20 milhões de rúpias e mais um Oscar?

qui, 26/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Sensacional! Você ouviu a última do dublador que sempre fez a voz de um artista no cinema mas agora, que “seu” ator fez o papel de um gay assumido, ele se recusa a dublar? Muita boa não é? Pena que não seja uma piada… Li aqui mesmo na internet: “Marco Ribeiro, o dublador de Sean Penn se recusou a fazer a voz do ator em ‘Milk – a voz da igualdade’”. Ai, ai… E isso porque “Milk” é um filme que traz claramente uma mensagem anti-preconceito… Isso para não falar do próprio discurso de Sean Penn ao agradecer o Oscar de melhor ator que levou na festa do último domingo…

Quero falar mais de “Milk”, que vi na segunda-feira de carnaval – e será no próximo post. Mas antes acho que devo a você uma satisfação: não foi ao vivo que eu vi o discurso de Sean Penn… A Sapucaí acabou falando mais alto – e saí na escola do Rio que ficou em quarto lugar este ano, a Vila Isabel (sim, foi mais uma oportunidade de estar perto do trabalho desse cara genial que é o Paulo Barros – já elogiado aqui há dois carnavais). E o Oscar? Vi cá e lá – um pouco na internet, um pouco na cobertura dos canais a cabo. Se me arrependi? Acho que não. Parece que a cerimônia deste ano foi ligeiramente menos previsível – a idéia de chamar cinco atores ou atrizes para anunciar os indicados nessas categorias este ano, por exemplo, foi muito boa; e Hugh Jackman, pelo menos nos trechos que eu vi, saiu-se melhor que, hum, David Letterman ou Whoopi Goldberg (mas eu ainda prefiro Jon Stewart ou Ellen DeGeneres). Além do que, uma coincidência dessas – carnaval no mesmo dia do Oscar, só deve acontecer, segundo “fontes do Vaticano”, daqui a três décadas – quando certamente minhas energias para a passarela do samba já estarão bastante reduzidas e eu terei que inevitavelmente optar pela festa do cinema, deixando assim tudo igual…

Em tempo, só para esclarecer a discussão entre o IgorDG e o Josué, que mandaram seus comentários sobre a possibilidade de eu abraçar os livros no feriadão: a gente sempre acha tempo para ler alguma coisa… Neste carnaval, por exemplo, em função de uma aula que vou dar em breve, li uma ótima trilogia chamada “The liquid continent”, do canadense Nicholas Woodsworth. E ainda consegui ver “Milk” (como já mencionei) e “Quem ser um milionário?” – que, aliás, é nosso assunto de hoje.

Você deve ter visto quando o elenco todo – na verdade, todas as pessoas envolvidas com o filme que estavam domingo passado no Kodak Theather, em Los Angeles – subiu ao palco para comemorar o prêmio. Como escreveu a “Entertainment Weekly”, se você não se emocionou com aquela cena, é melhor checar para ver se o seu coração ainda está batendo…

Eu mesmo fiquei emocionado – e como não ficar? Na categoria “azarão”, numa premiação tão careta quanto é o Oscar, um filme desses levar a honra máxima é altamente improvável. Nos último anos, talvez para dar uma “refrescada” nas indicações sempre tão convencionais, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood tem incluído títulos “alternativos”, como “Pequena Miss Sunshine”, ou “Juno”. Mas nós – o público – sempre soubemos que isso era apenas um “tapinha nas costas” da produção independente. O prêmio maior mesmo, iria sempre para as grandes – e caretas – produções.

OK, “Quem quer ser milionário?” não é tão independente assim – mas você entendeu o espírito. Mesmo assim, eu fiquei surpreso com o Oscar para esse filme – sobretudo porque ele não é tão bom assim…

Calma, calma, calma… Eu gostei de “Milionário”. Mesmo. Eu só não acho que o filme é uma revolução em nenhum sentido.

Para começar, não é Bollywood – nem de longe. Aquele número (sensacional, diga-se) musical no final do filme? Super-Bollywood. Mas e o resto? Já virou clichê falar que várias sequências de “Milionário” pegam algumas idéias emprestadas de “Cidade de Deus”. Mas eu iria até mais além dizendo que a principal fonte de inspiração do diretor Danny Boyle é ele mesmo: vejo mais coisas em comum entre o ganhador do Oscar este ano e “Trainspotting” do que entre “Milionário” e o filme que projetou Fernando Meirelles internacionalmente.

Assim, dizer que Boyle apresenta ao mundo a linguagem que consagrou a maior indústria cinematográfica do planeta – justamente Bollywood – é um certo exagero. Até “Vanity fair”, da diretora Mira Nair (que, pelo que me lembro, nem foi lançado aqui no Brasil, mas vale a pena você correr atrás) é mais “bollywoodiano”, contando uma história tipicamente inglesa vitoriana, do que “Milionário”. E se você achar que estou “pegando no pé”, dê uma conferida em alguns trailers de lançamentos recentes de Bollywood, para ver se algum deles te lembra de longe o premiado deste ano na maior festa do cinema.

Depois tem a adaptação… Li o livro original de Vikas Swarup, quando o filme ainda não era nem uma idéia (o primeiro título era “Q&A”, mas agora já vi que as novas edições em inglês já vêm rebatizadas de “Slumdog millionaire” – o esperto título do filme, que pode ser (mal) traduzido por “Vira-lata de favela milionário”; no Brasil, o livro foi editado pela Companhia das Letras e lançado com o nome de “Sua resposta vale um bilhão”). Adorei – não exatamente por ser um daqueles “contos de fadas” modernos, mas pelo fato de o autor ter conseguido contar uma história totalmente previsível de uma maneira surpreendente.

Para quem não viu ainda o filme, uma breve sinopse – antes de a gente continuar: jovem da favela se dá bem num programa de TV tipo “Jogo do milhão”, mas a produção do show desconfia que ele está trapaceando. Alguém tão simples não pode saber tanta coisa… Acontece que, a história de infortúnios de Jamal (o personagem principal) permitiu que ele soubesse justamente a resposta a todas as perguntas do jogo.

Ao contrário do que é mostrado no filme, porém, no livro você só fica sabendo da pergunta depois de conhecer o episódio da vida de Jamal que o levou à resposta. Mas talvez o roteirista Simon Beaufoy (premiado também com o Oscar) achou que seria complicado demais apresentar essa estrutura para o grande público. O filme ainda tem outros problemas de roteiro – alguém entendeu direito como ele acertou a pergunta sobre uma praça que fica numa cidade na Inglaterra? -, além de deixar várias perguntas da história original de fora (por isso, se você gostou do filme, vá atrás do livro). Mas vou segurar as outras críticas para falar do que eu gostei mesmo em “Quem quer ser um milionário?”.

Primeiro, o elenco. E não só as “crianças adoráveis”, como a crítica mundial insiste em coletivizar. Mas as performances individuais são excelentes (o que me faz pensar… por que nenhum desses dois atores do filme foi indicado? Será que é só porque estão de fora do “star system hollywoodiano”? Mas eu divago…). Já admirava Irrfan Khan desde “Nome de família”, mas agora também virei fã de Anil Kapoor (o mestre de cerimônias do programa de TV), e principalmente de Dev Patel, que faz o papel de Jamal adulto. Sua cara sem expressão durante as etapas do jogo são de uma abstração perfeita – e mesmo nas outras cenas de ação, fora do estúdio, a mistura de inocência e romantismo é uma fórmula vencedora.

“Milionário” merece também todos os elogios quanto à sua edição (reconhecida pelo Oscar). Seja inspirado em “Cidade de Deus” ou em “Trainspotting”, ali está um filme que desafia a platéia – bem mais, por exemplo, do que a disfarçada linearidade de “O curioso caso de Benjamin Button” – que conta uma história “invertida no tempo”, da maneira mais direta possível. E depois tem a música… Eu, claro, já sou um convertido do pop indiano desde que visitei a Índia pela primeira vez em 1986, mas se você ainda tem alguma resistência a esse som, digamos, mais globalizado, o filme de Danny Boyle está aí para acabar com isso.

Entre todos esses prós e os contras que já citei, afinal, “Quem quer ser um milionário?” é um bom filme? Claro que é. Mas merecia ganhar o Oscar? Bem, acho que o prêmio de 20 milhões de rúpias (um pouco menos de um milhão de reais) já estava bom para coroar esse trabalho… Quem deveria ter levado a estatueta então? “Milk”, claro. Mas isso é assunto para segunda-feira…

FOTO1 : Gabriel Bouys/AFP

FOTO 2: Reprodução

Pornografia

qui, 19/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

A consequência mais perversa da pornografia não é exatamente essa que você está pensando, mas a humilhante sensação de que todo mundo está transando – menos você. Essa pequena pérola da sabedoria saiu sem querer recentemente numa discussão – de trabalho, acredite – justamente sobre pornografia. E ninguém foi capaz de discordar (você seria?).

Lembrei-me disso quando, outro dia, achei um livro exatamente com esse nome, “Pornografia”, passeando numa livraria – e assim como os mesmos dedos que o trouxeram até aqui, a este blog, com a ajuda de um teclado (ou de um mouse), quase que involuntariamente lhe levam sem muita resistência ao segundo serviço mais procurado na internet (vai disfarçar?), meu olhos também quase que sem querer também foram atraídos para tal título na prateleira. Só de ler a orelha – não conhecia esse autor, Witold Gombrowicz -, antes mesmo de comprar, achei que poderia ser interessante fazer uma conexão entre o livro e a grande festa que então estava para chegar, a maior manifestação popular do Brasil: o carnaval.

Ah… o carnaval…

Ao contrário do último post – no qual eu abri mão de falar desse assunto por outro que acabou tornando-se mais, hum, polêmico -, hoje nós vamos sim discutir “Pornografia”. Mas daqui a pouco, porque não posso deixar passar em branco os 395 comentários (até o momento em que escrevo este texto) enviados em resposta à singela pergunta sobre o que você faria se fosse responsável pela programação de uma TV aberta e tivesse de decidir entre transmitir o desfiles das escolas de samba do Rio ou o Oscar.

Tentei fazer a conta para um placar parcial – pois a discussão continua aberta (se você ainda quiser participar). Mas toda vez que estava fazendo um esboço de tabulação, me perdia lendo este ou aquele comentário – e minha conta ia embora. Tenho a sensação, porém, de que temos empate mais ou menos equilibrado – um resultado curioso… Contudo, tenha em mente que o que realmente me interessava, ao lançar um debate como esse, não era o “quem vai ganhar?”, mas justamente como você argumentaria sua escolha.

Teve de tudo: defesas apaixonadas da cultura nacional vindas de diretores de cinema (“Salve o povo Brasileiro, que diante de tantas manchetes, consegue promover tal festa”, Tiago); argumentos poéticos “pró-filmes” (“O Oscar é algo que nos conecta com o mundo inteiro, com a paixão pela sétima arte, com o fascínio que 120 minutos exercem de forma alucinante e alucinada sobre o espectador”, Camila Fronza); votos para o carnaval, sob protestos (“Mesmo não suportando o desfile das escolas de samba – carnaval mesmo é o da Bahia, minha terra! -, prefiro prestigiar a cultura nacional”, Rodrigo); questionamentos equilibrados (“Eu me faria a seguinte pergunta… que tipo de público quero formar com a programação exibida?”, Kizzy Costa); citações curiosas (“Bem, a audiência, meus caros, representa que o samba, como disse Nelson Sargento, agoniza, mas não morre”, Cassius); defesas inesperadas à nossa cultura, mesmo de quem transmitiria o Oscar (“E se a desculpa da vez é o fato dos gringos gostarem de assistir ao carnaval, eles que venham… vão movimentar a nossa economia”, Monique Lôbo); comparações inusitadas (“Deixar de passar na TV o carnaval para exibir uma cerimônia do Oscar seria o mesmo que deixar de exibir uma final de Copa do Mundo de Futebol, entre Brasil e qualquer outro time do mundo, para passar no mesmo horário a final de Futebol Americano entre Los Angeles Lakers e outro time norte-americano qualquer!!!”, Ricardo Neves Gonzalez)

Não faltaram digressões meio alucinadas sobre “a maldade que se esconde por trás dos corações dos programadores de TV” – nem gente que, com muita propriedade, lembrou que televisão é um negócio, e que, portanto, obedece geralmente às ondulações de um mercado. O Nordeste se levantou – e com razão! – em defesa do seu carnaval. Os neo-puritanos aproveitaram a “janela” para ressaltar os efeitos “nocivos” dessa festa pagã – eles não cansam… Teve até quem criticou minha ingenuidade de achar que Vaticano e Academia deveriam conversar mais – provando mais uma vez que a ironia é mesmo uma habilidade adquirida…

Entre quase 400 opiniões, é difícil selecionar apenas algumas, mas antes de passar a “Pornografia” (sem crase, já que me refiro ao livro, aqui editado pela Companhia das Letras), queria só destacar pelo menos duas opiniões entre as que mais me divertiram. Primeiro, uma que, como acontece em todo debate interessante, tentou levar a discussão para outro nível:

“Eu esperava uma defesa mais embasada e apaixonada dos amantes da folia, mas essa de que tem muita gente que assiste os desfiles pra absorver cultura, história e informação foi demais pra mim.  É o mesmo que dizer que tem gente que compra a Playboy por causa dos artigos sociais e das dicas de culinária”, Fábio Guedes.

Depois, esse outro que, na sua simplicidade – quase de haicai – trouxe a melhor contribuição para unir opinião equilibrada e humor:

“No Brasil, Samba, no resto do mundo, Oscar (vulgo samba do crioulo doido)”, Salomão Terra

De fato, neste domingo, seja no tapete vermelho ou na Sapucaí, é melhor estarmos preparados para mais uma temporada de “samba de crioulo doido”. E se você precisar de uma boia para não se afogar em tanta folia – não faltaram, claro, comentários de gente que vai passar os feriados longe de Oscar e de carnaval -, deixe-me recomendar-lhe a leitura desse livro chamado “Pornografia”.

Mas antes um aviso: você não vai encontrar nem a sombra do que uma pesquisa rápida na internet com a palavra “sexo” pode te trazer apenas com um clique. Se estou aqui estimulando (sem trocadilhos, por favor!) seu encontro com a obra de Witold Gombrowicz, não é exatamente para mexer com os estímulos que a pornografia virtual traz tão facilmente ao seu computador, mas justamente para você explorar o que ela não traz – ou melhor, o que um dia já trouxe, e hoje, pelo fato de ela ser tão explícita, já nem mais desperta: a fantasia.

“Pornografia” é um livro pequeno, mas de uma força imensa. Num breve resumo, ele conta a história de dois amigos intelectuais de Varsóvia, em 1943 – numa Polônia ocupada pela Alemanha, na Segunda Guerra Mundial – que vão passar os dias numa casa de campo, e lá, surpreendidos pela beleza de um casal de jovens de 16 anos, começam a elucubrar sobre um possível romance tórrido entre os adolescentes (que, como é sempre lembrado, se conhecem “desde criancinhas”).

Os motivos que levam o narrador – que tem o nome do próprio autor – e seu colega Fryderyk – a elaborar tal fantasia são os mais surreais possíveis – por exemplo, um mero ato de esmagar uma minhoca com os pés! A moça, Henia, está ficando noiva de um bom partido. E o garoto, Karol (como aquele papa polonês, lembra-se?), que mora na casa dela de favor e faz serviços gerais, diz que prefere as mulheres mais velhas (a própria mãe de Heidi). A suposição de que os dois sentem-se atraídos um pelo outro parece improvável, mas tamanha é a convicção de Witold ao narrá-la que impossível mesmo é o leitor não ser convencido de que ali tem alguma coisa…

Não vou, claro, desvendar essa trama – até porque espero fortemente que você o faça tendo o prazer de ler “Pornografia”. Quero só acrescentar que, muito além do desenrolar da história, o que mais me interessou na obra de Gombrowicz (que nasceu na Polônia, mas passou 24 anos na Argentina, até mudar-se para a França, como um aclamado escritor) foi descobrir o que estava por trás da compulsão daqueles nobres intelectuais: não simplesmente uma perversa fantasia erótica, mas um profundo questionamento sobre a passagem do tempo.

Logo de início, palavras como “menino” ou “jovem” são escritas entre parênteses – com uma vaga promessa de justificativa para tal excentricidade mais à frente na história (aliás, parte de eu ter gostado tanto do livro vem de uma modesta identificação de estilos: foi bom encontrar alguém que também abusa de parênteses, travessões, reticências, pontos e vírgulas e outros recursos no seu texto, como este que vos escreve…). E à medida que a história avança, fica cada vez mais claro o verdadeiro objeto de obsessão daqueles senhores: a juventude de Henia e Karol!

“Comecei a me sentir mal só de pensar que sua beleza buscava a minha feiúra”, diz Witold sobre um passeio de carroça com Karol. Ele está incomodado, tentando perguntar diretamente, pela primeira vez, se o adolescente tem algum interesse pela menina – mas a conversa se mostra menos reveladora do que ele esperava, quase um desastre, simplesmente porque ele não consegue superar seus impulsos. E momentaneamente enlouquece:

“Como eu, um adulto, colocava toda a minha atenção a serviço da desatenção dele e, trêmulo de emoção, ficava ouvindo alguém sem importância?”.

“Morte em Veneza” vem à lembrança, mas com um elemento diferente – agora é um casal que provoca o delírio de “nosso herói”. Mais adiante, ao ter uma conversa parecida com a própria Henia, mais uma vez enlouquecido, Witold desabafa:

“A minha situação, aquele banhar-se no erotismo deles – aquilo era impossível! Eu deveria me ocupar de algo diferente, algo mais adequado, ocupar-me com questões mais importantes! Será que era tão difícil assim retornar a um estado normal, que eu tão bem conhecia, no qual a cada momento surgem coisas interessantes, enquanto aquelas palhaçadas com a juventude tornavam-se dignas de desprezo?”.

Sim, meu caro Witold, é difícil voltar a qualquer estado conhecido quando estamos seduzidos por uma fantasia… E você sabe muito bem disso – todos nós sabemos (não sabemos?).

Foi por isso que, justo agora quando estamos prestes a mergulhar em mais uma temporada de devaneios carnavalescos, achei oportuno recomendar “Pornografia”. Vem aí, novamente, mais uma festança que, no seu desespero de nos liberar para fazer qualquer coisa, nos transforma a todos em extremos de feiúra como o Witold do livro. Durante os quatro dias, tudo vai ser possível – o que não significa que tudo será realizado… Assim como a fantasia dos “coroas” intelectuais poloneses, as nossas de carnaval podem trazer consequências imprevisíveis. Vá e brinque – quem sou eu (que espero fazer a mesma coisa) para sugerir o contrário? Mas só fique meio ligado com o que pode vir depois…

Na segunda-feira, então, estarei me divertindo à minha maneira – impossibilitado, assim, de comparecer com um novo post. Mas quinta que vem estou de volta – quem sabe com um balanço geral do que eu acabei escolhendo para desfrutar meu domingo de carnaval…

Boa festa! Ou bom Oscar! Ou, quem sabe, boa leitura…

Digamos que a decisão fosse sua…

seg, 16/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Para o Carnaval – ou ainda, para o grito do Carnaval -, eu tinha decidido escrever sobre um livro que acaba de ser lançado chamado “Pornografia”, do escritor polonês Witold Gombrowicz (Companhia das Letras). A linha que conecta essas duas coisas é bem sutil, mas só vou convidar você a descobri-la no post de quinta-feira, porque hoje achei mais oportuno abrir um debate, inspirado por, digamos, acontecimentos recentes.

Não foram poucos os que usaram este blog – os que se manifestaram de maneira razoavelmente educada foram publicados (outros tantos, mais, hum, desbocados, devem estar, tenho certeza, repercutindo sua indignação não aprovada aqui alhures) – e minha caixa de correio pessoal para protestar contra a exibição, em TV aberta, dos desfiles das escolas de samba do Rio, em prejuízo da festa do Oscar. Você sabe: por uma coincidência no calendário, os dois eventos este ano caem no mesmo dia, em horários que se sobrepõem – será que o Vaticano (que, em última análise, é quem decide, ironicamente, a data do Carnaval) não conversa com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood?

Para quem gosta das duas coisas, esta é uma infeliz fatalidade. Eu mesmo, recentemente, dividi com você minha “dúvida cruel” – ainda não resolvida: a passarela da Sapucaí ou o tapete vermelho do Kodak Theater? O que você escolheria? Ou melhor – e essa é a discussão que eu queria abrir com você: se você tivesse o poder de decidir a programação de uma rede de TV aberta e visse-se diante desse impasse, o que você escolheria para exibir para o grande público?

Esse debate, claro, não terá poder algum de mudar programação de TV nenhuma. Mas queria saber seu ponto de vista: como deixar o maior número de pessoas contentes? Como decidir o que é mais relevante? Qual seria sua opção: samba ou cinema?

Sei, pelo nível de outros debates que a gente já levantou por aqui, que o que deve surgir dos comentários é uma argumentação interessante, equilibrada, sensata – e, por que não, apaixonada. É isso que eu e você que sempre frequenta aqui estamos esperando. Assim, quem não superou ainda aquele impulso pré-adolescente de usar palavrões para “sustentar” sua opinião, nem precisa se esforçar para escrever alguma coisa. Teorias conspiratórias sobre a decisão de mostrar Carnaval – e não Oscar – também estão dispensadas.

O que estou propondo é um debate saudável de idéias, sobre cultura. O que é mais relevante para você (e sei que estou perguntando isso para leitores e leitoras que, como já demonstraram em comentários anteriores, que são muito fãs de cinema)? Leve tudo em consideração: canais abertos, a cabo e, inclusive, esta mesma internet onde você agora me lê (não se esqueça que será possível até acompanhar a cerimônia pelo computador). E mande para cá sua opinião:

A maior festa popular do Brasil ou a maior festa do cinema mundial?

zeca-arte.jpg

Homem sem agá

qui, 12/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

antonyzeca.jpgO nome Antônio, em inglês, geralmente é grafado assim: Anthony – com um “h” depois do “t”. Antony Hegarty, o cantor – personalidade, idealizador, “muso”, na foto ao lado – dispensa a letra em seu primeiro nome e no de sua banda, Antony and the Johnsons, que acaba de lançar um novo álbum, “The crying light”. No seu pop genial, Antony dispensa outras coisas também – joga para cima todas as convenções musicais, rejeita qualquer apelo sensual, mira na contramão das tendências e persegue um caminho totalmente original. Mas é sobre esse agá que lhe falta que eu queria falar antes de recomendar – com fervor – seu novo disco (e todos os anteriores, se você nunca o ouviu).

Na segunda metade de 1973 eu tinha dez anos de idade. Já comentei isso em várias entrevistas, mas vale a pena lembrar que me lembro direitinho da estreia de um programa chamado “Fantástico”! O pessoal da minha idade – e, claro, aqueles um pouquinho mais velhos – certamente se recordam do impacto de ver aquela abertura, aquelas longas reportagens sobre ciência (foi lá que eu ouvi pela primeira falar em criogenia humana!), as histórias de Azambuja contadas por Chico Anysio, e os números musicais, claro. Entre eles, nenhum marcou tanto a minha memória nessa época quanto o dos Secos & Molhados (não era nem nascido? – tudo bem: aqui tem um pequeno trecho desse antigo vídeo e mais uma brilhante releitura de 2003 do sucesso “Sangue latino”). Para quem não viveu a caretice da cultura geral desse início dos anos 70 (eu era pequeno, mas já estava ligado…), fica até difícil descrever o choque que era ver aqueles caras fantasiados e fazendo um som que não se parecia com nada do que tocava nas rádios de então.

Resumindo bem, basta dizer que Secos & Molhados virou uma obsessão nacional – de idolatria, de admiração e de curiosidade. Quem eram aqueles caras? E, sobretudo, que voz era aquela?

Bem, algumas décadas depois, não só já sabemos bem de quem era aquela voz como também já acompanhamos a trajetória de seu dono, nas incontáveis transformações “camaleônicas” (inclusive a mais recente, mais que apropriadamente batizada de “Inclassificáveis”) desse grande artista que é Ney Matogrosso.

Aquele disco de estreia com os Secos & Molhados mereceria um post só para ele – quem sabe em breve… E não apenas por causa de “Sangue latino” – minhas faixas favoritas desse álbum têm menos de um minuto (será que você sabe dizer quais são sem ter de dar um google?). Mas para seguir no nosso assunto hoje preciso dar um pulo no tempo até 1981, quando o Brasil inteiro cantava, inspirado por ninguém menos que o próprio Ney, um xote chamado “Homem com h”.

Sendo bem breve (novamente) nessa linha do tempo, o país tinha saído recentemente de um processo que foi chamado de “abertura” – referindo-se principalmente ao cenário político, mas que, inevitavelmente também trouxe consequências para a cultura. Mas, mesmo nesse clima de euforia, de “pode tudo”, ter aquela figura andrógina, seminua, coberta apenas com franjas, tão saltitantes quanto o próprio corpo que inutilmente tentavam cobrir, cantando essa letra surreal, era pura provocação – que, diga-se, o Brasil abraçou sem preconceitos. Agá ou não agá, aquele homem ali no palco (e nas rádios) tornou-se uma referência nacional – e mundial.

Não preciso nem discorrer aqui sobre os vários talentos de Ney – como “performer”, como artista, como tudo -, mas ouso dizer que, sem aquela voz única, ele teria de se esforçar muito mais para ter tido todo esse sucesso. O fascínio das cordas vocais de Ney é inexplicável – daquelas coisas que nem a neurociência ainda conseguiu entender. Como um timbre desse age no nosso cérebro? Eu sei lá… Mas sei que o resultado é um prazer puro, onde a estranheza supera o estágio do incômodo e passa a ser exclusivamente um agente do prazer.

E não é sempre assim? Não é a voz que manda na música? Sim, eu sei, melodia é parte fundamental desse processo misterioso que nos faz gostar de uma determinada sequência de notas musicais – esse assunto me interessa particularmente! Mas quando uma poderosa frase musical encontra uma voz singular, o nome disso é nirvana (trocadilho com a banda de Kurt Cobain opcional). Se essa voz é masculina – e nova, e diferente -, esse prazer é ainda mais inesperado. E quando se chega a esse estágio, quem é que está ligando para um agá?

Ney é talvez o exemplo mais acessível para o grande público brasileiro do que estou querendo dizer. Mas no pop internacional, a lista é grande… (outro que me vem agora à memória é também incomparável Marc Almond, um dos meus ídolos – presente, aliás, com várias canções na minha lista de mil músicas que fizeram diferença na minha vida; se quiser ter uma amostra, procure por “My hand over my heart” aqui mesmo na internet, ou por qualquer coisa de Marc & the Mambas, ou mesmo do Soft Cell). Grande e incompleta, pois (felizmente) sempre tem gente nova aparecendo para nos surpreender – como Antony Hegarty.

“Descobri” Antony and the Johnsons numa visita, há alguns anos, a uma de minhas lojas de disco favoritas, a Other Music, em Nova York (uma das poucas que resistem ao avanço inexorável da música digital, assunto que quero discutir em breve aqui). Como já devo ter dito aqui neste blog em algum momento, vou atrás de tudo o que está na estante de recomendados de lá – e naquela visita, “I am a bird now” era um dos destaques.

antonybirdzeca.jpgAntes mesmo de ouvir o disco, porém, a figura da capa me chamou a atenção. Eu conhecia aquela foto – uma imagem clássica da fotografia alternativa, do americano Peter Hujar, com Candy Darling (uma figura também andrógina dos anos 60, que fazia parte da galeria de personagens da Factory de Andy Warhol) supostamente no seu leito de morte. Hum. Que tipo de artista usaria uma referência dessas? Logo fiquei curioso. E quando ouvi finalmente o CD, simplesmente não acreditei.

Que voz era aquela? – era a pergunta que estranhamente ecoava na minha memória. Quem é esse louco? De onde vem esse som? Qual a mensagem disso tudo? Que tipo de música é essa? Pop, mas não da maneira como você conhece – como resumiu brilhantemente Daniel Trilling, num artigo recente no “Newstatesman”. Mas, apesar de eu ter aprofundado meus estudos sobre a figura de Antony Hegarty nesse anos todos – e ter conhecido até um dos músicos da sua banda, o baterista Parker Kindred -, eu ainda não tenho respostas para todas as perguntas que esse artista propõe.

Entre “I am a bird now” e “The crying light”, muita coisa aconteceu. A comunidade musical antenada também “descobriu” Antony (uso aspas aqui, como usei anteriormente, porque muita gente já o conhecia do circuito de cabaré nova-iorquino há anos) e ele virou uma espécie de figura cultuada. O “guru-folk-alternativo” Devendra Banhart gravou uma versão do seu “hit improvável”, “Fistfull of love” (algo como “Porrada de amor”). Björk o convidou para participar de seu álbum “Volta”. E um dos grandes sucessos da pista de dança (alternativa também) de 2008, Hercules and Love Affair, tinha também a participação de Antony (sem contar outras tantas parcerias, de Boy George a Lou Reed).

antonylightzeca.jpgMas nenhum desses “desvios” tirou Antony and the Johnsons do seu caminho. O novo álbum (ilustrado com a foto estranhíssima, ao lado, do famoso dançarino de butô, Kazuo Ohno) vem com a mesma carga emocional – e a mesma capacidade de contrariar as convenções do pop dos trabalhos anteriores. Para começar, tem a voz – que, mesmo que você já conheça, é sempre um susto (no melhor dos sentidos). Depois, os arranjos – onde mais você encontra hoje em dia violinos tão distorcidos, flautas e (!) oboés? E por fim, a estrutura hipnótica das canções que, mesmo quando enterram os refrões em camadas sonoras, são capazes de demandar completamente sua atenção. (Aliás, quantos discos hoje em dia conseguem fazer parar tudo apenas para ouvi-los? Este consegue!).

Ah, e tem ainda as letras! “Eu nasci para te representar/ para levar sua cabeça até o sol/ para esculpir seu rosto no sol” (“Crying light”). “Epilepsia está dançando/ ela é o Cristo de partido/ e eu vou encontrando meu ritmo/ enquanto me contorço na neve” (“Epilepsy is dancing” – que título é esse?). Ou ainda: “Eu vou sentir falta das coisas que crescem” – verso de “Another world”, um canto expressamente dirigido (mas nunca óbvio) à destruição da natureza.

Nas matérias sobre o disco, o cantor diz que essa é sua mensagem – sua preocupação com nosso planeta, com nossa vida. Mas talvez você nem perceba isso. A beleza de suas músicas, de sua voz, de suas melodias, de seus sons, está além de qualquer tema que ele queria explorar. O poder de Antony and the Johnsons extrapola tudo isso. Ele não está aqui para catequizar ninguém. Sua arte, assim como a de Ney Matogrosso, Marc Almond, e tantos outros, transcende e torna insignificante qualquer proposta messiânica.

Como ele mesmo canta na faixa que é a minha preferida de “The crying light”, “Kiss my name”, Antony – esse que tornou irrelevante a presença de um agá – está lá, quando muito, para “tentar beijar os amigos e, quando eles estiverem destruídos, tentar repará-los”.

Foto 1 – Crédito: Don Felix Cervantes/MySpace do artista

Fotos 2 e 3 – Crédito: Reprodução

Sobre planos adiados

seg, 09/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

winslet_globo.jpgTalvez essa piada tenha passado despercebida por você durante a cerimônia deste ano do Globo de Ouro. Talvez toda a cerimônia do Globo de Ouro tenha passado despercebida por você – algo do qual você jamais deve se sentir culpado ou culpada (o que conta mesmo, é o Oscar, você sabe…). Qualquer que seja seu caso, vamos a uma rápida descrição da brincadeira entre o comediante Ricky Gervais e a atriz Kate Winslet pra a gente poder continuar. Ou talvez seja ainda melhor contar antes um pouco do episódio de uma série de TV que gerou a tal piada.

“Extras” é uma das melhores coisas que já foi feita na TV a cabo de qualquer parte do mundo. Nunca viu? Mais uma vez, a culpa não é sua. Se não me engano, acho que ela só passou meio escondida no Brasil – num canal “premium” da HBO, se minha pesquisa da internet foi eficiente. Mal registrou na mídia, e eu mesmo acabei assistindo por insistência árdua de um amigo meu que é fã da série – e de Ricky Gervais, seu criador. E tive de comprar uma caixa de DVD na internet para conseguir tal, digamos, raridade.

Gervais, claro, é o comediante inglês que se tornou famoso mundialmente com “The office” – o original britânico, e não o quase-pastiche da versão americana. Embalado justamente por esse sucesso, ele conseguiu produzir esse projeto que desenvolvia há anos: histórias de figurantes que sempre participam de grandes produções – e são até bons atores e atrizes – mas nunca conseguem um papel significativo (quanto mais com falas!). Um desses figurantes é vivido pelo próprio Gervais, mas a grande graça da série é que, a cada episódio ele convida uma grande estrela de Hollywood para fazer o papel dela mesma.

Todos sempre aceitam de bom grado, porque sabem que o roteiro é inteligente – e, principalmente, engraçado (ainda que “Extras” não seja daqueles “sitcoms” que já vêm com a trilha sonora de risada, tipo “Friends”, é uma das coisas mais hilárias – e aflitivas – que já vi desde “Curb your enthusiasm”). Para citar apenas alguns, entre as lista de celebridades que já passaram por lá estão Robert De Niro, Chris Martin (sim, Coldplay), Clive Owen, Ian McKellen, Ben Affleck, Daniel Radcliffe (sim, “Harry Potter”) – e Kate Winslet, que participou logo do episódio de estreia.

Numa das melhores tiradas desse “Extras” com Winslet, uma figurante se aproxima da atriz – que faz papel de uma freira que está salvando um grupo de pessoas dos horrores nazistas num trabalho pequeno de um diretor alternativo – para elogiar sua participação num filme desses “de arte”, por um cachê bem mais baixo que o que ela receberia numa grande
produção hollywoodiana. Winslet, que está num intervalo das filmagens, fumando ainda vestida de freira, dá então uma resposta inesperadamente ríspida – que não me lembro literalmente, mas é algo na linha: “Quem disse que eu estou fazendo esse filme por amor à arte? Eu quero é ganhar um Oscar! E fazer um papel num filme sobre o Holocausto é tiro certo? A melhor maneira de ganhar um Oscar é ter um papel forte em história de Holocausto, ou fazer um débil mental!”.

Uma checagem recente histórica só comprova essa “regra” – ao qual os mais bem-humorados estudiosos da premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood ainda costumam incluir o papel de “prostituta de bom coração”. Pense em “Rain man”, e o prêmio de Dustin Hoffman. Ou em Tom Hanks em “Forrest Gump”. Adrien Brody em “O pianista”, talvez? Liam Neeson em “A lista de Schindler” (só indicado… mas quase levou!)? Os exemplos são vários – e vou parar por aqui para não desviar muito do nosso assunto…

winslet_reader.jpg

O fato é que, anos depois de Winslet participar daquele “Extras”, eis que ela faz um filme chamado “O leitor” – e eis que ela é indicada para vários prêmios (inclusive o Oscar)! E, eis ainda, que ela ganha um deles, o Globo de Ouro – e quem está na festa é o próprio Gervais, que, na primeira chance que tem de subir ao palco vira-se para a atriz e brinca: “Eu não te falei que era só fazer um filme sobre o Holocausto que o prêmio viria?”.

Humor negro? Ironia do destino? Ou simplesmente um reflexo involuntário de um comediante genial?

Eu ainda não vi “O leitor” – está na lista desta semana, se eu conseguir… Mas vi o trailer (clique abaixo para ver), e não é preciso ser o Ricky Gervais para imaginar que ela está num papel perfeito para ganhar um Oscar (o que não significa que vá ganhar, claro, conhecendo a imprevisibilidade dessa premiação). Também dá para perceber, apenas por esses trechos, que ela está ótima na sua interpretação. Mas por outro lado, quando ela não está?

Você também é – como eu – da turma que acha que só sobreviveu as longas horas do “Titanic” só por causa dela? Que ótimo, acho que você vai gostar do que vou escrever agora.

Sou fã de Kate Winslet desde “Almas gêmeas” – uma pequena produção de 1994, assinada por um diretor que, naquele tempo, era totalmente desconhecido, um tal de Peter Jackson (seu Frodo interno já começou a tilintar? É ele mesmo: o homem por trás da adaptação para o cinema da trilogia “Senhor dos anéis”). Pouco tempo depois, ela já estrelava numa versão bem-sucedida de “Razão e sensibilidade”, chamando mais atenção do que Emma Thompson (coisa que ninguém achava que seria possível). Depois, claro, veio “Titanic” – e nunca mais seria possível deixar de acompanhar sua carreira.

Segui de perto e defendi a atriz mesmo em seus papéis mais infelizes – mesmo no teste de fogo para fãs chamado “Fogo sagrado”. Mas eu diria que de 2004 para cá, desde que fez o sensacional “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, ela não deu um passo em falso. Já escrevi aqui mesmo de “Pecados íntimos”. Adorei “Em busca da Terra do Nunca”. Me diverti até com “O amor não tira férias” (que vi num longo voo). E agora, semana passada, vi “Foi apenas um sonho” – e renovei meus votos de adoração eterna a Kate Wislet (que, só para dar mais uma referência, brilha no ensaio fotográfico que saiu domingo passado na revista do jornal “The New York Times”.

Fico tentado a gastar aqui um parágrafo só sobre a incrível capacidade das distribuidoras brasileiras inventarem títulos bizarros para filmes que eles acham que a tradução literal do inglês não é muito, digamos, popular… Por exemplo, será que “Rua Revolucionária” – ou até a adaptação “Rua da Revolução” – seria tão repugnante assim para as platéias brasileiras? Será que eles acham melhor um título “sacado” – este, no caso, tão mal sacado, que praticamente conta todo o enredo do filme numa frase? Sei que você seria capaz, com sua indignação, de contribuir com várias outras “traduções” para essa discussão – mas se entrarmos nela, como é que vou falar do tanto que gostei de Kate Winslet em “Foi apenas um sonho”? Vamos então ao filme.

winslet_revolutionary.jpg

Primeiro, aos fãs de Leonardo DiCaprio, eu sinto informar que o filme não é dele. É só de Kate. Sim, eu sei que o personagem dele – um jovem ambicioso e sonhador, que troca seus ideais por uma vida pacata num subúrbio americano (na tal “Rua Revolucionária” do título) e um emprego que ele detesta, mas que paga bem – foi feito para ser um daqueles “grandes papéis americanos” que ajudaram a definir o teatro moderno nos Estados Unidos (pense em Arthur Miller). Sei ainda que reunir o casal de atores de “Titanic” era, obviamente, também uma tentativa de reproduzir aquela química entre eles. Mas lembre-se que o filme é de Sam Mendes – o ousado e provocador diretor de “Beleza americana”, que por acaso também é o marido de Kate Winslet. Adivinha então quem é realmente o foco da história?

Não que o personagem de DiCaprio seja ruim – o problema é que ele é um clichê. Bem escrito e bem interpretado. Mas um clichê. Já o de Winslet – uma mulher apaixonada, que tenta reacender no marido a mesma chama que ele tinha quando ela o conheceu, como antídoto para sua frustração e fuga de uma vida sem ideal -, por pouco também não esbarra nessa armadilha. Porém, a interpretação da atriz e o final ligeiramente atordoante de sua personagem, resgatam essa esposa suburbana – que muitas vezes lembra aquela mulher interpretada por Julianne Moore em “As horas” – da normalidade e a torna uma mártir das oportunidades perdidas. Ou se preferir, dos planos adiados.

Aliás, foram eles que “me pegaram de jeito”. As acaloradas discussões de casal, as sorrateiras infidelidades, o desejo bipolar pelo parceiro, os constrangedores  silêncios depois das brigas – tudo isso a gente já viu o bastante no cinema, e “Foi apenas um sonho” oferece mais do mesmo. O que eu achei mesmo comovente no filme é a presença incômoda de promessas que não foram cumpridas. O casal não mora numa rua que tem revolução no nome à toa. Quando eles se mudam para lá, a agente imobiliária (interpretada pela nunca menos que ótima Kathy Bates) já insinuava que eles se encaixariam perfeitamente numa rua como aquela – e toda a expectativa da vizinhança é de que o casal Wheeler cumpra a promessa de ser diferente, especial.

Logo no início do filme, quando eles se conhecem, a semente de todas as revoluções está lá, na cena em que, numa conversa rápida, DiCaprio “ganha” Winslet falando de seus planos para o futuro. A história é então abruptamente catapultada para cerca de dez anos depois, quando os Wheeler, com dois filhos e uma bela casa, são vítimas  de uma vida chata que nem eles mesmos podiam imaginar que teriam. A saída, proposta por Winslet, é simples e ousada: jogar tudo para cima e ir para Paris! Viver de quê? Ah, isso depois a gente resolve…

É nesse devaneio momentâneo – e nos seus desdobramentos dele, que Winslet brilha. É no desespero de ver que nada do que eles planejaram pode acontecer, que o filme passa de uma simples história de um casal em conflito para um debate sutilmente mais existencial. É aí que ele fala comigo.

É difícil não ser auto-referente numa hora dessas. E talvez o fato de eu já estar na segunda metade dos meus 40 anos ajude nessa reflexão. Mas não existe nada mais cruel para mim do que não poder realizar o potencial máximo de um sonho – de um projeto, de uma ideia qualquer. Não precisa ser “largar tudo e ir para Paris” – pode ser qualquer plano. Das ambições mais ambiciosas – dar uma volta ao mundo (ou duas!) – às mais simples – passar um fim de ano cercado de amigos -, eu sempre tive a chance de correr atrás delas. Nem de longe posso dizer que realizei tudo que queria – aliás, espero ter fôlego para fazer ainda muitas coisas, grandes e pequenas. Mas a gente sabe que muitas histórias não vão para frente – que todo dia a gente cruza histórias de frustrações, de promessas não preenchidas, de gente que só ouve não. E isso acaba comigo.

Claro que eu sempre tento “virar o jogo” – ou orientar as pessoas nesse sentido. Como costumo falar, nada é tão estimulante como um não: ah, não pode fazer isso? Pois é aí que eu vou atrás mesmo! Mas sei também que nem sempre dá. E que um número absurdo de desejos simplesmente não se cumprem. Por isso quando chega um filme como “Foi tudo um sonho” e me lembra disso – não só das frustrações que resultam de planos infinitamente adiados, como das piores consequências que eles podem provocar (e as do casal Wheeler se espatifam de maneira espetacular) – eu fico meio mexido. E ainda por cima com Kate Winslet…

Arrisco aqui um palpite de que, se ela ganhar o Oscar (bem no domingo de Carnaval, que maldade – ainda não decidi se vou para a avenida ou para o tapete vermelho), não será por esse filme. Se o Globo de Ouro e a piada “nem tão piada assim” de Ricky Gervais são sinais de alguma coisa, suas chances são bem maiores pela atuação em “O leitor” – uma performance que eu já espero gostar bastante. Mas. se dependesse da minha vontade, seria como a encarnação de alguém que pensou em um dia buscar uma vida menos ordinária (uma das minhas expressões favoritas, aliás), ninguém vai deixar uma marca mais forte em mim nesta temporada cinematográfica do que a Kate Winslet que morava numa rua de nome inspirador.

Rebus

qui, 05/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

A primeira coisa que senti quando me vi diante do trabalho dos artistas Leandro Lima e Gisela Motta foi uma estranha emoção de ver ali, no meio daquele monte de lixo pulsando, a possibilidade de surgir uma coisa tão bonita como um coração. Mais ou menos na contramão da maioria dos comentários enviados para o post anterior, em que eu reproduzia o próprio trabalho – que se chama “IED”. A maior parte das interpretações foi justamente na linha do mundo decadente – do consumo, da industrialização, da saúde humana, da sujeira, da sociedade como um todo – destruindo (ou, no mínimo, envenenando) nosso pobre coração.

Não fiz isso como uma provocação explícita – como eu poderia saber por que caminhos os comentários iriam nos levar? Mas achei curioso como essas interpretações foram, ainda que involuntariamente, ficando cada vez mais derivativas, em cima de uma mesma idéia: nós, inconsequentes como sempre, provocando a destruição final daquilo que mais nos torna humanos – justamente o coração (um órgão que me traz associações especialmente queridas, como já escrevi aqui mesmo neste blog). Por que não o contrário? Por que não de uma sucata surgir algo como o coração? Aquele filme de animação, “Wall-e”, não era mais ou menos sobre isso?

Você pode achar que estou exagerando ao comparar o vídeo “IED” com “Wall-e” – mas não vamos nos perder nessa discussão, pois essa não é a questão que quero apresentar aqui. O que me chama atenção é justamente a possibilidade de muitas interpretações que uma imagem forte pode ter. E aí, ponto para a dupla Lima/Motta.

Passeando pelos comentários: Jorge Bomfim citou Titãs; André Timm o chamou de “coração transgênico”; Aquelina evocou a “Maria Fumaça”; AMOY foi buscar inspiração no Hamas – e no Irã!; E a Carla Cecília lembrou-se de “Admirável chip novo”, da Pitty. Um bom trabalho, como “IED” pode – e deve (?) – inspirar comentários tão diversos como o do Giovanni Nery (um PM, em João Pessoa, que diz “eu vi o quanto envenenamos nosso coração”), na linha mais intimista, e o da Thaïs Helena (espero que as pessoas não precisem mais de transplantes), mais prático – ou aquele assinado por um Paulo, que, citando “O mágico de Oz” através do seu criador L.Frank Baum (do livro, não do filme), diz que ele serviria para um homem de lata (mais na linha, aliás, do que eu mesmo pensei, de criar um coração de detritos).

E tudo isso porque o acaso (sempre ele!) me colocou há alguns dias na frente desse e de outros trabalhos de Leandro Lima e Gisela Motta, numa exposição de artistas vencedores da segunda edição do prêmio Sesi CNI Marcantonio Vilaça para as artes plásticas. Era uma mostra interessante – como a Alline, que já a tinha visto no Museu da República, em Brasília, confirmou no seu comentário -, mas que eu lamento informar que já terminou seu itinerário de quase um ano pelo Brasil no domingo passado, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura – em Fortaleza, Ceará. Dei sorte: visitei-a no Dragão do Mar num dos últimos dias, ao mesmo tempo em que descobria os vencedores da terceira edição do prêmio (que agora devem montar outra exposição itinerante nos próximos dois anos) – e bem nessa época em que eu estava pensando em escrever sobre o “choque do novo”.

Como escrevi num post anterior, ia usar esse mote para falar de música. Mas a idéia que discutimos – da perigosa cristalização do nosso gosto – serve para qualquer forma de expressão artística, não é mesmo? Inclusive nas artes plásticas, certo? Também nessa área há o perigo de a gente se encantar com alguns artistas/trabalhos/movimentos e depois achar que tudo que vier depois disso é bobagem, e não vale nossa atenção. Por isso achei interessante reciclar o conceito para dividir com você essa minha “descoberta” – ainda que tardia, no Dragão do Mar…

Foi lá mesmo, aliás, que eu vi pela primeira vez, já há alguns anos, uma grande exposição no Brasil de Vik Muniz – um dos fotógrafos brasileiros mais conhecidos e respeitados no mundo todo, e que agora também é foco de uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – em cartaz até dia 08 de março. Claro que, quando eu vi Vik em Fortaleza, ele já era um nome consagrado internacionalmente. Por isso mesmo a mostra me chamou atenção: como um artista naquele patamar ainda não havia ganho uma retrospectiva de peso no seu próprio país. A mostra do Dragão era competente – foi nela, por exemplo, que eu vi pela primeira vez a série “Earthworks” (na qual ele mistura fotos de desenhos de objetos na terra tiradas de um ângulo “aéreo” com miniaturas para criar a mesma ilusão). Mas era modesta.

Depois disso, continuei a encontrar seus trabalhos e museus pelo mundo – e cheguei até a fazer uma reportagem com ele, quando o artista desenvolveu no Rio um trabalho com sucata (série que também está na mostra do MAM). Mas a tal “grande exposição” ainda teria de esperar um pouco mais.

muniz_medusa.jpgOs cariocas agora têm o privilégio de mergulhar no instigante trabalho de Vik (os paulistanos vão ter a mesma sorte a partir de 23 de abril, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp). Aliás, pelo movimento que vi no MAM no domingo passado, por volta da uma hora da tarde, eles não estão desperdiçando essa oportunidade… Foi um prazer ver o museu cheio de gente, de todas as idades, falando, observando, rindo, se surpreendendo com os trabalhos (um público que, por tabela, ao subir a grande escada a caminho das salas onde as obras de Vik estão expostas, ainda tinha a chance de esbarrar com a interessante instalação de um finlandês chamado Osmo Rahuhala, que eu também não conhecia – por falar em “choque do novo”… de novo!).

Mesmo para quem conhece bem a trajetória de Vik Muniz, a retrospectiva do MAM é um presente. Seu trabalho é estranhamente familiar para muita gente, uma vez que, pelas próprias características da forma de expressão que o artista escolheu – a fotografia – ele pode ser reproduzido infinitamente (experimente dar um google de imagens com seu nome para ver se você não reconhece boa parte das fotos que vêm no resultado). Mas o impacto de vê-las de perto, como é possível agora no Brasil, é ainda mais forte.

Fiquei especialmente satisfeito de poder conferir algumas séries que eu nunca nem soube que existiam – como a de “Montinhos” (pequenos amontoados de materiais aleatórios, descritos em inglês no pé da foto, que criam inesperadas surpresas visuais) – e outras que eu só conhecia por reproduções – como os monstros de clássicos do cinema, Drácula e Frankenstein, feitos de caviar (uma espécie de contraponto a outra série mais famosa, de estrelas de Hollywood compostas por diamantes). E alguns “elos perdidos” da sua evolução como artista, que eram desconhecidos para mim – como sua primeiríssima série, “The best of ‘Life’” (ou, “O melhor da “Life’”, em cima de fotos da famosa revista americana), que foi a “pedra de toque” da sua linguagem; ou aquela que é talvez a mais poética das suas experiências, onde ele fotografa “nuvens” de algodão; ou as espertas reproduções de obras minimalistas do Whitney Museum (Nova York) feitas com a própria poeira do museu recolhida pelo aspiradores de pó que o limpavam diariamente -, enfim, essas investidas do artista das quais eu apenas tinha ouvido falar, também ampliaram o meu prazer de visitar a mostra do MAM carioca.

As possibilidades visuais propostas por Vik, nesses anos todos de trabalho (“The best of ‘Life’”, a série mais antiga, é do final dos anos 80) são tantas, que a sensação às vezes é de vertigem – não uma vertigem que você deve temer, mas se entregar. Da “Medusa” de espaguete ao Zeppelin de tinta (que reproduz as marcas de uma impressão de jornal numa escala gigantesca); dos catadores de lixo (feitos com o próprio) ao auto-retrato com confeti de páginas de revistas; e das comoventes crianças de açúcar aos incríveis quebra-cabeças – um deles, que reproduz um trabalho do famoso pintor holandês Hieronymus Bosch, conseguiu me confundir direitinho, pois consigo lembrar do trabalho só em partes, e não no todo (não sei nem dizer se era o “Jardim das delícias”, que tal?). A cada nova série, Vik propõe um convite a desvendar um novo enigma – e quem disse que nossos olhos resistem?

Mesmo em momentos, na minha opinião, menos bem resolvidos (como a série de pigmentos ou a de papéis) há, no mínimo, a insistência da criatividade – uma qualidade incansável de Vik, sobre a qual ele fala com desenvoltura neste vídeo que encontrei na internet , de uma palestra sua (em inglês), em Monterey, Califórnia, em 2003. Só uma mente inquieta (no melhor dos sentidos) como a desse artista pode oferecer coisas tão geniais quanto o mapa mundi feito de peças de computadores antigos (só de ser um mapa mundi já teria me ganho, mas o trabalho é sensacional mesmo) ou – outra novidade para mim, pelo menos na chance de poder vê-la assim de perto – a série “Mônadas”, com imagens como a de um jovem soldado composta de brinquedos (de guerra), que depois deu origem à série “Rebus” – também com brinquedos, mas com associações mais livres.

E “Rebus” é também o título da exposição no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, que teve a curadoria de Vik Muniz – e que eu tive a oportunidade de visitar quando estive recentemente na cidade (fica em cartaz até 23 de fevereiro, para quem puder passar por lá).

muniz_rebus.jpgNo dicionário Houaiss, rebus significa “enigma figurado que consiste em exprimir palavras ou frases por meio de figuras e sinais, cujos nomes produzem quase os mesmos sons que as palavras ou frases representam”. Na concepção de Vik, porém, tanto nas fotos que fazem parte dessa série, como no exercício do MoMA, a palavra evoca a associação livre de idéias – uma coisa leva a outra não exatamente pelo som que o nome do que está sendo mostrado tem, mas pelo imaginário que o que está ali representado desperta (modestamente, usei a palavra para o título do post de hoje pensando nisso também, como o Dragão do Mar me levou ao MAM, que me levou ao MoMA – mas eu divago…).

Num longo corredor em “u” montado numa sala do museu nova-iorquino, Vik juntou dezenas de objetos e obras de arte. Vale tudo: de um cubo mágico a um trabalho da excelente artista Rachel Whiteread; de uma escultura de Giacometti a um lápis de madeira; de uma foto de Nan Goldin ao próprio sinal de saída (“Exit”) que encerra a exposição. Há objetos que são obras de arte (uma gema de ovo de vidro, de Kiki Smith, ou um papel amassado – feito de metal – de Martin Creed) e vice-versa (tem um hambúrguer de plástico num pedestal que bem poderia ser um exemplo de “pop art” – mas não é). E há, acima de tudo, uma narrativa intuitiva – outro jogo de Vik, outro convite impossível de resistir.

No final, “Rebus” acaba sugerindo a própria essência da arte – a procura de associações, as sugestões de memórias e experiências, as possibilidades de descobrir coisas novas a partir de outras já conhecidas, a capacidade de provocar tudo isso com um simples trabalho. É poder, novamente e sempre, oferecer a tal vertigem – que, como já disse brilhantemente o cantor italiano Jovanotti (aqui já elogiado), não significa medo de cair, mas vontade de voar.

E tem gente que só quer gostar das mesmas coisas…

Por falar em “choque no novo”

seg, 02/02/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Mais sobre esse trabalho genial, quem está por trás, dele, por que eu o escolhi para ilustrar o post de hoje, e o que ele tem a ver com outra exposição genial que eu vi aqui mesmo, no Brasil, na quinta-feira. Enquanto isso, aguardo seus comentários… O que essa imagem te diz?



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade