Países estranhos
Mal cheguei da volta ao mundo e já embarquei para dois destinos curiosos. Nenhum desses países acrescentaram um novo visto – sequer um mero carimbo – ao meu passaporte. Mas ambos lugares me proporcionaram viagens inusitadas – quando não improváveis. Aliás, exatamente a experiência que eu estava procurando, pois quando nos entregamos a uma obra de arte, o mínimo que podemos ter como expectativa é descobrir um mundo novo. Não são exatamente paradas convidativas (por motivos totalmente diferentes), mas por caminhos absurdos, cada uma delas – uma pelo horror e outra pelo humor – me conferiu um certo aprendizado. O primeiro lugar nem tem nome, e é o cenário do último filme de Fernando Meirelles, “Ensaio sobre a cegueira”. O segundo chama-se “Absurdsvanï”, mas tem o apelido de “Absurdistão” – e é o título do novo livro de Gary Shteyngart, lançado agora do Brasil, pela editora Rocco.
Sei que estou um pouco atrasado neste comentário sobre “Cegueira”, mas, como você deve saber, eu não estava no Brasil quando o filme estreou por aqui. Mas pela importância que um lançamento tem – não só por Meirelles ser um diretor brasileiro, mas também por ser um ótimo diretor -, resolvi recomeçar minha agenda cultural pós-volta ao mundo por ele (e já vou comentá-lo). Mas achei uma feliz coincidência encontrar o trabalho de Shteyngart por aqui. Comprei esse livro logo que ele foi lançado nos Estados Unidos, entusiasmado pela minha lembrança de seu livro de estréia – lançado aqui sob o título “O pícaro russo”.
Poucas coisas que li nesses últimos anos merecem o título de delirante. “Headlong”, de Michael Frayn, sem dúvida. “Tudo se ilumina”, de Jonathan Safran Foer, também. Mas se o primeiro delira em erudição e o segundo no passado, “O pícaro russo” delira, digamos, no delírio… É uma comédia com passagens hilariantes (quantas vezes você riu recentemente apenas ao ler algumas páginas?), um olhar bastante contemporâneo, e uma influência – assumida – dos grandes autores da Rússia (onde o próprio Shteyngart – que mora desde os sete anos nos Estados Unidos, nasceu).
“Absurdistão” tem todos elementos que fizeram de “Pícaro” uma estréia aclamada, e mais um visível aprimoramento na capacidade de Shteyngart de tirar imagens belíssimas – e às vezes bizarras, às vezes tristes – de metáforas surpreendentes. Como esta: “Nós três emitimos em coro um som de pesar profundo com o nariz, a garganta e os lábios, como se sugássemos tragicamente o macarrão de uma panela de ferro”. Ou: “Chupei a gordura dos ossos como se eu fosse um aprendiz de pornografia”. Outras vezes, seu domínio das palavras transparece um descrições nada usuais, algumas engraçadas e outras profundamente melancólicas. Um exemplo da primeira:
“As piranhas do Valentin choraram diante do menu. A excitação e luxúria que sentiam pelo dinheiro eram tamanhas que nem sabiam falar os nomes dos pratos. Tinham que se referir a eles pelo preço”.
E para citar apenas uma das imagens melancólicas:
“Ela pousou as mãos no que eu chamo de ‘corcunda tóxica’, um montinho escuro e macilento de carne parada e má circulação, um monumento ao sedentarismo cultivado durante os dois anos do meu exílio russo, o repositório de toda minha raiva, uma espécie de anticoração nas costas, que faz minha tristeza pulsar”.
O fato de esses dois trechos que escolhi falarem de comida e gordura não é gratuito. O personagem principal de “Absurdistão” é o filho de um judeu russo que tornou-se membro da poderosa oligarquia que se formou naquele país durante os anos 90, e que é assassinado logo no início da história. Por uma proposta indecorosa feita pelo próprio assassino de seu pai, Misha (o filho) torna-se milionário – um milionário de 145 quilos, que sonha em voltar para a cidade onde fez a Universidade, Nova York, e onde também conheceu o amor de sua vida, uma dançarina de programa chamada Rouenna, natural do Bronx.
Inseguro, emocionalmente frágil, e sem nenhum projeto pessoal que possa ser levado a sério, Misha não consegue voltar a Nova York, mas, à procura de um passaporte belga, vai a um pequeno país que fazia parte da antiga união soviética chamado Absurdsvanï (ou “Absurdistão”) – e de lá não consegue mais sair. Você não vai achar esse lugar em mapa nenhum, já que é mais fictício do que o Cazaquistão de Borat. Mas devo confessar que algumas descrições me faziam lembrar o Azerbaijão, por onde passei nessa última volta ao mundo… Será?
A definição do local, no final, é irrelevante, pois o cenário só serve mesmo como pano de fundo para a saga terminal de Misha. Numa seqüência de decisões desastrosas – que foi bem descrita na contracapa do livro pelo escritor Aleksender Hemon, como um registro do “ápice da estupidez humana” -, Shteyngart nos faz alternar risos com ternura, numa história que, ainda que às vezes lembre “O pícaro russo”, é extremamente original. E deliciosa.
O país onde se passa o filme de Fernando Meirelles não é menos inventado que o Absurdistão. Para começar, como disse acima, não tem um nome declarado. Além disso, mas imagens que vemos no filme, reconhecemos alguns detalhes de São Paulo, mas há trechos em esquinas desconhecidas mesmo pelos paulistanos mais experientes – talvez porque tenham sido filmados em Montevidéu, a capital do Uruguai.
Porém, assim como no livro de Shteyngart, descobrir o lugar exato onde se passa a ação é menos importante do que se envolver com a história. O caminho em “Ensaio sobre a cegueira”, como já sugeri, não é o do humor, mas o do desespero. O filme é uma adaptação de um dos livros mais conhecidos do escritor português (premiado com o Nobel) José Saramago – uma adaptação, ao que li em vários comentários e resenhas, bem fiel (nunca li esse Saramago, mas confesso que fiquei com vontade depois de ver o filme). Talvez até fiel demais.
Sem ter lido o original, arrisco uma pequena crítica a um trabalho que achei não apenas brilhante como também corajoso (já explico a razão): “Cegueira” não te cativa desde o início. Para um filme que te deixa completamente mexido e emocionado quando entram os créditos finais, isso é um problema. Não sou do tipo que abandona um filme ao meio – muito menos no seu início. Mas por mais de uma vez tive de me esforçar para prestar atenção numa sucessão de fatos que me pareceu linear demais.
Esse pequeno esforço, porém, é recompensado (e muito) quando a ação passa a se concentrar no espaço usado como quarentena para as pessoas que foram infectadas com uma estranha epidemia que provoca a cegueira – não uma escuridão negra, mas um luminoso clarão branco. O início do filme é dedicado justamente a mostrar como a epidemia se alastra, mas as coisas começam a ficar realmente interessantes no confinamento. Especialmente porque entre os “novos cegos” está a mulher de um oftalmologista que não perdeu a visão: apenas foi para lá em solidariedade ao marido. E sobretudo porque quem faz o papel dessa mulher é Julianne Moore.
Mesmo descontando o fato de eu ter admiração absoluta por ela (até hoje não me conformei de Nicole Kidman ter levado o Oscar por “As horas”, onde Moore faz um trabalho infinitamente superior), seu trabalho em “Cegueira” é devastador. Todo o elenco está excelente – inclusive Alice Braga e Gael Garcia Bernal (que nos oferece a versão mais bizarra jamais registrada de “I just called to say I love you”, de Stevie Wonder. Mas Julianne Moore supera a todos.
Nós a vemos o tempo todo, mas ao mesmo tempo estamos vendo tudo com os olhos dela. Das primeiras tentativas de integração dos internados aos mais sórdidos esquemas desesperados de sobrevivência, é a mulher do oftalmologista que tem a vivência mais cruel de tudo aquilo – talvez justamente porque é a única que vê. Nós, espectadores, compartilhamos sua angústia de uma dúbia posição: será que queremos mesmo ver tudo aquilo?
Claro que com a inventividade visual de Meirelles é impossível não querer ver o que se passa na grande tela. Mas essa beleza estranha só acrescenta nosso desconforto quanto à história que está sendo contada. É bem aos poucos que vamos encontrando alguma esperança no desenvolver do filme – e mesmo quando ele termina (calma, não vou entregar nada para quem ainda não viu!), não temos a certeza de que é um final feliz. Saí bastante perturbado do cinema, num estado que me lembrou – por uma associação misteriosa – minha reação depois que assisti “Dançando no escuro”. E admirando mais ainda Fernando Meirelles por ter escolhido fazer um filme tão difícil.
É com trabalhos assim que podemos visitar lugares que não nos pedem nada como visto, a não ser uma mente aberta.