As palavras que nunca são ditas

seg, 29/03/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

“Joana não sabia se achava graça, se deixava ‘passar batido’, ou se abria o envelope que carregava sempre na sua bolsa. A terceira opção certamente era a mais perigosa, já que abrir o envelope significava deixar a memória de Breno substituir todos seus pensamentos. Fazia dias, talvez semanas, que ela nem lembrava que o envelope estava lá – branco, quase indistinto de tantos outros, não fosse pela caligrafia nervosa que, sobre o lado sem emendas havia escrito: ‘As palavras que nunca são ditas’.

Renato Russo

Mas agora a presença dele em meio ao pequeno inventário que Joana carregava sempre a tiracolo era tão óbvia que o envelope parecia vibrar como um celular poderoso. E tudo isso porque, ao procurar no próprio telefone um ‘torpedo’ com um endereço de um dermatologista que uma amiga (também chamada Joana, só que com ‘u’) a havia enviado no final do ano passado, descobriu que não havia apagado todas as mensagens que ele havia mandado.

No início de abril, em mais uma tentativa de esquecer o cara que tinha mudado sua vida, Joana fez o impensável: deletou tudo que ele havia escrito para ela – tudo! Dos primeiros recados em código – já que nenhum dos dois sabia onde estava pisando – ao último recado onde ele inquestionavelmente pedia para ficar sozinho. Simples declarações de amor, profundos questionamentos sobre os sentidos da paixão, passagens de livros que ambos gostavam (e achavam que haviam sido escritas para eles), pedidos na linha ‘não me abandone jamais’, breves lembretes de que um havia encontrado no outro a parceria da sua vida – tudo sumiu em menos de dez segundos, depois que ela respondeu ‘sim’ à pergunta direta na tela do seu celular: ‘apagar mensagens marcadas?’.

Mas ‘tudo’ não era exatamente ‘tudo’. Havia sobrado uma mensagem, que Joana não tinha certeza se a havia guardado de propósito ou se foi mero ato falho – uma modalidade de esporte masoquista na qual ela era campeã. Talvez o recado não houvesse sido descartado junto com os outros por mero acaso mesmo. Afinal, ela nem podia imaginar por quais motivos ela gostaria de reler, mesmo tanto tempo depois, uma bobagem como essa:

‘Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?! Eu te adoro meu amor, tenho tanta felicidade dentro de mim que parece que eu não vou aguentar! E assim como eu a vi hoje quando abri meus olhos, eu também não sei mais durmir sem você…’

O problema era que tinha sim alguns motivos para retornar sempre a essa mensagem. O primeiro deles, a referência à tarefa sempre insana de um constantemente tentar surpreender o outro com uma frase de amor original. A citação a ‘Quase sem querer’, do Legião, era uma brincadeira íntima, como se os versos cantados por Renato Russo fossem uma espécie de provocação constante que fizesse parte da intricada equação do amor que eles sentiam. Geralmente quando Joana achava que tinha sido original – por exemplo, usando fragmentos da decadente decoração da casa dele para falar dos seus sentimentos –, Breno vinha com algo ainda mais inesperado – como uma listagem das coisas que melhoraram a sua volta simplesmente porque ela havia feito dele uma pessoa melhor. E a competição – que eles adoravam frisar que ‘não era uma competição’ – ia em frente.

A referência a ‘não aguentar de tanta felicidade’ era outra constante na relação entre Joana e Breno – e outro motivo não declarado para ela querer guardar aquela mensagem. Mais de uma noite foi gasta tentando pensar em como eles administrariam tanto amor – uma grande ironia, quando o que os separou foi justamente a incompetência (de ambos) em lidar com algo tão avassalador.

E finalmente havia a grafia errada do verbo ‘dormir’ – um pequeno pecado ortográfico que ele assumia, mas admitia não saber a origem… Desde pequeno escrevia daquele jeito – com ‘u’ – e só se dava conta que havia feito isso quando relia um texto seu. Joana, claro, adorava que ele cometesse aquela pequena gafe (um inexplicável deslize em alguém que tinha o português tão impecável), e mais de uma vez forçou dele uma reposta por escrito que tivesse o verbo ‘durmir’ só para rir sozinha, cheia de carinho e saudade, quando estava longe do Breno.

Voltou a ponderar as três reações possíveis à ‘redescoberta’ da mensagem. Achar graça seria leviano demais – mesmo depois de mais um ano, nada naquela separação inspirava sequer um sorriso. Passar batido? Impossível. Cada vez que Breno cruzava seu pensamento era como se todo seu raciocínio fosse sequestrado – não tinha como ignorar, qualquer referência a ele que não merecesse uma resposta.

O que a levava à terceira opção: abrir o envelope na sua bolsa. Mas se fizesse isso, já sabia o que viria depois. Ali ela encontraria todas as cartas e todos os bilhetes que ele havia escrito para ela. Contraditório? Nem tanto. Uma coisa era apagar as mensagens do celular. Outra era jogar fora o registro da letra de Breno. Isso ela não tinha coragem de fazer. O que não significava que ele estava preparara para revisitar aquele material. Enfim, reler aquilo tudo significaria se perder mais uma vez em lembranças boas demais que a fariam sofrer tudo de novo.

Não. Era preciso pensar numa quarta opção. Mas não houve tempo para pensar. Quase como um reflexo, Joana apertou a tecla ‘responder’ no seu telefone e escreveu:

‘Breno, não se assuste. Nem pare de ler essa mensagem por aqui’.”

Caro visitante, se você chegou até esta frase, eu já posso comemorar. Consegui seduzi-lo (ou seduzi-la) até aqui com um pequeno atrevimento da minha parte: uma pequena obra de ficção – de minha própria lavra! Ou ainda, um fragmento dessa obra de ficção – porque a história, claro, continua (pelo menos como eu a imaginei). Mas mais sobre isso daqui a pouco – aliás, pode sentar e relaxar porque este vai ser um post longo, talvez o mais longo da história deste blog…

livro_como_se_nao_houvesseFiquei inspirado a escrever alguma coisa quando, esta semana, encontrei numa livraria a coletânea de contos “Como se não houvesse amanhã”, organizada por Henrique Rodrigues e editada pela Record. Trata-se de uma série de histórias inspiradas em músicas do Legião Urbana – uma iniciativa interessante, que deve agradar não apenas aos fãs da banda (e de Renato Russo), mas aos leitores que gostam de um bom exercício lúdico.

Usar música como inspiração para literatura não é novidade. Por exemplo, o autor de “Alta fidelidade”, Nick Hornby, fez sua carreira literária em cima disso. E vale lembrar também de uma série de pequenos livros (que coleciono não muito religiosamente) chamada “33 1/3” – uma referência à rotação necessária para tocar os antigos LPs de vinil (consulte seu tio “mais velho” para mais detalhes). Ela convida escritores de vários estilos a contar uma história em torno de um álbum clássico do pop/rock (meus favoritos são um sobre “Unknown pleasures”, do Joy Division, por Chris Ott; “Pink moon”, de Nick Drake, por Amanda Petrisich; “Doolittle”, do Pixies, por Ben Sisario; “Endtroducing”, do DJ Shadow, por Eliot Wilder; e obviamente “Meat is murder”, do The Smiths, por Joseph T. Pernice – mas não, curiosamente, “Achtung baby”, do U2, por Stephen Cantanzarite, nem “OK Computer”, do Radiohead, por Dai Griffiths).

Mesmo não sendo muito original, a idéia de “Como se não houvesse amanhã” me pareceu bastante oportuna – nem que fosse pela passagem recente (lembrada com entusiasmo aqui mesmo na internet) da data que marcaria o aniversário de 50 anos de Renato Russo, agora, dia 27 de março. Como qualquer coletânea, ela é bastante irregular. Mas a maioria dos textos é interessante – são menos tributos apaixonados do que elegantes referências a obra daquele que foi um dos mais inspirados poetas e um dos mais apaixonados compositores do nosso pop.

Nenhum dos textos “baba ovo” para o Legião, mas há sempre uma alusão discreta e carinhosa às músicas escolhidas pelos colaboradores (boa parte deles, notei, nascida nos anos 70). Entre os que mais gostei, estão o de Ramon Mello (em cima da música “Sereníssima”); o disfarçadamente triste reencontro descrito por Susana Fuentes (baseado em “Quando o sol bater na janela do seu quarto”); e o conto de Miguel Sanchez Neto, inspirado por “Meninos e meninas”, que começa com essa quase perfeita frase: “É preciso passar por muitas decepções para merecer de novo o primeiro amor”.

Totalmente imbuído desse espírito, lá fui eu tentar minha sorte na ficção, com a mesma desculpa: usar uma música do Legião Urbana para contar uma história. O primeiro desafio, claro, era escolher uma canção que os outros autores ainda não haviam usado. Para minha surpresa, entre as 20 músicas escolhidas, duas das minhas favoritas ficaram de fora: “Índios” e “Quase sem querer”. Qual das suas eu deveria ser minha opção?

As duas falam muito próximo do meu coração. “Índios”, sobretudo, tem uma letra que, na minha opinião, transcende a interpretação primária de que é uma canção sobre uma grande decepção amorosa. E “Quase sem querer” é, depois de “Quando um certo alguém” (do meu guru Lulu Santos), o maior hino ao amor que não consegue se declarar – como não usar isso como inspiração?

Por fim, decidi por “Quase sem querer” – quase que por eliminação. “Índios” exigiria de mim um esforço que está bem acima do tempo que dedico para fazer este blog (que já é bem generoso…). Escrever sobre “Quase sem querer” não seria exatamente mais fácil. Mas seria mais rápido. E foi assim que essa história que você começou a ler hoje (ainda está aqui comigo?) nasceu! Mas… mais sobre isso daqui a pouco.

Antes disso – já avisei que esse seria um dos posts mais longos da história deste blog? –, preciso falar de Renato Russo.

Teve o “aniversário”, como você acompanhou – a data em que Renato faria 50 anos. E entre as comemorações a MTV passou – mais uma vez, diga-se – a entrevista que eu fiz com ele, nos idos de 1993… Eu era bem mais jovem – e não vamos nem falar sobre a minha silhueta… Eu era outro cara, enfim – “só” com 30 anos! E eu me lembro até hoje da excitação de entrevistar Renato Russo.

Como já contei no meu livro “De a-há a U2”, quando chegamos à casa de Renato, ele estava “dormindo”… Era um “teatro”, claro – uma encenação para nós, como se ele tivesse se esquecido do compromisso de receber uma equipe de TV no seu apartamento na rua Nascimento Silva, no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro. Eu mesmo caí na “pegadinha” de Renato – e por alguns minutos pensei em desarmar toda a operação. Mas era Renato Russo! Ele era “o cara” – não só porque era 1993, mas porque toda uma geração tinha crescido ouvindo sua potente voz (e seus sábios ensinamentos…). Eu tinha uma responsabilidade enorme nas minhas costas – com o perdão do clichê! –, e o cara estava em sua casa, deitado embaixo dos lençóis dizendo que não queria dar uma entrevista? Por alguns minutos, eu achei que iria enlouquecer!

Mas Renato – como se diz em Portugal – estava “a desporto”… E em questão de minutos, ele acabou com a brincadeira, saiu do seu quarto, e começamos a conversar como se fôssemos grandes amigos. Atenção aos mais cínicos: isso não é uma demonstração de falsa intimidade. Eu não era exatamente amigo de Renato Russo até então – e, embora a entrevista tenha levado nossa intimidade a um novo patamar, não posso dizer que ficamos mais “próximos” depois dela. Mas tenho certeza – e revendo a entrevista que a MTV reapresentou neste fim-de-semana tive mais convicção disso – de que consegui ali estabelecer uma proximidade e uma transparência que ele ainda não havia mostrado para nenhum outro jornalista.

Renato Russo era um gênio. Quanto mais escuto suas músicas, quanto mais revisito seu trabalho, tenho certeza disso. Mesmo longe da adolescência, ouvia cada letra de música do Legião como um oráculo. Devoto ferrenho dos Smiths, tinha a certeza de que Renato Russo era a encarnação brasileira de Morrisey – não apenas por imitação, mas como um verdadeiro herdeiro daquela poesia suprema que consegue dizer o indizível: a dor da rejeição, a impossibilidade do amor, a incompreensão do mundo, o questionamento da inadequação.

Parece muito profundo, mas não é. Ou melhor, a beleza da música pop criada por Renato Russo – junto com o Legião – está exatamente em traduzir questões tão complicadas de maneira totalmente acessível para todos. Exemplos? “Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você” – de “Será”, que até hoje eu acho que Renato tirou de “Say hello, wave goodbye”, a obra-prima do Soft Cell. “Antes eu sonhava, agora já não durmo” – de “Sereníssima”. “Todos se afastam quando o mundo está errado” – de “O livro dos dias”. “A gente quer um lugar pra gente, a gente quer de papel passado, com festa, bolo e brigadeiro” – de “O descobrimento do Brasil”. “Desculpas nem sempre são sinceras, nunca são” – de “Acrilic on canvas”. “Acho que o imperfeito não participa do passado” – de “Meninos e meninas”. E olha que não estou falando nem das músicas mais óbvias…

Esse cara – desculpe a intimidade, Renato, mas depois de rever a entrevista, e depois de ouvir tantas vezes suas músicas e me identificar tanto com suas palavras –, enfim, esse cara, o Renato, me dá forças até hoje para acreditar no amor.

Renato era um devoto da beleza. Não tendo ele mesmo sido agraciado com esse presente – você que se acha tão bonito ou tão bonita, nunca se esqueça de que isso é um presente – Renato se cercava de coisas belas. Das caixas de óperas completas que recheavam as estantes da sua casa, às fotos dos meninos que decoravam as paredes de seu apartamento, ele espalhava por sua casa a graça que ele mesmo não tinha. E mais: fazia da sua arte o melhor canal para espalhar pelo mundo justamente o que a natureza lhe privou – beleza.

Essa me parece ser uma questão fundamental na sua obra – e o legado mais precioso que Renato nos deixou. E é justamente o que eu queria celebrar aqui hoje, ressaltando, ainda que um pouco atrasado, seu aniversário “virtual” de 50 anos. Nós vamos sempre voltar para Renato Russo como uma referência de beleza e poesia. Minha geração foi inevitavelmente influenciada por ele – e pelo que vi na coletânea “Como se não houvesse amanhã” – a geração que veio logo depois da minha também.

O filho de uma de minhas melhores amigas – que acabou de entrar no vestibular – ouve as músicas do Legião como se elas falassem diretamente com ele, o que me dá esperança de que elas sejam justamente atemporais… Universais! E eu não tenho receio de arriscar um palpite de que isso vai se repetir por muitos e muitos anos…

Por muitos e muitos anos…

Eu mesmo, na relativa insignificância do meu registro cultural, espero um dia fazer diferença para gerações que não são exatamente essa que está me lendo agora. E se eu tenho uma inspiração forte é Renato Russo. Nosso cenário pop não é dos mais ricos no que diz respeito a ídolos. Mas isso nem de longe diminui o mérito de Renato. Ao lado do já citado Lulu Santos, Cazuza em bons momentos – e possivelmente Caetano (se você tiver a flexibilidade necessária para considerá-lo uma artista pop) –, ninguém traduziu tanto a angústia de não ser amado como ele. E por isso ele será sempre lembrado. Sempre.

Na música que escolhi como ponto de partida para o conto que abre o post de hoje – e que, diga-se, não foi solicitado –, “Quase sem querer”, aprendi que “mentir para si mesmo é sempre a pior mentira”. E ao ressuscitar esse lugar tão comum, Renato, com sua genialidade renovou a esperança em mais de um coração destruído. Seus versos – e esse inclusive – são as próprias “palavras que nunca são ditas”. Não que elas nunca tenham sido pronunciadas por ninguém. Mas é que na voz de Renato – e no embalo que o Legião como um todo criava para elas – essas palavras sempre surgiam como se, de fato, fossem “nunca ditas”.

Porque são palavras assim que os amantes trocam – na ilusão deliciosa de que elas são inéditas. E são palavras assim que eu tentei rearranjar nessa minha primeira incursão oficial – pelo menos, a primeira incursão assumida! – pelo universo da ficção. Escrevi esse texto que abre o post de hoje esta semana quase que por impulso, motivado pelo livro-tributo que, como já contei (este texto está realmente longo, mas eu avisei…), encontrei esta semana numa livraria – e tenho de confessar que precisei de uma boa dose de coragem para apresentá-lo aqui para você.

Reforçando, este não é o conto inteiro. De propósito, publiquei aqui apenar uma parte dele – e, como alguém que é assumidamente fã de novelas, interrompi minha narração num ponto que, em inglês a gente chama de “cliffhanger”, um “gancho” que explicitamente faz com que quem lê fique curioso para saber o que vem depois na história. Foi, como disse, de propósito. Como qualquer autor principiante, lido com a incerteza de saber se meu leitor ou minha leitora vai quer saber do resto. E, num rasgo de atrevimento, pergunto: será que você quer saber como esse conto termina? Devo continuar?

Sei que é uma ousadia – ainda mais depois de ter dedicado praticamente todo o post para um ícone como Renato Russo. Mas se eu sentir que a água está tranquila – todo autor é inseguro por natureza, lembre-se disso! –, eu publico o resto. Se não, fica aqui só meu registro de uma homenagem que eu nunca pude fazer para o cara com quem eu passei uma manhã e uma tarde incrível conversando sobre os mais variados assuntos, quase sem acreditar que eu estava tão próximo dele.

O que a MTV exibiu novamente neste fim-de-semana  – e que você pode encontrar com facilidade aqui mesmo na internet – não é mais que a versão editada de um encontro tão especial, que mesmo no relato mais íntimo que tentei dar no meu livro não foi capaz de espelhar por inteiro.

Uma outra hora, num outro plano, quem sabe, eu volto a encontrar com ele. E a conversa vai continuar, eu tenho certeza. Quem sabe até eu mostro para ele, por inteiro, um conto que eu escrevi, e que se chama “As palavras que nunca são ditas”?

Teresina, Ullan Bator, Berlim, Goa, Dubai…

qui, 25/03/10
por Zeca Camargo |
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Nunca antes na história deste blog – sem ironia! – os comentários me inspiraram tanto a escrever um novo post. Quando, ao viajar para fazer a série Megacidades (que, numa ação assumida de merchandising, anuncio que começa este domingo no “Fantástico”), pensei na foto que publiquei na última segunda-feira, já imaginei que ela causaria uma certa confusão. Assim, combinei com a produtora da série que viajava comigo – a autora da foto injustamente não creditada no post anterior, Renata Chiara – que misturaríamos vários elementos para despistar o local onde ela foi tirada. Tinha aquele carro meio antigo, um cartaz com conteúdo difícil de identificar (para a maioria dos brasileiros, pelo menos), aquelas construções atrás, uma obra dos grandes grafiteiros brasileiros Os Gêmeos – e para “melhorar” ainda mais, a própria Renata sugeriu que eu convidasse aquele dois caras de uniformes de uma cadeia de “fast food” para a foto. E o resultado foi esse…

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Quero dizer, foi essa deliciosa – repito – confusão que deixou boa parte dos leitores que passam por aqui inquietos de curiosidade, arriscando palpites tão deliciosos quanto os que usei no título de hoje – e tantos outros: Paraguai, Londres, Rio e  São Paulo, Tailândia, Golfo de Bengala, Nova York, Nova Déli e… Mumbai, que era, claro, a resposta certa! Resposta essa que, para minha surpresa, o Zé Ruela acertou no seu comentário (como ele chegou a uma outra foto do mesmo grafite – postada em janeiro do ano passado no link que ele mandou – eu não faço a menor ideia… mas parabéns!).

De fato, eu estava em Mumbai quando tirei a foto – uma das cidades que não poderiam faltar numa série que fala sobre grandes metrópoles. No mesmo dia em que chegamos a Mumbai, no caminho para o hotel, passando pelo Marine Drive – uma avenida costeira já na ponta da cidade – vi aquele grafite sem querer (certamente não estava procurando algo assim…) e reconheci imediatamente o trabalho dos Gêmeos. E, lógico, fiquei bastante entusiasmado.

Não só pelo fato de que é sempre bom ver a arte brasileira espalhada pelo mundo – quando eles enfeitaram boa parte das paredes externas da Tate Modern, em Londres, em 2008, tive a mesma reação. Mas gostei mais ainda do fato de ter identificado um elemento comum a mais de uma cidade que visitei para esse projeto. São Paulo, como muitos dos habitantes da cidades sabem bem, tem mais de um trabalho deles espalhados pelos seus muros. E Nova York – também contemplada na série – também cedeu espaço a esses artistas. Perceber isso, então, me deixou muito feliz, já que de uma maneira intuitiva isso me ajudava a demonstrar que as cidades grandes são cada vez mais parecidas – e que isso é uma coisa positiva.

Um alerta aos inimigos da globalização antes de continuarmos a discussão: não estou dizendo que as cidades estão cada vez mais uniformizadas. Pelo contrário: todos esses lugares que visitei agora têm uma identidade única e fortíssima – e que eu jamais vou me cansar de celebrar. O que eu acho interessante é que elas são parecidas na sua capacidade de absorver elementos e culturas diferentes – que é, aliás, o segredo de elas serem cidades tão fascinantes.

Comecemos por São Paulo – lugar onde cresci e vivi nos últimos (uau!) 38 anos. Sempre fui um defensor ferrenho da capital paulista, e já arrumei várias “brigas” por conta disso. Muitos dizem que a ausência de belezas naturais – questionável… – não favorece a apreciação de quem a conhece pela primeira vez. Dizem ainda que é uma cidade “fechada”, onde é difícil de conhecer alguém quando se chega… (De fato, sou obrigado a concordar que se você já tem um amigo na cidade tudo fica mais fácil). Mas eu sou um apaixonado por São Paulo, e tenho de admitir que se eu não tivesse tido a chance de morar lá (meus pais resolveram se estabelecer lá só no final de 1969) eu teria tido uma formação totalmente diferente. Tudo bem, talvez eu tivesse desenvolvido o mesmo “espírito curioso”, viajante – que é algo que eu acredito que está dentro de mim desde que nasci. Mas as referências e influências que recebi da cidade foram inegáveis.

Onde mais eu poderia ser estagiário numa Bienal de Artes Plásticas justamente quando a cena artística brasileira estava se renovando? Onde mais eu poderia ter conhecido e me apaixonado por danças étnicas? Onde mais eu poderia sair de uma noite de rock no projeto SP e cair no melhor da “disco” no Papagaio’s? Onde mais eu conheceria pessoas tão estimulantes que me provocariam com suas idéias e intenções? Por essas – e por tantas outras razões – eu tenho que dar esse crédito a São Paulo.

E à medida em que fui conhecendo outras partes do mundo, fui vendo que o meu barato mesmo é conhecer e explorar cidades – mais do que a natureza… Como você talvez já tenha lido aqui, ter morado em Nova York foi uma experiência transformadora para mim. A primeira vez que estive em Tóquio praticamente não dormi nas poucas 48 horas que passei por lá. Todo o susto da minha chegada em 1986 a Nova Déli foi aos poucos sendo substituído por uma enorme paixão pela cidade. Quando alguém me pergunta qual a cidade mais divertida do mundo, eu respondo sem hesitar: Bangcoc. E não vamos nem começar a falar de Istambul – que já recebeu mais de uma declaração de amor minha, aqui mesmo neste espaço. (Talvez eu esteja me repetindo, mas só para ilustrar o que quero dizer, muitos amigos se assustam com o fato de eu nunca ter ido à Capadócia, na Turquia… Eu até já fiz planos de conhecer aquela paisagem maravilhosa – fora aquele passeio estupendo de balão! Mas aí, eu chego a Istambul – e quem disse que eu quero sair?).

Meus mais recentes “casos de amor” foram com duas cidades que eu ainda não conhecia e que visitei para a série: Xangai (quero falar dela na semana que vem) e Mumbai. Difícil comparar esses dois lugares – e até o próximo post você vai entender as razões pelas quais eu me encantei por cada uma delas e tirar suas próprias conclusões. Então vamos falar primeiro de Mumbai…

Não era a minha primeira vez na Índia. Fui para lá já em 1986, numa escala demorada antes de chegar a Bali – que era o destino final de uma longa viagem. Como esbocei acima, o impacto inicial foi assustador. Mas quem coordenava a excursão – o diretor do grupo onde eu dançava – já era “velho de guerra”: conhecia não só bem a Índia, como essa reação dos visitantes iniciantes… E ao longo da semana fez de tudo para nos seduzir e finalmente nos apaixonar por aquele lugar.

Voltei ainda mais quatro vezes a Déli – sempre renovando minha admiração pela cidade. E fui ainda a outras partes desse país infinito de encantos: Goa, Rajastão, Madras… Mas nunca havia ido a Mumbai. E agora tenho de admitir que me arrependo de ter levado tanto tempo para conhecê-la.

Se um adjetivo apenas pudesse conter tudo que ela transmite, eu diria que Mumbai é vibrante. Tem gente – muita gente – sempre na rua – o que não é exatamente mérito em nenhuma cidade indiana… Mas a energia ali é outra. Há um desprendimento e uma vontade de engajar, de se divertir, que é explícita nas pessoas circulando por lá. Bares e cafés estão sempre lotados – foi especialmente interessante ter tomado uma cerveja no famoso Café Leopold, um dos alvos dos terroristas em 2008. As lojas são fontes de cores e formas exuberantes. O tráfego – infernal – define o fluxo da cidade, mas logo aprendemos a balançar a cabeça para o lado como eles e dizer: “fine, fine, fine” (“tudo bem, tudo bem, tudo bem”). Parques, praias, templos, novas e antigas construções, grandes shopping centers, bibocas, restaurantes internacionais, comidas de rua, feiras livres, riquixás, cartazes de cinemas, loja e antiguidades (a foto que ilustra o post de hoje – também da Renata Chiara – foi tirada num lugar que é um misto dessas duas coisas: uma lojinha que vende pôsteres antigos de filmes de Bollywood, e é “administrada” por essas crianças que aparecem comigo, sério!). Tudo ali é, como disse, vibrante e me fez sentir – ao final dos menos de quatro dias que passamos por lá – que esse é um lugar que eu preciso voltar muitas outras vezes, para conhecer tão bem quanto Bangcoc ou Istambul…

É numa paisagem cultural com a de Mumbai que eu me sinto em casa – cheia de estímulos, cheia de mistérios, cheia de pessoas cheias de mistérios.

Por uma feliz coincidência, muitos acham que eu tenho feições que lembram as indianas. Mais de uma vez – nessa última viagem e nas anteriores também – muitas pessoas se dirigiam a mim diretamente em híndi, e não em inglês, por achar que eu era um “local”  (e você não pode imaginar que prazer isso me dava!). Talvez por isso, eu tenha um “viés positivo” ao falar de tudo que se refere à Índia… Independente dessa “ancestralidade”, porém, tudo que encontro por lá – e essa passagem por Mumbai não foi diferente – só reforça ainda mais isso: me faz gostar mais e mais daquele lugar.

E desejar que mais lugares no mundo sejam assim… Quem sabe Os Gêmeos não estão nesse momento deixando sua marca genial em mais uma parede por aí?

Onde parece que eu estou, mas não estou?

seg, 22/03/10
por Zeca Camargo |
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Poucas vezes me senti tão “cidadão do mundo” quanto no lugar onde esta foto foi tirada recentemente. “Cidadão do mundo” é, claro, um dos mais irritantes clichês que você pode usar na presença de alguém que viaja muito… Mas o fato de eu mesmo empregá-lo justamente para falar de uma escala no meu último itinerário global indica que – para usar outra frase feita –  “todo clichê tem um fundo de verdade”… Encontrar por lá uma imagem que me remetia diretamente ao Brasil (percebeu que imagem é essa?) foi uma grata surpresa – mesmo numa cidade cosmopolita como essa da foto. Mas acho que já estou adiantando o assunto de quinta-feira. Depois de terminar de digerir não só o próprio filme que comentei no post anterior, mas também boa parte dos sensíveis comentários enviados (obrigado!) – e sempre no intuito de começar tudo de novo –, espero sua contribuição para começarmos uma nova discussão. Então me diga, onde eu estou? E por que não parece que eu estou onde eu estou?

Muitos passados, nenhum futuro

qui, 18/03/10
por Zeca Camargo |
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Depois de tudo que eu já tinha visto se desenrolar na tela, durante a sessão de “O segredo dos seus olhos”, eu já deveria estar preparado para qualquer coisa. Afinal, eu já havia sido apresentado a mais uma performance impecável de Ricardo Darín; já tinha acompanhado uma trama que, quando dava a sensação de ter sido resolvida, vinha com uma nova reviravolta; já tinha visto um dos melhores “planos-sequência de mentira” da história do cinema; já tinha me perdido em questionamentos sobre o porquê de o cinema brasileiro ter tão poucos roteiros bons como aquele; e já tinha até imaginado a surpresa final que o filme iria oferecer – tópicos esses (com exceção, claro, da surpresa final) que vou desenvolver já já. Quando de repente Ricardo Morales (o personagem vivido pelo ator Pablo Rago) solta a melhor definição do “estado das coisas” que vivo atualmente, ao se virar para Benjamin Espósito e acusar: “Você tem muitos passados e nenhum futuro”. Foi devastador…

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“O segredo dos seus olhos” é – como você que gosta de cinema provavelmente já sabe – o filme que levou o Oscar de melhor produção em língua estrangeira este ano. Muito justo. Mas não é só isso. É também o melhor filme que vi em muito – mas muito! – tempo… E o segredo principal, além das interpretações inacreditáveis e de uma elegância de câmera que eu já quase havia desacostumado de esperar no cinema contemporâneo, não está nos olhos de ninguém (aliás, se o filme tem algum ponto fraco é seu título – que nem de longe te prepara para o que você vai ver), mas num elemento tão básico da própria arte de fazer filmes, que fica difícil acreditar que tanta gente pega uma câmera sem ter a certeza de que ele – este elemento – está garantido: um bom roteiro!

O que nos faz perguntar… o que é que a Argentina tem? Lembra-se de “Nove rainhas”? O filme, dirigido e escrito por Fabián Bielinsky (que morreu quando estava de passagem por São Paulo em 2006), tem um dos melhores e mais surpreendentes roteiros que já vi – daqueles que, na linha de “Os suspeitos” (de Bryan Singer, 1995), te obriga a ver o filme de novo só para conferir se tudo que você assistiu faz mesmo sentido. Se você não conferiu, pode começar a caçá-lo por aí – não é muito fácil de achar – e prepare-se para uma montanha russa! Foi nesse filme que fui apresentado a Ricardo Darín – e também ao ótimo ator que vive seu “comparsa”, Gastón Pauls. Já revi “Nove rainhas” uma boa dezena de vezes (embora nunca tenha tido coragem de conferir o “remake” hollywoodiano, “Criminal”, de 2004…), e nunca saí da experiência menos do que estimulado.

Mas talvez você tenha assistido a “O filho da noiva” – já que este foi um dos filmes que mais tempo ficou em cartaz no Brasil (numa nota de rodapé, encontrei por acaso com Darín – que também é o protagonista desse filme – uma vez em um hotel em Bariloche e comentei com ele, como um fã bem atrapalhado, sobre esse sucesso por aqui, e devo ter parecido tão mané de excitação, que ele saiu meio sem falar nada…). Trata-se também de um roteiro muito bem amarrado e emocionante – não conheço uma pessoa que viu e não chorou (isso, porque “O filho” não passa nem perto da pieguice).

Se você precisar de um exemplo mais recente de um filme argentino bem feito, que tal “Leonera” (2008), do diretor Pablo Trapero? Rodrigo Santoro emprestou seu talento a essa história que já se mostra poderosa desde a cena inicial – uma orgia de sexo e drogas que terminou muito mal. E tudo é forte nele, até a delicada sequência final, em que a câmera vai embora no barco deixando para trás os personagens que ficaram literalmente na outra margem do rio… Lembro-me de ter pensado, na época em que assisti “Leonera”, de que o diretor talvez houvesse imaginado, antes de qualquer coisa, aquele lindo encerramento – e, de tão perfeito que era, construiu toda uma história antes dele para poder filmá-lo…

Tive uma impressão parecida durante a sessão de “O segredo dos seus olhos”, dirigido por Juan José Campanella (que também o adaptou de um livro de Eduardo Sacheri). Mais ou menos no meio da história, surge o tal “plano-sequência de mentira” (o “de mentira” fica por conta de que é fisicamente impossível fazer aquela cena toda de uma vez só, pelo menos dentro do meu modesto conhecimento de técnicas cinematográficas), e é tão genial, que novamente pensei: o filme deve ter começado por aí – e depois veio o resto para construir a história.

O problema é que, no caso de “O segredo dos seus olhos”, pensar assim é diminuir demais o valor que o filme tem por inteiro. Afinal, como listei logo no início deste texto, essa é apenas uma de suas qualidades. Por exemplo, quando falei em “elegância de câmera”, refiro-me não só à cena do estádio de futebol, mas a detalhes como alguns planos onde os atores estão quase sempre encobertos por um objeto – um porta-retrato, um vaso, ou mesmo um outro ator. Você não vê tudo que está acontecendo nem todas as reações de quem está no centro da cena, mas o resultado é eficiente: te jogar para dentro da ação, como um observador bisbilhoteiro – sutil e eficaz.

Ou mesmo quando ele explora espaços fechados, sejam vazios – a casa da mãe de um suspeito de estupro seguido de assassinato (o crime que dá início a toda a trama); a casa de campo de Ricardo Morales (o viúvo da jovem morta) – ou claustrofóbicos, como o escritório onde Benjamin trabalha. Tudo é de uma meticulosidade comovente.

Depois temos as interpretações. Darín? Bem, não vou ficar aqui me repetindo. Soledad Vilamil faz uma Irene com dose certa de mistério e seriedade – e uma pitada de sensualidade reprimida. Guillermo Francella vive Pablo Sandoval, uma espécie de Sancho Pança para o Quixote de Benjamin (Darín), e é simplesmente sensacional – o bêbado mais autêntico que já passou pelas telas de qualquer nacionalidade. Mas vale destacar também as pequenas participações, como o cara do bar que é uma “enciclopédia” de futebol argentino; ou o político que ameaça Benjamin e Irene e dá o discurso mais nojento que você jamais vai ouvir de qualquer pessoa que julga que tem poder; ou ainda – e essa é uma participação só de voz! – a mãe do suspeito de estupro, que deveria inspirar a Academia de Artes de Ciências Cinematográficas de Hollywood a criar uma categoria para “melhor performance em off”!

E aí tem o roteiro. E sou obrigado a retomar minha inquietação: por que vemos tão poucas histórias bem contadas (como essa) no nosso cinema? Você às vezes, depois de sair de um filme brasileiro, não fica com a sensação de que ele era um monte de esquetes colados, mas sem um fio condutor que fosse de fato um bom argumento que unisse tudo? Talentos de atuação não nos faltam – felizmente – e vemos isso o todo tempo nos lançamentos nacionais. Mas raros são os filmes que almejam te surpreender como um todo – e não por uma ou duas cenas engraçadas que vão virar conversa depois na pizza com chope. E de quem é a culpa disso? De roteiros menores, claro!

Esse não é – imagine! – um problema exclusivo do cinema brasileiro. Hollywood está cheio de boas intenções, seja nas grandes produções (se você sobreviveu a “Simplesmente complicado” sabe do que estou falando) ou nas mais independentes (“A lula e a baleia” me vem à cabeça). E não vamos nem mencionar o cinema francês contemporâneo… Imagino até que o próprio cinema argentino tenha lá sua cota de “tonterías” – como eles mesmos diriam. Afinal, o que chega por aqui – e sobretudo o que chega a uma indicação para o Oscar – é só aquilo que já foi testado como muito bom. Mas quando a gente assiste a uma produção como “O segredo dos olhos” sente que esses argentinos sabem de uma ou duas coisas sobre um bom roteiro…

E não elogio o desse filme apenas pela espertíssima trama. A qualidade está também em cada frase que é dita. O primeiro encontro de Irene e Benjamin é um fino duelo de palavras que estavam guardadas há décadas. Pablo Sandoval – bêbado ou sóbrio – oferece pérolas cada vez que abre a boca. O tal “discurso de político” que citei acima é um primor da literatura da corrupção – se é que isso existe… E toda vez que Morales falava sobre a mulher que havia perdido, meu olho ficava encharcado. Mas quando ele disse a frase que escolhi para o título do post de hoje, eu achei que fosse pessoal…

“É isso! É isso!”, eu fiquei pensando comigo mesmo a partir do momento em que ouvi essa frase. No caso – e sem dar muitos detalhes – Morales diz isso a Benjamin tentando convencê-lo a desistir das suas inquietações, como quem diz “olhe para frente!”. Há meses que eu ouço a mesma coisa, mas foi preciso alguém dizer isso de maneira tão original como aquela para que isso viesse como o tapa na cara que eu estava merecendo. De que adianta ter tantos passados se não tenho nem a perspectiva de um futuro? Está errado – está tudo errado. Tudo precisa ser reformulado – aqui e alhures.

Como o remix de “Losing my religion”, clássico do R.E.M. brilhantemente transformado em “techno-brega” pelo DJ Cremoso (juro que não inventei isso!), está na hora de reinventar, de me animar com coisas novas, de viver diferente. Eu não sei bem como, mas eu vou virar essa equação: vou atrás de um passado só, para chegar a mil futuros.

E se eu chegar lá, prometo, vou agradecer um certo filme argentino…

Dia internacional da mulher

seg, 15/03/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

gaga_beyonce_blogQuase três minutos de imagens e, até então… nada de música. Você já viu coisas suficientes para passar o resto do dia extasiado – tudo, por enquanto, dentro de uma penitenciária feminina (se bem que uma penitenciária bem alternativa). A artista principal, você reconheceu logo que ela apareceu. A peruca, claro, é outra. O modelo – tirado da “Maison” Irmãos Metralha – é também novo, e não menos surpreendente. Duas “agentes” conduzem a meliante até sua cela e, depois de trancá-la por lá, soltam a piada que só os fãs mais devotos talvez captem: “Eu disse que ela não tinha um…” (as normas de conduta deste espaço não me permitem completar a frase… mas os tais fãs – entre os quais eu me incluo – sabem bem com ela termina). E nem sinal da música…

Você vê a “heroína” circulando pela prisão – e procurando confusão em cenas que incluem um beijo na boca de outra interna e uma pegada forte na virilha da mesma. Quando, no meio de uma boa briga de mulheres, ela atende uma ligação, finalmente você ouve os primeiros acordes da canção – uma bela introdução vocal acompanhada apenas por uma harpa (sim, uma harpa). Então o videoclipe começou? Talvez…

A estrela dança com suas companheiras dentro de grades, num momento que lembra uma cena do musical “Hair” (dirigido por Milos Forman em 1979), aquela que retrata a música tema. Em outra referência cultural esperta, ela depois aparece coberta apenas com fitas adesivas – como na inesquecível imagem de Gisele Bündchen clicada por David LaChapelle para a revista “The Face” –, debatendo-se em sua cela. E quando ela está prestes a deixar a prisão, a música para…

Mas a história continua – e com outra artista que você também conhece bem. Talvez sejam necessários alguns segundos a mais para reconhecer essa outra diva, uma vez que seu visual não tem nada a ver com aquele que estamos acostumados a esperar dela. Só quando sua voz diz – em inglês, claro – “você foi uma menina muito má, uma menina muito muito má má!” é que você tem certeza de que é ela…

O que vem depois é uma sequência de imagens que não só honra o grande mestre surrealista Salvador Dali, como eleva o próprio conceito desse movimento artístico a um novo patamar – uma espécie de montanha-russa de imagens e delírio. As duas “megastars” partem estrada afora para cometer um “modesto” assassinato em massa – não sem antes passar por uma conversa absurda num café de estrada, e por uma espécie de interlúdio que convida: “Vamos fazer um sanduíche!” (uma refeição cortesia da improvável “Poison TV”, ou, “TV Veneno”).

A música – que é, como qualquer coisa que se espera dessa artista, sensacional – já apareceu mais algumas vezes, mas você está tão envolvido na história toda que mal conseguiu separá-la do resto do que está vendo. Não fosse a estranhíssima coreografia ali mesmo no apertado espaço do café talvez você já nem se lembrasse de que se trata de um clipe. Mas lá estão as duas, enlouquecidas, pedindo: “pare de ligar, pare de ligar… eu estou tipo ocupada!”.

Quase dez minutos depois, você já está meio sem fôlego – mas elas não. Alvo de uma caçada humana, as duas escapam mais uma vez por uma estrada deserta, trajando curiosamente vestidos que bem poderiam ser de noivas (macabras). Nada de beijos, mas as duas mãos entrelaçadas dizem tudo: elas estão unidas para sempre. A sombra de um helicóptero as perseguindo na paisagem? Apenas um detalhe.

Reconheceu o que eu acabei de descrever? Então você é uma dos mais de 12 milhões de pessoas que já conferiram “Telephone” – a nova música de Lady Gaga, com a participação especial de Beyoncé. Eu mesmo contribuí para uma boa dúzia desse total de cliques (e essa é a soma apenas do que parece ser o vídeo oficial no youtube). E espero contribuir mais nos próximos dias!

Essa minha parca tentativa de traduzir o que eu estava vendo em palavras não faz, nem de longe, justiça a essa pequena obra-prima que é o novo vídeo de Gaga. O clipe é muito, mas muito mais que isso. É incrível como esta mulher não dá um passo em falso! E o fato de ela ter se juntado à outra figura, digamos, poderosa do pop só prova o quanto esse universo é inesgotável de idéias – algo que sempre defendo neste blog.

Em tempos de mega caretice e mesmice – e não preciso citar aqui alguns exemplos que predominam nas paradas mundiais para você ter idéia do que estou falando – um vídeo como “Telephone” chega como um manifesto-bomba! Chega de ser comportado, chega de jogar com os mesmos clichês, chega de querer agradar com um dicionário visual (e musical) só com códigos conhecidos, chega de ser o que as pessoas esperam que você seja. Lady Gaga está aqui para mostrar que você pode fazer diferente. E fazer bem feito.

No final do ano passado, desde que fiz uma entrevista com ela, citei tanto o “santo” nome da artista que me impus uma espécie de hiato com relação a esse assunto. E, pelo entusiasmo com que relatei minha experiência no show carioca de Beyoncé durante sua passagem recente pelo Brasil, achei que um bom tempo iria passar antes de eu citar novamente a cantora neste blog. Mas como resistir a essa avalanche pop chamada “Telephone”?

Eu até que tentei falar de outro assunto… Boa parte dos comentários sobre o último post (sobre as memórias que os livros nos trazem) renderia uma boa continuação desse debate – que eventualmente ainda vou retomar. Fiz duas tentativas de ver o filme ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro (“O segredo dos seus olhos”) nos cinemas cariocas, sem sucesso: todas as sessões estavam lotadas – numa prova de, pelo menos nas telas, a rivalidade entre brasileiros e argentinos não passa de um mito (alguém se lembra do sucesso que “O filho da noiva” fez alguns anos atrás?). Esforcei-me para terminar de ler “E nós chegamos ao fim” (Editora Nova Fronteira) – o curioso livro de estréia de Joshua Ferris (pelo qual fui me interessar ironicamente depois de ler seu segundo trabalho, “The unamed”, ainda inédito no Brasil); mas não tive tempo de me dedicar mais a isso. Aí – inspirado por várias recomendações, inclusive o comentário da Olga no último post –, resolvi assistir ao vídeo de “Telephone” e percebi que não tinha como não falar dele – não apenas para “tapar buraco”, mas para fazer uma espécie de… celebração.

Na segunda-feira passada, anestesiado pelo torpor da noite do Oscar, postei um texto sobre a “festa” – você sabe por que eu usei aspas… – sem fazer sequer alguma referência ao Dia Internacional da Mulher. Algumas leitoras, com toda razão protestaram. Mas na exuberância das performances de Lady Gaga e Beyoncé, vi um ótimo motivo para celebrar a força criativa das mulheres – e reafirmar a idéia de que nós não podemos viver sem essa inspiração.

Como todo mundo que se esqueceu de dar os parabéns para uma representante querida do sexo feminino na semana passada, eu também disfarço dizendo que “elas devem ser lembradas todos os dias” – e não apenas no 8 de março. Mas quero aqui ir um pouco além da demagogia fácil e reforçar os parabéns por tudo que elas representam. Isso, como eu já disse aqui mesmo (falando de Ivete Sangalo), é o poder!

E para fortalecer o argumento, insisto: veja (ou reveja) Lady Gaga e Beyoncé suplicando ao telefone: “eu deixei minha cabeça e meu coração na pista de dança…”. E não se esqueça de que foi esse lugar mesmo que Madonna escolheu para fazer suas confissões…

Além das letras

qui, 11/03/10
por Zeca Camargo |
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mindlin_brasilianaTenho pensando em livros ultimamente. Sempre penso, claro – como você que me acompanha aqui sabe bem. Aliás, basta abrir a primeira página de um livro para que nosso pensamento fique focado inteiramente nele – quem pode negar o prazer de sentir a folha de papel roçar a ponta do seu dedo e ouvir a espinha do volume dar a primeira estalada? Por exemplo, os dois títulos que me absorvem nesses dias – o novo de Paul Theroux, “A dead hand – a crime in Calcutta”, e uma coleção de ensaios de Zadie Smith, “Changing my mind – occasional essays” – também estão me fazendo pensar, como toda leitura sempre faz.

Mas o que quis dizer com a frase inicial do post de hoje é que tenho pensado em livros de um ângulo diferente – e por dois motivos. Primeiro, porque registrei, com tristeza, a morte recente do maior colecionador de livros do Brasil, o empresário José Mindlin – na foto acima, um homem que conheci casualmente e admirei intensamente, ainda que à distância. Na frase que adorava repetir, com pequenas variações – “Não sou dono desses livros, mas apenas o guardião deles” – Mindlin resumia a paixão de todos nós que tanto gostamos desse objeto que a modernidade ameaça suprimir… Um livro é sempre bem mais do que um volume de páginas impressas: cada livro contém um patrimônio infinito, não apenas na história (ou nas informações) que ele transmite, mas em todas as histórias que vêm junto com ele. Será que você consegue imaginar o mar de histórias que uma biblioteca como a de José Mindlin pode inspirar?
Com esses pensamentos na cabeça, foi uma deliciosa coincidência encontrar na última revista de domingo do jornal “The New York Times” um artigo (sim, mais um) sobre a experiência de possuir livros eletrônicos – ou “e-books”, como são conhecidos nos Estados Unidos. Com aceitação cada vez maior entre os leitores americanos – não só com o Kindle, da Amazon, mas também com o Nook, da Barnes & Noble (e vem aí o iPad!) – os “e-books” ameaçam de fato mudar a experiência de ler. Para melhor ou para pior? Depende de quem você perguntar…

No meio do ano passado, aqui mesmo neste blog, dei uma cutucada nessa questão, em cima de um artigo que um dos meus escritores favoritos – Nicholson Baker – escreveu na “New Yorker” (resumindo, ele ficou ligeiramente decepcionado com o “test drive” que fez…). Mas o artigo do “New York Times”, assinado por Virginia Heffernan, leva a discussão a um outro patamar – e é isso que eu quero dividir hoje com você.

Sobre os livros que ela tem em seu Kindle, Heffernan escreve: “Eu não tenho literalmente, nenhuma memória de ter escolhido adquiri-los na Amazon. A maior parte desses livros foi comprada impulsivamente, mais como um lembrete para mim mesma para ler isso ou aquilo do que um ato de aquisição de um livro em três dimensões”. E aí eu comecei a pensar…

Olhei para minha própria biblioteca – espalhada em estantes errantes pela minha casa – e fiz um pequeno exercício de memória. A maioria dos livros que eu possuo me remetia à lembrança de quando eu os comprei. Cada um daqueles volumes tinha a tal história além da história que eles contêm entre suas capas: a história de quem me recomendou; do artigo que me inspirou comprá-lo; da livraria da rua escura de Paris onde eu encontrei aquele outro; do amigo que me levou a um sebo em Belo Horizonte onde eu descobri um certo título; do autor que eu entrevistei e que tirou da sua própria estante uma cópia de um trabalho seu para me presentear; da tarde na loja de um museu inglês quando eu, sem muito dinheiro no bolso na época, tive que abandonar alguns volumes ali no balcão – mas pelo menos trouxe alguns para casa; da coleção sobre literatura de viagem que eu fui completando ao longo do tempo – e em cidades diferentes pelo mundo; e tantas outras…
Se eu tivesse comprado todos esses livros com um clique no computador, será que eu teria tantas outras histórias assim para lembrar? Provavelmente não…

Veja bem: quem levanta essa questão aqui não é um velho rabugento, retrógrado, que resiste a grandes mudanças tecnológicas. Como quem é leitor deste blog sabe bem, tenho o maior prazer em abraçar qualquer inovação. O que lamento aqui nesse meu ruminar não é a perda do “fetiche-livro”, uma saudade antecipada do objeto de papel. Mas a possibilidade de não ter mais as lembranças que esses livros podem me trazer. Seria muito estranho, sim, olhar para uma estante e ver, no lugar das lindas lombadas que enchem as prateleiras da coleção Mindlin, um punhado de caixas de plástico em tons de cinza e preto, correspondente aos discos rígidos dos títulos que você comprou eletronicamente (imagem essa, muito criativamente usada para ilustrar o já citado artigo do “New York Times”). Mas pior que isso é não ter história nenhuma para contar sobre os livros que você colecionou.

Ao dar uma aula esta semana – parte de um ciclo que estou lecionando em São Paulo, sobre música pop do mundo todo –, citei novamente o artigo de Virginia Heffernan, dessa vez para fazer um paralelo. A mesma relação entre livros e os caminhos que eles fizeram até chegar à minha coleção é possível estabelecer entre meus discos e os momentos em que eu os adquiri.

São histórias que remontam aos tempos do vinil – desde quando eu (como já contei aqui há quase um ano) ia com uns trocados no bolso e tinha que escolher muito bem o que comprar numa loja do centro de São Paulo chamada Bossa Nova; ou quando eu quase fui impedido de embarcar de volta para o Brasil da minha primeira viagem à Londres, pois voltava com 80 “bolachas” na mala; ou quando, também em Londres, a cidade estava forrada de cartazes anunciando “Meat is murder”, dos Smiths…

Histórias que também passam pelas décadas em que o CD reinou – de amizades com os donos de lojas alternativas em Nova York; de uma tarde confusa numa loja em Atenas tentando descobrir qual o cantor que tinha parado um clube na noite anterior (era Mihalis Xatzigiannis ); da compilação de brega paraense que ganhei do pessoal que trabalhou comigo na terceira temporada de “No Limite”, que gravamos em Marajó; do espaço amontoado no Khan Market de Nova Déli onde eu fiquei escolhendo trilhas sonoras de filmes de Bollywood; do demo que dois garotos em Luanda (que depois se tornariam famosos como S.S.P.) me passaram da sua “Canta comigo essa keta”, quando os entrevistei na minha passagem por Angola; da Miles de Buenos Aires; de tantas outras…

Este post de hoje é só sobre isso. Sobre essas lembranças tolas – ou não. As coisas mudam, eu sei. E eu mudo com elas. Nós mudamos. Mas o que eu faço com as minhas memórias – dos livros, dos discos, das músicas, das coisas? O que você faz com as suas? Vai querer transformar tudo num clique e ficar sem elas?

Foto: Brasiliana USP/Reprodução

Metade do Oscar, comentado

seg, 08/03/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

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Meus amigos que assistiram a toda a cerimônia do Oscar deste ano disseram que eu tive sorte de ter visto só a metade dela. A julgar pela parte que eu vi – a segunda –, acho que devo me considerar mesmo sortudo. Não, eu não esnobei o Oscar. Mas é que trabalhei até quase meia-noite ontem (aos que pensam que minha rotinha termina depois que passam os créditos do “Fantástico”, aqui vai uma novidade: sempre tem um “chorinho”…) e só pude correr para a casa desses amigos na sequência. Assim, o comentário que você vai encontrar aqui hoje é só sobre o que aconteceu nas últimas (e longas) duas horas finais do evento.

Tentei fazer mais ou menos como da primeira vez, escrevendo enquanto o show transcorria. Naquele ano, porém, sintonizei mais cedo – e, curiosamente tive a impressão de que me diverti mais… Como não consegui ver o Oscar no ano passado (se você se lembra, a transmissão foi no mesmo dia em que eu saí na Sapucaí – coincidência que gerou, inclusive, um dos mais interessantes debates aqui neste espaço), estava mesmo ansioso para reviver a excitação de acompanhar a entrega dos prêmios mais cobiçados do “showbizz”! Apesar de ter ficado satisfeito com o resultado final – os leitores mais atentos devem ser lembrar que “Guerra ao terror” já era meu favorito há semanas – a, digamos, evolução do espetáculo não entusiasmou (Paulo Barros para dirigir em 2011, talvez?). Por quê?

Fiquei ligeiramente decepcionado com os apresentadores – que, pelo menos na metade que eu vi, mal apareceram. E nem o fato de “Guerra ao terror” levar a melhor na geral contra “Avatar” foi suficiente para o suspense toda a noite. Eu estava um pouco cansado, é verdade – com os fusos horários finalmente me deixando em paz, ao mesmo tempo que encerrava um fim de semana intenso de trabalho. Mas será que fui só eu que me senti assim?

Bem, vamos então às impressões – e, como sempre, as suas também são muito bem-vindas (aliás, falando nisso, tivemos um problema técnico desde quinta-feira, que impediu muitas pessoas de enviar seus comentários sobre o post do livro de Patti Smith; a situação já está normalizada!).

0h04 – O primeiro prêmio que vejo sair é o de melhor direção de arte – e vai, claro, para “Avatar”. Sigourney Weaver, vista pela última vez moribunda aos pés de uma árvore sagrada em Pandora, ressuscita num vibrante vestido vermelho, como que para declarar que aquele tom de azul na’vi é “tão 2009”…

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0h09 – Sou “apresentado” (tardiamente, eu sei) aos mestres de cerimônia da noite: Steve Martin e Alec Baldwin. E a primeira gracinha que ouço é um trocadilho com as palavras “whore” (um sinônimo de “prostituta”, em inglês) e “horses” (“cavalos”). Intraduzível para o português e não muito engraçada. Um close em Keanu Reeves na platéia deixa claro que ele não entendeu bem a piada, mas seu desconforto parecia menor do que o que Sarah Jessica Parker – ao lado de Tom Ford – quase estrangulada por seu vestido (ela chegou a colocar a mão no pescoço!), ao anunciar o Oscar de melhor figurino (“ Young Victoria”). Sandy Powell, a vencedora, faz gracinha simpática sobre o fato ter ganho a terceira estatueta, mas nem isso ajudou Tom Ford a relaxar. Toda a trupe – menos a vencedora – sai duríssima do palco. Reparo pela primeira vez no cenário… Pandora?

0h12 – Mais confortável que Sarah Jessica Parker, num vestido que dava a impressão de que duas maçãs substituíam seus seios (um forte candidato às listas de mais mal-vestidas), Charlize Theron apresenta um dos 10 filmes (novidade este ano) que estão concorrendo ao prêmio principal – “Preciosa” . Então é assim que a coisa vai funcionar este ano… Interessante…

0h19 – Com muita propriedade – apesar de não passarem nem perto de uma indicação para o Oscar –, Kristen Stewart e Taylor Lautner apresentam uma pequena montagem de tributo aos filmes que nos fizeram ter medo nos cinemas (nem todos – vale notar – podiam ser classificados como “filmes de terror”). Boa seleção, mas poderiam ter incluído também momentos bem apavorantes de cerimônias de Oscars antigos – alguém lembra de David Letterman em 1995 (“Uma… Oprah…”). E um close de Quentin Tarantino na platéia no final da sequência de caras de monstros horripilantes me pareceu extremamente maldoso da parte do diretor de TV…

0h25 – Anna Kendrick e Zac Efron anunciam “Guerra ao terror” como o vencedor da melhor edição de som (curiosamente li há poucos dias um artigo na revista do “The New York Times” defendendo essa vitória, que me fez entender melhor o que significa essa categoria). A cena daquele “desarmador” de bombas (Jeremy Renner) tentando descobrir um detonador num carro abandonado me vem à cabeça…

0h28 – Prêmios técnicos (entregues em uma cerimônia separada). Acho que podemos “adivinhar” que “Avatar” ganhou quase tudo, certo? Boa hora para ir ao banheiro…

travolta_reuters0h29 – John Travolta apresenta “Bastardos inglórios”. Se você estava achando Alec Baldwin levemente desconfortável no seu smoking apertado, como definir então John Travolta, esturricado em seu “costume”? Antes do “break” comercial, mais uma boa panorâmica do cenário nos ajuda a concluir que estamos definitivamente em Pandora!

0h35 – Sandra Bullock entra para anunciar o Oscar de melhor fotografia com cara de quem vai ganhar o de melhor atriz. E mandou bem. Só achei estranho que para uma categoria dessas, nenhuma imagem foi mostrada – ela leu os indicados “a seco”! Será que já estão cortando o tempo da cerimônia? O Oscar vai, claro, para “Avatar”. Mario Fiore agradece em várias línguas – mas não em na’vi. Que indelicadeza…

0h37 – Demi Moore chega elegante para apresentar vídeo em homenagem aos artistas e pessoas de cinema que morreram no último ano. Como ela disse, “um tributo aos que perdemos” – aliás, ela poderia estar falando das suas expressões faciais… Michael Jackson estava na seleção de imagens (apresentada num telão enquanto James Taylor cantava ao vivo). Farrah Fawcett não… Mundo estranho…

0h45 – Voltando dos comerciais, vemos silhuetas do que parecem ser bailarinos posicionados no palco. Medo! Deve vir um número musical por aí… E, com efeito, lá estavam eles “ilustrando” as trilhas indicadas – apesar de eu ter tido a impressão que era uma coreografia só… e chupada de “West side story”. Jennifer Lopez anuncia o vencedor (“Up”) e quase dá uma rasteira em Sam Worthington (“Avatar”) com a lateral de seu vestido.

0h54 – Oscar de efeitos especiais. Que suspense… E quando sai o resultado… fico “chocado”! “Avatar”! E eu tinha tantas esperanças para “Distrito 9”… Valeu pelo discurso de agradecimento, quando Richard Baneham disse algo como: “O mundo em que vivemos é tão incrível como o que criamos para você”. Fofo…

0h57 – “Amor sem escalas” é apresentado como indicado ao prêmio principal por Jason Bateman. Uma hora de Oscar já para mim e nada me entusiasmou até agora… Na verdade, estou achando chatíssimo… Cadê Steve Martin e Alec Baldwin? Mais, por favor!

1h01 – Matt Damon anuncia os indicados a melhor documentário – aqueles filmes que antigamente a gente nunca tinha chance de ver, fora o raro “cinema de arte”, e hoje a gente consegue conferir no YouTube… Ao mostrar o vencedor – o diretor de “The cove” – achei que vi Lady Gaga na platéia, mas eu já devia estar delirando… (Se bem que seria engraçado imaginar o que Lady Gaga seria capaz de fazer no Oscar…).

1h06 – O diretor Tyler Perry me fez dar a primeira risada da noite (lembrando que não vi as participações de Tina Fey com Robert Downey Jr nem Ben Stiller de na’vi!). Já começou bem fazendo uma auto-ironia pelo fato de estar lá apresentando o Oscar pela primeira (e provavelmente única) vez! Depois chamou uma cena hilária de bastidor com Baldwin e Martin envelopados num “snuggie” (um horroroso cobertor para vestir que virou mania há dois invernos nos Estados Unidos). Genuinamente engraçado. Tudo isso para falar da melhor edição – prêmio que foi, claro, para “Guerra ao terror” (que a essa altura, mesmo não tendo visto tudo, tenho a sensação de que já ganhou mais coisas que “Avatar”…).

1h09 – Keanu Reeves com cara de quem ainda estava tentando entender aquela piada dos apresentadores de mais de uma hora atrás- sobre “whores/horses”, surge para apresentar o próprio “Guerra ao terror” como indicado ao prêmio principal da noite.

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1h14 – Finalmente uma dupla inspirada! Pedro Almodóvar (mal disfarçando o nervosismo, mas de um jeito simpático) e Quentin Tarantino trazem os indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Viva Argentina! Segundo prêmio para o país e sexta indicação, conforme anunciado por aquela locutora histérica – como que para pirraçar os brasileiros, que ficam atrás tanto num quesito quanto no outro… Alguém ouviu o diretor de “O segredo dos meus olhos” gritar “A los hermanos de Chile!”? Será que foi ele mesmo?

1h19 – Kathy Bates apresenta “Avatar” como concorrente ao prêmio principal. Teste severo para o sono que já começa a se fazer sentir…

1h24 – A fórmula do ano passado foi tão elogiada que a produção a repetiu este ano. Para anunciar os indicados a melhor ator (e, mais tarde, atriz), colegas que já trabalharam com eles fazem pequenas eulogias. A escalação – tanto de indicados como de “amigos” foi ótima (aliás, quando eu ficar mais grisalho – algo que deve acontecer em questão de semanas – vou fazer um corte como esse de George Clooney!). Começou bem com a escolha de Michelle Pfeiffer para falar de Jeff Bridges (estava deslumbrante… me lembrei dela numa capa da revista “Esquire” de 1989 que dizia: “Tudo que Michelle Pfeiffer precisa é… nada!”. Mas eu, claro, divago). Melhor que isso, só Julianne Moore elogiando Colin Firth. Kate Winslet entra enfim e – em tom gelado (credo!) – anuncia o prêmio para Bridges, no filme “Coração louco” (que não vou ver pelas mesmas razões que não vi “O lutador” com Mickey Rourke no ano passado – e que são elaboradas demais para eu me alongar aqui nelas). Como um bônus para quem já aguentou mais de três horas e meia de cerimônia, Jeff Bridges nos brinda com o discurso de agradecimento mais chato da noite. Onde está aquela orquestra quando mais precisamos dela?

1h39 – O mesmo ritual para as atrizes… Forrest Whitaker apresenta Sandra Bullock cheio de carinho – e convincente! Peter Sarsgaard faz uma piada feliz – ainda que em tom de “spoiler” para quem não viu o sensacional “Educação” – para falar de Carey Mulligan. E Oprah – sempre ela! – emocionou todo mundo ao descrever o “sonho americano” de Gabourey Sidibe. Mas no final o Oscar foi (você também percebeu que este ano muito mais gente usou a expressão “and the winner is…”, do que “and the Oscar goes to…”?) para Sandra Bullock – anunciado por Sean Penn. Sandra, aliás, verte as primeiras lágrimas que não eram de crocodilo da noite (pelo menos entre as participações que eu vi passar pelo palco).

1h52 – Barbra Streisand?? Como assim?? Quem disse que o Oscar não tem mais surpresas?? Já era, claro, uma forte indicação de que o prêmio de melhor diretor iria para uma mulher – a única concorrendo… “E chegou a hora”, disse Barbra quase sem disfarçar o entusiasmo. Foi um discurso emocionado de Kathryn Bigelow – e deu até para ver de relance, James Cameron (ex-marido e concorrente principal na premiação) com uma cara de satisfação cínica na platéia, como que pensando: “pode ficar com esse que o próximo é meu”…

1h58 – No entanto, Tom Hanks entrou e anunciou o Oscar de melhor filme tão depressa que acho que era para James Cameron não ter nem tempo de reagir à derrota. Eu mesmo, escrevendo o texto do parágrafo anterior, nem vi o anúncio – só ouvi! Bigelow volta mais emocionada ainda ao microfone – e foi engraçado ver o trio de atores do vencedor “Guerra ao terror” fazendo figuração ali atrás durante o discurso dela (uma “galera” bem menor, diga-se, do que aquela que invadiu o palco no ano passado para comemorar a vitória de “Quem quer ser um milionário?”).

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2h02 – Como se tivessem uma arma apontada para eles dos bastidores do Kodak Theater por causa da duração da cerimônia, Steve Martin fecha com a melhor piada da noite: “o show está tão longo que Avatar agora se passa no passado!”. Procurei para ver se James Cameron estava rindo, mas não o encontrei…

Fotos: Associated Press e Reuters

‘Ninguém me esperava. Tudo me aguardava’

qui, 04/03/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

just_kidsAcho que exagerei um pouco, no último post, na escolha da passagem para ilustrar o livro que estou terminando de ler. “Just kids” é o relato de Patti Smith sobre sua educação e evolução artística junto com seu então companheiro Robert Mapplethorpe, na Nova York do final dos anos 60, meados dos anos 70. Patti Smith – sempre é bom refrescar a memória – é uma das artistas mais influentes do rock americano deste período – seu álbum “Horses”, de 1975 é um indisputável clássico. Mapplethorpe é simplesmente um dos fotógrafos mais importantes do final do século 20, criador de um estilo único – imitado até hoje em inúmeras imagens do nosso saturado mundo ilustrado…

Os dois fizeram, durante muito tempo, um casal dos mais inspiradores do cenário alternativo americano. E a histórias desses dois heróis do “underground”, contada em primeira pessoa por ela, é das coisas mais emocionantes e motivadoras que eu li no últimos tempos. Talvez por isso, insisto, a passagem que escolhi para o post anterior não tenha sido a mais feliz. A própria Patti Smith, referindo-se ao curto período em que cuidou de Mapplethorpe, doente num dos quartos fétidos hotel Allerton, admite que “aqueles dias marcaram o ponto mais baixo da nossa vida em comum”…

Por isso, para “começar de novo”, e introduzir o assunto de hoje – que é justamente este livro -, aqui vai um trecho bem mais, hum, “pra cima” (na minha sempre tradução apressada, uma vez que o livro ainda foi lançado no Brasil). O ano é 1967:

“Num dia de veranico, nos vestimos com nossas coisas favoritas, eu com minhas sandálias ‘beatnik’ e minhas echarpes cruas, e Robert com suas contas ‘hippies’ e seu colete de pele de carneiro. Pegamos o metro para o oeste da rua 4 e passamos a tarde em Washington Square. Tomamos café de uma garrafa térmica, vimos as correntes de turistas, chapados, e músicos de rua. Revolucionários agitados distribuíam panfletos anti-guerra. Jogadores de xadrez atraíam uma platéia toda própria. Todos coexistiam no mesmo zumbido de argumentos verbais, bongos e cachorros latindo.

Nós estávamos andando em direção da fonte, o epicentro das atividades, quando um casal mais velho parou e nos observou descaradamente. Robert gostava de chamar a atenção, e de maneira afetuosa apertou minha mão.

‘Olhe, tire uma foto deles’, disse a mulher ao seu marido confuso, ‘Acho que eles são artistas.’

‘Ah, vamos em frente’, ele deu os ombros. ‘São apenas garotos’.”

É essa passagem que dá título ao livro de Patti Smith (”Just kids”, “apenas garotos” – ou “apenas moleques”, como eu citei no último post). E é o momento seminal do livro, quando você percebe que os grandes artistas que ambos seriam, naquela tarde em Nova York, mesmo com todas suas ambições já desenhadas, não passavam de dois garotos, dois jovens namorando sem o menor compromisso com nada…

Esse – vamos chamar de – “período de inocência”, que só é mesmo possível experimentar aos 20 anos, inevitavelmente me remeteu a outras lembranças. Entre outras coisas, aos 20 eu terminava duas faculdades, não tinha o compromisso de seguir nenhuma das carreiras em que me formava, começava um percurso como bailarino – e, com apenas um punhado de países visitados no esquema “mochilão”, a glória questionável de ter dado três voltas ao mundo ainda estava décadas adiante de mim. Eu era também “um garoto”, com um monte de ambições (mais ou menos artísticas), nenhum “plano infalível” para realizá-las, mas com uma perversa esperança de que as coisas iam dar certo…

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Boa parte das pessoas que me leem aqui está exatamente nessa faixa – o que me deixa extremamente envaidecido – e talvez não se dê conta de que esteja passando por isso (aproveitem!). Outros tantos ainda estão por chegar nela – atenção! Tudo ao seu tempo. E uma grande parte, desconfio, já passou dela, mas sabe muito bem que sensação é essa que “peguei emprestada” do livro de Patti Smith…

Quase tudo que pensamos quando temos essa idade – e a leitura de “Just kids” confirma ainda mais isso – tem um peso que julgamos inadvertidamente como definitivo, decisivo para o resto de nossas vidas. As mais corriqueiras escolhas – que trabalho temporário escolher? – e as mais cruciais decisões – achei mesmo o cara ou a menina da minha vida? – nos impõem tamanha gravidade que tolamente achamos que vamos carregar suas consequências para todo o sempre. Bobagens, óbvio, de uma  juventude claudicante. Mas alguma coisa, claro, sempre fica do que acreditamos nessa idade – e no caso desse casal em questão, o mais bonito resíduo do encontro deles foi o compromisso de um nunca abandonar o outro…

A trajetória de Smith e Mapplethorpe – de “mulambos” vagabundos a artistas de repercussão internacional – fala volumes sobre esse contraste cruel entre o que aspiramos aos 20 anos e o que a vida vai fazer disso algum tempo depois. Como ela escreve logo no início de “Just kids”, no momento em que sai da casa de seus pais, no interior, para Nova York:  “Ninguém me esperava. Tudo me aguardava”. Eu não saberia colocar melhor a tradução desse momento único de transição pessoal pelo qual todos nós passamos.

Até Patti Smith virar “a” Patti Smith e Robert Mapplethorpe tornar-se “o” Robert Mapplethorpe, os dois viveriam noites de miséria no tal hotel Allerton; madrugadas insanas no hotel Chelsea; dias famintos em Conney Island (onde foi tirada a inocente foto da capa do livro na edição americana); e um amor imenso, incomensurável, que – somos obrigados a suspeitar depois da leitura do livro – dura até hoje, quase 21 anos da morte do próprio Mapplethorpe.

Importante como ela foi, a arte de Smith é hoje para um público mais específico. Amantes desse período do rock têm “Horses” como uma espécie de oráculo – uma reputação mais que merecida. Sua poesia, ainda mais para um público que não é confortável com o inglês, é ainda mais “difícil” sem a música para acompanhar. E seu trabalho como artista plástica é ainda mais específico. Já o de Mapplethorpe é, até nossos dias, tão onipresente, que não é impossível imaginar que uma geração inteira cresceu vendo as fotos que ele tirou sem saber quem era o autor delas!

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Mas acredite: sempre que você vir um torso – feminino ou masculino – nu, com um tratamento como se fosse um detalhe de um antigo mármore grego, ali tem o dedo desse grande fotógrafo. Que, aliás, levou um tempo para descobri que seu verdadeiro talento era com uma câmera na mão – e não com lápis e papel…

Nesse período em que Smith e Mapplethorpe se encontraram, nenhum dos dois sabia “para que lado atirar”. Ela trabalhava numa livraria conceituada na quinta avenida, a Scribner’s (que, numa coincidência pessoal, foi o tema da primeira reportagem que fiz quando fui morar em Nova York, justamente sobre seu fechamento); ele fazendo bicos arrumando vitrines de loja de brinquedo e até de mudanças. Ela fascinada com Rimbaud e tudo que vinha da França, curiosa em descobrir a perfeita parceria sexual e o amor ao mesmo tempo; ele sonhando em conectar-se com Andy Warhol, cada vez mais confuso com relação à sua sexualidade e as lembranças de uma infância de influência fortemente católica, desenhando e fazendo colagens sem parar.

Foi só em meados dos anos 70 que ela foi se dedicando cada vez mais a encontrar sons que pudessem acompanhar seus versos; e ele aprendeu a brincar com uma Polaroid, e, mais tarde, com uma Hasselblad. Na capa de “Horses”, os dois finalmente eram apresentados juntos para o grande público. Dali em diante, o curioso mantra de Patti Smith quando saiu de casa sofreria uma perversa alteração: agora, todo mundo esperava pelo que eles tinham a mostrar, e nenhum deles tinha idéia do que os aguardava…

Ela foi ficando cada vez mais cultuada – especialmente no mundo musical, e apesar de nunca ter gravado nada que pudesse ser considerado tão poderoso como “Horses” (se bem que sua versão para o hino do Nirvana, “Smells like teen spirit” – gravada, claro, bem adiante na sua carreira -, é uma das melhores versões que a história do rock já registrou!).

Ele, depois de criar um conjunto de obra reverenciado não só no mundo artístico, como assimilado pela cultura pop e da moda – e isso a custa de imagens mais que ousadas, como as que ilustram este texto de hoje -, morreu em 1989 em consequência da Aids. E, pela força de seu trabalho – e mais um episódio polêmico envolvendo suas fotos numa retrospectiva póstuma -, ficou ainda mais conhecido do que em vida.

Vale a pena me alongar um pouco mais para falar desse desastrado – e culturalmente relevante – episódio. Em 1991, a Concoran Gallery, em Washington, iria expor parte de seus trabalhos recentes – que estampavam imagens explicitamente sexuais sem cerimônia. Quando o conselho do museu – e mais alguns cínicos moralistas membros do congresso americano – descobriram que “tamanha indecência” seria custeada em parte com dinheiro público, um grande debate se instaurou sobre o papel do governo em “divulgar” uma arte tão… “degenerada”! Depois de longa discussão, que dominou os círculos intelectuais americanos (e mundiais), o tiro saiu deliciosamente pela culatra. As fotos foram expostas em outro local, a curiosidade gerada pela polêmica atraiu multidões… e pronto! Mapplethorpe, com todo seu imaginário que redefiniu beleza e pornografia, havia se tornado um ícone contemporâneo!

(Seria uma delícia – se tivéssemos tempo, mas vejo que este texto já está bem longo – debater um pouco mais sobre as fotos de Mapplethorpe; essas que foram escolhidas para o post de hoje não estão nem entre as mais “chocantes” que o fotógrafo produziu; no entanto, posso visualizar facilmente uma certa categoria de visitante deste espaço – aquela que costuma se esconder atrás de emails anônimos – destilando já sua hipocrisia, não muito diferente daquela dos políticos americanos já mencionados na controvérsia da exposição de Washington, para mandar um comentário “horrorizado” com o que viu… mas eu divago…).

Quando soube, no meio da minha última viagem, que Patti Smith tinha escrito esse livro, fiquei maluco para adquiri-lo o mais rápido possível. E, por sorte, quando passei numa escala por Chicago, a caminho do Brasil no fim-de-semana passado, e encontrei “Just kids” numa livraria de aeroporto, vibrei! Driblando os fusos horários que me maltratam desde sábado, fui devorando cada página – e agora torço para que sua edição em português não demore a sair. Porque essa é a leitura que eu mais recomendo a você neste momento.

Eu posso até não ter mais 20 anos (aliás, entro no meu “inferno astral” da regressiva para os 47 na semana que vem!). Mas eu sei muito bem o que é sentir a força criativa que leva a gente adiante nessa idade. E agora, com esse empurrãozinho de Patti Smith, estou pronto para retomar esse espírito…

Coisas estranhas

seg, 01/03/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

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Desde que passei por Tóquio em 2007, gosto de contar que na Tower Records de lá – provavelmente o último “dinossauro” da era mesozóica fonográfica, quando as grandes lojas de disco ainda faziam parte da paisagem das grandes cidades – encontrei uma seção que não havia visto em nenhum outro lugar do mundo. Rock, Jazz, Clássico, Blues – todas essas categorias musicais estavam lá, inclusive a já conhecida, mas nem por isso menos curiosa “J-pop”, reservada para os ultra-populares artistas locais (sempre pensei que no Brasil a gente poderia ter um “B-pop”, apesar do risco de alguns confundirem com “bebop” – mas eu divago…). Porém, ali no sexto andar (sim, a loja tem um sexto andar – aliás, são sete no total!), encontrei uma rara placa escrita não em japonês mas em inglês, que era auto-explicativa: “weird stuff” – ou “coisas esquisitas”, em português.

Foi uma espécie de revelação. Ali, reunidos de maneira bastante idiossincrática, encontrei bizarrices de toda sorte – de um disco de “fusion” de um baterista alemão com uma orquestra de gamelões de Bali, a uma coletânea da mais famosa cantora de jingles no Japão dos anos 60, Fusako Amachi (que inaugurou a primeira lista de “melhores discos que você não ouviu” deste blog). Desde então, sonhava voltar para Tóquio, nem que fosse apenas para dar uma passadinha por essa seção da Tower de Shibuya – o frenético bairro da capital japonesa.

Imagine a minha expectativa, então, quando ficou acertado que Tóquio seria incluída na série de reportagens sobre megacidades que estou fazendo (esclarecendo: se o assunto é “as maiores cidades do mundo”, não tem como escapar dessa, que é a maior de todas; porém, como Tóquio é sempre assunto de várias matérias, ponderamos se valeria a pena enfocar mais uma vez a cidade – e chegamos a conclusão de que é possível, sim, abordar Tóquio de infinitas maneiras diferentes!). Enfim, saindo de Bangladesh (com uma parada estratégica em Bangcoc!), cheguei finalmente com a equipe por lá na noite do último domingo e, contagiado pela energia das ruas, sugeri que aproveitássemos o tempo livre (só gravaríamos no dia seguinte de manhã) para explorar Shibuya.

Meus colegas aprovaram imediatamente – e enquanto eles tentavam registrar toda a loucura que passa por aqueles cruzamentos (sob a luz de inúmeros painéis luminosos que eu, teimosamente insistia em dizer que era um visual “supermoderno”, de onde o filme “Blade runner” tirou sua inspiração, esquecendo-me que essa é uma referência de quase 30 anos atrás!), eu “escapei” para a Tower. E, logo que entrei, corri para procurar onde estaria a placa do “weird stuff” desta vez!

Para minha decepção, não a encontrei em nenhum lugar da loja. Por outro lado, em vários cantos, de vários andares, comecei a ter a sensação de que a seção não existia mais simplesmente porque ela havia se espalhado por todos seus corredores. Talvez excitado demais por estar de volta a esse “templo” – pelo menos para quem, velho como eu, ainda gosta de comprar CDs! -, comecei a ver “coisas estranhas” em cada prateleira. E meu batimento cardíaco começou a se descontrolar.

Olhei no relógio e vi que faltava pouco mais de uma hora para a loja fechar – pouquíssimo tempo para dar conta de tudo que eu queria fuçar. Parti então para uma corrida desenfreada, escutando algumas coisas (em audições-relâmpago!) e selecionando a maioria dos discos que decidi levar apenas pela capa (um método que tem lá seu mérito, como já expus aqui) – uma vez que quase todas as informações poderiam me dar uma pista sobre aqueles artistas estavam sempre, claro, em japonês!

Só algumas horas mais tarde, depois de ficar quase zonzo tentando escolher um lugar para comer ali mesmo em Shibuya (e ter decidido finalmente por um daqueles restaurantes subterrâneos, cheios de atmosfera, com um cardápio impenetrável para turistas não versados no idioma local…), e depois de chegar meio cansado e meio “entusiasmado” com o saquê consumido no nosso primeiro jantar dessa escala no Japão, fui ver direito, ao chegar ao hotel (que começava no vigésimo-quinto andar de um prédio com vista para a torre de Tóquio!), o que comprei – e aí tive a confirmação: estava diante de mais uma pequena coleção de “coisas entranhas”…

Tantas, que ainda não ouvi nem metade. Alguma coisa até consegui colocar no meu iPod ao longo dos dias que restavam da viagem. Mas tendo chegado ao Brasil na tarde de sábado (ligeiramente exausto depois de um vôo de 23 horas – fora as cinco de conexão em Chicago!), direto para o trabalho, não é que eu tive muito tempo livre ultimamente para mergulhar em novos sons… Boa parte dessas aquisições – pode ter certeza – vai passar por aqui, por este blog. Entre as que mais me entusiasmaram de cara, estão uma coletânea de música pop de Goa (“Konkari songs”!) e o relançamento de uma misteriosa cantora tcheca do final dos anos 60, Marta Kubisová (para mais informações “surpreendentes”, visite sua breve página na wikipedia). Mas sei que vou descobrir muito mais coisas, ainda mais interessantes…

Toda essa introdução, no entanto (sim, isso foi uma introdução!), não é exatamente para falar dos “achados” dessa mais recente incursão pela Tower de Shibuya, mas para refletir mais uma vez neste espaço sobre o conceito de “coisas esquisitas”. Desde que escrevi um post com o título de “Música normal”, tenho insistido nessa “tecla”. E quase que estendendo o pensamento da minha última postagem, quero registrar que, mesmo já tendo voltado de viagem – e escrevendo isso do “conforto do meu lar”! – ainda estou tentando entender de que lado do mundo estou… E lembrando desses CDs que trouxe agora, e ainda embalado pela leitura de um livro sensacional que comprei para passar o tempo na escala em Chicago (mais sobre isso daqui a pouco), acabei chegando a uma espécie de resposta preliminar para essa inquietação: estou do lado das coisas esquisitas!

Mas, claro! Afinal, são elas que movem nossas idéias – e são elas que nos inspiram a perceber tudo de maneiras diferentes! Acho que é isso… Quanto mais distante a cultura que visito, quanto mais inesperado o som de um artista, quanto mais inusitada as palavras de um escritor, quanto mais subversivas as cores de um pintor – e quanto mais originais forem seus traços! – mais eu vou me interessar!

Fiquei tão entusiasmado com essa “descoberta”, que venci meu cansaço e vim escrever logo sobre isso (estou ainda sob o efeito de um fuso horário “punk”, de 11 horas para a frente, e meus planos eram contar com sua compreensão e só entregar este post amanhã…). E agora, mais desperto do que nunca (quando meu relógio biológico insiste em me dizer que estou no meio da madrugada, mas a tarde ainda não está nem na metade na janela lá fora), assim que terminar aqui vou retomar a leitura de “Just kids” – o tal livro que comprei no aeroporto de Chicago.

Estava guardando esse tema para mais tarde – afinal, as memórias de Patti Smith (artista, música, poeta, escritora) sobre sua formação artística ao lado de seu então companheiro Robert Mapplethorpe (um dos fotógrafos mais importantes do final do século 20), na Nova York do final dos anos 60 e começo dos anos 70, só pode render muito assunto. Mas aí fiquei pensando em “coisas esquisitas” e não resisti a adiantar um pouco dessa leitura para você – nem que seja como um aperitivo…

“Nós costumávamos rir um do outro, dizendo que eu era uma menina má tentando ser boazinha e ele era um menino bom tentando ser mau”, escreve Patti Smith logo nas primeiras páginas desse livro que não poderia ter um título mais inspirador (“Apenas moleques”, em mais uma tradução apressada). E é esse equilíbrio maluco que ela se dedica a nos contar – nunca sem boas doses de carinho dedicado ao ex-companheiro (que morreu em consequência da Aids, em 1989). E isso é tudo que eu quero ler agora.

Assim, na quinta-feira retomamos a conversa. Agora, porém, peço desculpas pela pressa, mas vou terminar “Just kids”, para escrever sobre ele depois. Mas, “pra não dizer que eu sou ruim” (como diria Kelly Key!), eu deixo aqui um trecho especialmente ilustrativo desse livro fascinante, sobre um período em que o casal dividia um quarto em um hotel, digamos, “alternativo” em Nova York (que ainda não era o Chelsea, para onde eles mudariam mais tarde):

“Felizmente ele dormiu a tarde toda e eu fiquei andando pelos corredores. O lugar estava repleto de drogados e casos perdidos. Hotéis baratos não eram uma novidade para mim. Eu e minha irmã já havíamos ficado num pardieiro de seis andares em Pigalle, mas nosso quarto era limpo, até ‘alto astral’, com uma vista romântica para os telhados de Paris. Não havia nada de romântico nesse lugar, vendo homens seminus tentando encontrar uma veia em membros infestados de feridas. Todas as portas estavam abertas porque estava muito quente, e eu tinha que desviar meus olhos sempre que ia e vinha do banheiro para enxaguar as roupas que eu punha na testa de Robert. Sentia-me como uma criança num cinema tentando esconder tentando não ver a cena do chuveiro em ‘Psicose’. Essa era a imagem que fazia Robert rir.”



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