Lágrimas

seg, 30/06/08
por Zeca Camargo |
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teatrozeca.jpgExistem dois tipos de lágrimas: as que vêm do prazer e as que vêm da dor. Filosofia barata – dirão os mais apressadinhos. Mas essa definição não pretende, de maneira alguma, introduzir um tratado sobre as emoções humanas. Apenas justificar como, com uma só palavra, eu consegui resumir minha reação a dois livros que li recentemente – de dois autores que, coincidentemente (para quem acredita em coincidências), vão participar, no mesmo dia, da Flip deste ano.

Já vamos a eles, mas antes… mais um pouquinho sobre as lágrimas. Reduzi-las a apenas duas categorias pode parecer uma simplificação exagerada. Afinal, sem muito esforço, você consegue listar uma meia dúzia de tipos diferentes de lágrimas: aquelas que vêm da dor física; as que vêm das saudades; as que jorram dos seus olhos quando você tem um ataque de riso; as que brotam da emoção de ver um bebê nascendo; as que demonstram uma comoção diante de uma tragédia de proporções catastróficas (pense nas vítimas daquele tsunami); aquelas que surgem sem convite depois de um grande gozo sexual.

A essas seis que juntei aqui rapidamente, tenho certeza de que você poderia acrescentar mais uma dúzia – ou mais (os comentários estão aí para isso!). Mas observe: metade dessa minha lista tem a ver com momentos de alegria, e a outra metade, claro, com momentos de dor. Não dá para sair muito disso. E foi justamente nesse contraste entre as duas principais fontes de lágrimas no meu rosto que eu pensei quando terminei de ler o último livro de David Sedaris (“When you are engulfed in flames”, ainda sem tradução no Brasil), logo depois de ter lido “The ministry of special cases”, de Nathan Englander (“O ministério dos casos especiais”, que deve estar sendo lançado por agora numa edição em português).

Como indiquei no último post, o livro de Englander tem a ver mais com as lágrimas que vem da tristeza. Vou deixar para comentá-lo daqui a pouco. Uma vez que estou voltando de uma minitemporada de folga (quando, ao contrário do que sugeriu o Adalto Alves, eu fui cuidar da mente, e não do corpo – não que uma lipo devesse ser descartada…), com a cabeça leve e despreocupada, acho melhor começar pelas lágrimas que vieram dos risos – ou melhor, das gargalhadas provocadas pela leitura de David Sedaris.

david_sedarisgran.jpgDescobri esse autor no final dos anos 90, quando uma prima que mora em Nova York – onde ele já fazia um certo sucesso no circuito de humor alternativo – me deu de presente o que eu acho que foi seu primeiro livro oficial, “Barrel fever: stories and essays”. Li o magro volume num dia só, encantado com a facilidade com que Sedaris tirava humor das situações mais cotidianas – e, em especial, de episódios familiares. Inspirado por esse presente, fui atrás de “Holidays on ice” – também muito engraçado, e sedutor o suficiente para me convencer a ler, logo em seguida, “Pelado” (Editora Lugano). À essa altura, eu já era completamente fã – e foi com certa sofreguidão que esperei seus lançamentos seguintes, “Eu falar bonito um dia” e “De veludo cotelê e jeans” (ambos da Companhia das Letras). Idem para este trabalho mais recente, que, sempre ansioso, corri para ler em inglês.

“When you are engulfed in flames” (cujo título oficial em português deve ser algo como “Quando você é engolido por chamas”) é mais do mesmo: uma coleção de crônicas hilárias sobre instantâneos da vida do próprio Sedaris – da sua infância, adolescência, vida adulta, nos Estados Unidos, na França. Mas, no caso específico deste autor, “mais” nunca é demais e “mesmo” nunca significa uma repetição aborrecida. Pois por mais que você se acostume ao estilo de Sedaris – situação cotidiana que, por culpa geralmente do autor (mas pode ser de alguém de sua família imediata também), transforma-se num grande constrangimento –, sua leitura nunca é repetitiva. Aliás, se fosse, eu não tinha passado pela vergonha de ter explodido em risadas num avião cheio, vendo-me, assim, obrigado a dar satisfação ao viajante do meu lado de que meu comportamento era devido “apenas” a um livro que eu estava lendo…

A graça de Sedaris funciona melhor dentro de um contexto maior – um capítulo inteiro, onde você imagina toda uma situação. Mas insisto em transcrever aqui um trecho (na minha sempre apressada tradução) para ilustrar o seu talento cômico. É uma parte da descrição de sua experiência com uma espécie de cateter improvisado (“Stadium Pal”), formado por uma “camisinha adesiva” (!) ligada a um saco plástico que pode ser amarrado à perna, oferecido comercialmente para pessoas que precisam fazer xixi, mas não podem abandonar uma atividade – como assistir um jogo no estádio ou, no caso de Sedaris, enfrentar um vôo longo sentado na janela de um avião ou participar de uma leitura pública numa noite de autógrafos. Demorou apenas uma hora, depois de o aparelho ter sido “batizado”, para ele descobrir quer ele estava cheirando a “casa de repouso de idosos” – e não só isso:

“Além do que, eu descobri que era difícil mijar e fazer outras coisas ao mesmo tempo. Ler em voz alta, discutir as opções de bebida com a aeromoça, fazer check-in em um hotel: cada uma dessas atividades exigia uma distinta forma de concentração e, embora ninguém soubesse o que eu estava aprontando, ficava claro que alguma coisa estava acontecendo. Acho que era meu rosto que me entregava. Isso, e minha panturrilha, estranhamente inchada.”

Quando li isso, tive, pelas minhas contas, o décimo-quinto ataque de riso naquele vôo. Já tinha gargalhado com a (re)leitura – pois já havia lido este texto na “The New Yorker”, onde Sedaris é colaborador freqüente – da história da senhora Peackock, a babá tirana que a mãe dele contratou por uma semana (“A primeira coisa que eu reparei foi seu cabelo, que tinha cor de margarina e caía em ondas até o meio das suas costas. É o tipo de cabelo que você encontra numa sereia, completamente deslocado numa mulher de sessenta anos que era, não apenas pesada, mas gorda, e andava como se cada passo fosse seu último”). Ou com a primeira casa onde ele morou sozinho, que pertencia, para a alegria do autor, a uma mulher que adorava antiguidades, e todo dia chegava com uma velharia para sua decoração – até que a mãe dela mudou-se para lá (“Eu tinha esperança que nossas vidas continuariam assim para sempre, mas inevitavelmente o passado bateu à porta. Não do tipo bom, que dava para colecionar, mas do tipo ruim, que tinha artrite”). Ou com sua vizinha de Nova York (“Para Helen, um presente não era aquilo que você dava para a pessoa número um, mas aquilo que você não dava para a pessoa número dois”). E com tantas outras passagens.

Fiel à regra do “perco o amigo mas não perco a piada”, Sedaris não poupa ninguém – nem a si mesmo! Quando descreve uma das vezes em que foi comprar maconha com seu irmão, e que este, na frente do traficante e sua mulher contou que Sedaris era gay, a primeira coisa que o autor registrou foi a mudança no comportamento hostil da mulher do traficante:

“Sua mulher então acordou para a ação e ficou quase sociável. ‘Então, esse seu namorado’, disse ela. ‘Deixe-me perguntar. Qual de vocês é a mulher?’

‘Bem, nenhum de nós,’ eu disse a ela. ‘É por isso que somos um casal homossexual. Nós dois somos homens.’

‘Não não,’ disse ela. ‘Eu quero dizer, tipo, na prisão, tipo assim. Um de vocês está lá por assassinato e o outro por ter molestado uma criança ou coisa parecida, certo? Quer dizer, um é mais como um cara normal.’

Eu queria perguntar se esse seria o assassino ou o molestador de criança, mas eu apenas aceitei o baseado, dizendo, ‘Ah, a gente mora em Nova York,’ como se isso respondesse sua pergunta.”

“When you are engulfed in flames” vai ser inevitavelmente lançado por aqui – e espero que seja em breve. Mas enquanto ele não chega, aproveite o que já existe dele nas nossas prateleiras… e prepare-se para as lágrimas que virão – de tanto você rir.

E prepare-se também para aquele outro tipo de lágrimas, pois “O ministério dos casos especiais” deve ter sua tradução para o português lançada ainda este ano – e eu recomendo fortemente sua leitura. Não será simples, nem fácil. Por exemplo, o primeiro capítulo, onde Kaddish, o personagem principal está violando, com a ajuda de seu filho, um túmulo num cemitério judaico em Buenos Aires (com os mais “nobres” propósitos, no seu ponto de vista), é tão rico e elaborado que passar por ele uma só vez é um desperdício. É necessário lê-lo mais de uma vez, não só para entrar no ritmo intenso do autor, como também para penetrar no bizarro cotidiano sombrio do que vem a seguir na história: uma Argentina sob um dos mais desastrados e cruéis regimes militares de todos os tempos (sei que “desastrados e cruéis” e “regimes militares” numa mesma frase pode parecer um pleonasmo, mas permita-me uma “liberdade poética”…).

nathan_englandergran.jpgQuando citei este livro no post anterior, fiz a conexão entre seu cenário – a Argentina dos anos 70 – com o país onde a foto foi tirada, e que eu visitei há duas semanas: o Chile (palmas para a Andréia, que foi a única que acertou em cheio – mais sobre isso, daqui a pouco). Nathan Englander fez um retrato tão emocionante daquele lamentável período da história latino-americana (sim, pois ainda que sua história se desenrole especificamente em Buenos Aires, ela espelha muitos outros regimes da época, inclusive o do Chile – para não falar do Brasil…), que fica difícil acreditar que ele não é argentino, mas sim um norte-americano nascido (em 1970) em Long Island, NY. (Bom, acho que é isso que a gente pode chamar de boa literatura, não é? A capacidade de nos envolver numa história que é ao mesmo tempo estrangeira e inerente a quem escreve! Mas eu divago…).

Como qualquer jovem que lia livros “perigosos” e andava sem documentos na Buenos Aires de meados dos anos 70, o filho de Kaddish foi levado pela polícia e desapareceu. Isso acontece depois de uma das cenas mais dramáticas que eu já li nas páginas de um livro: no exato momento em que o pai diz ao filho – respondendo a uma seqüência de insultos e mal-criações – que gostaria que ele nunca tivesse nascido. E é exatamente isso, narra Englander com perfeição, que Kaddish e sua mulher, Lilian, passam a viver: a não-existência de um filho.

Aí, vêm as lágrimas.

Das tarde absurdas perdidas no ministério que dá nome ao livro às visitas suicidas de Kaddish às delegacias de polícia para obter qualquer informação sobre o filho; dos apelos de ajuda abortados pela elite militar ao silêncio e à ausência dos vizinhos que, até então, eram companheiros; da insanidade da mãe negando um desaparecimento que é fato, insistindo que vai ver, pela janela, seu filho dobrar a esquina a qualquer momento, ao desespero do pai ao ouvir, do próprio homem que os empurrava dopados de um avião em pleno vôo em direção ao rio, como os jovens presos eram executados na madrugada – são só lágrimas, lágrimas e lágrimas.

E não que elas precisem rolar, literalmente, por suas bochechas. Ler a história de Englander (que já tem seu primeiro livro de contos, “Para alívio dos impulsos insuportáveis”, lançado no Brasil pela Rocco) é se envolver em uma tragédia mundana não apenas como um observador, mas alguém que divide com aqueles protagonistas todas as emoções de uma situação sem saída. É o desespero, a aflição e a tristeza – tudo junto. É (lembrando-me aqui de uma expressão linda que aprendi quando passei por Angola) o “desconseguir”.

Por todas essas lágrimas – as do choro e as do riso – eu vou fazer o possível para estar em Paraty nesta sexta-feira, quando os dois autores, Sedaris e Englander, estarão presentes na Flip. Mesmo sabendo que as chances são pequenas de eu poder “escapar” para lá – qualquer que seja o dia desta semana – eu tenho que tentar. Nem que seja em nome da lubrificação dos meus olhos…

(Sei que o post de hoje está ainda mais longo que os de sempre, mas, considerando a “folga” da semana passada, acho que você ainda merece uma pequena extensão… Nada muito longo, apenas para acrescentar que fiquei surpreso que alguém tenha descoberto que estava em Sewell, no Chile, na foto do post anterior. De fato, ter lido a história de Englander por lá despertou estranhos paralelos durante a viagem. E, embora ainda seja cedo para falar o que eu estava fazendo por lá – mistérios! – adianto que foi uma das visitas que mais me deixou emocionado nos últimos tempos. Que lugar especial: uma (hoje) cidade-fantasma, que existiu quase isolada por décadas em torno de uma mina de cobre. Descrito assim, parece sem graça – mas garanto que não é. Conhecer Sewell mexeu bastante comigo. Mas isso é assunto para uma outra hora – assim como a resposta para a dica que dei semana passada e que, aparentemente passou despercebida: Sewell e Chan Chan tem alguma coisa em comum… O que será? Bem, cada coisa a seu tempo…).

Onde eu estou? (nível 2)

qui, 26/06/08
por Zeca Camargo |
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zeca_donde-estoy-3.jpgPara passar pelo nível 1 você teria de ter adivinhado – como alguns poucos adivinharam (aliás, vamos ver como vocês se saem no nível 2) – que a foto do post anterior foi tirada em Chan Chan, no Peru, em meio às ruínas de um dos templos de um imenso complexo arqueológico fantástico, localizado perto da cidade de Trujillo. Meu “novo amigo”, a quem me referi no último texto, é o ator de um grupo de teatro que pesquisa antigos rituais da cultura Chimu, que dominou a região entre os séculos 9 e 15, até terem sido dominados pelos Incas. Matou a charada? Não se preocupe: antes que isso vire uma aula de história pré-colombiana não solicitada, vamos ao “desafio” de hoje!

Como anunciei, adivinhar onde esta foto foi tirada talvez seja um pouco mais difícil… Para dar alguma pista, posso dizer que aquela cidade no topo da montanha gelada tem uma inesperada relação com Chan Chan… Só isso… (eu falei que não ia ser fácil!).

Enquanto você pesquisa freneticamente no seu “google images”, aqui vai mais uma dica – assaz indireta. É apenas uma coincidência – como tudo que me encanta –, mas pode te ajudar. É sobre o livro que estava lendo enquanto visitava este lugar. Chama-se “The ministry of special cases” (“O ministério dos casos especiais”), de Nathan Englander. E fala de uma nação – e de um período da história recente – que me fez lembrar o próprio lugar (da foto) que estava visitando.

“É bem mais fácil, neste país, desaparecer do que permanecer escondido”, diz uma personagem secundária, perto do final do livro. Embora presente em rápidos momentos, é essa mesma personagem, a mulher de um general, que oferece outro “momento de sabedoria” lúcido, nesse lugar onde todas as esperanças foram abandonadas. Ao tentar abrir, sem sucesso, uma ostra, servida na sua sala de jantar, enquanto ela e o marido recebem visitas desesperadas, ela desabafa: “Tem sempre alguma coisa podre por dentro quando elas estão tão fechadas assim”.

Essa é – jogada assim, casualmente – a melhor descrição de uma sociedade em colapso, retratada com inegável talento por Englander. Este autor norte-americano está na lista dos convidados para a Flip deste ano e, depois de ter lido “Ministério” – li em inglês, mas imagino que a tradução já esteja chegando às livrarias, por conta da sua vinda ao Brasil –, vou fazer o possível para assistir sua participação no evento (David Sedaris, é o outro autor internacional que me faria ir até Paraty – mas eu divago…).

Queria falar mais do livro – e do lugar que visitei na foto (já tem uma idéia de onde é?) – mas, só lembrando, esta é minha semana de “reciclagem pessoal”, e não vou me alongar por aqui. Semana que vem, falamos a fundo de Englander, do tal lugar, e do que mais o acaso jogar na minha frente…

Onde eu estou? (nível 1)

seg, 23/06/08
por Zeca Camargo |
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zeca.jpgVou dar uma reciclada pessoal esta semana. Mas deixar aqui apenas esta última frase seria – pensei – uma desconsideração muito grande com você, que me acompanha com bastante intensidade nas últimas semanas (aliás, este blog, assim, como os vinhos… etc.). Assim, enquanto estou fora (do país, da minha rotina, das referências de sempre), deixo aqui mais uma modesta charada. Você já sabe como funciona – mas, se quiser refrescar a memória, aqui estão as regras desse “jogo”.

Por que o “nível 1” do título? Primeiro, porque, na quinta, teremos o nível 2. Segundo, porque – eu mesmo admito – está fácil. Ou talvez nem tão fácil assim… Imagino que, só pelo visual, você já adivinhe em que continente estou, mas  isso não basta… quero os detalhes. Em que país, estou? E, mais detalhadamente, em que cidade (vale o nome da antiga e mesmo o da nova) a foto foi tirada? Que cultura/sociedade/civilização meu “novo amigo” está representando? E o que ela tem a ver com o lugar onde estou?

Viu? Para um “nível 1” até que apareceram bastante perguntas… Imagine o que vem por aí no “nível 2”… Até quinta!

O vento, os pássaros, efeitos especiais (poucos) e spoilers (muitos)

qui, 19/06/08
por Zeca Camargo |
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Foi preciso eu ler uma entrevista de M. Night Shyamalan na revista francesa “Les Inrockuptibles” para finalmente resolver aquilo que estava me incomodando desde que saí da sessão de “Fim dos tempos”, semana passada, em Paris. Li a entrevista no avião a caminho desse lugar de onde escrevo – e que não vou contar agora porque, claro, isso vai render um belo post tipo “onde eu estou?”, na segunda que vem. Enfim, como se não bastasse o texto, descobri ainda que o próprio diretor, no site da revista, esclarece, num depoimento em vídeo, aquilo que eu deixei escapar, mas que deveria ter sido óbvio desde os primeiros minutos do filme…

Antes de prosseguir, porém, um alerta: vou falar sobre “Fim dos tempos” – e filme de Shyamalan, como você sabe,  é melhor ser comentado com quem já assistiu. Assim, se você já faz parte desse grupo, bem-vindo, bem-vinda. Se não, tente não ler o que vem a seguir, pois, como indica o título deste post, vou contar várias coisas sobre esse último trabalho do diretor. Tem uma “terceira via” que é ler sem se preocupar com os spoilers: afinal, não é que eu vou contar o desfecho do filme, mas apenas comentar alguns aspectos importantes para o que quero argumentar, mas que (acho) não vão tirar seu prazer de assisti-lo. A questão é que eu me lembro muito bem do chilique que acometeu os fãs de Harry Potter quando eu mencionei um detalhe terciário de “As relíquias da morte”. Então, decida…

(Não quer se contrariar com os “spoilers”? Pare agora!)

birds3_350.jpgEnfim, perturbado desde que vi “Fim dos tempos” pela sensação de já ter passado por uma experiência como aquela, deparei-me com o seguinte trecho da crítica assinada por Jean-Marc Lalanne (traduzido, como sempre, apressadamente): “Shy conquista o desafio de aterrorizar com nada mais que uma brisa suave que faz ondular as folhagens e os arbustos”. Então era isso: o que me chamou atenção foi o fato de eu ter passado o filme todo tenso por causa de… um ventinho… No mesmo número da revista, o diretor confessava que um dos filmes que mais o inspirou dessa vez foi “Os pássaros”, de Alfred Hitchcock. Eureka! Eu sabia que já tinha me sentido assim antes – tão apavorado, e por tão pouco -, só não conseguia localizar na minha memória que situação havia sido essa. Aí veio toda a lembrança…

Eu ainda criança (faz tempo!), assistindo à TV até tarde no quarto dos meus pais – provavelmente um sábado à noite, que era quando eles saíam e “liberavam” o aparelho que ficava no quarto deles para os filhos assistirem a filmes “adultos” (não esse tipo de filmes adultos que você está pensando…) que passavam bem tarde. Sei que é difícil de acreditar, mas a TV aberta já passou, na sua programação normal, filmes como “Os pássaros”, de Hitchcock! E foi numa dessas sessões que me vi petrificado diante do que eu acompanhava na pequena tela.

Você já teve a sorte de ver “Os pássaros” no cinema – numa sessão especial, ou num festival? Que inveja… Eu só assisti a essa obra-prima dentro das dimensões de um televisor comum. Mas não estou reclamando – talvez tenha sido até melhor: se eu fiquei tão assombrado com a experiência “menor”, imagine qual teria sido minha reação (e o meu trauma) se eu tivesse sido apresentado ao filme numa telona…

Mas com o que exatamente eu fiquei tão assombrado? Com um bando de pássaros furiosos invadindo uma cidade? O quão chocante pode ser uma atmosfera como essa? Para platéias de hoje, acostumadas com pirotecnias que vão do “low tech” de “Cloverfield” às incríveis recriações digitais de “Guerra dos mundos” (versão Spielberg), será que uma simples revoada pareceria tão ameaçadora assim? Pode apostar.

Não vejo “Os pássaros” há anos. Já o revi algumas vezes, mas a última delas, pasme, foi numa cópia VHS, ou seja, há mais ou menos duzentos e trinta e sete anos. Mas me lembro vivamente como, com poucos recursos, o “mestre do suspense” era capaz de criar imagens que te aterrorizariam pelo resto da vida. A cena da cabine de telefone atacada por pássaros, por exemplo. No último “Indiana Jones” (o da caveira de cristal), formigas gigantescas arrastam um vilão para o formigueiro, numa seqüência que deveria ser tecnicamente impressionante, mas é apenas risível. Com menos animais – e, sobretudo, com menos poderes “sobrenaturais” que as formigas de Spielberg – Hitchcock torturava a mocinha na cabine (e quem estava assistindo) com requintes de crueldade.

Lembro-me ainda de outro momento em que um grupo, trancado numa sala, tenta proteger as janelas para que os pássaros não invadissem a casa. Alguns deles, mais possuídos, ferem os punhos de algumas pessoas nessa “batalha”, em cenas nas quais a quantidade de sangue equivale à usada em apenas um fotograma de “Jogos mortais” (1, 2 ou 3)- mas adivinha qual dos dois filmes foi mais eficaz no quesito “me fez ficar noites sem dormir”?

Essa simplicidade de Hitchcock – que usava sim efeitos especiais (compatíveis com os recursos da época em que seus filmes eram feitos – “Os pássaros”, lembrando, é de 1963) – era natural: o diretor sabia que esses truques serviriam apenas como apoio para a narrativa principal, já que ele tinha sempre na manga um mistério provocante para o espectador, um punhado de enredos para seduzir o público, e uma boa história para ser contada. Foi essa mesma “cartilha” que Shyamalan usou para fazer “Fim dos tempos”.

alg_happening.jpgO filme tem sua cota também de efeitos especiais – mas o diretor usa-os com parcimônia. Um homem devorado por um leão numa jaula de zoológico aqui, um outro que é triturado ao se jogar embaixo de uma trator ali – mas, de resto, Shyamalan limita-se a mostrar apenas um vento forte, que sopra trazendo o terror.

Mesmo antes de eu entender, na minha informal educação cinematográfica, quem era Hitchcock, lembro-me de minha mãe contando que, depois de ter assistido a “Psicose” no cinema, ela passou anos sem poder olhar para uma banheira. Eu mesmo acho que desenvolvi uma certa fobia de pássaros depois do filme onde eles são os responsáveis por todo o suspense. E, agora com “Fim dos tempos”, logo depois de eu sair do cinema, e mesmo hoje, mais de uma semana depois (aqui onde eu estou – por falar em suspense! – também venta muito), basta eu ver uma folhagem sacolejando que sou tomado por um frio na espinha…

É a redução do mal a alguma coisa quase invisível, como escreveu Lananne, na “Inrock”. E essa “quase invisibilidade” é que nos faz acompanhar na tela, não sem uma dose de poesia, grupos de sobreviventes da epidemia que se alastrou pelo nordeste dos Estados Unidos deslocando-se caótica e apressadamente por um campo aberto, tentando escapar das correntes de vento – e só isso é suficiente para que, na primeira brisa que te atravessa ao sair do cinema (e, garanto, tê-lo assistido em Paris me fez passar por um frisson especial) você se vê tomado pela aflição de ser possivelmente a próxima vítima.

Depois de uma série de filmes ligeiramente decepcionantes – não adorei “A vila”… e nem venha me provocar com “A dama na água”! -, “Fim dos tempos” é um novo triunfo para Shyamalan, trazendo uma lição de despojamento que poderia ser um mantra para aqueles que ficam bolando atrocidades como esse novo “Hulk” (que ainda não vi, mas que só pelo trailer, eu não chamaria de convidativo). Tudo bem, “Hulk” não é exatamente um filme de suspense. Mas pense em “Alien, o oitavo passageiro” – no original e nas suas sequências. Lembra-se de quantas vezes o monstro aparece por inteiro no filme de estréia? E no último? É disso que estou falando. (Quer me dar bons exemplos de filmes que realmente te deixaram apavorado ou apavorada? Será que ele tinha muitos ou poucos efeitos especiais?).

Essa lição traduz-se no seguinte: se você acha que quanto mais “Transformers” (para citar um filme do ano passado que, com toda sua exibição de efeitos especiais, não era capaz de criar um arrepio na platéia), monstros e sustos computadorizados o produto final tiver, mais seu filme vai ficar interessante, desista. Se não tiver uma boa história, não adianta disfarçar com perfumaria.

Pergunte a Shyamalan…

(Um pequeno comentário sobre os comentários do post anterior: nossa “sessão” continua… em breve!)

Quero me tratar com Gina

seg, 16/06/08
por Zeca Camargo |
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Eu sempre acho que todas as coisas estão conectadas – você me conhece já. Não por um fio místico – imagine! – mas por um encaixe inevitável, conseqüência de um processo infinito que eu gosto de chamar de caos. As coisas sempre dão certo! Por exemplo, o post de hoje deveria ter sido publicado na quinta-passada e foi adiado por um inesperado encontro meu com um dos meus maiores ídolos. O que então me fez prontamente escrever sobre isso, deixar a discussão do “tratamento com Gina” para hoje, e perguntar se você tinha vivido uma experiência parecida com a minha. Não foram poucos os que responderam meu convite – felizmente – e, nesse ato, revelaram, como eu, suas fraquezas e determinações, atos de coragem, de covardia e de respeito, que ajudaram a ilustrar a estranha relação que temos com alguém que admiramos.

“Acho que dependendo do grau de ‘idolaridade’ a gente se aproxima para saber que a pessoa é real!”, analisa Jo. “Vou, não vou, vou, não vou, os olhares se cruzaram de repente e eu disse de sopetão: parabéns pela sua música e por essa voz divina”, descreve a Deise Lima. “Realmente… às vezes é irresistível. Até EU admito. (Tomara que nenhum amigo meu veja isso!)”, confessa relutante a Naiza. “Travei e não pedi autógrafo ou foto… Porém empurrei meu irmão para a ação!”, conta o Jhony/SC. “Acho que o mais intrigante desses encontros por acaso é perceber que seu ídolo é tão normal quanto você (ok, tem uns que não são lá tão normais assim, mas não vamos entrar nesse mérito)”, provoca a Carrô. “Teria agarrado o momento. Afinal, um ídolo tem milhões de fãs, mas os milhões de fãs só tem um ídolo!”, conclui o Cássio Delmanto.

Sentiu um clima de terapia… coletiva? Pois esse é o encaixe de que estou falando: espontaneamente acabamos exercitando (e antecipando) aqui o tema que eu já havia me proposto a comentar. E qual é ele mesmo? Algumas pessoas, a partir da dica que eu dei, acertaram qual seria esse assunto: “Em terapia”, a ultra-viciadora série da HBO. Mas não vou falar apenas disso…

Por (mais) uma estranha coincidência, passei a acompanhar o seriado ao mesmo tempo em que lia um livro que começa com esse parágrafo:

“Segredos são minha moeda. Eu os negocio para ganhar a vida. Os segredos do desejo, do que as pessoas realmente querem, e do que elas mais têm medo. Os segredos das razões de o amor ser difícil, o sexo complicado, a vida dolorosa e a morte tão perto e mesmo assim projetada tão longe. Por que o prazer e o castigo são tão intimamente ligados? Como nossos corpos falam? Por que criamos nossas próprias doenças? Por que você quer fracassar? Por que o prazer é tão duro de suportar?”

something.jpgA tradução é minha e, para variar, apressada – já que o livro, recém-lançado na Inglaterra, ainda não ganhou uma tradução brasileira. Mesmo assim, com ela já é possível você ter uma idéia do enorme impacto que esse primeiro parágrafo teve sobre mim. Acho que desde a abertura de “A informação”, de Martin Amis – um autor quase sempre citado como da mesma geração desse outro sobre quem escrevo hoje – não tinha encontrado nada tão cativante logo nas primeiras linhas de um livro (não vamos falar de “Lolita”, de Nabokov, que é covardia).

Parte porque já havia sido fisgado por “Em terapia”, parte porque é impossível não continuar a ler um livro que começa desse jeito, usei todo meu tempo livre nas duas últimas semanas (e viva os vôos longos!) para ler “Something to tell you”, de Hanif Kureishi. Minha geração foi apresentada a esse autor inglês não por um livro, mas por um filme – o clássico alternativo dos anos 80, “Minha adorável lavanderia”, que lançou não só a carreira de seu roteirista (o próprio Kureishi), como a do seu ator principal, Daniel Day-Lewis, e ainda colocou o nome do seu diretor, Stephen Frears, no mapa.

Revi “Minha adorável lavanderia” há alguns anos e fiquei fascinado como, apesar de ele ter envelhecido em alguns detalhes, o filme ainda é vibrante e trata de um tema tão atual quanto “conviver com as diferenças” – sexuais, religiosas, étnicas. Aliás, essa estonteante contemporaneidade daquilo que Kureishi escreve chegou até a me pregar uma peça. Aconteceu ainda no início de “Something to tell you” (que pode ser traduzido por “Algo para te contar”), quando o autor finalmente apresenta todos os seus personagens – entre eles, Jamal (o terapeuta que é a figura central da trama), sua irmã Miriam (uma meio paquistanesa, meio inglesa, desbocada e impetuosa); Henry (seu melhor amigo, diretor teatral excêntrico); Rafi (seu filho pré-adolescente); Ajita (namorada de adolescência de Jamal) e seu irmão Mustaq; Valentin e Wolf (seus amigos da mesma época, respectivamente búlgaro e alemão).

Diante dessa mistura fantástica de tipos, pensei: “olha só o grande escritor pegando emprestado o mesmo mote da queridinha atual, Zadie Smith. E fui cozinhando essa indignação até perceber que talvez fosse Zadie Smith que tivesse bebido na fonte de Kureishi. Afinal, o livro que marcou sua carreira como escritor, o sensacional “O Buda do subúrbio” (Companhia das letras), é de 1990 – e já trazia exatamente esses elementos multiculturais. Tolice minha, prontamente corrigida: depois dessa revelação, a leitura de “Something to tell you” ficou ainda mais interessante – e as histórias desses personagens que recheiam a vida de Jamal, ainda mais divertidas.

Não é de hoje que invejo a escrita de Kureishi. Aparentemente sem esforço, ele é capaz tanto de precisos instantâneos cotidianos – “Como muitos motoristas de táxi, Bushy considerava uma corrida uma oportunidade de expressar-se para uma platéia cativa de reféns” – como de reflexões desconcertantes – “Na verdade, não gostar do outro, ou ativamente desgostar dele, ou mesmo odiá-lo, pode liberar consideravelmente o prazer de alguém. Pense na agressão, ou mesmo violência, que uma boa trepada requer”.

Trechos assim despontam aqui e ali na narrativa delirante de “Something to tell you”, que viaja entre a Londres dos anos 70/80 e a atual (com uma breve escala no Paquistão). Os caminhos errantes dos seus personagens (aqueles citados acima são só os principais!) são tricotados com a habilidade de quem já entendeu que a vida nunca é a história de um só. E Jamal é não só o condutor da trama, como seu… analista. Como ele mesmo coloca:

“Eu sou um assistente de autobiógrafos, parteiro das fantasias dos meus clientes, reabrindo suas feridas, liberando suas vozes, transformando falas em signos eróticos, desmascarando seus desejos como ilusões”.

Essa curiosa definição da relação do analista com os pacientes traduz também como Jamal interage com amigos, amantes e familiares à sua volta: uma teia que já seria fascinante por si só, mas que ganha ainda mais significados quando você percebe que ele próprio é um fracasso. Como analista – e de certo sucesso, como conta o livro – ele é brilhante, mas na hora de resolver seus problemas, um impotente. E talvez tenha sido isso, nesse livro tão fascinante – que eu torço para que seja traduzido logo para o português – que me inspirou a juntar a história de Jamal com a do doutor Paul Weston, de “Em terapia”.

Embalado por boas críticas na imprensa americana, eu esperava ansioso pela sua estréia por aqui (não, eu não “baixo” essas coisas no emule…). Tive a sorte de ela ter acontecido numa segunda-feira, que é meu “dia de bobeira”: programei-me para isso. Só não podia imaginar o quanto seria seduzido pela série.

paul-gina.jpgPara quem ainda não esbarrou nela, trata-se da idéia mais simples que eu já vi para um seriado – e, talvez, por isso mesmo, a mais genial também. De segunda a sexta (é todo dia – o que faz do ato de assistir “Em terapia” uma espécie de ritual), você acompanha uma sessão de terapia. Só isso: só uma conversa. Um paciente diferente para cara dia – segunda, a mulher instável sexual e emocionalmente, apaixonada pelo terapeuta; terça, o soldado arrogante que voltou do Iraque; quarta, a adolescente que (provavelmente) tentou o suicídio; quinta, um jovem casal à beira da separação ou do duplo assassinato (depende do que chegar primeiro). E, na sexta, o próprio Paul (interpretado por Gabriel Byrne) vira paciente. Sua terapeuta? Gina – vivida pela incomparável Dianne Wiest.

Nas sessões em que é terapeuta, Paul é brilhante. Você tem a impressão de que todas os conflitos criados por seus pacientes estão sob controle. Mas quando ele se submete ao tratamento, revela-se um homem confuso, à beira da impotência – não muito distante, então, do Jamal criado por Kureishi. E quem tenta entender o que passa pela cabeça do doutor Paul? Gina! E suas observações, provocações e insinuações são sempre tão pertinentes que eu realmente gostaria de me tratar com ela.

Fiz terapia durante muito tempo: duas vezes por semana, durante quatro anos (alguns dirão que foi pouco tempo…). Por teimosia, freudiana – curiosamente a linha adotada por Jamal e (aparentemente) por Paul. De que valeu? Bem, deixe-me devolver a pergunta: você já fez terapia… e entendeu o que aconteceu? Quer dividir isso num comentário aqui?

A certa altura de “Something to tell you”, Hanif Kureishi, na voz de uma ex-amante de Jamal, Karen, pergunta: “Você nunca percebeu que análise não torna as pessoas mais gentis ou engraçadas ou mais inteligentes? Só elas ficarem mais auto-absorvidas? Elas começam a usar aquelas palavras terríveis como ‘transferência’ e ‘catártico’. (…) Eu odeio dizer isso, Jamal, mas você é inteligente e não fez nada com isso a não ser aprender a dizer todas essas palavras que não servem a ninguém”. Ao que Jamal simplesmente responde: “Merda, você está mal-humorada”.

No episódio de sexta passada, Paul aparece com sua mulher (que recentemente revelou ter um amante) na sessão com Gina, e ela – a mulher – dá um texto muito parecido com o de Karen sobre Jamal. Gina, claro, impassível, ouve tudo como se não fosse com ela, como se ela também não fosse capaz de analisar tudo que permeia nosso cotidiano, criando, com isso, rios de “significados insignificantes” que, em última análise (com o perdão do trocadilho), só vêm para nos confundir.

Mas será que esse não é um mal contemporâneo? Não desenvolvemos nós mesmos esse (mau?) hábito de interpretar demais tudo que vemos, ouvimos e fazemos? Não estava eu mesmo caindo nessa armadilha quando, no início do texto, insinuei que os comentários sobre o post anterior funcionaram como uma análise coletiva? Será que eu devo levar tudo isso para uma sessão de terapia? Será que eu preciso voltar para ela? Talvez. Mas, se eu o fizer, posso garantir que não vai ser nem com Paul nem com Jamal. Vai ser com Gina.

Prova de amor

qui, 12/06/08
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Quem foi mesmo que sugeriu que eu escrevesse sobre o amor hoje, já que é Dia dos Namorados? Não sei bem se é isso que a Edna Marques tinha em mente quando mandou seu comentário (aliás, que tentação continuar, a partir das opiniões enviadas, a debater sobre novelas aqui neste espaço… entre tantos ganchos, como a sugestão do Eduardo Tiberio para que a novela tivesse o nome de “A preterida”, ou os elogios à excelente abertura – a Cris Carriconde identificou até a autoria da música!). Mas, por uma enorme coincidência, decidi sim, de última hora, falar de um tipo de amor. Ou melhor, sobre a inabilidade que a gente tem de administrar um tipo de paixão. Mas antes, uma explicação sobre a tal “enorme coincidência”.

Escrevo de Paris, onde vim dar o pontapé inicial num projeto de trabalho que você vai poder conferir em breve no “Fantástico”. Não se preocupe: não vou fazer deste post um “merchan”! Só dou minha localização geográfica para esclarecer melhor a coincidência. Enfim, como essa viagem apareceu meio de última hora, deixei o post para ser publicado originalmente hoje “no prelo” antes de sair do Brasi. Estava quase pronto – vai se chamar “Quero me tratar com Gina” (será que você adivinha o assunto?) – e eu só ia dar uma lapidada por aqui. Afinal, em viagens rápidas, mesmo que o tempo seja curto, eu faço questão de aproveitar o tempo ao máximo (você se lembra das minhas últimas 48 horas em Nova York?) – e “deixar o texto pronto” era, confesso, um pequeno truque para fazer render esses três dias em Paris.

E estão rendendo… só ontem, por exemplo, fui à sensacional exposição sobre Maria Antonieta no Grand Palais, visitei (finalmente – ainda que de maneira bem apressada) o Museu do Quai Branly, passei um pouco de vontade no Instituto do Mundo Árabe – onde a mostra que eu queria ver, sobre Oum Kalsoum (me aguarde!) ainda não tinha sido aberta ao público, comprei alguns CDs (Santogold, Raphael,) e ainda assisti o novo filme de M.Night Shyamalan – que aqui foi batizado de “Phénomènes”, e que, como qualquer bom filme dele, me deixou tentado a discutir o final, mas sei que não devo (pelo menos não agora).

Cada um desses assuntos, claro, renderia um belo post (e ainda tenho meio dia livre hoje, depois dos compromissos da manhã!), mas eu senti urgência de escrever sobre um encontro que eu não havia planejado – pelo menos não como as outras atividades que citei acima, para as quais me programei ao longo do dia. Esse encontro me pegou totalmente de surpresa, me deixou um pouco perturbado, e, sobretudo, me fez pensar nas relação das pessoas com quem elas admiram.

Sei que estou sugerindo um suspense maior do que o do próprio filme de Shyamalan, mas você já vai entender.

zeca-1.jpgOntem eu passei ainda por uma loja daquele que é provavelmente estilista (ou “couturier”, como se diz por aqui) europeu que eu mais admiro, o belga Martin Margiela. Ironicamente, fui lá procurar inspiração para um possível post (em tempos de Fashion Rio e SPFW, quem sabe, eu poderia falar sobre alguém que eu considero que faz algo realmente original na moda?), quando encontrei bem mais que isso. Encontrei Thom Yorke, do Radiohead.

Como em qualquer loja de Margiela que já visitei no mundo (sou tão obcecado pelo seu trabalho que já fui até na de Hong Kong!), tudo lá é pintado de branco. Não o branco “bonitinho”, limpinho – mas um branco tosco, como que se todos os objetos tivessem ganho uma “demão” (adoro essa expressão!) de tinta rápida e improvisada. Com isso, a atenção fica mais ainda com as roupas – e você tem a estranha sensação de estar circulando por um ambiente ao mesmo tempo diáfano e acolhedor. Nenhuma loja de Margiela que já visitei está cheia – nunca! – e a de Paris, naquela tarde, não foi exceção.

Quando entrei, encontrei apenas um vendedor (com o característico jaleco branco), uma mulher sentada num sofá, e um cara (que parecia pequeno) no outro canto da loja, de costas. No meio desse espaço existe uma mesa de bilhar (pintada de branco, claro), e foi quando eu fui ver o que estava sobre ela que meus olhos se cruzaram com o daquele “baixinho”. Era Thom Yorke – provavelmente o cara que eu mais admiro na música atualmente. Já expliquei aqui porque eu gosto tanto do Radiohead – e embora possa gastar mais um post inteiro falando disso, vou usar este espaço hoje para um outro aspecto dessa minha admiração…

Não tive a chance de entrevistar o Radiohead depois de ter visto o brilhante “Meeting people is easy” (só encontrei a banda no início da carreira – longa história). Mas também estou seguro de que queria passar por essa experiência depois isso. “Meeting” é uma espécie de documentário sobre parte da turnê da banda na época do álbum “OK computer” – se você não viu o filme (o que recomendo, lembrando que um dia ainda vou fazer um post só sobre ele), vale apenas dizer que é um registro de (entre outras coisas) várias entrevistas que eles deram naquela turnê mundial, que mandam um recado poderoso para qualquer jornalista, na linha: “mesmo que você ache que vai fazer uma entrevista mais original, estamos aqui para te provar que isso é impossível!”.

thom.jpg“Meeting people is easy” é bem mais que isso, sem dúvida, mas foi esse aspecto do filme que me veio à cabeça quando cruzei o olhar com Thom Yorke na loja. Isso mesmo: minha primeira “resposta” foi, digamos, profissional: “inimigo!”, falou fundo meu instinto mais básico. Essa primeira reação, porém, logo foi substituída por outra, mais cruel e mais desesperadora – algo que eu não experimentava há um bom tempo. Foi quando pensei: “Caramba, eu adoro o que esse cara faz! Eu tenho que falar com ele!”.

Nesse momento fui tomado por um pânico: queria, mas não me sentia no direito de fazer aquilo. Ali na minha frente eu tinha um ídolo, circulando pelo mesmo espaço que eu, numa situação totalmente informal – fazendo compras numa loja. Não era durante um show, muito menos na intimidade de um camarim. Será que eu tinha direito de “quebrar o clima” e me declarar um fã incondicional – pedindo assim o inevitável autógrafo e a não menos inevitável foto no celular? O que você faria?

Eu travei.

Sobretudo porque, guardadas todas as proporções, me imaginei passando pela mesma situação – só que do outro lado! Aliás, não precisei nem mesmo de um grande esforço de imaginação. Pela característica do meu trabalho, estou sempre exposto a ser abordado na rua pelas pessoas. Raras são as vezes (por uma insistência inconveniente ou por um urgência no que estou fazendo) em que isso me incomoda, mas sempre que tiro uma foto, ou dou um autógrafo, me pergunto o que isso significa para a pessoa que me pediu esse favor. Um prova de admiração, sem dúvida. Mas o que mais?

Será que é tão importante assim chegar perto do seu ídolo – e registrar essa proximidade? Para quê? Para mostrar para os outros? Para uma satisfação pessoal? Para que seu ídolo saiba o quanto você é importante para ele (ou para ela)? Para se sentir mais próximo desse ídolo? É um estranho ritual – e, de repente, eu me vi no meio dele, só que, como já observei, do outro lado. O que fazer?

Seria mais fácil se eu tivesse o encontrado numa entrevista oficial. Como conto no meu livro “De a-ha a U2″, aprendi logo cedo (e com ninguém menos que Michael Stipe, do R.E.M.), que a tietagem deve sempre ficar de fora numa hora dessas: entrevista é trabalho, e o artista sempre vai te respeitar mais (e ficar mais à vontade) se você se lembrar disso. No mesmo livro, conto que tive um encontro informal também com outra artista que adoro, Alanis Morissette, numa fila de imigração. Resisti à tentação de abordá-la, contei isso a ela numa entrevista que faríamos anos depois e ela… me agradeceu!

Só que nem essa memória me ajudava ali diante de Thom Yorke. O Thom Yorke! Só nós na loja (mais aquela mulher do sofá, que, concluí em seguida, era sua companheira). Falo? Não falo? Esse dilema levou mais ou menos 40 minutos – o tempo que passei na loja. 40 minutos de um nervosismo crescente… Até que ele juntou suas compras (duas camisetas, um jeans vermelho, um tênis de tecido preto) e fez que ia pagar.

Foi então que me apressei para acertar minha compra também. Fiz isso de maneira atrapalhada, tentando disfarçar, sem sucesso, que o momento era de extrema gravidade! De maneira desajeitada, corri para o balcão, paguei tudo e saí rapidamente da Maison Margiela.

Isso mesmo: não falei com o cara. E não me arrependo. De alguma maneira, acho que ele me agradeceu – foi inevitável ele perceber que eu o havia reconhecido, e a tensão do “será que ele vai me abordar”, embora não explícita, estava o tempo todo entre nós. Não sei se você já passou por uma situação dessas – e não sei nem se faria a mesma coisa. Só sei que nessa tarde de em Paris, diante do cara que é um dos meu maiores ídolos, eu o deixei em paz.

Por que assistimos a novelas?

seg, 09/06/08
por Zeca Camargo |
categoria Todas

scorpiova_zeca.jpgPorque fomos criados com elas, ora! Resposta fácil, claro. Mas como deixar de fora essa explicação, se elas já existiam quando eu nasci? (Oba! Finalmente uma coisa que eu posso dizer que já existia quando eu nasci e pensar que o mesmo vale para quase totalidade dos leitores deste blog!). O problema é que essa explicação é simples demais. Enquanto assistia ao terceiro capítulo de “A favorita”, a nova novela de João Emanuel Carneiro, que estreou na última segunda-feira, comecei a me perguntar por que estava gostando tanto dela – e estou aqui propondo mais um debate: quem sabe você não me ajuda a responder a pergunta acima?

Enquanto espero seu comentário, aqui vai um resumo das minhas elucubrações sobre o assunto.

Assisti aos primeiros capítulos de “A favorita” gravados – pois estava fora do país de segunda a quarta. É meio estranho ver novela gravada, é verdade – mas não tinha outro jeito: queria escrever sobre ela logo na primeira semana. Mas, no post de quinta-feira, acabei trocando de assunto (com a aprovação de pelo menos 109 pessoas que mandaram comentários até eu postar este texto de hoje), e acabei me dando bem, pois na própria quinta, depois sexta e sábado, pude acompanhar os capítulos durante a transmissão deles – que é, claro, o que faz a enorme maioria das pessoas. E parte da experiência, inevitavelmente, inclui o tão contemporâneo reflexo de zapear.

Estava particularmente interessado nisso porque, enquanto estava fora (não era longe – Buenos Aires – mas mesmo assim, estava ligado) vi na internet notícias “alarmantes” de que “A favorita” havia estreado com uma das piores médias de audiência para aquele horário. Para mim, fã incondicional de novelas – e particularmente fã do trabalho de João Emanuel -, essa informação só tinha atiçado minha curiosidade. O que estava acontecendo? O que estava “roubando” essa audiência potencial da nova novela? Por que o público estava se comportando dessa maneira? Será que a trama de “A favorita” não estava sedutora o suficiente?

Quanto à última pergunta, tive logo uma resposta: bastou assistir ao que eu tinha gravado para ver que a história era mais que envolvente. No que diz respeito a novelas, sou “filho” de Janete Clair – e bastou um título que evocasse essa grande autora (“O semideus”, “O astro”) para eu já dar um voto de confiança. Depois, ainda na escola “clairiana”, o que eu via desenrolar, nesses primeiros capítulos, era uma trama digna daquilo que convencionou-se chamar de “época de ouro” das novelas – um crime no passado, uma provável injustiça, uma filha que se sente abandonada pela mãe biológica e mimada pela mãe adotiva, uma festa milionária, injustiça social… você conhece o cardápio.

Estava eu então nesse clima entusiasmado, quando, já tendo adiado meu post sobre “A favorita” para hoje, assistia mais um capítulo, o de sexta-feira, em “tempo real”…

Antes de continuar, porém, um alerta: pode ser que você, sempre tão esperto – ou esperta –, detectando conspirações em tudo, já esteja começando a elaborar a idéia de que estou escrevendo este post falando bem de “A favorita” porque estou sendo “obrigado” a levantar a bola da novela que não começou bem de audiência – já que trabalho num programa jornalístico da mesma emissora da novela. Pensou isso? Então é melhor parar de ler, pois quando se tem um viés assim, como será possível comparar a minha opinião sobre a novela com a sua, de maneira isenta? Sim, porque este blog, como não me canso de afirmar, não quer outra coisa que não debater idéias sobre cultura – e sem preconceitos (lembra daquele meu “minimanifesto” de alguns meses atrás?). Assim, se você acha que eu estou sendo “manipulado” para escrever bem sobre isso, dessa maneira, um abraço. Até porque… que inocência a sua, de achar que minha modesta opinião será capaz de acrescentar pontos à audiência de alguma novela… um mero blog, com todo esse poder? Amigo, amiga: ingenuidade tem limite… (Desde os tempos em que eu trabalhava em jornal, já duvidava do poder que uma crítica supostamente tem de “vender” ou “encalhar” qualquer produto cultural… Sério: você deixaria de assistir, por exemplo, a “Sex & the city”, só porque um determinado crítico o achou “requentado”? Com cultura, meu caro, minha cara, só existe uma ferramenta realmente poderosa, e ela se chama “boca a boca”. Mas isso é para um outro post, uma outra hora!).

Enfim, a experiência que eu vou descrever agora é minha, vou relatá-la da seguinte maneira porque foi assim que eu a vivi, e se você quiser insistir que estou sendo “instruído” a contar isso de uma maneira que não reflete meu pensamento… – se aquele abraço do parágrafo anterior não foi suficiente, aqui vai mais um. E leve um beijo meu também, pois eu vou em frente. Do meu jeito.

Na sexta-feira, então, durante um intervalo de “A favorita”, eu zapeei para “Os mutantes” e vi uma cena onde um homem-escorpião (sutilmente batizado de Scorpio, e interpretado por José Loreto, a foto deste post) desafia para uma briga um menino-lobo (Cássio Ramos) chamado Vavá (não deveria ser, seguindo a linha de raciocínio, ser Lupus?). Hummm… Não sendo muito fã de “Heroes”, tampouco de filmes na linha “Quarteto fantástico”, achei a seqüência um pouco aborrecida – quando não levemente caricata (eufemismo para “exagerada”). Voltei para “A Favorita”, onde então o mistério do personagem de Giulia Gam, Diva, me atraiu bem mais que um duelo de superpoderes manjados.

Novo “break” comercial, nova chance para “Os mutantes”. Desta vez, a cena era romântica – se é que a gente pode chamar um vampiro (Vlado, interpretado por Daniel Aguiar) seduzindo uma mulher que lança dardos “mortais” de “cena romântica”! Fascinado pelo bizarro do que via, acompanhei até o “ataque” da mulher dos dardos, que tinha certeza de que Vlado só queria se aproximar dela para – surpresa! – beber seu sangue… Ela foge, então, com a imagem em câmera lenta.

Nesse momento, não voltei para o capítulo então corrente de “A favorita”, mas para a cena de um capítulo anterior, guardado no meu gravador digital (incrível como você consegue acessar as coisas rapidamente nessa geringonça), em que Flora (Patricia Pillar) conta tudo sobre o passado de Donatela (Claudia Raia) a Irene (Glória Menezes) numa mesa de bar. Queria ter certeza de que tinha visto um sensacional jogo de espelhos durante essa seqüência, como um antídoto para o recurso visual ligeiramente tosco que eu acabara de assistir – que talvez fosse inovador na época em que “O homem de seis milhões de dólares” era uma febre na TV brasileira.

Não, não estou esnobando os poderes dos tais mutantes. É que fiquei meio perplexo de ver que era isso que estava conquistando uma fatia do público. Por uma curiosa associação de idéias, lembrei-me da letra de “Panic”, dos Smiths, do trecho em que Morrisey justifica o enforcamento de DJs pelo simples fato de que a música tocada por eles “não diz nada sobre a minha vida” (no original, “Hang the blessed DJ, because the music that they constantly play, it says nothing to me about my life”).

Demorei um pouco para entender a conexão que eu mesmo fiz – mas estava na cara: aquele mundo de criaturas com superpoderes não estava definitivamente falando comigo. Consigo até imaginar que eles estão falando com muita gente – afinal, “Heroes” e “Quarteto fantástico”, aqui citados, foram sucessos relativos de público. Mas quem exatamente está se identificando com eles? Será que boa parte dos telespectadores está abraçando RPG? Gerações inteiras, repentinamente, inspiradas a entrar para o universo Cosplay? Crianças de 5 a 7 anos finalmente teriam assumido o controle absoluto dos canais nos lares brasileiros?

Adeptos do RPG e Cosplay – e crianças entre 5 e 7 anos – não fiquem bravos comigo. Usei essa paixão de vocês pelo universo surreal não porque eu a considero menor ou estranha – ou melhor dizer “estrangeira”? –, mas justamente porque estou dando um crédito ao poder da fantasia, na tentativa de explicar a razão de parte de um imaginário tão forte da telenovela brasileira ter temporariamente migrado para um “vale tudo” de aberrações.

A citação de “vale tudo” é, reconheço, infeliz, uma vez que ela evoca uma das melhores novelas de todos os tempos – justamente “Vale tudo”, de Gilberto Braga (1988). E o que fez dessa novela um clássico? Uma incrível identificação do público com os assuntos que eram tratados na sua trama. O mesmo vale para todos os grandes sucessos no gênero.

Esmiuçar os fatores que levam a essa identificação é tentar responder à pergunta que propus no título do post de hoje. Romance, disputa pelo poder, traições, segredos de família, injustiças (pessoais e sociais), separações, relações conflituosas entre pais e filhos – para não falar dos grandes temas sociais, que vão da corrupção à violência contra mulheres, passando por aceitação de casais gays, crianças desaparecidas e problemas com drogas: tudo isso faz parte de uma construção de décadas de narrativas que, de maneira inteligente (ainda que nem sempre sutil), se confundem com a própria trama das nossas vidas.

Tive essa “epifania” quando li, em 1993, um artigo da excelente jornalista mexicana Alma Gulliermoprieto, na “The New Yorker”, sobre um paralelo entre o impeachment de Collor e a morte de Daniella Perez – e, claro, sobre a novela “Corpo e alma”. Não encontrei o texto na íntegra na internet – apenas um resumo, mas que já suficiente para você pegar a idéia. No nosso cotidiano maluco, tudo se mistura – e é disso que a gente gosta. Porque somos latinos, porque desde os tempos do rádio gostamos de uma história bem contada, porque nos identificamos com os desejos e frustrações de personagens bem construídos, porque sempre desejamos finais felizes para quem é do bem e punição exemplar para quem é do mal – e sobretudo porque (e isso é uma característica que vem despontando mais claramente não há muito tempo nas novelas) somos capazes de conter os dois, o bem e o mal dentro de nós, além de nunca podermos controlar totalmente um lado nem o outro –, por tudo isso é que eu assisto a novelas.

Posso até admitir, num nível quase abstrato de extrapolação, que o Brasil está precisando agora de uma catarse provocada por uma óbvia luta entre o bem e o mal – e, como nada poderia ser mais óbvio que as intenções daqueles mutantes, isso estaria refletido na preferência de parte da audiência. Mas quando não precisamos dessa catarse? E mais: desde quando ela precisou ser tão óbvia?

Eu preciso de nuance. Preciso ser desafiado a torcer por alguém que eu não sei direito se é do bem ou do mal. Preciso passar pelo frisson de duvidar das coisas que a gente sabe que vão acabar acontecendo no final. Preciso da síntese de um grande autor para mobilizar os telespectadores sobre um assunto. Preciso de um pouco de absurdo – mas não de escracho – para me fazer pensar sobre o real. Preciso de uma novidade em cima de um velho tema de vez em quando. E preciso de bons atores para me passar tudo isso. De uma revelação carismática de alguém que podia ser apenas bonito, mas que ganha um papel para brilhar – como Malvino Salvador e seu Damião. Preciso rir, não porque alguém faz uma piada fácil, mas porque uma atriz como Lília Cabral chega de uma festa e solta um comentário no segundo plano da ação, como que quase para ninguém ouvir, e rouba a cena. Preciso de passados que eu tenha vontade de desvendar – como o da já citada personagem Diva (Giulia Gam). Preciso acreditar no desespero de alguém como Flora (Patricia Pillar) e na malícia de uma mulher como Alícia (Taís Araújo). Preciso de química entre os atores. E, disso tudo, estou bem servido pela nova novela de João Emanuel.

Até porque, Mutantes por Mutantes, eu prefiro aqueles que têm mais a ver com a Rita Lee – capazes de transformar não a superfície da sua cabeça, mas o que está dentro dela…

E música? Você compra pela capa?

qui, 05/06/08
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Era inevitável… Eu mesmo provoquei falando, no post anterior, sobre capas de livro. Até já tinha me programado para escrever hoje sobre a nova novela de João Emanuel, “A favorita”. Mas a força dos comentários me venceu (sempre vence, não vence?). Assim, Flora, Donatela – perdão! Semana que vem a gente se fala, porque eu vou apresentar hoje aquela que é, na minha sempre modesta opinião, a melhor capa de disco de todos os tempos. Mas antes…

Quando falei acima da “força dos comentários” estava talvez exagerando… Afinal, apenas alguns leitores comentaram que também compram discos pela capa – Ramon-ES, Leo, Henrique, Gabriel MG/RJ. Mas bastou essa modesta manifestação espontânea para eu perceber que, ao falar do impacto que uma imagem pode ter sobre nós, estava abrindo um leque de possibilidades ainda maior do que apenas o universo dos livros. Hesitei um pouco em tocar no assunto, já que a quantidade de capas de álbuns que eu teria para comentar talvez superasse – e muito – a de livros. Só uma passada rápida, de memória, parecia me oferecer opções vertiginosas.

Porém, essa “autopesquisa” acabou me ajudando: lembrei também que, há muito tempo – estamos falando de décadas! – eu já havia selecionado “a melhor capa de disco do mundo”. Veio como num flash – acho que hoje chamam de “sinapse” -, e tudo que tive de fazer foi chegar, diante de algumas favoritas recentes, se a imagem do tal disco (originalmente lançado em vinil, ou seja, “mesozóico”), ainda poderia ostentar este título. Cheguei à conclusão de que sim, ela ainda é “a melhor capa de disco do mundo”, e dada a vitalidade com que ela garantiu o título, eu diria que ela é também “a melhor capa de disco de todos os tempos”. Mas antes…

Fiquei pensando se os mecanismos de atração da capa de um disco e de um livro são os mesmos. Talvez não… Para começar, tem o formato. Ironicamente, houve um tempo em que as primeiras eram maiores que as segundas. Sério! É na época em que os discos eram feitos de vinil, e precisavam – imagine – de uma agulha para serem tocados! Naquele tempo, elas mediam um pouco mais de 30 centímetros por 30 centímetros, grandes o suficiente para contem um disco de vinil, ou, como diziam as civilizações desse período, LPs (para poupar sua pesquisa na wikipédia, a abreviação referia-se a “long play”, ou “longa duração”, já que, ampliando a capacidade do “compacto” de vinil – que, quando era “duplo”, vinha no máximo com quatro faixas – esse formato permitia juntar algo entre 10 e 14 músicas num só artefato, ou seja, 0,00000000000000003718 da capacidade do seu iPod). E eram lindos.

Qualquer pessoa que tenha, no mínimo, a minha idade, deve confessar que desenvolveu um certo fetiche por alguma capa de LP – e aí, a paixão pelo artista sempre se misturava à relação com o próprio objeto. Sinto que é impossível descrever (e cheguei a essa conclusão empiricamente) para alguém com menos de 30 anos a sensação de ouvir um LP ao mesmo tempo em que se segurava sua capa de papel cartão: tato, audição e olhar executando juntos uma mesma sensação. Um prazer tão grande que, só de lembrar dele agora – percebo – quase saio do meu raciocínio.

Enfim, voltando às capas dos discos de vinil (LPs), elas tinham bem mais espaço do que a minúscula área à qual essas imagens foram confinadas com o advento do CD. Elas ficariam ainda mais reduzidas – a uma reprodução de dimensões menores que a unha do seu polegar – nas telas de MP3, eu sei, mas quem aprendeu a consumir música nesse formato dificilmente se preocuparia com isso. Porém, para minha geração, que idolatrava essa arte, a passagem da capa do LP para a do CD foi um trauma difícil de ser superado. E foi assim, claro, que elas ficaram menores que as capas de livros.

Podemos argumentar, porém, que se uma imagem é forte, ela é forte em qualquer tamanho – e formato. De fato, “a melhor de todos os tempos” (já já!) é “a melhor de todos os tempos” independente das suas dimensões. Isso quase derruba meu argumento inicial sobre as diferenças entre capas de livros e de discos? Vejamos outros pontos.

Por exemplo, o investimento necessário para cada produto – investimento de tempo, claro, já que até pouco tempo atrás, antes de música brotar “espontaneamente” no seu computador e antes de o preço médio de um bom volume bater o teto dos R$ 50,00, os preços de discos e livros estavam ambos em faixas similares (e acessíveis). Por maior que seja a sedução de uma capa de livro sobre seu olhar – e por mais compulsivo que você seja (e eu sou, novamente, um bom exemplo) – antes de comprar um livro, você, ainda que inconscientemente, calcula o esforço de se envolver com ele. Enquanto que o disco demanda menos: é comprar, chegar em casa, escutar, e escutar, e escutar (ou pelo menos era assim…). Por isso, talvez, sua capa é mais “eficaz”: ela enfrenta menos obstáculos para te ganhar!

Sem falar que, com música, é sempre possível que você já tenha sido conquistado por um determinado artista (ou por uma banda) antes mesmo do “encontro” com o álbum – numa rádio, na TV, ou mesmo aqui na internet. Nesse caso, a capa pode funcionar apenas como “um empurrãozinho” para a compra. Já o “trabalho” da capa de livro é muito mais árduo, porque é raro, mesmo hoje, nesses nossos tempos tão “mediáticos”, alguém ser alcançado pelo trabalho de um autor antes de comprar sua obra…

Mais raro ainda é encontrar uma capa de livro que funciona apenas com a cara do autor. Mas, quando o produto é música, às vezes basta a própria cara do artista, ou da banda, para o disco se vender. Quantas e quantas idéias foram desperdiçadas por pura preguiça de quem estava “criando” uma capa e preferiu apenas apostar no rostinho de alguém. Nada contra essa “muleta”, mas mesmo trabalhando só com a figura do artista, é possível inventar imagens inesquecíveis, como fizeram David Bowie (em inúmeras capas, mas em especial em “Alladin Sane” e em “Heroes”), Madonna (“True blue”, “Erotica”, “Music”) e Björk (gosto até da bizarrice de “Volta”, como já expliquei por aqui).

Mas o mais interessante de se notar é como, talvez pela forte associação entre música e cultura pop, muitas vezes uma capa de disco entra no imaginário coletivo, de uma maneira que a capa de um livro nunca poderia sonhar – até porque, um livro geralmente ganha capas diferentes para qualquer país que ele seja traduzido, enquanto que nos discos, raramente isso acontece: a mesma imagem criada, por exemplo, na Inglaterra, é reproduzida na Indonésia, no Japão, na Turquia, na Bolívia e no Brasil. Preciso ilustrar? Lá vai: a banana de Andy Warhol para o Velvet Underground; aquele jeans (e o que está por baixo dele) em “Sticky fingers”, dos Rolling Stones; a foto de Robert Mapplethorpe para “Horses”, de Patti Smith; a icônica linguagem visual de Jamie Reid em todos os primeiros “singles” dos Sex Pistols, culminando em “Never mind the bollocks”; o prisma de Pink Floyd em “The dark side of the moon”; aquele traço que se tornou sinônimo dos anos 80 por causa de “Rio”, do Duran Duran; o neo-psicodélico de “3 feet high and rising”; o disco amarelo dos B-52′s; “London calling”, do The Clash.

Curioso como, lembrando de todos esses exemplos, assim como no caso dos livros, criar um “manual da boa capa de discos” parece algo impossível. São tantas as possibilidades, que eu faria aqui papel de ingênuo se quisesse mesmo esboçar uma lista do que funciona ou não funciona. No máximo, posso tentar explicar o que funciona para mim… se eu mesmo soubesse o que se passa comigo quando entro numa loja de discos (e logo penso… por quanto tempo ainda vou poder desfrutar de uma experiência como essa?). Para contar só um momento desses – que descrevo brevemente também no meu livro “De a-ha a U2″ -, lá estava eu em Londres em 1985, bombardeado pelos cartazes que anunciavam a chegada de “Meat is murder”, dos Smiths, quando, finalmente, numa tarde gelada (qual tarde não é gelada em Londres em pleno mês de fevereiro?), eu peguei pela primeira vez o próprio álbum de uma das estantes da loja da Rough Trade…

Foi o primeiro de muitos (saí da loja com tantos “vinis”, que fiz uma grande amizade – que dura até hoje – naquele dia mesmo com um cara que, ao sair quase ao mesmo tempo da loja que eu, viu minhas sacolas e perguntou se eu não tinha conseguido vender todos aqueles meus discos, ao que eu respondi que eu não estava lá para vender, mas sim para comprar alguns discos!). Mas mesmo os outros que levei da Rough Trade não me provocaram o frisson de “Meat is murder”- os fãs dos Smiths sabem do que eu estou falando… Aquela imagem reproduzida do soldado com o título do álbum grafitado no seu capacete é uma das minhas memórias mais fortes daquela época em que uma rara viagem ao exterior significava um único objetivo nobre: trazer álbuns simplesmente impossíveis de serem encontrados no Brasil. Dessa temporada londrina, voltei com 80 deles – e não foi nem meu recorde… (hoje, com a internet, a gente não faz mais isso… mas que saudades de abrir a mala, colocar todas aqueles discos de vinil no chão e ficar olhando para eles, às vezes por dias, antes de sequer abrir um deles para escutar…).

Estou à beira de me perder em lembranças – mas antes que isso aconteça, retomo aqui a tentativa de explicar o que me fascina numa capa de disco. E acho que, se eu resumir bem, consigo chegar nessa definição: tem que me oferecer uma associação de idéias inusitada. Só assim, pegando emprestado o comentário do Nathanael (sobre o post anterior), eu “me permito espiar quem é ou foi o criador daquela criatura que descobri (ou que me descobriu?)”. É isso mesmo: quando uma capa é forte (seja de livro, seja de disco) a conexão é tão intensa que a gente fica meio sem saber quem fisgou quem…

Foi assim que eu cheguei na minha escolha da “melhor capa de todos os tempos” – calma, falta pouco… Mas mesmo tão cativante quanto ela é, essa capa não esgota as possibilidades que me fascinam. Pode ser um corte dramático de uma foto (“Diamond life”, Sade), uma foto surreal (“Speak & spell”, Depeche Mode), uma estranha ligação entre imagem e título (“Odelay”, Beck); uma simplicidade inesperada (“Autobahn”, Kraftwerk), um retrato estranhamente sensual (“Parade”, Prince, ou “This is hardcore”, Pulp), uma referência (e uma interferência) inusitada (“Power, corruption & lies”, New Order), ou simplesmente o inexplicável (“Kid A”, Radiohead). O que me encanta é justamente o inesperado.

E você? Qual (ou quais) capa(s) de disco despertaram seu interesse de maneira arrebatadora? Pode mandar seu comentário até o fim de semana. E na segunda, vamos de “A favorita”! Ah… quase ia me esquecendo… essa, abaixo é “a melhor capa de todos os tempos”. Imagem, título, nome da banda – e ainda por cima, a música que ela contém! Preciso explicar mais?

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Como comprar um livro pela capa

seg, 02/06/08
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Heresia! Foi a primeira coisa que você pensou, não foi? Afinal, quantas vezes você ouviu – ou leu – o velho ditado: “não se pode julgar um livro pela capa”? Não foram poucas, tenho certeza. Mas estou aqui hoje para discordar dessa “grande verdade” – ou, pelo menos, sugerir que ela não é exatamente absoluta.

Caso em questão, o recém-(re)lançado “O sonho dos heróis”, do escritor argentino Adolfo Bioy Casares (CosacNaify). Se você passou por alguma boa livraria recentemente, é bem provável que tenha esbarrado com esse livro, naquela seção onde ficam expostas as “novidades”. E é bem provável também que ele tenha chamado sua atenção. Também, com uma capa dessas, qual o olhar que pode resistir? Mal consigo lembrar o que causou o primeiro impacto, se foi a enigmática imagem do casal dançando (numa foto em branco e preto) ou as enormes letras em vermelho com um dos sobrenomes do autor (BIOY). Só sei que senti uma necessidade imediata de pegar o volume – e, conseqüentemente, de possuí-lo.

Bioy Casares não era um “desconhecido” para mim. Na época da faculdade (início dos 80), quando me interessei mais pela literatura de Jorge Luis Borges, seu nome estava intimamente ligado ao desse, que é considerado um dos maiores (se não o maior) escritor argentino. Parceiros num estilo literário informalmente batizado de “narrativas fantásticas” (com pequenas variações nessa nomenclatura), os dois eram (e, claro, ainda são) citados na mesma frase. Borges, porém, é o nome mais famoso – e Bioy Casares sempre me pareceu mais um autor para iniciados. Talvez por isso, naquela época, mergulhei mais no primeiro, e deixei o segundo para um outro momento – que só chegou (tenho certa vergonha de admitir) mais de vinte anos depois. E com a ajuda de uma bela capa…

Comprei então “O sonho dos heróis” há duas semanas. Antes de lê-lo, porém, fiquei dias com ele na minha bolsa, somente a admirar sua beleza. Exercício fútil? Imagine! Ao começar finalmente a leitura, já estava tão encantado com essa possibilidade de ler seu texto, tão seduzido pelo convite a explorá-lo, que logo na primeira página eu já havia me rendido: estava pronto para adorar a história. Tanto, que ao deparar com as duas frases seguintes, logo no primeiro parágrafo, a sensação não foi de uma descoberta surpreendente, mas sim de um prazer que era uma conseqüência natural daquela capa:

“Que alguém tenha previsto o terrível fim designado e, de longe, tenha alterado o fluir dos acontecimentos é um ponto difícil de resolver. Por certo, uma solução que indicasse um obscuro demiurgo como autor dos fatos que a pobre e apressada inteligência humana vagamente atribui ao destino, mais que uma luz nova, acrescentaria um problema novo.”

Você reparou? “Pobre e apressada inteligência humana”… Como não se entregar a um autor que já te provoca assim, logo de cara? O que vem em seguida é uma narrativa enlouquecida de três dias do Carnaval de 1927, em Buenos Aires, que trariam ao personagem principal, Emilio Gauna, uma experiência misteriosa e intrigante, cujo questionamento e tentativa de desvendá-la dominaria seus próximos três anos, até o trágico desfecho, três Carnavais depois, numa quase precisa e circular repetição de eventos. É uma história cheia de elementos “fantásticos” – sonhos, visões, bruxos, premonições -, e que encanta não apenas por isso mas também pelo estilo impecável e provocante de Bioy Casares.

“O destino é uma útil invenção dos homens”, propõe o autor no início do capítulo 35. E continua: “O que teria acontecido se alguns fatos tivessem sido diferentes?”. Que bela provocação, não acha? E, assim como essa, outras tantas estão espalhadas nessa história que eu demorei tanto tempo para encontrar. História, aliás, que eu nem queria comentar aqui hoje (agora é tarde…), quando comecei a escrever este texto – que era, a princípio, sobre o poder da capa de um livro. Para demonstrar isso, aliás, até preparei (inspirado nas páginas de artes plásticas do caderno dominical de cultura do “The New York Times”) essa ilustração abaixo tentando explicar os elementos que contribuem para sua força visual:

bioy.jpg1. As letras enormes podem confundir o leitor iniciante: é o nome do autor ou da obra? Como o livro é de um famoso autor argentino, é possível que a intenção tenha sido chamar mais a atenção para ele do que para o título. A posição do nome “BIOY”, meio “fora de prumo”, também convida à inquietação.

2. Quem é o casal mascarado? Logo no início da história, descobrimos que sua ação começa no Carnaval – e que envolve mascarados. Mas, antes de começar a ler, a força de um casal de mascarados dançando é irresistível. Serão os personagens de quem vamos ler? Desconhecidos? Qual a história por trás da foto?

3. A roupa do casal sugere um tempo passado, mas quanto tempo exatamente? Vamos ler uma história que se passa (como a roupa indica) no inicio do século passado ou uma história contemporânea que tem um desdobramento no passado?

4. O título discreto, quase imperceptível. Fica claro que ele é menos importante, no caso, que seu autor. Mas será mesmo? Será que a letra pequena, quase imperceptível, no fundo negro, não quer sugerir exatamente um sussurro? Como se “O sonho dos heróis” fosse alguma coisa apenas sugerida?

5. A foto em branco e preto evoca ao mesmo tempo o passado (onde a história acontece) e o onírico (numa referência ao título da obra). É ainda uma ótima solução cromática para se destacar ainda mais o nome do autor.

6. Que linha é essa que aparentemente “atravessa” o casal? Ela não é contínua, claro, mas não é nem a mesma linha: acima, parece um facho de luz (ou uma fresta de cortina?) e abaixo, é o cabo da bengala do cavalheiro. Mais uma ilusão que remete ao clima que o livro quer criar.

E isso é só um exemplo. Mais uma vez, vou pedir a sua ajuda para ilustrar uma idéia: pode me dar um bom exemplo de um livro que despertou sua atenção primeiro pela capa (e que depois, claro, preencheu todas as suas expectativas quanto a uma boa leitura)? Espero seu comentário, mas quero aqui abrir a lista com quase todos os livros da CosacNaify, claro (com destaque para “Três mulheres de três PPPs”, de Paulo Emílio Sales Gomes) – mas não só.

Um dos primeiros livros que provocaram em mim o desejo de tocá-lo foi “O exorcista”, de William Peter Blatty. Depois do sucesso do filme, todas as edições passaram a usar a famosa imagem do cartaz (a silhueta do próprio exorcista na porta da casa da sua “paciente”), mas eu me lembro bem do livro originalmente lançado pela Nova Fronteira (que meus pais guardavam no alto da estante para “as crianças” nem pensarem em folhear aquela obra tão profana…), e que trazia o desenhos de um demônio alado sobrevoando o alto da capa. Eram os anos 70, e, até hoje, eu tenho fascinação por essa capa (você acha que eu não dei um jeito de subir naquela estante e de ler “O exorcista” escondido?). E por tantas outras que colecionei nessas décadas.

Geralmente as editoras definem um estilo de desenho gráfico que, embora não homogêneo, sempre ajuda o leitor a saber quem está publicando aquele livro. Algumas, como a recém-chegada ao Brasil, Alfaguara são imediatamente identificáveis. Outras, como a Companhia das Letras, formam um conjunto mais vago (fechando até pequenos universos gráficos para cada autor, como fez recentemente com as obras do chileno Roberto Bolaño, por exemplo, ou com sua lindíssima coleção de bolso), mas ao mesmo tempo coeso – ainda que, de vez em quando, surjam fracassos inexplicáveis, como a recente edição de “Austerlitz”, de G.W.Sebald. A editora Globo, vem apostando recentemente em fotografias (e em cortes dramáticos de muitas delas), com ótimos resultados – assim como a Nova Fronteira que, com o perdão do trocadilho inevitável, vem passando por uma “repaginação”. A Planeta tem altos e baixos, assim como a Objetiva. E lamento, de maneira geral, as capas dos livros da Rocco: se dependesse de ter sido seduzido por suas capas, talvez eu nunca tivesse lido nenhuma tradução de Ian McEwan, Nick Hornby, nem mesmo um original de Clarice Lispector…

O que me faz pensar que a tal máxima (“não se pode julgar…”) só pode ter sido inventada para “proteger” os livros bons! Sim, porque são raríssimos os casos de um livro sofrível com uma capa maravilhosa, mas abundam os exemplos opostos – livros ótimos com capas sofríveis. Mas a culpa, corrigindo talvez uma impressão que deixei passar, nem sempre é das editoras. As generalizações são sempre perigosas. Por exemplo, em viagens para fora do Brasil, gosto de dar uma geral nas livrarias e dar uma “sacada” na “alma gráfica” do país. O “visual geral”, porém, não traduz necessariamente a qualidade da literatura daquela nação. Existem bons (e maus) escritores por todo canto. Mas, como eles são “vendidos” visualmente? Os Estados Unidos são, como sempre, uma grande salada; o Japão – como tudo o que se refere a embalagem por lá – é impecável; a Espanha tem uma ótima tradição em projetos gráficos belíssimos; já Portugal é, nesse sentido, decepcionante (ao contrário da literatura); a Turquia (surpresa!) tem livros lindos; mas nada, absolutamente nada, se compara às edições inglesas.

Eu poderia agora começar um outro post apenas para falar dela, mas, dado o volume de palavras que já usei para falar de imagens, termino apenas sugerindo que você – que gosta desse assunto tanto quando eu – dê uma pesquisada aqui na internet mesmo sobre a Penguin Books. Criada na Inglaterra, em 1935, ela tinha como missão oferecer boa literatura a preços baratos. Conseguiu bem mais que isso, criando uma identidade visual icônica, nas suas primeiras décadas e, depois – quando as barras coloridas com apenas o título, o autor e algum desenho simples foram reciclados -, ampliando os limites da inventividade gráfica.

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A melhor prova disso foi reunida num “pequeno tijolo” lançado recentemente, “Seven hundred penguins” (da Penguin, claro) – que você encomenda fácil, fácil numa livraria virtual (ou num bom garimpo numa importadora por aqui). Com raríssimas exceções – eu tenho cá minhas restrições a algumas vezes em que eles usam fotografia, especialmente nas décadas de 60/70 – todas as capas escolhidas para o volume são geniais. Se você nunca passou os olhos numa, aproveita e faz agora uma pesquisa de imagens com as palavras “penguin covers”.

O perigo (para quem, como eu, sempre acha que não vai dar tempo de ler tudo que se deseja nessa vida) é você ser tomado por uma vontade incontrolável de ler todos esses livros com capas tão sedutoras – assim como aconteceu comigo e “O sonho dos heróis”.



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