Lágrimas
Existem dois tipos de lágrimas: as que vêm do prazer e as que vêm da dor. Filosofia barata – dirão os mais apressadinhos. Mas essa definição não pretende, de maneira alguma, introduzir um tratado sobre as emoções humanas. Apenas justificar como, com uma só palavra, eu consegui resumir minha reação a dois livros que li recentemente – de dois autores que, coincidentemente (para quem acredita em coincidências), vão participar, no mesmo dia, da Flip deste ano.
Já vamos a eles, mas antes… mais um pouquinho sobre as lágrimas. Reduzi-las a apenas duas categorias pode parecer uma simplificação exagerada. Afinal, sem muito esforço, você consegue listar uma meia dúzia de tipos diferentes de lágrimas: aquelas que vêm da dor física; as que vêm das saudades; as que jorram dos seus olhos quando você tem um ataque de riso; as que brotam da emoção de ver um bebê nascendo; as que demonstram uma comoção diante de uma tragédia de proporções catastróficas (pense nas vítimas daquele tsunami); aquelas que surgem sem convite depois de um grande gozo sexual.
A essas seis que juntei aqui rapidamente, tenho certeza de que você poderia acrescentar mais uma dúzia – ou mais (os comentários estão aí para isso!). Mas observe: metade dessa minha lista tem a ver com momentos de alegria, e a outra metade, claro, com momentos de dor. Não dá para sair muito disso. E foi justamente nesse contraste entre as duas principais fontes de lágrimas no meu rosto que eu pensei quando terminei de ler o último livro de David Sedaris (“When you are engulfed in flames”, ainda sem tradução no Brasil), logo depois de ter lido “The ministry of special cases”, de Nathan Englander (“O ministério dos casos especiais”, que deve estar sendo lançado por agora numa edição em português).
Como indiquei no último post, o livro de Englander tem a ver mais com as lágrimas que vem da tristeza. Vou deixar para comentá-lo daqui a pouco. Uma vez que estou voltando de uma minitemporada de folga (quando, ao contrário do que sugeriu o Adalto Alves, eu fui cuidar da mente, e não do corpo – não que uma lipo devesse ser descartada…), com a cabeça leve e despreocupada, acho melhor começar pelas lágrimas que vieram dos risos – ou melhor, das gargalhadas provocadas pela leitura de David Sedaris.
Descobri esse autor no final dos anos 90, quando uma prima que mora em Nova York – onde ele já fazia um certo sucesso no circuito de humor alternativo – me deu de presente o que eu acho que foi seu primeiro livro oficial, “Barrel fever: stories and essays”. Li o magro volume num dia só, encantado com a facilidade com que Sedaris tirava humor das situações mais cotidianas – e, em especial, de episódios familiares. Inspirado por esse presente, fui atrás de “Holidays on ice” – também muito engraçado, e sedutor o suficiente para me convencer a ler, logo em seguida, “Pelado” (Editora Lugano). À essa altura, eu já era completamente fã – e foi com certa sofreguidão que esperei seus lançamentos seguintes, “Eu falar bonito um dia” e “De veludo cotelê e jeans” (ambos da Companhia das Letras). Idem para este trabalho mais recente, que, sempre ansioso, corri para ler em inglês.
“When you are engulfed in flames” (cujo título oficial em português deve ser algo como “Quando você é engolido por chamas”) é mais do mesmo: uma coleção de crônicas hilárias sobre instantâneos da vida do próprio Sedaris – da sua infância, adolescência, vida adulta, nos Estados Unidos, na França. Mas, no caso específico deste autor, “mais” nunca é demais e “mesmo” nunca significa uma repetição aborrecida. Pois por mais que você se acostume ao estilo de Sedaris – situação cotidiana que, por culpa geralmente do autor (mas pode ser de alguém de sua família imediata também), transforma-se num grande constrangimento –, sua leitura nunca é repetitiva. Aliás, se fosse, eu não tinha passado pela vergonha de ter explodido em risadas num avião cheio, vendo-me, assim, obrigado a dar satisfação ao viajante do meu lado de que meu comportamento era devido “apenas” a um livro que eu estava lendo…
A graça de Sedaris funciona melhor dentro de um contexto maior – um capítulo inteiro, onde você imagina toda uma situação. Mas insisto em transcrever aqui um trecho (na minha sempre apressada tradução) para ilustrar o seu talento cômico. É uma parte da descrição de sua experiência com uma espécie de cateter improvisado (“Stadium Pal”), formado por uma “camisinha adesiva” (!) ligada a um saco plástico que pode ser amarrado à perna, oferecido comercialmente para pessoas que precisam fazer xixi, mas não podem abandonar uma atividade – como assistir um jogo no estádio ou, no caso de Sedaris, enfrentar um vôo longo sentado na janela de um avião ou participar de uma leitura pública numa noite de autógrafos. Demorou apenas uma hora, depois de o aparelho ter sido “batizado”, para ele descobrir quer ele estava cheirando a “casa de repouso de idosos” – e não só isso:
“Além do que, eu descobri que era difícil mijar e fazer outras coisas ao mesmo tempo. Ler em voz alta, discutir as opções de bebida com a aeromoça, fazer check-in em um hotel: cada uma dessas atividades exigia uma distinta forma de concentração e, embora ninguém soubesse o que eu estava aprontando, ficava claro que alguma coisa estava acontecendo. Acho que era meu rosto que me entregava. Isso, e minha panturrilha, estranhamente inchada.”
Quando li isso, tive, pelas minhas contas, o décimo-quinto ataque de riso naquele vôo. Já tinha gargalhado com a (re)leitura – pois já havia lido este texto na “The New Yorker”, onde Sedaris é colaborador freqüente – da história da senhora Peackock, a babá tirana que a mãe dele contratou por uma semana (“A primeira coisa que eu reparei foi seu cabelo, que tinha cor de margarina e caía em ondas até o meio das suas costas. É o tipo de cabelo que você encontra numa sereia, completamente deslocado numa mulher de sessenta anos que era, não apenas pesada, mas gorda, e andava como se cada passo fosse seu último”). Ou com a primeira casa onde ele morou sozinho, que pertencia, para a alegria do autor, a uma mulher que adorava antiguidades, e todo dia chegava com uma velharia para sua decoração – até que a mãe dela mudou-se para lá (“Eu tinha esperança que nossas vidas continuariam assim para sempre, mas inevitavelmente o passado bateu à porta. Não do tipo bom, que dava para colecionar, mas do tipo ruim, que tinha artrite”). Ou com sua vizinha de Nova York (“Para Helen, um presente não era aquilo que você dava para a pessoa número um, mas aquilo que você não dava para a pessoa número dois”). E com tantas outras passagens.
Fiel à regra do “perco o amigo mas não perco a piada”, Sedaris não poupa ninguém – nem a si mesmo! Quando descreve uma das vezes em que foi comprar maconha com seu irmão, e que este, na frente do traficante e sua mulher contou que Sedaris era gay, a primeira coisa que o autor registrou foi a mudança no comportamento hostil da mulher do traficante:
“Sua mulher então acordou para a ação e ficou quase sociável. ‘Então, esse seu namorado’, disse ela. ‘Deixe-me perguntar. Qual de vocês é a mulher?’
‘Bem, nenhum de nós,’ eu disse a ela. ‘É por isso que somos um casal homossexual. Nós dois somos homens.’
‘Não não,’ disse ela. ‘Eu quero dizer, tipo, na prisão, tipo assim. Um de vocês está lá por assassinato e o outro por ter molestado uma criança ou coisa parecida, certo? Quer dizer, um é mais como um cara normal.’
Eu queria perguntar se esse seria o assassino ou o molestador de criança, mas eu apenas aceitei o baseado, dizendo, ‘Ah, a gente mora em Nova York,’ como se isso respondesse sua pergunta.”
“When you are engulfed in flames” vai ser inevitavelmente lançado por aqui – e espero que seja em breve. Mas enquanto ele não chega, aproveite o que já existe dele nas nossas prateleiras… e prepare-se para as lágrimas que virão – de tanto você rir.
E prepare-se também para aquele outro tipo de lágrimas, pois “O ministério dos casos especiais” deve ter sua tradução para o português lançada ainda este ano – e eu recomendo fortemente sua leitura. Não será simples, nem fácil. Por exemplo, o primeiro capítulo, onde Kaddish, o personagem principal está violando, com a ajuda de seu filho, um túmulo num cemitério judaico em Buenos Aires (com os mais “nobres” propósitos, no seu ponto de vista), é tão rico e elaborado que passar por ele uma só vez é um desperdício. É necessário lê-lo mais de uma vez, não só para entrar no ritmo intenso do autor, como também para penetrar no bizarro cotidiano sombrio do que vem a seguir na história: uma Argentina sob um dos mais desastrados e cruéis regimes militares de todos os tempos (sei que “desastrados e cruéis” e “regimes militares” numa mesma frase pode parecer um pleonasmo, mas permita-me uma “liberdade poética”…).
Quando citei este livro no post anterior, fiz a conexão entre seu cenário – a Argentina dos anos 70 – com o país onde a foto foi tirada, e que eu visitei há duas semanas: o Chile (palmas para a Andréia, que foi a única que acertou em cheio – mais sobre isso, daqui a pouco). Nathan Englander fez um retrato tão emocionante daquele lamentável período da história latino-americana (sim, pois ainda que sua história se desenrole especificamente em Buenos Aires, ela espelha muitos outros regimes da época, inclusive o do Chile – para não falar do Brasil…), que fica difícil acreditar que ele não é argentino, mas sim um norte-americano nascido (em 1970) em Long Island, NY. (Bom, acho que é isso que a gente pode chamar de boa literatura, não é? A capacidade de nos envolver numa história que é ao mesmo tempo estrangeira e inerente a quem escreve! Mas eu divago…).
Como qualquer jovem que lia livros “perigosos” e andava sem documentos na Buenos Aires de meados dos anos 70, o filho de Kaddish foi levado pela polícia e desapareceu. Isso acontece depois de uma das cenas mais dramáticas que eu já li nas páginas de um livro: no exato momento em que o pai diz ao filho – respondendo a uma seqüência de insultos e mal-criações – que gostaria que ele nunca tivesse nascido. E é exatamente isso, narra Englander com perfeição, que Kaddish e sua mulher, Lilian, passam a viver: a não-existência de um filho.
Aí, vêm as lágrimas.
Das tarde absurdas perdidas no ministério que dá nome ao livro às visitas suicidas de Kaddish às delegacias de polícia para obter qualquer informação sobre o filho; dos apelos de ajuda abortados pela elite militar ao silêncio e à ausência dos vizinhos que, até então, eram companheiros; da insanidade da mãe negando um desaparecimento que é fato, insistindo que vai ver, pela janela, seu filho dobrar a esquina a qualquer momento, ao desespero do pai ao ouvir, do próprio homem que os empurrava dopados de um avião em pleno vôo em direção ao rio, como os jovens presos eram executados na madrugada – são só lágrimas, lágrimas e lágrimas.
E não que elas precisem rolar, literalmente, por suas bochechas. Ler a história de Englander (que já tem seu primeiro livro de contos, “Para alívio dos impulsos insuportáveis”, lançado no Brasil pela Rocco) é se envolver em uma tragédia mundana não apenas como um observador, mas alguém que divide com aqueles protagonistas todas as emoções de uma situação sem saída. É o desespero, a aflição e a tristeza – tudo junto. É (lembrando-me aqui de uma expressão linda que aprendi quando passei por Angola) o “desconseguir”.
Por todas essas lágrimas – as do choro e as do riso – eu vou fazer o possível para estar em Paraty nesta sexta-feira, quando os dois autores, Sedaris e Englander, estarão presentes na Flip. Mesmo sabendo que as chances são pequenas de eu poder “escapar” para lá – qualquer que seja o dia desta semana – eu tenho que tentar. Nem que seja em nome da lubrificação dos meus olhos…
(Sei que o post de hoje está ainda mais longo que os de sempre, mas, considerando a “folga” da semana passada, acho que você ainda merece uma pequena extensão… Nada muito longo, apenas para acrescentar que fiquei surpreso que alguém tenha descoberto que estava em Sewell, no Chile, na foto do post anterior. De fato, ter lido a história de Englander por lá despertou estranhos paralelos durante a viagem. E, embora ainda seja cedo para falar o que eu estava fazendo por lá – mistérios! – adianto que foi uma das visitas que mais me deixou emocionado nos últimos tempos. Que lugar especial: uma (hoje) cidade-fantasma, que existiu quase isolada por décadas em torno de uma mina de cobre. Descrito assim, parece sem graça – mas garanto que não é. Conhecer Sewell mexeu bastante comigo. Mas isso é assunto para uma outra hora – assim como a resposta para a dica que dei semana passada e que, aparentemente passou despercebida: Sewell e Chan Chan tem alguma coisa em comum… O que será? Bem, cada coisa a seu tempo…).