Coisas estranhas
Desde que passei por Tóquio em 2007, gosto de contar que na Tower Records de lá – provavelmente o último “dinossauro” da era mesozóica fonográfica, quando as grandes lojas de disco ainda faziam parte da paisagem das grandes cidades – encontrei uma seção que não havia visto em nenhum outro lugar do mundo. Rock, Jazz, Clássico, Blues – todas essas categorias musicais estavam lá, inclusive a já conhecida, mas nem por isso menos curiosa “J-pop”, reservada para os ultra-populares artistas locais (sempre pensei que no Brasil a gente poderia ter um “B-pop”, apesar do risco de alguns confundirem com “bebop” – mas eu divago…). Porém, ali no sexto andar (sim, a loja tem um sexto andar – aliás, são sete no total!), encontrei uma rara placa escrita não em japonês mas em inglês, que era auto-explicativa: “weird stuff” – ou “coisas esquisitas”, em português.
Foi uma espécie de revelação. Ali, reunidos de maneira bastante idiossincrática, encontrei bizarrices de toda sorte – de um disco de “fusion” de um baterista alemão com uma orquestra de gamelões de Bali, a uma coletânea da mais famosa cantora de jingles no Japão dos anos 60, Fusako Amachi (que inaugurou a primeira lista de “melhores discos que você não ouviu” deste blog). Desde então, sonhava voltar para Tóquio, nem que fosse apenas para dar uma passadinha por essa seção da Tower de Shibuya – o frenético bairro da capital japonesa.
Imagine a minha expectativa, então, quando ficou acertado que Tóquio seria incluída na série de reportagens sobre megacidades que estou fazendo (esclarecendo: se o assunto é “as maiores cidades do mundo”, não tem como escapar dessa, que é a maior de todas; porém, como Tóquio é sempre assunto de várias matérias, ponderamos se valeria a pena enfocar mais uma vez a cidade – e chegamos a conclusão de que é possível, sim, abordar Tóquio de infinitas maneiras diferentes!). Enfim, saindo de Bangladesh (com uma parada estratégica em Bangcoc!), cheguei finalmente com a equipe por lá na noite do último domingo e, contagiado pela energia das ruas, sugeri que aproveitássemos o tempo livre (só gravaríamos no dia seguinte de manhã) para explorar Shibuya.
Meus colegas aprovaram imediatamente – e enquanto eles tentavam registrar toda a loucura que passa por aqueles cruzamentos (sob a luz de inúmeros painéis luminosos que eu, teimosamente insistia em dizer que era um visual “supermoderno”, de onde o filme “Blade runner” tirou sua inspiração, esquecendo-me que essa é uma referência de quase 30 anos atrás!), eu “escapei” para a Tower. E, logo que entrei, corri para procurar onde estaria a placa do “weird stuff” desta vez!
Para minha decepção, não a encontrei em nenhum lugar da loja. Por outro lado, em vários cantos, de vários andares, comecei a ter a sensação de que a seção não existia mais simplesmente porque ela havia se espalhado por todos seus corredores. Talvez excitado demais por estar de volta a esse “templo” – pelo menos para quem, velho como eu, ainda gosta de comprar CDs! -, comecei a ver “coisas estranhas” em cada prateleira. E meu batimento cardíaco começou a se descontrolar.
Olhei no relógio e vi que faltava pouco mais de uma hora para a loja fechar – pouquíssimo tempo para dar conta de tudo que eu queria fuçar. Parti então para uma corrida desenfreada, escutando algumas coisas (em audições-relâmpago!) e selecionando a maioria dos discos que decidi levar apenas pela capa (um método que tem lá seu mérito, como já expus aqui) – uma vez que quase todas as informações poderiam me dar uma pista sobre aqueles artistas estavam sempre, claro, em japonês!
Só algumas horas mais tarde, depois de ficar quase zonzo tentando escolher um lugar para comer ali mesmo em Shibuya (e ter decidido finalmente por um daqueles restaurantes subterrâneos, cheios de atmosfera, com um cardápio impenetrável para turistas não versados no idioma local…), e depois de chegar meio cansado e meio “entusiasmado” com o saquê consumido no nosso primeiro jantar dessa escala no Japão, fui ver direito, ao chegar ao hotel (que começava no vigésimo-quinto andar de um prédio com vista para a torre de Tóquio!), o que comprei – e aí tive a confirmação: estava diante de mais uma pequena coleção de “coisas entranhas”…
Tantas, que ainda não ouvi nem metade. Alguma coisa até consegui colocar no meu iPod ao longo dos dias que restavam da viagem. Mas tendo chegado ao Brasil na tarde de sábado (ligeiramente exausto depois de um vôo de 23 horas – fora as cinco de conexão em Chicago!), direto para o trabalho, não é que eu tive muito tempo livre ultimamente para mergulhar em novos sons… Boa parte dessas aquisições – pode ter certeza – vai passar por aqui, por este blog. Entre as que mais me entusiasmaram de cara, estão uma coletânea de música pop de Goa (“Konkari songs”!) e o relançamento de uma misteriosa cantora tcheca do final dos anos 60, Marta Kubisová (para mais informações “surpreendentes”, visite sua breve página na wikipedia). Mas sei que vou descobrir muito mais coisas, ainda mais interessantes…
Toda essa introdução, no entanto (sim, isso foi uma introdução!), não é exatamente para falar dos “achados” dessa mais recente incursão pela Tower de Shibuya, mas para refletir mais uma vez neste espaço sobre o conceito de “coisas esquisitas”. Desde que escrevi um post com o título de “Música normal”, tenho insistido nessa “tecla”. E quase que estendendo o pensamento da minha última postagem, quero registrar que, mesmo já tendo voltado de viagem – e escrevendo isso do “conforto do meu lar”! – ainda estou tentando entender de que lado do mundo estou… E lembrando desses CDs que trouxe agora, e ainda embalado pela leitura de um livro sensacional que comprei para passar o tempo na escala em Chicago (mais sobre isso daqui a pouco), acabei chegando a uma espécie de resposta preliminar para essa inquietação: estou do lado das coisas esquisitas!
Mas, claro! Afinal, são elas que movem nossas idéias – e são elas que nos inspiram a perceber tudo de maneiras diferentes! Acho que é isso… Quanto mais distante a cultura que visito, quanto mais inesperado o som de um artista, quanto mais inusitada as palavras de um escritor, quanto mais subversivas as cores de um pintor – e quanto mais originais forem seus traços! – mais eu vou me interessar!
Fiquei tão entusiasmado com essa “descoberta”, que venci meu cansaço e vim escrever logo sobre isso (estou ainda sob o efeito de um fuso horário “punk”, de 11 horas para a frente, e meus planos eram contar com sua compreensão e só entregar este post amanhã…). E agora, mais desperto do que nunca (quando meu relógio biológico insiste em me dizer que estou no meio da madrugada, mas a tarde ainda não está nem na metade na janela lá fora), assim que terminar aqui vou retomar a leitura de “Just kids” – o tal livro que comprei no aeroporto de Chicago.
Estava guardando esse tema para mais tarde – afinal, as memórias de Patti Smith (artista, música, poeta, escritora) sobre sua formação artística ao lado de seu então companheiro Robert Mapplethorpe (um dos fotógrafos mais importantes do final do século 20), na Nova York do final dos anos 60 e começo dos anos 70, só pode render muito assunto. Mas aí fiquei pensando em “coisas esquisitas” e não resisti a adiantar um pouco dessa leitura para você – nem que seja como um aperitivo…
“Nós costumávamos rir um do outro, dizendo que eu era uma menina má tentando ser boazinha e ele era um menino bom tentando ser mau”, escreve Patti Smith logo nas primeiras páginas desse livro que não poderia ter um título mais inspirador (“Apenas moleques”, em mais uma tradução apressada). E é esse equilíbrio maluco que ela se dedica a nos contar – nunca sem boas doses de carinho dedicado ao ex-companheiro (que morreu em consequência da Aids, em 1989). E isso é tudo que eu quero ler agora.
Assim, na quinta-feira retomamos a conversa. Agora, porém, peço desculpas pela pressa, mas vou terminar “Just kids”, para escrever sobre ele depois. Mas, “pra não dizer que eu sou ruim” (como diria Kelly Key!), eu deixo aqui um trecho especialmente ilustrativo desse livro fascinante, sobre um período em que o casal dividia um quarto em um hotel, digamos, “alternativo” em Nova York (que ainda não era o Chelsea, para onde eles mudariam mais tarde):
“Felizmente ele dormiu a tarde toda e eu fiquei andando pelos corredores. O lugar estava repleto de drogados e casos perdidos. Hotéis baratos não eram uma novidade para mim. Eu e minha irmã já havíamos ficado num pardieiro de seis andares em Pigalle, mas nosso quarto era limpo, até ‘alto astral’, com uma vista romântica para os telhados de Paris. Não havia nada de romântico nesse lugar, vendo homens seminus tentando encontrar uma veia em membros infestados de feridas. Todas as portas estavam abertas porque estava muito quente, e eu tinha que desviar meus olhos sempre que ia e vinha do banheiro para enxaguar as roupas que eu punha na testa de Robert. Sentia-me como uma criança num cinema tentando esconder tentando não ver a cena do chuveiro em ‘Psicose’. Essa era a imagem que fazia Robert rir.”