O grande retrato
Perdão pela tradução meio capenga. Mas preferi colocar em português a expressão que eu queria usar no título de hoje: “the big picture”. Talvez não tenha a mesma força do original – e se você quiser sugerir uma tradução alternativa, fique à vontade –, mas tem a ver com o que eu queria explorar hoje. Mais especificamente com dois bons livros que acabei de ler nesse meu “retiro”. Não foram dias “tranquilos” por aqui, sobretudo agora, quando os participantes de “No Limite” (o programa que estou gravando aqui no litoral do Ceará há mais de um mês) estão todos no mesmo grupo, e as armações, os conchavos, as estratégias – e as traições! –, tudo começa a ficar mais interessante e merece um acompanhamento ainda mais minucioso. Mesmo assim, não deu para escapar: fui fisgado por dois livros incríveis, que recomendo por um motivo inesperado.
Explico: geralmente quando indico uma leitura (e não foram poucas indicações nestes quase três anos de blog), é porque fico totalmente entusiasmado com uma história. Eu vivo de narrativas – é isso inclusive que estamos montando aqui, no dia a dia, com esses participantes de “No Limite” – e quando eu acho uma que me cativa, não resisto. Quero ser levado por ela, quero saber qual é o seu desfecho, quero ser surpreendido pelas viradas na história, quero mergulhar na vida de cada personagem que ela traz (é só dar uma passeada pelo meu arquivo aqui mesmo para conferir como meu entusiasmo vai de Agatha Christie a Ian McEwan ; de Aranvid Adiga a Milton Hatoum; de Will Self a Zadie Smith ). Esses dois livros que li nas últimas semanas, porém, me encantaram de outra maneira: não pela sedução das histórias que estavam sendo contadas, mas pelo painel de fundo delas – não exatamente o local onde elas transcorriam, mas o grande cenário, a grande tela, onde a trama era pintada.
Os livros são “A suíte Elefanta”, de Paul Theroux (editora Alfagarra), e “Vida vadia”, de Richard Price (Companhia das Letras). E vou começar a falar desse para deixar mais claro o que quero dizer quando uso a expressão “grande retrato”.
Se você já ouviu falar alguma coisa sobre Price, você ouviu falar que ele é o grande escritor de diálogos da literatura contemporânea americana. “Vida vadia” – lançado nos Estados Unidos no ano passado e agora com edição em português – só confirma sua reputação. As conversas que seus personagens trocam são afiadas, precisas, divertidas, e reticentes. Seus diálogos são, de fato, tão bons, que sobrevivem à tradução – capazes até de te desanimar quando você depara com aquelas páginas só de longos parágrafos de narração. O leitor, refém desde as primeiras páginas, quer logo voltar para o ritmo frenético das aspas dos personagens. Só pra dar um exemplo, esse é um bate-papo logo no prólogo, entre um policial e um garoto, o primeiro explicando porque ele pediu para o segundo parar o carro:
“Primeiro, tem neon na sua placa.”
“Ah, não fui eu que pus, não. O possante é da minha irmã.”
“Segundo, a janela está muito escura.”
“Bem que eu falei pra ela.”
“Terceiro, você avançou quando já estava amarelo.”
“Pra contornar um carro em fila dupla.”
“Quarto, você está parado na frente de um hidrante.”
“Porque o senhor mandou eu parar.”
Outro exemplo? Já bem adiante na história, é assim que Eric, um dos personagens principais – um yuppie sobrevivente dos anos 90, suspeito de um crime que talvez não tenha cometido – tenta negociar a compra de um pouco de cocaína para fazer um “dinheiro rápido” (quem fala primeiro é Morris, o traficante, que pede mil e duzentos dólares por vinte e oito gramas):
“Ora, quanto é que você estava imaginando?”
“Setecentos.”
“Engraçado.”
“Engraçado?”
Morris contorceu-se num espasmo por causa do pó. “Macacos me mordam, Popeye.”
“O quê?”
“Então mil e cinquenta, e não se fala mais nisso. Hã”, jogando a cabeça para trás como um cavalo.
“Setecentos e cinquenta.”
“Você já me viu puxar carroça?”
“Oitocentos. Menos que isso não dá”, disse Eric, e logo depois: “Quer dizer, mais.”
Price tem esse dom de reproduzir conversas muito autênticas – inclusive nas falhas de comunicação que qualquer um de nós pode escorregar. É o que dá à leitura de “Vida vadia” uma fluência deliciosa. Mas o que me encantou no livro não foi bem isso. Nem foi a história – um crime de rua que leva quase 500 páginas para ser esclarecido de uma maneira para lá de óbvia. Não… O que me deixou fascinado foi o retrato de duas áreas bem específicas de Nova York, o Bronx e o Lower East Side – a mistura imigrante do primeiro e a decadência financeira e cultural da segunda estão vivamente registradas no livro de Price. E foi com isso que eu vibrei!
Honestamente, estava bem pouco interessado em descobrir quem tinha cometido o crime. Não é difícil perceber desde o início, quando um cara é assassinado de madrugada, no meio da rua, que isso é apenas uma desculpa para o autor desfilar um elenco sensacional de personagens tão reais que, mesmo sem ter vivido nesses lugares (morei em outra parte de Nova York em 1989 LINK PARA POST DE 08de01de09) você se sente facilmente íntimo de tudo que está sendo contado. Foi para mergulhar cada vez mais nesse cenário que fui até o final de “Vida vadia” – e estou até agora imaginando o que aconteceu com a vida (inventada) daquelas pessoas depois que eu virei a última página…
Minha imaginação também começou a funcionar freneticamente desde as primeiras palavras de “A suíte Elefanta”, de Paul Theroux:
“Tinham os ombros curvos e a cabeça baixa de quem está de luto, as sombrias criaturas do tamanho de crianças agachadas no acostamento da estrada em declive. Também olhavam todas na mesma direção, como se venerassem em silêncio o poente sujo e apagado do outro lado da cidade sagrada.”
A cena não descreve humanos, mas macacos. O local de tanta reverência é o templo (ou santuário) de Hanuman, em Hanuman Nagar, uma cidadezinha na Índia, perto de um super hotel de luxo, onde um casal de turistas cinqüentões – os Blunden – passam férias sem data para ir embora.
Essa é a primeira história de “Elefanta”, de um total de três novelas apenas superficialmente interligadas – Theroux espalha as tênues pistas de conexão entre as tramas como um esperto exercício para o leitor atento. Voltando a ela, a estadia dos Blunden no hotel alonga-se conforme marido e mulher vão descobrindo (separadamente) as possibilidades sensuais dos funcionários do estabelecimento – indianos, claro. Na segunda história, um executivo americano vê sua ojeriza à Índia transformar-se em encanto (e depois em redenção), depois que ele descobre a prostituição na região do Portal da Índia, em Mumbai. E, na terceira, uma jovem turista americana é estuprada por um indiano e tem que lutar contra uma comunidade inteira em Bangalore, que não quer que ela procure justiça para o crime do qual foi vítima – para, num reverso do bom senso, ela não “prejudicar”a reputação de seu estuprador!
Sou fã de Theroux desde que li, “A costa do Mosquito”, no início dos anos 80. A narrativa delirante – que foi transformada num filme bastante estranho protagonizado por Harrison Ford –, mostra um homem que rejeita a civilização, muda-se com sua família para um lugar da América Central, e cisma de inventar uma máquina de fazer gelo no medo da selva, com resultados desastrosos… Li vários de seus trabalhos – inclusive alguns de não-ficção, como o clássico “O grande bazar ferroviário” – e nunca me decepcionei. Não seria diferente com “A suíte Elefanta”, que, além do autor, já trazia outro motivo para me agradar: a Índia como cenário (leitores assíduos deste blog sabem como sou presa fácil para temas daquele canto do mundo!).
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o assunto que permeia as três histórias: sexo. Justamente porque sou consumidor ávido de romances sobre a Índia, posso garantir que, a não ser pelas surradas referências óbvias de sensualidade em palácios de marajás, sexo nunca é o ponto forte desses livros – o que, aliás, espelha o próprio cotidiano pseudo-pudico dos indianos (basta lembrar que mesmo os mais ousados filmes de Bollywood, apesar de muitos requebros, não têm nem mesmo um beijo na boca!). Em “Elefanta”, porém, o sexo está “na sua cara” – é o pivô de cada narrativa. É ele que faz o casal inglês (cada cônjuge por si) procurar aventuras locais – com terríveis consequências para todos; são prostitutas que tiram o executivo americano do sério e o leva a uma crise de valores; e é o estupro que revela, na terceira história, não só a hipocrisia de uma parte da sociedade indiana que ainda acredita em castas, mas também as tristes consequências de uma juventude que cresce reprimindo sua sensualidade. Não deixa de ser curioso que esses temas tenham sido tratados não por um autor indiano, mas americano…
Mas mais interessante que esse aspecto, para mim, é a própria Índia que serve de pano de fundo para as três histórias. Da sociedade retrógrada que defende a honra de um estuprador ao “call center” moderno de Bangalore; de medicina aiurvédica às tensões entre hindus e muçulmanos; das modernas salas de reunião perto do hotel Taj Mahal aos fétidos quartos de bordel em Mumbai; do “ashram” (lugar de retiro espiritual) mais zen à rua comercial mais movimentada – aquela sociedade, aquele país, aparece não como um clichê exótico, mas como um lugar que você poderia, se não morar, no mínimo desejar correr o risco de passar um tempo por lá!
A Índia de “A suíte Elefanta” – assim como a Nova York de “Vida vadia” – é tão viva, tão vibrante, tão real, que praticamente qualquer história que você quiser contar que aconteceu por lá vai ser interessante. Porém, quando quem usa esses cenários são dois mestres como Theroux e Price, aí sim, você tem dois livros fascinantes.