada em primeira pessoa por ela, é das coisas mais emocionantes e motivadoras que eu li no últimos tempos. Talvez por isso, insisto, a passagem que escolhi para o post anterior não tenha sido a mais feliz. A própria Patti Smith, referindo-se ao curto período em que cuidou de Mapplethorpe, doente num dos quartos fétidos hotel Allerton, admite que “aqueles dias marcaram o ponto mais baixo da nossa vida em comum”…
Por isso, para “começar de novo”, e introduzir o assunto de hoje – que é justamente este livro -, aqui vai um trecho bem mais, hum, “pra cima” (na minha sempre tradução apressada, uma vez que o livro ainda foi lançado no Brasil). O ano é 1967:
“Num dia de veranico, nos vestimos com nossas coisas favoritas, eu com minhas sandálias ‘beatnik’ e minhas echarpes cruas, e Robert com suas contas ‘hippies’ e seu colete de pele de carneiro. Pegamos o metro para o oeste da rua 4 e passamos a tarde em Washington Square. Tomamos café de uma garrafa térmica, vimos as correntes de turistas, chapados, e músicos de rua. Revolucionários agitados distribuíam panfletos anti-guerra. Jogadores de xadrez atraíam uma platéia toda própria. Todos coexistiam no mesmo zumbido de argumentos verbais, bongos e cachorros latindo.
Nós estávamos andando em direção da fonte, o epicentro das atividades, quando um casal mais velho parou e nos observou descaradamente. Robert gostava de chamar a atenção, e de maneira afetuosa apertou minha mão.
‘Olhe, tire uma foto deles’, disse a mulher ao seu marido confuso, ‘Acho que eles são artistas.’
‘Ah, vamos em frente’, ele deu os ombros. ‘São apenas garotos’.”
É essa passagem que dá título ao livro de Patti Smith (”Just kids”, “apenas garotos” – ou “apenas moleques”, como eu citei no último post). E é o momento seminal do livro, quando você percebe que os grandes artistas que ambos seriam, naquela tarde em Nova York, mesmo com todas suas ambições já desenhadas, não passavam de dois garotos, dois jovens namorando sem o menor compromisso com nada…
Esse – vamos chamar de – “período de inocência”, que só é mesmo possível experimentar aos 20 anos, inevitavelmente me remeteu a outras lembranças. Entre outras coisas, aos 20 eu terminava duas faculdades, não tinha o compromisso de seguir nenhuma das carreiras em que me formava, começava um percurso como bailarino – e, com apenas um punhado de países visitados no esquema “mochilão”, a glória questionável de ter dado três voltas ao mundo ainda estava décadas adiante de mim. Eu era também “um garoto”, com um monte de ambições (mais ou menos artísticas), nenhum “plano infalível” para realizá-las, mas com uma perversa esperança de que as coisas iam dar certo…
Boa parte das pessoas que me leem aqui está exatamente nessa faixa – o que me deixa extremamente envaidecido – e talvez não se dê conta de que esteja passando por isso (aproveitem!). Outros tantos ainda estão por chegar nela – atenção! Tudo ao seu tempo. E uma grande parte, desconfio, já passou dela, mas sabe muito bem que sensação é essa que “peguei emprestada” do livro de Patti Smith…
Quase tudo que pensamos quando temos essa idade – e a leitura de “Just kids” confirma ainda mais isso – tem um peso que julgamos inadvertidamente como definitivo, decisivo para o resto de nossas vidas. As mais corriqueiras escolhas – que trabalho temporário escolher? – e as mais cruciais decisões – achei mesmo o cara ou a menina da minha vida? – nos impõem tamanha gravidade que tolamente achamos que vamos carregar suas consequências para todo o sempre. Bobagens, óbvio, de uma juventude claudicante. Mas alguma coisa, claro, sempre fica do que acreditamos nessa idade – e no caso desse casal em questão, o mais bonito resíduo do encontro deles foi o compromisso de um nunca abandonar o outro…
A trajetória de Smith e Mapplethorpe – de “mulambos” vagabundos a artistas de repercussão internacional – fala volumes sobre esse contraste cruel entre o que aspiramos aos 20 anos e o que a vida vai fazer disso algum tempo depois. Como ela escreve logo no início de “Just kids”, no momento em que sai da casa de seus pais, no interior, para Nova York: “Ninguém me esperava. Tudo me aguardava”. Eu não saberia colocar melhor a tradução desse momento único de transição pessoal pelo qual todos nós passamos.
Até Patti Smith virar “a” Patti Smith e Robert Mapplethorpe tornar-se “o” Robert Mapplethorpe, os dois viveriam noites de miséria no tal hotel Allerton; madrugadas insanas no hotel Chelsea; dias famintos em Conney Island (onde foi tirada a inocente foto da capa do livro na edição americana); e um amor imenso, incomensurável, que – somos obrigados a suspeitar depois da leitura do livro – dura até hoje, quase 21 anos da morte do próprio Mapplethorpe.
Importante como ela foi, a arte de Smith é hoje para um público mais específico. Amantes desse período do rock têm “Horses” como uma espécie de oráculo – uma reputação mais que merecida. Sua poesia, ainda mais para um público que não é confortável com o inglês, é ainda mais “difícil” sem a música para acompanhar. E seu trabalho como artista plástica é ainda mais específico. Já o de Mapplethorpe é, até nossos dias, tão onipresente, que não é impossível imaginar que uma geração inteira cresceu vendo as fotos que ele tirou sem saber quem era o autor delas!
Mas acredite: sempre que você vir um torso – feminino ou masculino – nu, com um tratamento como se fosse um detalhe de um antigo mármore grego, ali tem o dedo desse grande fotógrafo. Que, aliás, levou um tempo para descobri que seu verdadeiro talento era com uma câmera na mão – e não com lápis e papel…
Nesse período em que Smith e Mapplethorpe se encontraram, nenhum dos dois sabia “para que lado atirar”. Ela trabalhava numa livraria conceituada na quinta avenida, a Scribner’s (que, numa coincidência pessoal, foi o tema da primeira reportagem que fiz quando fui morar em Nova York, justamente sobre seu fechamento); ele fazendo bicos arrumando vitrines de loja de brinquedo e até de mudanças. Ela fascinada com Rimbaud e tudo que vinha da França, curiosa em descobrir a perfeita parceria sexual e o amor ao mesmo tempo; ele sonhando em conectar-se com Andy Warhol, cada vez mais confuso com relação à sua sexualidade e as lembranças de uma infância de influência fortemente católica, desenhando e fazendo colagens sem parar.
Foi só em meados dos anos 70 que ela foi se dedicando cada vez mais a encontrar sons que pudessem acompanhar seus versos; e ele aprendeu a brincar com uma Polaroid, e, mais tarde, com uma Hasselblad. Na capa de “Horses”, os dois finalmente eram apresentados juntos para o grande público. Dali em diante, o curioso mantra de Patti Smith quando saiu de casa sofreria uma perversa alteração: agora, todo mundo esperava pelo que eles tinham a mostrar, e nenhum deles tinha idéia do que os aguardava…
Ela foi ficando cada vez mais cultuada – especialmente no mundo musical, e apesar de nunca ter gravado nada que pudesse ser considerado tão poderoso como “Horses” (se bem que sua versão para o hino do Nirvana, “Smells like teen spirit” – gravada, claro, bem adiante na sua carreira -, é uma das melhores versões que a história do rock já registrou!).
Ele, depois de criar um conjunto de obra reverenciado não só no mundo artístico, como assimilado pela cultura pop e da moda – e isso a custa de imagens mais que ousadas, como as que ilustram este texto de hoje -, morreu em 1989 em consequência da Aids. E, pela força de seu trabalho – e mais um episódio polêmico envolvendo suas fotos numa retrospectiva póstuma -, ficou ainda mais conhecido do que em vida.
Vale a pena me alongar um pouco mais para falar desse desastrado – e culturalmente relevante – episódio. Em 1991, a Concoran Gallery, em Washington, iria expor parte de seus trabalhos recentes – que estampavam imagens explicitamente sexuais sem cerimônia. Quando o conselho do museu – e mais alguns cínicos moralistas membros do congresso americano – descobriram que “tamanha indecência” seria custeada em parte com dinheiro público, um grande debate se instaurou sobre o papel do governo em “divulgar” uma arte tão… “degenerada”! Depois de longa discussão, que dominou os círculos intelectuais americanos (e mundiais), o tiro saiu deliciosamente pela culatra. As fotos foram expostas em outro local, a curiosidade gerada pela polêmica atraiu multidões… e pronto! Mapplethorpe, com todo seu imaginário que redefiniu beleza e pornografia, havia se tornado um ícone contemporâneo!
(Seria uma delícia – se tivéssemos tempo, mas vejo que este texto já está bem longo – debater um pouco mais sobre as fotos de Mapplethorpe; essas que foram escolhidas para o post de hoje não estão nem entre as mais “chocantes” que o fotógrafo produziu; no entanto, posso visualizar facilmente uma certa categoria de visitante deste espaço – aquela que costuma se esconder atrás de emails anônimos – destilando já sua hipocrisia, não muito diferente daquela dos políticos americanos já mencionados na controvérsia da exposição de Washington, para mandar um comentário “horrorizado” com o que viu… mas eu divago…).
Quando soube, no meio da minha última viagem, que Patti Smith tinha escrito esse livro, fiquei maluco para adquiri-lo o mais rápido possível. E, por sorte, quando passei numa escala por Chicago, a caminho do Brasil no fim-de-semana passado, e encontrei “Just kids” numa livraria de aeroporto, vibrei! Driblando os fusos horários que me maltratam desde sábado, fui devorando cada página – e agora torço para que sua edição em português não demore a sair. Porque essa é a leitura que eu mais recomendo a você neste momento.
Eu posso até não ter mais 20 anos (aliás, entro no meu “inferno astral” da regressiva para os 47 na semana que vem!). Mas eu sei muito bem o que é sentir a força criativa que leva a gente adiante nessa idade. E agora, com esse empurrãozinho de Patti Smith, estou pronto para retomar esse espírito…