O grande retrato

seg, 31/08/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Perdão pela tradução meio capenga. Mas preferi colocar em português a expressão que eu queria usar no título de hoje: “the big picture”. Talvez não tenha a mesma força do original – e se você quiser sugerir uma tradução alternativa, fique à vontade –, mas tem a ver com o que eu queria explorar hoje. Mais especificamente com dois bons livros que acabei de ler nesse meu “retiro”. Não foram dias “tranquilos” por aqui, sobretudo agora, quando os participantes de “No Limite” (o programa que estou gravando aqui no litoral do Ceará há mais de um mês) estão todos no mesmo grupo, e as armações, os conchavos, as estratégias – e as traições! –, tudo começa a ficar mais interessante e merece um acompanhamento ainda mais minucioso. Mesmo assim, não deu para escapar: fui fisgado por dois livros incríveis, que recomendo por um motivo inesperado.

Explico: geralmente quando indico uma leitura (e não foram poucas indicações nestes quase três anos de blog), é porque fico totalmente entusiasmado com uma história. Eu vivo de narrativas – é isso inclusive que estamos montando aqui, no dia a dia, com esses participantes de “No Limite” – e quando eu acho uma que me cativa, não resisto. Quero ser levado por ela, quero saber qual é o seu desfecho, quero ser surpreendido pelas viradas na história, quero mergulhar na vida de cada personagem que ela traz (é só dar uma passeada pelo meu arquivo aqui mesmo para conferir como meu entusiasmo vai de Agatha Christie a Ian McEwan ; de Aranvid Adiga a Milton Hatoum; de Will Self a Zadie Smith ). Esses dois livros que li nas últimas semanas, porém, me encantaram de outra maneira: não pela sedução das histórias que estavam sendo contadas, mas pelo painel de fundo delas – não exatamente o local onde elas transcorriam, mas o grande cenário, a grande tela, onde a trama era pintada.

Os livros são “A suíte Elefanta”, de Paul Theroux (editora Alfagarra), e “Vida vadia”, de Richard Price (Companhia das Letras). E vou começar a falar desse para deixar mais claro o que quero dizer quando uso a expressão “grande retrato”.

Se você já ouviu falar alguma coisa sobre Price, você ouviu falar que ele é o grande escritor de diálogos da literatura contemporânea americana. “Vida vadia” – lançado nos Estados Unidos no ano passado e agora com edição em português – só confirma sua reputação. As conversas que seus personagens trocam são afiadas, precisas, divertidas, e reticentes. Seus diálogos são, de fato, tão bons, que sobrevivem à tradução – capazes até de te desanimar quando você depara com aquelas páginas só de longos parágrafos de narração. O leitor, refém desde as primeiras páginas, quer logo voltar para o ritmo frenético das aspas dos personagens. Só pra dar um exemplo, esse é um bate-papo logo no prólogo, entre um policial e um garoto, o primeiro explicando porque ele pediu para o segundo parar o carro:

“Primeiro, tem neon na sua placa.”
“Ah, não fui eu que pus, não. O possante é da minha irmã.”
“Segundo, a janela está muito escura.”
“Bem que eu falei pra ela.”
“Terceiro, você avançou quando já estava amarelo.”
“Pra contornar um carro em fila dupla.”
“Quarto, você está parado na frente de um hidrante.”
“Porque o senhor mandou eu parar.”

Outro exemplo? Já bem adiante na história, é assim que Eric, um dos personagens principais – um yuppie sobrevivente dos anos 90, suspeito de um crime que talvez não tenha cometido – tenta negociar a compra de um pouco de cocaína para fazer um “dinheiro rápido” (quem fala primeiro é Morris, o traficante, que pede mil e duzentos dólares por vinte e oito gramas):
“Ora, quanto é que você estava imaginando?”
“Setecentos.”
“Engraçado.”
“Engraçado?”
Morris contorceu-se num espasmo por causa do pó. “Macacos me mordam, Popeye.”
“O quê?”
“Então mil e cinquenta, e não se fala mais nisso. Hã”, jogando a cabeça para trás como um cavalo.
“Setecentos e cinquenta.”
“Você já me viu puxar carroça?”
“Oitocentos. Menos que isso não dá”, disse Eric, e logo depois: “Quer dizer, mais.”

Price tem esse dom de reproduzir conversas muito autênticas – inclusive nas falhas de comunicação que qualquer um de nós pode escorregar. É o que dá à leitura de “Vida vadia” uma fluência deliciosa. Mas o que me encantou no livro não foi bem isso. Nem foi a história – um crime de rua que leva quase 500 páginas para ser esclarecido de uma maneira para lá de óbvia. Não… O que me deixou fascinado foi o retrato de duas áreas bem específicas de Nova York, o Bronx e o Lower East Side – a mistura imigrante do primeiro e a decadência financeira e cultural da segunda estão vivamente registradas no livro de Price. E foi com isso que eu vibrei!

Honestamente, estava bem pouco interessado em descobrir quem tinha cometido o crime. Não é difícil perceber desde o início, quando um cara é assassinado de madrugada, no meio da rua, que isso é apenas uma desculpa para o autor desfilar um elenco sensacional de personagens tão reais que, mesmo sem ter vivido nesses lugares (morei em outra parte de Nova York em 1989 LINK PARA POST DE 08de01de09) você se sente facilmente íntimo de tudo que está sendo contado. Foi para mergulhar cada vez mais nesse cenário que fui até o final de “Vida vadia” – e estou até agora imaginando o que aconteceu com a vida (inventada) daquelas pessoas depois que eu virei a última página…

Minha imaginação também começou a funcionar freneticamente desde as primeiras palavras de “A suíte Elefanta”, de Paul Theroux:

“Tinham os ombros curvos e a cabeça baixa de quem está de luto, as sombrias criaturas do tamanho de crianças agachadas no acostamento da estrada em declive. Também olhavam todas na mesma direção, como se venerassem em silêncio o poente sujo e apagado do outro lado da cidade sagrada.”

A cena não descreve humanos, mas macacos. O local de tanta reverência é o templo (ou santuário) de Hanuman, em Hanuman Nagar, uma cidadezinha na Índia, perto de um super hotel de luxo, onde um casal de turistas cinqüentões – os Blunden – passam férias sem data para ir embora.

Essa é a primeira história de “Elefanta”, de um total de três novelas apenas superficialmente interligadas – Theroux espalha as tênues pistas de conexão entre as tramas como um esperto exercício para o leitor atento. Voltando a ela, a estadia dos Blunden no hotel alonga-se conforme marido e mulher vão descobrindo (separadamente) as possibilidades sensuais dos funcionários do estabelecimento – indianos, claro. Na segunda história, um executivo americano vê sua ojeriza à Índia transformar-se em encanto (e depois em redenção), depois que ele descobre a prostituição na região do Portal da Índia, em Mumbai. E, na terceira, uma jovem turista americana é estuprada por um indiano e tem que lutar contra uma comunidade inteira em Bangalore, que não quer que ela procure justiça para o crime do qual foi vítima – para, num reverso do bom senso, ela não “prejudicar”a reputação de seu estuprador!

Sou fã de Theroux desde que li, “A costa do Mosquito”, no início dos anos 80. A narrativa delirante – que foi transformada num filme bastante estranho protagonizado por Harrison Ford –, mostra um homem que rejeita a civilização, muda-se com sua família para um lugar da América Central, e cisma de inventar uma máquina de fazer gelo no medo da selva, com resultados desastrosos… Li vários de seus trabalhos – inclusive alguns de não-ficção, como o clássico “O grande bazar ferroviário” – e nunca me decepcionei. Não seria diferente com “A suíte Elefanta”, que, além do autor, já trazia outro motivo para me agradar: a Índia como cenário (leitores assíduos deste blog sabem como sou presa fácil para temas daquele canto do mundo!).

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o assunto que permeia as três histórias: sexo. Justamente porque sou consumidor ávido de romances sobre a Índia, posso garantir que, a não ser pelas surradas referências óbvias de sensualidade em palácios de marajás, sexo nunca é o ponto forte desses livros – o que, aliás, espelha o próprio cotidiano pseudo-pudico dos indianos (basta lembrar que mesmo os mais ousados filmes de Bollywood, apesar de muitos requebros, não têm nem mesmo um beijo na boca!). Em “Elefanta”, porém, o sexo está “na sua cara” – é o pivô de cada narrativa. É ele que faz o casal inglês (cada cônjuge por si) procurar aventuras locais – com terríveis consequências para todos; são prostitutas que tiram o executivo americano do sério e o leva a uma crise de valores; e é o estupro que revela, na terceira história, não só a hipocrisia de uma parte da sociedade indiana que ainda acredita em castas, mas também as tristes consequências de uma juventude que cresce reprimindo sua sensualidade. Não deixa de ser curioso que esses temas tenham sido tratados não por um autor indiano, mas americano…

Mas mais interessante que esse aspecto, para mim, é a própria Índia que serve de pano de fundo para as três histórias. Da sociedade retrógrada que defende a honra de um estuprador ao “call center” moderno de Bangalore; de medicina aiurvédica às tensões entre hindus e muçulmanos; das modernas salas de reunião perto do hotel Taj Mahal aos fétidos quartos de bordel em Mumbai; do “ashram” (lugar de retiro espiritual) mais zen à rua comercial mais movimentada – aquela sociedade, aquele país, aparece não como um clichê exótico, mas como um lugar que você poderia, se não morar, no mínimo desejar correr o risco de passar um tempo por lá!

A Índia de “A suíte Elefanta” – assim como a Nova York de “Vida vadia” – é tão viva, tão vibrante, tão real, que praticamente qualquer história que você quiser contar que aconteceu por lá vai ser interessante. Porém, quando quem usa esses cenários são dois mestres como Theroux e Price, aí sim, você tem dois livros fascinantes.

Perdas e ganhos

qui, 27/08/09
por Zeca Camargo |
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“Os normais 2” estréia amanhã em centenas de salas pelo Brasil. Não vou ver – pelo menos não tão cedo. Também estréia “Anticristo”, de Lars Von Trier – se bem que (tenho certeza) em bem menos cinemas. Também não vou ver – não por enquanto… Na verdade, na melhor das hipóteses, só vou ver esses dois filmes daqui a um mês, já que a grande final de “No Limite” – programa que estou gravando há exatos 30 dias no litoral do Ceará – está prevista para dia 27 de setembro! Insaciável por cultura pop como sou – um traço da minha personalidade que você, que me acompanha aqui há quase três anos, conhece muito bem –, a distância de coisas simples como um sessão de cinema (isto é, simples para quem vive a rotina cultural das grandes cidades) tem se mostrado uma bela provação.

Informado (pela internet, que chega aqui em ondas irregulares) dessas estréias – e de tantas outras tentações culturais – parei para refletir um pouco sobre a falta que elas estão me fazendo, uma vez que estou aqui, longe dessas coisas, nas locações do programa. Eu sei… Tinha planejado dar continuidade ao assunto do último post – escrevendo sobre lugares reais e imaginários, para onde a literatura tem o poder de nos transportar. Mas eu ainda não consegui acabar de ler a terceira parte de um livro que estou adorando – e que tem tudo a ver com esse assunto que quero desenvolver (chama-se “ A suíte Elefanta”, de Paul Theroux – mas mais sobre ele na segunda-feira). Assim, vou aproveitar o espaço de hoje para dividir com você minha frustração de – pela primeira vez em muito tempo – não poder ter acesso imediato a coisas que são como um combustível para mim: produtos culturais.

Claro que aqui comigo tenho meus livros – um bom lote que foi inclusive enriquecido com uma rápida passada em Fortaleza, na quarta-feira passada, quando gravamos com os participantes de “No Limite” num parque aquático perto da capital. Trouxe também alguns DVDs, mas a maioria deles é composta não novidades, mas de filmes que eu já havia comprado meses atrás e não tinha encontrado tempo para assistir (aliás, doce ilusão a minha de que eu teria mais tempo aqui… dos mais de 30 que trouxe, vi, por enquanto, apenas cinco!). E consegui carregar boa parte dos CD que comprei nas viagens recentes dentro do meu laptop – Dirty Projectors está em alta rotação no meu quarto, bem como uma coletânea sensacional que descobri de música pop dos anos 60 nos países africanos de língua portuguesa, “Cazumbi: african sixties garage, volume 1 – Garage rock, surf and pscyh howlers, from the vaults of african colonies” (altamente recomendado, se você, como eu, aprecia esquisitices…).

Mas… e as novidades?

Sim, são elas que fazem nossa curiosidade ir adiante, descobrir novos artistas, novos sons, novas letras, novas imagens, novas histórias. Daqui de onde escrevo, envolvido por um clima invernal nunca abaixo dos trinta graus centigrados – e gravando todos os dias! – passo longe delas, das novidades. E vendo que elas chegam – quando pararam de chegar? – aos lugares com mais canais de distribuição de cultura (justamente, cinemas, livrarias etc.), fico com uma estranha sensação de que estou perdendo alguma coisa… Será? E será que estou ganhando alguma coisa em troca? Vamos fazer um breve balanço – começando pelas perdas…

No cinema, além de “ Os normais 2”  e “Anticristo”, estou deixando de ver coisas que estava curioso para conferir. Como “ À deriva”, de Heitor Dahlia; “Arraste-me para o inferno”, de Sam Raimi; “Se beber, não case”, de Todd Philips; e “3 macacos”, de Nuri Bilge Ceylan). Você – que talvez tenha assistido a um ou mais desses títulos (se não  a todos!) – pode até discordar, mas tenho a impressão de que me divertiria, respectivamente, com um trabalho instigante e com boas atuações; um belo filme de terror, como já não vejo há um bom tempo; uma boa comédia, meio absurda, mas sem nenhuma pretensão; e um estranho filme intimista… (se você concordar comigo, ou mesmo discordar, e quiser me torturar me lembrando da distância que eu estou de uma sala escura com ar condicionado, pode me mandar a opinião sobre esses recentes lançamentos…).

E, como essa minha ausência dos centros urbanos vai se prolongar pelas próximas semanas, acho que vou perder até possíveis estréias, como “District 9”, “Up”, “Inglorious basterds”, “Public enemies”, “Taking Woodstock” – e o que mais vier…

Mas não é só o cinema que me faz falta… Na TV a cabo, por exemplo, deixei os episódios finais da segunda temporada de “ Em terapia” no meu gravador digital sem assistir. E “Dexter” já está na terceira temporada… E ainda que eu tenha encomendado vários livros e CDs pela internet (daqui mesmo, quando as conexões estão a favor…), fico ligeiramente melancólico de imaginar que só vou poder aproveitar tudo isso quando voltar – já quase em outubro.

Segue uma lista rápida do que deve estar chegando lá em casa – livros primeiro:

- “The anthologist”, de Nicholson Baker, um dos meus escritores americanos favoritos, recentemente citado aqui neste blog.

- “Bright-sided”, de Barbara Ehreinreich, sobre os problemas com a irritante tendência dos americanos em achar que tudo vai dar certo (um dos títulos que eu estou mais curioso para ler!)

- “Spy x spy”, uma reedição dos meus quadrinhos favoritos dos “tempos de ouro” da revista “Mad”
- “Nocturnes”, de Kazuo Ishiguro. Desde “Não me abandones jamais”, eu espero ansiosamente um novo trabalho desse escritor fantástico – que agora vem com uma coleção de contos.
- “This is where I leave you”, de Jonathan Tropper, um escritor que está “abaixo do radar” já há algum tempo e que deve estourar agora com esse romance que está sendo comparado ao clássico moderno “As correções”, de Jonathan Franzen.

Agora, os CDs (mas antes, uma explicação: estou sem crédito na loja da iTunes – geralmente colocado por uma amiga que mora em Nova York; assim, dependo mesmo do bom e velho CD para conferir algumas novidades musicais; albuns esses que, só lembrando, já estão encomendados e chegando a qualquer momento num endereço a alguns milhares de quilômetros de onde estou agora…):

- “Cazumbi 2” – sim, já saiu (imagino que em função do sucesso do volume 1!)
- “See mystery lights”, Yacht – aparentemente uma esperança no gênero “dance”
- “Si para usted”, vários artistas – pop cubano dos anos 70
- “Dirty frech psychdelics”, vários artistas – se precisar tradução: faixas psicodélicas francesas “sujas”…
- “Love comes close”, Cold cave – aparentemente, as canções pop mais perfeitas do ano
- “History of”, The Units – nostalgia “synth-pop”… delícia!

Para preencher esse hiato, ainda bem que existe Beck – sempre ele! Você já ouviu falar na versão que ele fez do álbum (inteiro) do Velvet Underground & Nico? Pois é… Está disponível online (e em breve será comentada aqui).

Como você vê, a lista de “perdas” é grande. Mas e a de “ganhos”? Como já descrevi, estou aqui com meus DVDs (velhos), os álbuns que consegui colocar no meu laptop, e alguns livros que estão de fato me fazendo boa companhia. Isso tudo, porém, está apenas cumprindo o papel de me entreter. Tudo isso – em especial, os livros – preenchem uma lacuna importante na minha rotina aqui: os hiatos entre as gravações, as edições, as apresentações ao vivo, e o convívios entre amigos e profissionais que estão juntos nesse projeto comigo. Mas se você quer saber mesmo o que eu tenho ganho fazendo esse “No Limite”, fique comigo por mais um ou dois parágrafos…

Esse isolamento que no princípio me assustou agora só me traz alegrias. Sério! Foi só por causa dele que eu consegui aproveitar duas coisas. Primeiro, os vários momentos de silêncio completo (são horas que passo quieto no meu quarto, sem mesmo querer ver um DVD) que me levam a um balanço pessoal necessário – que eu já devia há tempos a mim mesmo! Não sei exatamente qual o saldo que vou tirar disso – sempre que penso em “balanço”, me lembro daquelas aulas da faculdade de administração de empresas que cursei, onde fui apresentado a um item que se chama “previsão para devedores duvidosos” (será que ainda ensinam isso?), e penso que nomes eu colocaria nessa coluna… Mas enfim, algo de bom deve sair disso.

O segundo “efeito colateral” desse isolamento é uma aguçada reflexão sobre o programa que estou fazendo aqui. A cada desafio que proponho aos participantes, acabo inevitavelmente me envolvendo um pouco mais com eles. Não torço por ninguém – como apresentador, claro, não tenho esse direito. Mas isso não impede que eu reflita sobre o que estou vivendo – e quais as conseqüências disso. Como disse, enfrento isso a cada dia de gravação, mas para deixar mais claro, vou pegar um exemplo especifico. Caso em questão: a prova da imunidade do episódio desta quinta-feira. Como este texto deve ser postado antes de ele ir ao ar, não  confessar que fiquei extremamente emocionado com o desfecho da prova (que era de resistência). Preciso de mais dois parágrafos, pode ser?

Como em qualquer disputa desse tipo, ganha quem agüentar mais tempo num desafio que é sempre – no mínimo – desconfortável. Os primeiros a desistir saem logo, mas conforme o grupo vai diminuindo, os últimos concorrentes tendem a ficar mais tempo – e quando sobram só dois, então, a tortura de assiti-los resistir ao que foi proposto é quase insuportável. Talvez por isso, quando declarei um deles vencedor e ambos finalistas caíram no maior choro, eu e boa parte da equipe também não conseguimos segurar as lagrimas. E por que eles choravam? Por ter ido até seus limites na conquista de uma mera imunidade – que vai garantir uma mera sobrevida no Portal de hoje? Vale mesmo a pena um sofrimento desses por uma causa tão pequena? E será que a causa é tão pequena assim?

Torço para você conferir e me ajudar nessas respostas. São pequenos dramas humanos assim que me anima a cada dia. Essa é uma sensação que provavelmente eu já tinha vivido nas primeiras edições do programa – mas que eu acabei esquecendo. São momentos como esses, que eu coloco na balança como “ganhos”. Estou longe das coisas que gosto e – pior – das pessoas com quem gosto de dividir essas coisas. Mas estou perto de experiências que acho que eu não teria de outra forma, se eu não tivesse o privilégio de apresentar este programa. E, como temos ainda um mês pela frente, algo me diz que o melhor ainda está por vir…

Estranha associação de idéias

seg, 24/08/09
por Zeca Camargo |
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Mais um dia de gravações no litoral do Ceará… No entanto, quando acordamos no último sábado o clima estava um pouco diferente. Ao contrário do que quero dizer quando geralmente uso essa expressão, o clima a que me refiro aqui não tem sentido figurado, tem a ver mesmo com meteorologia. A madrugada foi de chuva – muita chuva –, um fato inédito nessa nossa temporada cearense (que já se aproxima de completar um mês desde que “No Limite” começou). A pior tempestade foi por volta das 5h, mas mesmo nas primeiras horas da manhã o céu ainda estava plúmbeo (uma palavra que gosto de usar sempre que tenho oportunidade – isto é, sempre que as nuvens permitem…). Fomos para a gravação assim mesmo, apostando que a prova que gravaríamos – a da “atiradeira”, que valia imunidade para a tribo que fizesse mais pontos – poderia ficar talvez mais interessante com a chuva que ia e vinha.

Quando chegamos na locação – mais um longínquo canto dessa praia onde a competição se desenrola –, não estava chovendo. Porém, enquanto esperávamos a chegada das tribos (conforme o local, uma delas chega rápido e a outra leva quase o triplo do tempo para aparecer) o tempo mudou algumas vezes, abrindo e fechando. E numa dessas mudanças, quando o incansável  vento desse litoral empurrava mais algumas nuvens sobre as dunas onde aguardávamos, veio um estalo: aquela imagem me lembrava alguma coisa… Fiquei olhando fixo para aquelas sombras desenhando o chão até que minha memória (que, diga-se, nunca está muito do meu lado) revelou o que aquilo me lembrava: “Koyaanisqatsi”.

Se você tem menos de 30 anos, não adianta nem puxar pela lembrança… Este é um filme que fez um barulho enorme no início dos anos 80 (a produção é de 1982), que muito antes de “Earth”, dos estúdios Disney – na verdade, muito antes de Discovery Channel, National Geographic Channel e seus inúmeros imitadores –, veio revolucionar a maneira como a gente vê o mundo.

Como escrevi no título acima, foi uma estranha associação de idéias que vivi no sábado de manhã – mas foi também extremamente recompensadora. Para você que é da minha geração (ou mais velho) e viu o filme (melhor ainda, teve o prazer de assistir a “Koyaanisqatsi” na tela grande de um cinema), talvez você se divirta comigo nessa viagem que tive enquanto esperava as equipes para a prova. Se você é mais novo do que eu e acha que essa é uma palavra que eu acabei de inventar (como qualquer fã do filme sabe bem, na língua “hopi”, falada por uma tribo indígena norte-americana, “koyaanisqatsi” significa “vida maluca”, ou “vida desequilibrada”), convido você assim mesmo para essa rápida visita a um passado não muito distante, quando uma colagem de imagens urbanas e de natureza – em velocidades que não estamos acostumados a vivenciá-las – ainda era capaz de nos fascinar.

Quando, por conta das nuvens do Ceará , lembrei-me de “Koyaanisqatsi”, veio também a lembrança do dia em que assisti a esse filme em São Paulo. Eu ainda estava na faculdade, e a hoje mais que conceituada Mostra de Cinema de São Paulo era algo que ainda ninguém sabia se teria uma próxima edição, mas era também simplesmente o evento do ano para mim – e para meu círculo de amigos. Não havia internet, claro, e as informações sobre os filmes mais disputados eram, no mínimo, desencontradas. Dependíamos de telefones fixos (imagine!) para nos organizar – e de uma tabela de programação que, quase sempre, estava desatualizada no momento em que saía da gráficas (isso incluía o catalogo oficial e as tabelas diárias impressas nos cadernos culturais!). A única certeza que tínhamos era a de que as grandes atrações, sobretudo nas estréias, tinham um endereço certo: o cine Metrópole, no centro da cidade. Foi lá que, sempre na Mostra, assisti a clássicos alternativos que resistem até hoje (como “ O estado das coisas”, de Win Wenders) e outros candidatos a clássicos que os anos tiveram a sabedoria de nos fazer esquecer (como “Liquid Sky”, de Slava Tsukerman – cuja trilha sonora, diga-se, é um dos discos de vinil que, por ter sobrevivido ao tempo melhor que o filme que a originou, eu não consigo jogar fora da minha minguante coleção de “relíquias do passado”). E foi lá  também, no Metrópole, que eu tive o primeiro contato com “Koyaanisqatsi”.

Essa sessões mais concorridas da Mostra eram um evento em si. A logística de chegar mais cedo (sem perder a projeção de um outro filme, digamos, tcheco que você “não podia perder”!) e segurar lugar para um grupo de dez pessoas (que estavam, por sua vez, assistindo a outros filmes “ imperdíveis” da Bulgária, do Vietnã, da Alemanha Oriental – que ainda existia –, do Chile – mas tinha que ser dos anos 60! –, ou ainda alguma coisa experimental da Coréia) era insana. Exatamente porque mais algumas dezenas de pessoas estavam lá com a mesma missão… Como os filmes nunca começavam no horário (será muito diferente hoje?), você tinha tempo de sobra para entrar em diversas discussões acaloradas na disputa pelas melhores poltronas; comparar a sua lista de filmes assistidos com a de outras pessoas para ver quem tinha conseguido ver a produção mais obscura; eventualmente conhecer alguém interessante; e especular – quase sempre blefando com informações que você tinha supostamente colecionado em “revistas especializadas” – sobre o valor artístico da obra que você estava prestes a conferir. E foi envolvido na atmosfera de um frege desses que eu me sentei para assistir “Koyaanisqatsi”.

Oitenta e sete minutos depois, hipnotizado não apenas pelas imagens, mas também pela música de Philip Glass (com a qual eu tinha contato pela primeira vez), me lembro de sair do cine Metrópole mudo. Provavelmente estava procurando alguma coisa “inteligente” para falar para os meus amigos – que também deviam estar com a mesma preocupação (coisas que te atormentam quando você é um universitário de 19 anos…). Mas arrisco interpretar – hoje, com uma certa “distância histórica” – que eu estava mesmo passado com o que acabara de assistir.

Hoje, banhados num mar de imagens do Google Earth, chega a ser ingênuo eu tentar convencer você do impacto que aquelas imagens tiveram sobre mim – e sobre meus amigos, e sobre todo mundo que assistia a “Koyaanisqatsi”. Mas acredite: naquela época, a gente simplesmente ficou sem saber o que falar. Dirigido por Godfrey Reggio, o filme – lembrando que não é difícil você achar trechos dele no youtube – não é nada além do que já descrevi acima: imagens super rápidas ou super lentas acompanhadas pela música propositalmente repetitiva de Glass. Não havia propriamente um enredo, ou uma narrativa formal. Apenas o convite a uma livre associação de imagens. Só que estávamos em 1982 – e tudo tinha cara de novo.

Bombas explodindo. Multidões atravessando ruas, trabalhando em linhas de montagem, aglomerando-se para pegar uma escada rolante (sem dúvida nenhuma, uma das imagens que mais me marcaram). Carros no trânsito de Nova York e Los Angeles. Panorâmicas de prédios gigantescos. Cidades iluminadas na noite. Uma longa tomada de um avião taxiando (em tempo real) com a imagem distorcida pelas ondas de calor que saem da pista. Tanques de guerra. Nuvens (como aqui, de onde escrevo!) passando por grandes paisagens naturais. Diques e usinas. Gente, gente, gente. E a música de Philip Glass 1-2-3-4 1-2-3-4 1-2-3-4-…

Hoje em dia, tem videoclipe (se é que essa ainda é uma forma de expressão relevante…) com muito mais imagens do que “Koyaanisqatsi” inteiro… Mas quando me lembrei da experiência de ver esse filme – e evocado por uma inocente cena matinal – não pude resistir ao impulso de comentar sobre ele hoje aqui. O assunto sobre o qual eu tinha planejado escrever hoje aqui, claro, era outro, mas mudei de rota para dividir com você essa que foi uma das mais importantes referencias visuais da minha geração.

Naquele sábado que começava, enquanto as duas equipes não chegavam, e o sol se revezava com a sombra manchando a areia que cobria o campo da prova, por um momento eu me esqueci da importância da decisão que estava prestes a acontecer – mais uma etapa na saga daqueles participantes para ganhar meio milhão de reais – e fui transportado para uma memória que eu nem lembrava que tinha mais…

De certa maneira isso tem a ver com aquele que seria meu assunto do post de hoje – algo sobre paisagens reais e imaginarias. Mas deixa isso para quinta-feira…

Qual a graça de um homem vestido de mulher?

qui, 20/08/09
por Zeca Camargo |
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Nenhuma. Talvez, se esse alguém tiver essa fantasia (homens, mulheres, não importa), pode ser que essa imagem desperte algum desejo erótico. Mas o simples fato de um homem usar  vestido, peruca e maquiagem (bem ou mal aplicada) não significa muita coisa para mim. Agora, se esse homem for um ator de talento, tudo muda.

Essa introdução um pouco fora do convencional – e mesmo um pouco fora da linha que os posts seguiram depois de a estréia de “No Limite” (sim, este é um texto “No Limite free”, ainda que eu tenha de resisti fortemente ao impulso de comentar o curioso episódio de hoje) – não é gratuita. Quero com ela fazer uma pequena homenagem a um dos melhores comediantes que já assisti no palco (e, depois, na TV) – e que perdemos esta semana: Miguel Magno.

Uma grande estranheza tomou conta de mim quando vi, há apenas alguns dias, a notícia na internet que anunciava a morte de um ator de “Toma lá dá cá”. Primeiro porque, apesar de ter visto várias de suas participações como a Doutora Percy no programa (e me divertido horrores com elas), eu não identificava Miguel – nossa tênue intimidade profissional e minha imensa admiração por seu trabalho (mais sobre essas duas coisas daqui a pouco) me permite tratá-lo pelo primeiro nome – imediatamente como parte daquele elenco impecável. Depois, a estranheza ficou ainda maior: fui aos poucos tomando consciência de que havia perdido alguém que foi uma das maiores referências na formação do meu senso de humor.

Antes de contar como me tornei seu fã, preciso só elaborar um pouco mais aquela introdução acima – sobretudo porque na maioria das atuações que vi de Miguel ele estava vestido de mulher. Insisto: não basta colocar uma saia, blusa com enchimento, peruca e batom – e pronto! Quer exemplos de como essa idéia pode dar errado? Pense em “Vovó… Zona”! 1 & 2! Ok, este é um exemplo um pouco caricato demais… Mas você se lembra de “Para Wong Foo, obrigado por tudo, Julie Newmar”? Patrick Swayze… “in drag” (expressão em inglês que define homens vestidos de mulher)? “No thanks”! John Travolta ficou uma nota abaixo do seu talento na versão para o cinema do musical de sucesso da Broadway “Hairspray!”. Tenho cá minhas dúvidas se Robin Williams fez uma boa Mrs. Doubfire, em “Uma babá quase perfeita”. E não vamos nem falar de Eddie Murphy em “Norbit”…

Felizmente, para cada um desses desastres transformistas, existe uma – ou mais – história(s) de sucesso! Como Dustin Hoffmann, no clássico “Tootsie” (nossa, lá se vão 27 anos!). Ou Tony Curtis e Jack Lemmon (como, respectivamente, “Josephine” e “Daphne”), no ainda mais clássico “Quanto mais quente, melhor” – lançado há exatos 50 anos! A “Bernadette”  de Terence Stamp – em “As aventuras de Priscilla, rainha do deserto” – tinha o equilíbrio perfeito entre drama e comédia. Lembra-se da “mãe de família” interpretada por Nathan Lane em “A gaiola das loucas”? Na televisão, um dos melhores programas humorísticos que já assisti é o extinto “The kids in the hall” – e os melhores esquetes, claro, eram os que eles estavam vestidos de mulher. E ainda tive o prazer de ver na Broadway um dos melhores atores “in drag”: Barry Humphries e sua impagável personagem Dame Edna Everage (que fez até certo sucesso na TV a cabo com seu “talk show”, e pode ser facilmente encontrada no youtube).

Como escrevi há pouco, é tudo uma questão de talento. E já que entramos no teatro – agora sim, estamos chegando mais perto de Miguel Magno! –, quem teve o privilégio de assistir Ney Latorraca e Marco Nanini fazendo “O mistério de Irma Vap” sabe o quanto um homem vestido de mulher (ou, no caso, às vezes de homem e de mulher ao mesmo tempo!) pode ser engraçado. Falando de espetáculos mais recentes, quase tive de ser retirado da platéia quando Marcelo Médici encarnou “Mãe Jatira” na sua peça de (estrondoso) sucesso “Cada um com seus pobrema” – foi um ataque de riso tão, hum, violento, que me fez lembrar justamente de a primeira vez que passei por isso: assistindo Miguel Magno em “Quem tem medo de Itália Fausta?”.

Não me lembro exatamente que ano foi isso, mas deve ter sido no começo dos anos 80 – época em que eu tinha o costume de sair da faculdade na sexta à tarde, ir de ônibus até o Rio de Janeiro assistir três peças de teatro (uma matinê) e voltar no domingo à noite para São Paulo. Numa dessas levadas, num teatro da Gávea, fui parar na platéia de “Itália Fausta” – que, diga-se, já era um sucesso. Foi uma espécie de catarse! Escrita pelo próprio Miguel e por seu parceiro Ricardo de Almeida, era uma colagem de esquetes, divididas em duas partes. A segunda, era um punhado de cenas muito engraçadas – a minha favorita era com as professoras colegiais Fanta Maria e Pandora (mais sobre elas já já) –, que apesar de hilárias, tinham um formato mais convencional. A primeira parte, porém, reunia cenas ainda mais curtas sob o título “Exercícios para atriz e ponto” – e era exatamente isso: Ricardo fazia o ponto teatral, dando as falas em voz baixa para a “atriz”, interpretada por Miguel.

Só de lembrar do nome de alguns deles, já tenho vontade de rir. “Valderez, a professora de inglês” era o mais simples (e um dos mais engraçados): Miguel entrava, apresentava-se para seus alunos (a platéia), e dizia que ia apresentar um novo método para ensinar inglês. Ricardo dava as falas em português e Miguel repetia em inglês. O método chamava-se “mentalização consciente” e, como avisava Valderez , era algo experimental, ainda em testes… Almeida sussurrava: “Mentalização consciente”. Miguel: “Conscious mentalization”. Almeida: “Eu não posso me envolver nessa experiência”. Miguel: “I cannot involve myself in this experience”. Dezenas de vezes, até que… Valderez “recebia o santo” e saia dançando como num terreiro de macumba. Assim, escrito, você pode até desconfiar da graça que a cena tinha, mas eu garanto: o riso vinha – e forte!

Em “Helena abriu a porta”, a confusão partia de uma amiga que ia visitar uma colega de infância, e não era reconhecida – me lembro até hoje de Miguel dizendo algo como: “ O quê? Não toca na minha filha? Não! Eu não sou um raptora!”. Em “Camila vai ao baile”, Miguel (se não me falha a memória) faz o papel de uma adolescente que queria contar ao mundo que teve sua primeira menstruação. Mas a cena mais absurda de todas chamava-se “Aracy caiu na poça”, uma “farsa metafísica” (que muitos talvez tenham visto como parte de um espetáculo que rodou o Brasil chamado “5 x comédia”, com Miguel Magno, Fernanda Torres, Luiz Fernando Guimarães, Deborah Bloch e Diogo Vilela).

Mais do que o texto – que, em sim, já era surreal – o mais engraçado dessa sequência era a interação entre as instruções do ponto e a ação. “Cai na poça”, dizia Ricardo – Miguel caía. “Chafurda na poça”, instruía Ricardo – Miguel chafurdava. “Chafurda mais”, insistia Ricardo – e Miguel… Antes mesmo de dar a primeira fala, a platéia já estava às gargalhadas. E quando Aracy suplicava “Deus, me manda umas empadinhas!”, era um delírio coletivo.

Este mesmo texto é montado até hoje em várias versões – talvez a mais conhecida delas seja uma com o nome de “A bofetada” (da Companhia Baiana de Patifaria). Mas arrisco que nenhuma delas, por mais competente que seja, tenha o mesmo brilho do original de Ricardo de Almeida e Miguel Magno. Depois dessa meu primeiro contato com ela no Rio, a peça estreou temporada em São Paulo, e eu ia toda semana. Não é “força de expressão” – eu ia toda sexta-feira, mesmo!

Na época, claro, eu não trabalhava ainda em televisão (e Miguel era já uma figura conhecida do teatro, sem ainda ter experimentado a TV – onde depois fez também uma bela carreira). Mas fui tantas vezes ver “Itália Fausta”, que acabei sendo reconhecido por Miguel. Explico: na cena com as professoras Fanta Maria e Pandora, havia um número de platéia onde elas (Miguel e Ricardo, claro) convocavam “alunos” (espectadores) para o palco para uma chamada oral. Eu sempre me oferecia para subir lá e, por conhecer a peça de cor, sabia todas as respostas. Uma noite, “impressionada” com minha performance, “Fanta” me cumprimentou. Miguel, com seu inconfundível tique cicioso, disse: “Muito bem, Zeca, tirou nota 10, já passou de ano, nem precisa mais vir às aulas…”. E dando uma piscadinha rápida completou, jogando charme: “Mas… vem sim… Vem?”.

Anos (décadas) depois, quando tanto eu como ele já estávamos na TV, encontrei Miguel num restaurante no Leblon, sentei para comer com ele e contei essa história – da qual ele, claro, não se lembrava, mas nem por isso a escutou com menos carinho. Sem poder homenageá-lo no seu velório (só saio do Ceará no final de setembro!), fiquei com a lembrança desse almoço desde que li sobre sua morte. Anteontem, assisti sua última participação em “Toma lá, dá cá” e fiquei ainda mais saudoso daquele ator que se travestia para criar mulheres que, quem viu, vai dar um belo sorriso – se não uma boa risada – cada vez que se lembrar deles.

Mais ou menos como no novo Portal…

seg, 17/08/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Agora sim, depois de um pequeno “desvio” de percurso para falar sobre “Julha”, quero comentar sobre as trilhas sonoras que estão rolando aqui – e por “aqui”, eu quero dizer, neste canto do litoral do Ceará, onde estamos gravando “No limite”. Antes de mais nada, quero dar uma resposta geral a várias pessoas que mandaram comentários perguntando sobre esta ou aquela música da edição do programa: estamos usando um conjunto de músicas tiradas de várias edições do “Survivor” – programa que deu origem a “No limite”. São faixas autorizadas e já testadas em programas anteriores que passam o clima das competições, das dificuldades, do isolamento e – eventualmente – das comemorações e conquistas que esses participantes vivem em seus dias por aqui. Pelo que apurei, a maior parte delas é de composições originais, mas os mais atentos vão reconhecer aqui e ali um “sucesso” comprovado (fui só eu que reparou naquela prova sonorizada com “Time to pretend”, do MGMT?). Se descobrir mais alguma coisa vou contando…

Mas eu queria falar hoje é de outras trilhas, aquelas que não aparecem no programa, aquelas que me fazem companhia aqui entre gravações e edições, em “penosas” corridas pela praia às 6h da manhã (!), nas vans e carros que pegamos para ir e voltar nos longos trajetos de todos os dias – ou mesmo (já que a memória está fresca, pois isso aconteceu na madrugada deste sábado), no animado palco do Colares Clube, a noite que bomba aqui em Guajiru (Google Earth já!).

É um conjunto, eu diria, um tanto eclético. Vai de “Mulher não trai, mulher se vinga” – na nada sutil interpretação de Aviões do Forró – até a minha mais feliz descoberta recente (para continuar nas referências aéreas) Air France – uma banda que, contrariando as referências, não é francesa, mas sueca, e é a receita mais certeira para encher uma pista às 4h30 da manhã (não no Colares Clube, claro, mas, digamos, no Alley Club, na Barra Funda, em São Paulo).  Por onde começar? Eu mesmo estou dividido – e de mais de uma maneira.

Se depender do que passei a madrugada ouvindo – o tal Colares Clube fica a pouco mais de um quilômetro da pousada onde eu e uma parte da equipe estamos hospedados, mas (talvez por causa do vento do Ceará!) a “sensação acústica” era a de que a festa estava rolando na varanda do meu quarto! – eu deveria começar não só pelos Aviões do Forró, mas também pela versão local do sucesso sertanejo “Chora, me liga” (originalmente de João Bosco e Vinícius, mas agora incluída no repertório de qualquer músico que se apresente na região, inclusive Dorgival Dantas, que pudemos conferir ao vivo, em Flecheiras, há pouco mais de uma semana). Porém, se depender do que o “shuffle” do meu iPod escolheu para tocar hoje na minha mini-maratona pelas areias cearenses, eu deveria começar pelo indescritível álbum “Bitte orca”, da não menos indescritível banda nova-iorquina Dirty Projectors. O que me faz pensar…

Quem dera nossas decisões musicais fossem assim tão simples – e tão compartimentadas. O que mais me encanta na música (tecla esta que eu não me canso de bater) é justamente a capacidade de ela agradar pessoas tão diferentes – ou ainda (e acho isso até mais fascinante) de nosso gosto musical, com raras exceções rabugentas, abrigar sempre mais de um gênero. Explico: você não precisa gostar de todos os tipos de música que existem, mas eu aposto que você gosta de mais de um deles. Já conheci metaleiros que se divertiam com o funk carioca, adolescentes apaixonadas por Avril Lavigne que também curtiam algumas faixas sertanejas, e sei de pelo menos uma turma de baianos que antes de sair na pipoca no carnaval fazem um “esquenta” na casa de um deles com uma trilha bem “lounge”…

Para reforçar essa ideia, vou recorrer a duas listas bem diversas de “artistas que você ainda não ouviu falar” com as quais me deparei recentemente. A primeira foi elaborada pelo antropólogo (e profundo conhecedor do pop – especialmente aquele que está sempre “abaixo do radar”), Hermano Vianna, e apareceu no domingo retrasado num número especial de 5 anos da revista do jornal “O Globo” – um número só de listas “top 5”, do qual, modestamente, digo que também participei, enumerando cinco hotéis incríveis pelo mundo (gostaria de indicar um link aqui para você pesquisar na net, mas, mesmo depois de várias tentativas, não consegui achar na rede para te indicar – a que conferi foi num exemplar que chegou aqui na nossa produção; no entanto, mais abaixo reproduzo todas as dicas de Vianna; as minhas, de hotéis, vamos deixar para um outro momento…). A outra lista foi publicada há alguns dias pelo aqui sempre louvado semanário musical inglês “NME”, e pretende mapear quem está tramando o futuro da música . As duas listas, claro, vieram só aliviar minha distância de novos sons – consequência inevitável do nosso isolamento das gravações de “No Limite”. As duas listas, com um leque de possibilidades vibrantes – e uma boa cota de otimismo e entusiasmo autoral de seus organizadores. As duas, enfim, com coisas boas o suficiente para que eu quisesse dividi-las com vocês. Ou melhor…

Poderia – a exemplo do que faço geralmente neste espaço – fazer uma descrição (não menos autoral) desses sons e dessas bandas e deixar assim. Mas, talvez inspirado nas novas regras do próprio “No limite” – como você talvez tenha acompanhado no episódio deste domingo, a eliminação no Portal agora depende do voto dos companheiros de equipe (o que você me diz do “golpe de mestre” do Marcelo ontem, para escapar da eliminação, sem ter que pedir imunidade? Sim, ele, o mesmo cara que teve gente que riu quando ele escreveu “Julha”…) –, resolvi deixar que você me dissesse, ou melhor, que você escolhesse entre essas duas listas o que vale a pena ouvir.

Todos esses artistas e suas criações você encontra na internet (myspace, youtube, sites oficiais etc.). Como referência, vou apenas citar as cinco sugestões de Vianna e uma seleção das 50 do “NME”, com algumas breves linhas sobre o que achei delas. Mas o veredicto é seu: você é que (até para comprovar minha tese de que ninguém gosta só de um tipo de música!) vai me contar num comentário do que mais gostou – ou, talvez, até já gostava, pois vários desses nomes já fazem barulho (repetindo) “abaixo do radar”. E vale até mandar sugestões que não apareçam em nenhuma delas, mas que você considera uma aposta forte! Como diria o Soft Cell, “entertain me”…

Limpou o espaço de “busca” da sua tela? Então lá vai. Primeiro, a de Hermano Vianna:

- MC Papo – como deixei escapar algo tão pop quanto seu “Radinho de pilha”? Fiquei meio passado que nada menos de 244.577 pessoas chegaram antes de mim no youtube para conferir esse sucesso em ritmo de reggaeton (e imagino que pelo menos dez vezes esse número de pessoas já se divertem com a música há bem mais tempo que eu…).

- Fantasmão – onipresente na Bahia, esse pelo menos eu já conhecia… Pegam uma carona legal num certo “kuduro” angolano (esse é também o nome do maior sucesso deles), mas pelo menos dão o crédito. O povo dança, o povo gosta – o povo raramente erra…

- Bonde do Stronda – quando eu acho que conheço o pop carioca… Apesar de lembrar muito o hip-hop paulistano (heresia!), Stronda é poder no Rio: a faixa “XXT” tem mais de 1 milhão e 200 mil acessos no youtube – e quando eu falei o nome deles para os cariocas que estão aqui comigo na gravação (a maioria da equipe), senti um clima forte…

- Forró do Muído – bem aqui, embaixo do meu nariz (no Ceará) e eu nem percebi… “Tá com medo de amar é?” já é meu “prazer secreto” (tradução apressada para “guilty pleasure”) desde que a ouvi. Comentei com o motorista de uma van que tinha gostado deles e ganhei o CD de graça! Delícia!!!

- Nelson Nascimento – citando Vianna, ele mistura “forró, arrocha, vaneirão e reggaeton”. Quando o locutor anuncia logo na introdução musical “o rei da pizadinha”, lembrei-me na hora da minha coleção de brega que ganhei nas gravações de “No Limite 3”, na ilha do Marajó. Ainda prefiro ela…

Do “The future 50”, no “NME”:

- The XX – como diz o semanário, o som deles não se parece com nada que está sendo feito no pop inglês (e nessa galáxia!). Assino embaixo. Comece ouvindo “Crystalised” para concordar comigo.

- The Knife – curiosa escolha, até porque o primeiro disco deles é de 2001. Conheci a banda (sueca) com o álbum de 2003, “Deep cuts” – e não larguei mais. Parte Jay-Jay Johanson, parte electro-pop anos 80, uma ótima surpresa sempre que o “shuffle” toca isso no iPod

- 30H!3 – mais de 8 milhões de fãs no youtube não podem estar errados? Tive de coferir o vídeo de “Don’t trust me” duas vezes para perceber alguma coisa de “futuro da música”. De Devo a Lady Gaga (que, aliás, também está na lista da “NME”), parece que eles pegam emprestado de todo canto… Melhor artista revelação no próximo VMA da MTV americana? Eu não poria dinheiro nisso…

- The Big Pink – antes de mais nada, o vídeo de “Velvet” conseguiu o raro feito de me prender até o final no youtube. E eu desafio você a não ficar com o ritmo dessa faixa na cabeça muito tempo depois que seus quase quatro minutos e meio terminam. Saudades de Joy Division? Calma… só estou provocando… Mas os caras são bons!

- Michachu – faz tempo que eu ouço falar dessa… hum… criatura – e agora parece que ela está… hum… pronta para o sucesso. Estranho, muito estranho. Mas adorável. “Lips” leva menos de dois minutos para te convencer disso. E “Golden phone” completa o serviço: ouça as duas, e você está fisgado!

- Gaggle – não entendi direito o que é isso. No vídeo que encontrei no youtube, parece um bando de mulheres hippies soltando a voz – ou o coral da sua empresa na festa de fim de ano depois da quinta caipirinha. De qualquer maneira, fiquei bem impressionado.

- Little Boots – escolha meio óbvia? Pense duas vezes antes de levantar o dedo… Se Lady Gaga entrou na seleção, por que não a mocinha? Não está nas minhas preferências – mas eu costumava dizer o mesmo de Lily Allen e olha só o que aconteceu…

- Omar Souleyman – não escolhi fechar essa lista (da lista) com esse artista à toa. É da Síria. Tem mais de 40 anos. Já gravou mais de 500 álbuns. É impossível ficar parado ao ouvir sua música. E se você precisar de mais um motivo para se render a Omar, preste atenção às “meninas” que dançam no palco junto do cantor aos 30 segundos do vídeo de “Leh jani”. E depois aos outros fãs que fazem uma micro-coreografia com os ombros – impassíveis! Caso encerrado.

“Julha”

qui, 13/08/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Mais uma vez estava eu determinado a escrever sobre um assunto – no caso, as trilhas sonoras que estão rolando aqui durante as gravações de “No Limite”, num ponto nem tão remoto assim do litoral do Ceará – quando sou surpreendido por uma vontade de mudar de rumo – consequência, claro, dos eventos que não podemos controlar. Assim, decidi chamar o post de hoje de “Julha” – e se você está acompanhando o programa, sabe bem do que estou falando. Se não está (ou se a palavra acima não lhe traz nenhuma associação), aguarde um momento. Já vou falar dela, mas antes tenho de me alongar mais um pouquinho sobre um tema que talvez tenha ficado pendente na minha postagem anterior: solidão.

Foram muitos os comentários de solidariedade (que queria então agradecer desde já – atenção: para a turma que “adora” meus parênteses, este já é o segundo de hoje, e ainda estamos apenas no segundo parágrafo… você foi avisado!), que muito me reconfortaram. Mas foram muitos também os comentários que (para usar aquela expressão mal traduzida do inglês que eu gosto tanto) “pularam para conclusões” ligeiramente exageradas – na linha “essa sua solidão está influenciando a maneira como você apresenta o programa”, ou “não fique assim, não deixe essa sua tristeza transparecer no seu trabalho” (dois comentários, claro, adaptados de uma junção de vários que foram realmente escritos – a turma dos “parênteses” está contando? Este já é o quarto… e não vou avisar de novo…).

Não quero nem ir muito fundo no assunto, mas tive de fazer essa introdução apenas para lembrar que refletir sobre a solidão não é exatamente a mesma coisa que sentir-se sozinho. No post anterior, achei oportuno unir os prováveis motivos da desistência de duas participantes de “No limite” (Denise e Sibeli), com as reações que um filme bastante peculiar provocaram em mim – falando, claro, de “Moon”, de Duncan Jones. Está certo que dei uma passeada pela minha própria experiência de estar aqui meio que isolado por dois meses. Mas se dei a entender que isso teve um efeito direto sobre mim, por favor, leia de novo o que escrevi.

Reforçando o que disse no blog no dia da estreia – e mesmo em momentos anteriores aqui mesmo neste espaço -, estou no auge da felicidade em poder reviver todas as emoções de um programa tão cultuado como esse. O entusiasmo que antecipava a estreia não apenas se cumpriu nas gravações, como se superou no clima dos bastidores – e acho que isso (talvez porque eu me policiei demais, para não deixar transparecer minha euforia) talvez tenha resultado (reversamente, como expliquei) numa postura mais sóbria em momentos como o Portal de “No limite”. Não acredito muito que essa explicação vá mudar a opinião de quem escreveu – já que, como qualquer trabalho de televisão (qualquer trabalho de cultura, na verdade) está sujeito a inúmeras interpretações e análises de quem o recebe (mais sobre isso daqui a pouco – e sobre “Julha” também!) -, mas o mínimo que posso fazer é deixar clara a minha postura… Quem sabe você não me assiste hoje (dia de Portal!) de maneira diferente. Como dizia São Paulo (ele mesmo, o santo – e uso aqui a citação de Marcus de Azambuja, ex-embaixador do Brasil na França e na Argentina, numa lista de “5 frases inesquecíveis” que ele elaborou para número especial de aniversário de cinco anos da “Revista” do jornal “O Globo”, publicada no último domingo): “A esperança nunca decepciona”.

Já a opinião das outras pessoas…

Vamos falar então de “Julha”. Quem assistiu o episódio de “No limite” de domingo passado viu a cena: ao votar no nome da companheira de equipe que deveria ir para a decisão do público de quem é a próxima pessoa deixar a competição, Marcelo – um gaúcho que é sempre identificado como “domador de cavalos” – não teve dúvidas: escreveu no nome de Julia. Só que não exatamente com essa grafia… Sim, ele escreveu “Julha”- e se você teve a chance de conferir isso, provavelmente viu também minha reação ao abrir o papel com o voto de Marcelo. Estava muito claro no meu rosto (como vi depois) o constrangimento de ter de expor aquele participante daquela maneira.

Eu não tinha muita saída. Pensei em mostrar o papel meio dobrado para a câmera, apenas com as primeiras letras do nome dela – o que já deixaria claro que o voto era para a Julia. Mas achei que isso poderia provocar alguma especulação ainda pior. Assim, com a presença de espírito que sempre é exigida numa transmissão ao vivo, mostrei por inteiro o que Marcelo tinha escrito, mas bem rapidamente – como um flash. Não adiantou, claro. Os comentários começaram a surgir ali mesmo na equipe, logo depois que o programa acabou – e vieram ainda de maneira mais “furiosa” no dia seguinte, nos comentários deste mesmo blog (e olha que não li os que não foram aprovados – como nunca são, conforme os critérios deste espaço – porque esculachavam o participante com palavrões e baixarias, mas sei, pelos moderadores, que eles foram muitos!). Mas não só: colegas de equipe, sempre antenados nas manifestações das redes sociais da internet, me mostravam, sempre num tom semi-indignado, as várias comunidades que se manifestaram sobre o deslize de Marcelo.

Para as patrulhas da internet, foi uma festa! Se às vezes erros meus de digitação (ou, ainda que mais raramente, um deslize gramatical genuíno) são recebidos com ameaças de penas só aplicáveis em estado de sítio, imagine o que não estavam a dizer do pobre Marcelo… Incomodado com a reação, fui buscar aqui mesmo na internet, algum consolo: resgatei três textos que tinha lido (dois recentes e um bem antigo – de 1991!) e achei que tinha a ver introduzi-los nessa discussão com você.

O primeiro deles – justamente o mais antigo – foi publicado na revista “Time” há exatos 18 anos. Era um artigo de capa, sobre a tendência de então da sociedade americana dividir-se em “busybodies” e “crybabies”. A primeira parte do artigo descrevia os “ocupadinhos” (numa tradução apressada): gente que não contente em se ocupar da sua vida, quer também controlar a dos outros, criando regras (quando não leis) que regulam o comportamento de terceiros mesmo no que diz respeito a escolhas de estilo de vida (já retomo o assunto – já que é isso que tem a ver com a “Julha”…). A segunda parte foca nos “bebês-chorões” – gente que acha que está sempre sendo injustiçada, e que seus direitos são sempre maiores que o da pessoa que, no seu ponto de vista unilateral, a está incomodando. Uma terceira parte do artigo faz um balanço entre os dois grupos, que estariam, segundo a revista, indo contra o espírito americano da tolerância.

Foi esta palavra – “tolerância” – que me veio à mente quando comecei a acompanhar as reações à “Julha” do Marcelo. Quando o artigo da “Time” foi escrito – reforçando, em 1991 – a internet estava longe de ser a ferramenta que é hoje. Se as ideias ali descritas fossem revisitadas hoje, seriam fácil concluir que tanto os “ocupadinhos” quanto os “bebês-chorões” não só estão cada vez mais presentes na nossa sociedade (sim, eles não são um fenômeno apenas da americana), como agora eles tem um instrumental poderoso para se manifestar: este aqui, onde você está lendo estas palavras!

De certa maneira, essas pessoas sempre existiram. Alguém fazia alguma coisa que não agradava outra – digamos, alguém escrevia um artigo do qual o leitor discordava – o máximo que essa pessoa podia fazer era reclamar para si mesma e dividir sua opinião com um grupo de amigos. Agora porém, esses, digamos, “contrariados”, tem como dizer diretamente à fonte de sua contrariedade que ele não gostou. O que seria uma maravilha claro, se a internet fosse tão transparente como uma conversa cara a cara…

Ocorre porém, que ela é terra fértil para os cínicos e os covardes que, no lugar de puxar uma discussão equilibrada, escondem-se por trás de um email de mentira para expressar não sua indignação, mas sua provocação infantil – ou melhor, adolescente (ainda acredito na inocência das crianças…). E não vamos nem entrar no quesito hipocrisia… Se você acha que eu estou exagerando, dê uma procurada (na net mesmo) em comentários, fóruns e comunidades sobre o “Julha”, para ver como os próprios “ocupadinhos” que se apressam em criticar o Marcelo dão também seus escorregões no português. Ninguém está livre deles – muito menos este que vos escreve. Mas o que me incomoda é a pretensão do crítico de estar acima de quem ele critica.

O fenômeno é típico da internet – e para ilustrá-lo de maneira ainda melhor, recorro a outro texto – este mais recente -, publicado em abril deste ano na revista do “The New York Times” . Na coluna sobre internet, Virginia Heffernan discute, com muita lucidez, a propriedade dos comentários de internautas – e a questão sempre polêmica sobre eles serem ou não moderados. Sua análise começa com os comentários que uma conceituada colunista do jornal  “The Washington Post” e da revista on-line “Slate”, Anne Applebaum recebe de parte dos internautas. Heffernan descreve sua indignação quando à superficialidade da maior parte das críticas que Applebaum recebe: uma jornalista que trabalha em mídias de credibilidade e já ganhou um prêmio Pulitzer por seu livro “Gulag: a history”, de repente se vê atacada por leitores que discordam de algum ponto de vista seu e a chamam de “uma pateta mentirosa e zionista”, quando não usam expressões misóginas e preconceituosas para ofendê-la.

“O que esses comentários não fazem é dar uma análise fundamentada e inventiva do trabalho de Applebaum. Na verdade, esses críticos dificilmente parecem conectar uma coluna sua à outra”, escreve Heffernan na defesa da colunista – e este blogueiro que já viu (em quase três anos de blog) seu quinhão de indignação de alguns leitores, não poderia deixar de concordar… Quantas e quantas críticas não chegam aqui – e olha que falo apenas das que passaram pela moderação – mais próximas de um chilique do que de uma reflexão. Não quero dizer com isso que elas não são bem-vindas – tanto que são publicadas. Mas tenho o direito de lamentar que nem todo mundo – como vários de meus leitores fazem há tempos – aproveite este espaço para uma discussão inventiva (para pegar a expressão de Heffernan emprestada) do tema que está sendo proposto.

O Marcelo – o que escreveu “Julha” – não é Anne Applebaum (eu mesmo não tenho a “cara de pau” de me colocar no seu patamar – meu Pulitzer ainda não veio!). Mas acho que não é preciso um grande esforço de raciocínio para conectar as duas coisas. A questão aqui não é exatamente o quão culta é a pessoa que escreve, mas o quão honesta é aquela que envia seu comentário.

Não, não quero “puxar uma briga”. Nem intimidar você que já há três ou quatro parágrafos começou a pensar na resposta que mandaria com um email de mentira para esse “espertinho do Zeca Camargo que acha que pode me impedir de dizer o que eu penso”… Quero sim levar a discussão adiante, mas de maneira honesta e transparente. Marcelo errou feio na ortografia, mas será que ele merece o escárnio anônimo de quem se esconde por trás de uma identidade virtual de mentira? Quem é mais corajoso: um domador de cavalos que sabe de suas limitações e as expõe num programa de TV aberta ou o “crítico” incógnito que só se mostra corajoso atrás de um nome que ele inventou?

Para ir adiante nessa discussão teria que comentar o livro que encomendei recentemente (mas ainda não li) do escritor americano Mark Helprin, com o título de “Digital barbarism” (ou “Barbarismo digital”, em português). Comprometo-me a mergulhar nele para continuarmos nesse assunto, mas antes de encerrar este já longo post, quero só citar uma passagem da resenha desse trabalho no “Book review” do “New York Times”. Quem assina é Ross Douthat – um colunista do próprio jornal. Embora ele considere medíocre a argumentação de Helprin, Douthat sai com algumas tiradas brilhantes sobre essa delicada relação entre blogueiros e leitores internautas.

Helprin escreveu o livro depois de ter sido bombardeado por comentários que recebeu por um texto seu publicado também pelo “New York Times” sobre a extensão dos direitos de copyright na era da internet. Você pode imaginar o “firewall” que os internautas – por natureza, defensores do livre uso de qualquer produção cultural na rede – montaram para atacá-lo. “Digital barbarism” é uma resposta à essa avalanche de insultos que recebeu. Porém, como descreve Douthat, no lugar de apresentar um argumento equilibrado, Helprin “decidiu escrever um tratado furioso contra a horda de comentaristas alegres”. Pelo resto da resenha, o livro está mais para o lado do desespero mesmo (confirmo isso – ou não – assim que ler tudo), mas tenho que tirar o chapéu para o argumento de Douthat de que Helprin caiu numa perigosa tentação. Para ele, o livro é uma boa “justificativa do aforismo sobre os perigos de entrar numa briga com porcos”: você se suja; os porcos gostam.

Pedindo “pra” sair

seg, 10/08/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

É uma curiosa coincidência que o último filme a que assisti em um cinema antes de vir para as gravações de “No limite” foi “Moon”. Dirigido por Duncan Jones (que é filho de David Bowie – mais sobre isso daqui a pouco), o trabalho é de uma simplicidade assustadora. Para começar, toda a história é contada com um só personagem, o astronauta Sam Bell,  interpretado por Sam Rockwell – na verdade, dois personagens, já que o computador-robô  que faz companhia a ele (e que atende pelo nome de “Gerty”), tem a voz do ator Kevin Spacey. Depois, para um primeiro filme, Duncan mostra um raro talento para combinar um roteiro improvável com uma produção de baixo custo – e ainda assim sair com 97 minutos que não deixam sua atenção ir embora (um feito heróico para esses tempos de “Transformers”…). Mas além de todos esses aspectos, o motivo que me fez escolher esse tema para o post de hoje tem a ver com a associação de ideias entre “Moon” e os recentes acontecimentos na competição que conduzo aqui no litoral do Ceará.

Como você talvez tenha acompanhado, duas participantes de “No Limite” pediram para deixar a competição no episódio do último domingo. O “drama” mesmo aconteceu na última sexta-feira – e como se tratava de um fato inédito (posso garantir que nas três primeiras edições do programa nenhum participante saiu do jogo por outro caminho que não a votação dos companheiros no Portal), isso criou uma pequena reviravolta nos bastidores.

Tivemos de pensar rápido, resolver tudo logo para evitar que o incidente interferisse o mínimo possível na rotina dos outros participantes (as meninas que saíram, Denise e Sibele eram da tribo Taíba, e o grupo adversário ao delas, Manibu, só ficou sabendo das baixas no dia seguinte quando se encontraram na prova que valia a imunidade). A decisão – como você também deve ter acompanhado no último episódio – foi pela substituição: duas novas competidoras entraram no jogo, Isabel e Taritza.

Com isso resolvido, a grande pergunta que todos fizemos – em uma das inúmeras conversas para as quais, como já descrevi, somos atraídos a qualquer momento em que mais de três pessoas se juntam por aqui – foi: quais foram os motivos que levaram as meninas a desistir da competição?

Ninguém que está aqui tinha dúvidas, mesmo antes de começarmos a gravar, de que as condições do dia-a-dia, durante toda a duração de “No limite” seriam duras – aliás, duríssimas. No processo de seleção, os candidatos eram informados de todas as limitações pelas quais passariam e de todas as exigências das provas. Tanto que um dos fatores mais importantes na hora de eles serem escolhidos – lembrando que eu não participei desse processo, mas me baseio nos relatos recentes de produtores e diretores – era a tenacidade que eles demonstravam em querer participar do programa, mesmo depois desse “briefing”, digamos, assustador.

Denise e Sibele certamente estavam cientes disso tudo. E o mais curioso – o que mais nos intrigava a todos – era que em nenhum momento elas demonstraram fraqueza. Pelo contrário: na prova que aconteceu no dia em que elas pediram para sair (sou só eu que fico sem graça de usar essa expressão sem uma referência explícita ao filme “Tropa de elite”?), apesar de Sibele nem ter tido tempo de participar, Denise mostrou garra (porém, não competência) na tarefa de desenterrar a peça de um quebra-cabeças. E mesmo na convivência com o grupo, a não ser por uma sutil divisão entre os homem e as mulheres do Taíba, nada indicava que elas tomariam essa atitude radical.

As coisas ficaram um pouco mais claras quando eu conversei com elas no Portal – numa improvisada (já que isso, como já disse, nunca havia acontecido antes) cerimônia de quebra de amuletos – eu fiz a pergunta diretamente: “por que vocês decidiram sair?”. A resposta veio também de maneira direta da Denise – e depois indireta, da Sibele: foi o isolamento, a distância das pessoas e, enfim, o fator psicológico. (Disse que a explicação de Sibele foi indireta porque primeiro ela falou sobre o estresse que a fome e o cansaço provocam, e depois disse que isso tinha afetado inevitavelmente seu processo psicológico).

Naquele momento, ambas estavam com uma expressão dura no rosto. Não era de alívio, mas de rendição. O olha de Denise, em especial, parecia querer dizer: “estou saindo contrariada, mas eu não saberia fazer de outra forma – não aguentaria mais”. Sibele, um pouco mais dissimulada – ainda que por mais de uma vez tivesse de segurar as lágrimas -, repetia num tom quase sem emoção que, para ela, seu limite já havia chegado. Será que elas combinaram isso, de alguma maneira? Será que uma percebeu que a outra estava sentindo alguma coisa como ela e se inspirou para tomar a mesma decisão? Terá sido cumplicidade ou coincidência? Talvez a gente nunca saiba exatamente o que aconteceu – e, como esse pequeno drama se desenrolou ainda no início da competição, é provável que ele seja ofuscado pelos que ainda estão por vir – quem sabe daqui a umas duas semanas a gente nem se lembre quem eram Denise e Sibele (um tipo de amnésia muito comum quando se trata de reality shows).

Fato é que, na minha modesta opinião, o que pesou mesmo foi o isolamento. Rejeitadas pelo grupo (que, de certa maneira – e nisso Sibele tinha razão -, encaminhou a dinâmica daquela equipe para a exclusão de alguns elementos, numa estratégia que também acho perigosa nessa primeira etapa onde o que eles mais precisam é justamente de união, antes de as duas equipes se juntarem), e longes do referencial das outras pessoas que amam – ou, pelo menos, com quem convivem -, elas desmontaram. E antes que você aponte o dedo  chamado-as de fracas, tenho de defendê-las reforçando que as condições aqui são mesmo difíceis de superar, especialmente no que se refere a solidão. Tiro um pouco por mim…

Somos uma grande equipe, trabalhando juntos todos os dias – equipe essa onde encontrei velhos e queridos amigos (de outras edições do programa), e fiz novas amizades com pessoas também sensacionais que estou conhecendo aos poucos. Não estamos passando por privações de comida, dormimos com conforto (se bem que em horário sempre imprevisíveis), temos (sempre que as conexões permitem) algum tipo de comunicação com as pessoas que ficaram longe, temos acesso a livros, revistas, música, TV, eventualmente filmes, e circulamos com liberdade sempre que temos alguma folguinha. Semana passada, numa festa de confraternização, rolou até um belo forró, com a participação de Dorgival Dantas! – você precisava ver eu dançando animado ao som de “Você não vale nada mas eu gosto de você”… Mesmo assim, é inevitável que nos sintamos ligeiramente distantes de tudo – e olha que estamos apenas começando a terceira semana, de uma temporada de nove… Se nós estamos assim, imagine os participantes de “No limite”!

De qualquer maneira, independente de quais tenham sido os motivos da desistência de Denise e Sibele, desejo boa sorte para elas – e força aos que continuam na competição, porque mais momentos de isolamento devem vir por aí…

E foi exatamente a evocação de momentos assim que me fez lembrar do filme de Duncan Jones, “Moon” (“Lua”, em português).  Como já esbocei lá em cima, este é um trabalho extremamente simples, mas que me pegou de maneira que eu mesmo fiquei surpreso – e isso descontando o fato de que eu já estava predisposto a gostar de um filme de ficção científica dirigido pelo filho de um dos meus primeiros ídolos da música pop! Afinal, um dos primeiros LPs que comprei foi o álbum “Pin ups” (1973), de David Bowie (pai de Duncan). Sem contar que uma das canções mais importantes da minha vida (entrou inclusive na minha lista das “mil músicas”), é “Ashes to ashes”, onde Bowie faz uma referência explícita a um “astronauta” que ele havia criado na então já clássica “Space oddity”(1969), um certo Major Tom. Como o próprio Bowie, durante muito tempo, cultivou uma imagem de “ser alienígena” – inclusive no cinema (já conferiu a primeira versão de “O homem que caiu na Terra”, de 1976? Adivinha quem fazia o papel principal…) – o fato de seu filho ter escolhido justamente um tema espacial para seu trabalho de estréia é quase uma provocação – elegante, é verdade, como uma piada de bom gosto.

Mas voltando então à questão do isolamento, Sam Rockwell vive um astronauta que trabalha numa usina de produção de energia na lua – usina essa que, num futuro não muito distante (de apenas alguns séculos), salvou nosso planeta da devastação completa. Ele tem um contrato de três anos para trabalhar lá sozinho, longe da mulher que está grávida (sua filha nasce enquanto ele está na lua), e driblando a solidão com conversas – até bastante divertidas – com Gerty, o robô que o acompanha a todo momento (Gerty é aliás, um grande companheiro, e não só porque ele é “interpretado” por Kevin Spacey: seu visual, como o de toda a estação espacial, é meio “retrô”, e seu “rosto” é uma tela onde aquela carinha sorridente, tipo “smile”, que hoje em dia é quase onipresente nas mensagens de texto que as pessoas trocam, vai mudando de expressão conforme o clima da cena… Ora ora, se estamos alguns séculos para frente no tempo, era de se esperar que os robôs já tivesse uma cara muito mais próximas da humana – mas logo você percebe que essa é a proposta de Jones, um “look” de “futuro do pretérito”…)

Já nos seus últimos dias na lua antes de voltar para casa, depois de um acidente fora da base, porém, o astronauta descobre que não está sozinho. Ou melhor descobre que existe um outro astronauta lá vivendo com ele – que pode ou não ser ele mesmo? Confuso? Melhor então eu parar por aqui para não tirar a graça de quem um dia tiver a chance de assistir ao filme – com a temporada de festivais de cinema chegando, pelo menos no Rio e em São Paulo, quem sabe “Moon” não chega logo às telas brasileiras, ou pelo menos ao circuito de filmes de arte?

Tudo que posso dizer é que “Moon” desenrola-se de maneira engenhosa e criativa – com um desfecho que me fez lembrar uma das minhas séries antigas de TV favoritas, chamada “The outer limits” (um dia, espero, vou deixar um post só a ela, pois é das coisas mais sensacionais e bizarras que alguém já colocou no ar… e olha que estamos falando de anos 60!). O filme termina com a promessa de que o astronauta quebre finalmente um longo ciclo de solidão – e se gostei tanto desse trabalho de Duncan Jones, acho que foi justamente por sugerir que, mesmo nos piores momentos, você nunca está sozinho.

Essa mensagem é um pouco piegas, eu sei. Mas peço sua compreensão porque não estou conseguindo disfarçar… Talvez seja o meu próprio isolamento aqui nas gravações (que, insisto, não chega nem perto do que vivem os participantes de “No Limite”), que tenham feito com que eu gostasse de “Moon” mais agora, ao escrever este texto, do que há três semanas, quando saída da sessão no Cine Curzon, no soho londrino. Talvez naquele dia eu estivesse me sentindo menos só do que agora…

Ainda sobre livros – quer dizer, mais ou menos…

qui, 06/08/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Já há dez dias aqui nas locações de “No Limite”, devo confessar que o forte dessa região do litoral do Ceará não é sua conectividade… De onde gravamos o programa, falar no telefone é algo improvável – se bem que há relatos de pessoas que já foram surpreendidas no meio de um coqueiral com uma ligação de telemarketing… Duas colegas do alto escalão da produção me contaram rindo, outro dia, que depois de insistentes tentativas conseguiram ligar de uma praia, mas nunca ao mesmo tempo – uma só dava sinal quando a outra desligava. Mas essas são histórias que coloco no mesmo patamar que a da “mulher do assovio” – uma espécie de lenda local que descreve uma moça que sai assoviando à noite e, se você responde também com um assovio, você está condenado a escutar esse som lá dentro do seu ouvido para o resto da vida…

No local onde estamos hospedados, a situação melhora um pouco, mas não para todo, e não da mesma maneira para nós, pobres usuários. A operadora de telefone que uso, por exemplo, permite que eu apenas mande mensagens de texto e receba telefonemas – uma amiga produtora foi brindada com o serviço oposto (só faz ligações, e não recebe), depois de ter mudado para uma operadora que, segundo informações que levantou antes de vir para cá, cobria toda a área… Enfim, no meu caso, quando preciso falar com alguém, mando uma mensagem de texto dizendo “ligue agora”, como se estivesse dando um truque para não pagar o interurbano (Ainda se fala “interurbano”? Isso soa tanto como uma expressão do tempo em que, para ligar do Rio de Janeiro para São Paulo, era preciso pedir ajuda a uma telefonista e ficar esperando ao lado do telefone às vezes por horas enquanto ela tentava completar a ligação – quantas palavras cruzadas eu fiz ao lado da minha mãe num apartamento no Rio, enquanto aguardávamos para dar um oi para o meu pai em São Paulo… Mas eu divago).

No que diz respeito a conexão de internet, porém, a situação é inversa. Na pousada onde estamos, ocorrem relatos esparsos de que alguém, por alguns minutos, conseguiu acessar a internet como se estivesse num computador do Pentágono – mas como essas histórias nunca vêm acompanhadas de testemunhas, tendo a acreditar nelas menos do que na mulher do assovio… Já na nossa base de produção, porém, bem no meio da fazenda onde acontecem as gravações, a conexão é impecável – melhor que a do próprio pentágono, arrisco! Não só toda a equipe aproveita para atualizar emails e eventualmente falar com a família via Skype por lá, como também quem perdeu algum boletim de “No Limite” (desses que vão ao ar todos os dias exceto quintas e domingos, quando temos os programas com eliminação), pode acessar o nosso site e se atualizar no que está acontecendo nos acampamentos (um exercício mais comum do que você imagina, já que como tem gente trabalhando 24 horas por dia, nem todo mundo consegue estar ligado na TV na hora que esses mini-episódios vão ao ar).

Eu mesmo, durante aquele horário sonolento pós-almoço, aproveito a conexão de lá para ligar meu laptop e, prioritariamente, tentar resgatar o maior número de artigos de jornais e revistas para poder ler à noite no conforto do meu quarto – especialmente das publicações (sobretudo as estrangeiras) que estou acostumado a ler (no papel) em casa (já que assino vários delas, quando não as compro na banca de revistas), e que não chegam por aqui nem por decreto. Foi assim que então, ontem mesmo, deparei-me no site da “The New Yorker” com um texto assinado por um dos meus escritores americanos favoritos: Nicholson Baker.

Baker é um escritor apaixonado por livros – e por jornais. Uma paixão que, claro, vem do prazer que ele tem em manipular as palavras. Li seu primeiro livro em 1989, quando morava em Nova York. Chama-se “The mezzanine” – e só lamento que, apesar de ele ter vários títulos lançados no Brasil (entre eles, o polêmico e quase pornográfico “Fermata”), esse seu trabalho de estréia ainda permanece injustamente sem tradução por aqui. Lembro-me até hoje da resenha que li no suplemento dominical do “New York Times” sobre ele: um volume de cerca de 100 páginas que descrevia o trajeto de um homem subindo uma escada rolante (em direção a um mezanino), logo depois de ter comprado um cadarço no seu horário de almoço. Só isso. Mas é a subida de escada rolante mais fascinante que eu já vi (se estiver a fim de encarar um inglês, encomende já numa livraria virtual!).

Desde de “The mezzanine” então, virei fã de Nicholson Baker – e leio tudo que ele escreve. Dos livros mais fracos (“Vox”, que é ainda mais pornográfico que “Fermata”, está longe de ser algo perto de interessante), aos artigos mais inesperados – a maioria deles na “New Yorker”, como este que trouxe para o hotel no meu iBook. “Uma nova página” – anuncia o título do texto -, e trata-se claro de uma brincadeira, já que o assunto que Baker escolheu para escrever desta vez não é exatamente a palavra impressa, mas a eletrônica. Mais especificamente, ele resolveu experimentar aquele produto que quem passou pelo site da amazon.com procurando por livros (ou mesmo outros produtos) certamente já ouviu falar: o Kindle.

Se você ainda não está familiarizado com esse nome, trata-se da “revolucionária” engenhoca (sim, eu sei que ninguém mais essa expressão – “engenhoca”) lançada pela Amazon, que permite que você leia livros inteiros numa tela eletrônica. Porém, ao contrário de um computador que emite luz (e que tende a cansar a vista de quem lê por muito tempo), o Kindle usa uma tecnologia chamada “E Ink”, que permite a leitura refletindo a luz externa – mais ou menos como uma folha de papel. Os detalhes técnicos são curiosos (Baker vai fundo no artigo), mas o que eu estava mesmo interessado em saber era o que um escritor obcecado por livros achou dessa “novidade” (o primeiro modelo foi lançado em 2007, mas agora é que ele está “pegando”), alardeada como “o futuro da leitura”.

O veredicto de Baker, claro, não é muito positivo… “Isto é o que você compra quando você compra um Kindle”, escreve ele: “Você compra o direito de expor um agrupamento de palavras na frente de seus olhos para seu uso privado, com a ajuda de um aparelho eletrônico aprovado pela Amazon”. Ou seja, tudo menos um livro… Calma, eu sei que o Kindle não pode – e nem pretende – nunca nem passar por um livro. Mas será que ele pode reproduzir ou mesmo sugerir a mesma sensação de quem tem um livro nas mãos? Novamente, na opinião de Baker, isso não é possível.

Como em qualquer texto seu, o escritor descreve com elegância as características mais bizarras da máquina (lembro-me de um artigo seu sobre a mudança de projetores de cinema daqueles de filmes de celulóides para digital que era simplesmente um primor). A mais inesperada de todas, é que a “página”não é branca – assim como a letra não preta. Tudo é cinza – ou melhor, variações de cinzas claros e escuros (as imagens são reproduzidas com alguns matizes a mais). Quanto ao design do Kindle, Baker é ainda mais cruel: “uma peça de bizarrice retrô”. E não vamos nem falar da seleção de livros disponíveis para serem baixados – através de uma compra na Amazon. Numa lista rápida feita pelo próprio escritor – que vai de Italo Calvino a Nabokov (passando pela “Identidade Bourne”) -, já fiquei imaginando que eu me frustraria bastante se tivesse que escolher o que ler nesse aparelho (pelo menos até a campanha que a própria Amazon faz nas suas páginas, aquela que pede para as pessoas clicarem e dizerem para determinado editor que querem seus livros disponíveis para o Kindle, começar a funcionar).

Mas pior do que isso, pela descrição de Baker, é a ausência da sensação de ter realmente uma obra de arte – ou um objeto de estudo, ou um volume de referência, ou mesmo um passatempo ligeiro – nas suas mãos. Isso acho que eu não poderia suportar. (Ao mesmo tempo que escrevo isso, imagino alguém que num futuro não muito distante – digamos, uns 200 anos, quando os livros como conhecemos hoje já tiverem deixado de existir – leia esse meu comentário, e tantos outros nessa linha, num oceano de informação que então será disponível de maneira ridiculamente acessível, e caia na gargalhada com a inocência desse protesto…).

Eu mesmo nunca peguei num Kindle – sequer vi um de perto. Mas imagino que teria uma resistência ainda maior do que a de Nicholson Baker para me adaptar. E olha que digo isso de diante de uma situação que me obrigou a trazer pesados volumes – divididos em uma mala que despachei e outra que trouxe na mão – para uma pousada numa praia deserta! Teria sido mais fácil trazer tudo que eu queria ler num troço do tamanho de uma revista semanal? Talvez? Mas será que eu teria o mesmo prazer de escolher minha leitura seguinte consultando meu índice numa tela cinzenta do que olhando para as lombadas da pequena estante improvisada do meu quarto? Duvido…

A ironia maior é que eu li o próprio artigo da “New Yorker”não na revista tradicional, mas copiado na mesma tela do computador que escrevo agora. Mesmo assim, digo a mim mesmo que só usei esse “truque” porque estou impossibilitado de ter acesso ao exemplar original. Mas que eu preferia mil vezes ler as páginas esvoaçantes da revista (agosto, parece, é o mês que mais venta por aqui) do que nesta tela luminosa – isso eu preferi!

Nicholson Baker, porém, não dá a causa como perdida. Ele ainda joga algumas farpas nas promessas do Kindle ser a única esperança de ressuscitar os jornais de papel – a assinatura do “New York Times” nesse formato, segundo ele, vem sem boa parte do material editorial. E pinta a versão mais moderna da máquina – ele comprou o Kindle  2, mas conferiu também o Kindle DX – como algo ainda menos atraente. A salvação, no entanto, pode vir sob a forma de um iTouch (ou um iPhone): a versão do Kindle para esse aparelho é, para o autor, não só mais agradável aos olhos, como mais fácil de usar.

Nem por isso, porém, eu fiquei convencido. Depois de terminar “Solo”- livro que mencionei no último post -, vou mergulhar numa história que descobri agora por acaso numa livraria em Londres. Chama-se “Censoring an iranian love story” (literalmente, “Censurando uma história de amor iraniana”), de um autor iraniano chamado Shahriar Mandanipour. Como o próprio título indica, trata-se de uma história que tem trechos inteiros rabiscados – isso na própria edição final, como um curioso artifício de impressão. Agora me diga: que graça teria ler isso numa tela cinza?

Ou ainda – já num tom de querer abrir a discussão: que graça teria ler qualquer coisa numa tela cinza? Você se adaptaria? Trocaria toda sua estante por um fino aparelho moderno? Estou sendo muito retrógrado? Saudosista? Ou simplesmente sonhador ao insistir que os livros nunca deverão desaparecer por completo? Mande para cá sua opinião como um comentário. Sim, ele será publicado não num papel, mas numa página virtual. Mas isso talvez sirva para tornar nossa discussão ainda mais interessante.

Enquanto isso, vou me preparando para o Portal de hoje e o de domingo. Sempre, claro, com um livro embaixo do braço…

Deslocamentos

seg, 03/08/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

 

Sempre achei que história boa tem que ter alguém que vai embora. Não simplesmente uma escapada, mas uma saída que signifique uma mudança. Escolhi falar sobre isso hoje, primeiro porque estou, claro, longe de casa – aliás, longe de tudo: nesses dois meses de gravações de “No limite”, vou ficar direto aqui de onde escrevo, num ponto isolado do litoral cearense. Depois, provavelmente inspirado justamente por essa distância, minhas leituras recentes parecem girar sobre esse tema. Entre um portal e outro – pasme! – eu até que tenho tido tempo para ler alguma coisa. E como estou dando sorte nessas leituras, esforço-me para aproveitar qualquer brecha ociosa – sobretudo os longos trajetos entre nossas acomodações e os locais de gravação (um percurso que leva, no mínimo 45 minutos).

Ainda estou na primeira metade de um livro genial chamado “Jeff in Venice, death in Varanasi”, de escritor inglês Geoff Dyer – já citado aqui há quase um ano por conta de seu trabalho sobre fotografia (“O instante contínuo”, Companhia das Letras). Seu mais recente trabalho de ficção ainda não foi lançado no Brasil – se bem que, se você estiver interessado, eu recomendo seu outro livro, “Ioga para quem não está nem aí” (também da Companhia das Letras). Mas comprei-o numa viagem recente a Nova York – e é tão bom, que fico economizando sua leitura…

Dyer escreve com um cinismo precioso. Tem um olhar afiado e extremamente irônico – e isso, numa época como a nossa onde a ironia está um pouco fora de moda, é algo a se considerar (o título original brinca com o clássico de Thomas Mann, “Morte em Veneza”, que em inglês é “Death in Venice”, e “rima” de longe com as duas frases do título de Dyer – o que trará certamente um desafio ao tradutor para o português). Para prolongar esse prazer,  decidi então lê-lo aos poucos.

Já passei pela parte de Veneza – na qual Jeff, um jornalista free-lance que nunca conseguiu ser muito respeitado na profissão (e que, como um bom personagem de Dyer, se auto-ironiza o tempo todo com relação ao próprio fracasso), vai fazer uma reportagem especial durante uma edição da famosa bienal de arte da cidade. E agora quero entrar na parte da Índia, quando a história (que pode ou não ser uma continuação da anterior) transcorre na cidade sagrada de Varanasi, às margens do rio Ganges. Como sugeri no início do post de hoje, as boas histórias sempre têm a ver com deslocamento, e Dyer oferece não apenas um, mais dois nesse seu novo livro que – espero – não deve demorar para ser lançado no Brasil.

Intercalo essa leitura com mais dois volumes – um que acabei de concluir (“The mayor’s tongue”, do americano Nathaniel Rich) e um que ainda estou quase na metade, mas que já absorveu me conquistou (“Solo”, do indiano Rana Dasgupta). Nenhum dos dois foi ainda traduzido para o português, mas são leituras tão inspiradoras que eu já queria indicar para você colocar na sua lista de prioridades, caso um dia eles sejam lançados (ou mesmo incitar você a tentar lê-los em inglês – por que não!). Vou começar falando de “Solo” – já que estou tão entusiasmado com ele.

(Antes porém, um parênteses – literalmente! Vários livros que indiquei aqui em posts anteriores – e que eram inéditos por aqui na época em que os escrevi – já podem ser encontrados nas nossas livrarias – reais e virtuais! Assim se você fez como eu sugeri a pouco e colocou numa lista de leituras desejáveis, já pode mergulhar neles em português. Uma lista rápida – que faço de cabeça, só para aproveitar o gancho: “Pequim em coma“, de Ma Jian (Record); “Tenho algo a te dizer“, de Hanif Kureishi (Companhia das Letras); e parece que “Nothing to be scared of“, de Julian Barnes, já está no prelo… aproveite!)

Ulrich, o personagem principal do livro de Dasgupta é um búlgaro de 100 anos. Cego, ele mora sozinho em Sófia, e embora ele tenha viajado muito pouco ao longo de sua extensa vida, a história tem também a ver com deslocamento – especialmente porque seu autor é indiano. É admirável imaginar que um autor transporte-se de maneira tão inteira para uma cultura que é tão diferente da sua, como Dasgupta faz em “Coma” (seu livro de estréia – que não conhecia, mas já encomendei -, chama-se “Tokyo cancelled”, e só posso imaginar, por antecipação, as maravilhas que ele contém). No caso, a imersão na história da Bulgária no último século é tão autêntica, que é quase possível duvidar da própria nacionalidade do autor… Seria ele mesmo indiano?

Brincadeiras à parte, o que é fácil se encantar com a história de Ulrich – que tem esse nome, aliás, tão alemão por conta do fascínio de seu pai, no início do século 20, com as promessas da ciência na Alemanha. Nativo de um país pequeno, que sempre lutou para ser uma cultura independente, mas invariavelmente ficava na sombra dessa ou aquela força dominadora (fosse o império otomano ou “bloco soviético”), Ulrich mistura sua própria narrativa com a história da Bulgária – e o resultado, ao contrário de ser um aborrecido registro, é uma fascinante biografia conjunta de um homem e sua nação (e que, curiosamente, me fez lembrar de “Rio das Flores”, de Miguel de Souza Tavares, já comentado aqui.

Se pudesse apontar um defeito em “Solo”, é o de que a estrutura do livro é um pouco linear demais – um ponto fraco de boa parte da moderna literatura indiana. Ou talvez eu tenha tido essa impressão porque esteja ainda sob o efeito das peripécias mirabolantes da escrita de Nathaniel Rich, que eu também acabei de experimentar. “The mayor’s tongue” (título que pode ser traduzido apressadamente como “A língua do prefeito”) é das histórias mais delirantes que li recentemente – para ser mais preciso, a última vez que me deparei com um livro tão alucinado, foi quando, em 2002, enlouqueci com “Tudo se ilumina”, de Jonathan Safran Foer (Rocco).

A história contada por Rich tem a ver também com deslocamentos – para você ter uma idéia, o livro é dividido em três partes, Nova York, Trieste-Milão, e o Carso (uma região da Itália, que se espalha também pela Eslovênia). Mas as viagens de Eugene – e do Sr. Schimtz, que aparece em uma narrativa paralela – vão muito além do que podem nos indicar os mapas (mesmo no Google Earth!). “The mayor’s tongue” é sobretudo um daqueles livros para quem adora livros (a busca de Eugene tem a ver com um escritor fictício chamado Constance Eakins – uma bizarra criação de Rich), e para quem tem paixão por línguas: italiano (e vários dialetos de italiano), esperanto, inglês (claro), espanhol e até mesmo um idioma chamado “cibaeño” – que eu achei que era também inventado, como tanta coisa no livro, mas que uma rápida pesquisa na internet me provou que existe, e é falado até hoje na República Dominicana! (Por falar em línguas, tenho que registrar rapidamente que uma das coisas que movem a história de “Solo”, de Rana Dasgupta, é uma história que seu personagem principal ouve sobre um bando que papagaios que foi descoberto depois que uma civilização desapareceu – papagaios esses que guardavam o último registro de uma língua que já não existia mais… mas que morreram quando foram transportados para serem estudados! Que tal?).

Viajando assim por lugares e idiomas, Nathaniel Rich oferece um convite para uma aventura irresistível. Muita coisa não faz sentido nesse itinerário – e olha que não estou nem falando dos aspectos cartográficos dela. Mas o autor tem o dom – assim como Safran Foer (por isso me lembrei dele) – de te convencer a deixar a credibilidade de lado e seguir com ele por uma história absurda. São tantas coisa que acontecem, que “The mayor’s tongue” quase que desafia uma sinopse. Mas vale tentar: para experimentar uma vida diferente, Eugene sai de casa, mente para o pai que está indo morar na Flórida, mas muda-se para o Brooklyn nova-iorquino, onde divide um apartamento (e o emprego de carregador de móveis) com um dominicano chamado Álvaro. Ele só fala “cibaeño” – que Eugene não entende, mas os dois se comunicam de alguma maneira em ensandecidos diálogos imaginários. Mesmo assim, Eugene promete traduzir (por intuição) um manuscrito de Álvaro – mesmo depois de mudar de emprego, para ajudar um velho admirador do tal autor fictício (Constance Eakins) a completar sua pesquisa para uma biografia do “renomado” escritor (de quem Eugene também é fã). Nosso herói então se apaixona pela filha do patrão e vai atrás dela até a Itália, onde ela mesma foi ter com Eakins – que ninguém sabe se está vivo… Isso tudo acontece antes mesmo da primeira metade do livro – e ainda tem a história paralela (a do Sr. Schmitz), que eu nem comecei a esboçar!

Para acompanhar tudo isso é preciso fôlego. Por mais que a escrita de Rich seja sedutora, há momentos em que minha concentração beirava a vertigem. Em mais de uma passagem, o pedido velado do autor para você dar um crédito à fantasia quase ultrapassa a fronteira do pacto entre escritor e leitor. No final porém, o elegante (ainda que improvável) desfecho faz com que você se sinta recompensado por ter cruzado uma estrada tão acidentada.

“The mayor’s tongue”, foi o primeiro livro que concluí aqui no meu “exílio” no Ceará. Como mencionei no post anterior, trouxe aqui para as gravações de “No Limite” uma pequena biblioteca que espero “traçar” nos próximos dois meses. Nem todos os títulos, claro, são sobre deslocamentos – se bem que um dos livros que estou mais curioso para começar é sobre o período que o escritor americano James Baldwin passou na Turquia (“James Baldwin’s turkish decade: erotics of exile”, de Magdalena J. Zaborowska) é talvez o melhor exemplo disso. Todos porém – supondo que eu consiga dar conta de tudo -, já sei que estarão eternamente relacionados a este meu deslocamento.

Longe das coisas das coisas que gosto, longe das pessoas que amo, tentando acreditar que, pelo menos por um tempo, o tempo está suspenso – e tudo está resolvido…



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