Quantas vezes você está numa festa já bem animada – daquelas que você já está dançando há um tempão, porque o DJ é bom! – e, sem aviso, entra aquele piano: aquele falso Beethoven, que faz todo mundo parar com sua cascata de notas, num sobe e desce vigoroso da escala musical, breve, mas impactante o suficiente para sua espinha gelar quando Gloria Gaynor solta aquele primeiro verso icônico: “First I was afraid, I was pretrified…”. Sim, seu cérebro já conhece, sua língua já cantarola, seu corpo já pede: é “I will survive” – e a festa fica melhor ainda…
Ah, nunca experimentou essa sensação? Bem, deixe-me tentar com outra música… Uma cuja introdução também tem um piano (humm… será que vejo uma conexão aí?), também trazendo uma cascata de notas, mas dessa vez acompanhado por um corinho tipo “ú-hu-hú”, que desemboca, não num primeiro verso, mas já direto no refrão, que suplica: “You can dance, you can jive, having the time of you life…”. Lembrou? Sim, é “Dancing queen”, do Abba, aquela música que enche a pista de qualquer festa – amigo secreto da repartição, convenção de vendas, casamentos, bailes da saudade (para não falar em “noites do flashback”!), bar mitzvahs e até batizados!
Você já vai entender porque separei esses dois momentos para abrir a discussão de hoje (aliás, por falar em discussão, não foi ótimo o jogo de idéias nos comentários do post anterior? Parafraseando os Mulheres Negras, “blog serve pra isso”!). Mas antes, vou prosseguir no tema que me propus contando que ontem fui assistir, no Rio, o show de Rufus Wainwright. Quem?
Bem, resumindo drasticamente, Rufus é uma das vozes mais especiais – e poderosas – que o pop tem hoje. E olha que eu não estou nem entrando em seu repertório… Talvez você não tenha ouvido falar dele porque suas canções são carregadas de um elemento que as FMs hoje em dia tendem a rejeitar – que é justamente a melodia. Assim, não toca mesmo. Aliás, não toca no Brasil e não toca lá fora (ah, nada como estar alinhado com o primeiro mundo!). Rufus é um artista, digamos, alternativo – mas não esse “alternativo” que passa um lápis no olho e canta músicas pesadas fingindo que está com o coração partido (preciso dar nomes?). Rufus pode ser considerado “alternativo” porque faz uma música que desafia classificações: parte cabaré, parte pop, parte balada, parte rock, parte folk – parte até (pasme!) música de câmara. Ah, tem mais um detalhe que talvez (talvez!) seja importante: Rufus é assumidamente gay.
Vai parar de ler o texto? Por quê? Se você não sai da pista – ou, talvez, pelo contrário, se você até entra nela – quando tocam “I will survive” ou “Dancing queen” (entendeu porque eu comecei o texto assim hoje?), qual é o problema de discutir um assunto como esse? Quem sabe você não manda um comentário interessante (mais uma vez, seu ponto de vista na linha “adolescente reprimido” pode ficar de fora…) e abre um pouco mais a argumentação de hoje? Estás a fim? Então, em frente!
O show de Rufus foi extremamente inspirador (se você puder, tente assisti-lo em São Paulo amanhã, ou em Belo Horizonte no domingo, ou terça que vem em Brasília) – talvez até mais do que o último que assisti dele, no ano passado, em Paris (mais sobre essa performance, daqui a pouco). E não pelo simples fato de ele ser gay – e brincar com isso o tempo todo no palco –, mas porque durante duas horas intensas (sem contar a abertura, que ficou a cargo da sua irmã, a ótima Martha Wainwright), o que o público viu foi uma apaixonada celebração do poder da música.
Seu repertório – quase todo original – é bastante eclético. Mas das canções mais diferentes – algumas, ele mesmo brincava que tinham um “sabor brasileiro” – às mais convencionais, Rufus imprime sempre uma marca inconfundível, que é a da sua voz. Para compreender o potência desse instrumento, recomendo que você não baixe nada às pressas agora na internet. Nem mesmo o que está disponível do artista no myspace é digno de uma caixa de som de computador. Só mesmo bem amplificada – ou então – ao vivo, a voz de Rufus revela sua capacidade… transportadora (para onde ela te leva… bem, isso é com a sua memória). E se você precisar de uma lista introdutória, eu sugiro “Sanssouci”, “Gay messiah”, “The art teacher”, “Going to a town”, “Ciagerettes & chocolate milk” e – minha favorita de todos os seus discos – “Little sister”.
A voz, as melodias, as canções, as letras, a performance – digna de um verdadeiro “entertainer”, na linha Frank Sinatra. Com tudo isso, será realmente relevante o fato de ele ser gay? Será que isso faz da sua arte algo maior ou menor? Essa inquietação está na minha cabeça há algum tempo, desde que li um artigo da sempre brilhante Miranda Sawyer num número especial da revista de música do jornal inglês “The Observer”, dedicado à música gay . Essa edição é de novembro de 2006 e, como você pode imaginar, trouxe um pouco de tudo: de Elton John conversando com Jake Shears (do Scissor Sister); uma lista dos 20 momentos mais gays da história do pop (os Beatles, é curioso assinalar, está no item 5); e mais um monte de entrevistas e perfis com artistas que vão de Boy George a Beth Ditto (The Gossip).
Toda a revista é divertida – como um número especial sobre qualquer aspecto do universo gay tende a ser. Mas focando no texto de Miranda Sawyer, entre tantos pontos de vista interessantes, ela conclui a certa altura : “você não precisa ser gay para fazer música pop, mas ajuda”. E mais: ela questiona ainda – e foi isso que provocou minha inquietação – os tempos em que vivemos. “Cada vez mais, hoje em dia, o pop tem seus reguladores autodenominados, do iTunes à revista ‘Uncut’, que querem cercar a música e rotulá-la. E suas categorias têm fórmulas escritas na pedra. Eles dizem que se você é homem, gay, e do mundo pop, você tem que ser ‘flamboyant’ ou torturado: Freddie Mercury ou Morrissey”, escreve ela.
Ora… (pausa estratégica para você recuperar seu fôlego)
O pensamento de Miranda prossegue, de maneira ainda mais brilhante. Mas quando li isso (e já faz um bom tempo), fui imediatamente provocado pela menção de Freddie Mercury e Morrisey: um incontestável ídolo do pop dos anos 70 (esbarrando nos 80), e outro o mártir do rock alternativo da década seguinte – dois períodos em que minha própria sobrevivência dependia da existência de música no mundo! Mesmo consumindo intensamente as canções desses dois artistas – e suas respectivas bandas, claro, o Queen e The Smiths – raras eram as alusões às orientações sexuais desses artistas. Elas surgiam de vez em quando, claro – eram às vezes sussurradas entre fãs (naquele tempo não existiam fóruns, nem comunidades na internet para esse fim!), mas não era isso que definia esses artistas.
Suas músicas eram consumidas pelas massas simplesmente porque eram… boas! Me lembro de ter ido ao estádio do Morumbi, em 1981, quando o Queen passou pela primeira vez pelo Brasil. Lotado… De gays? Claro que não! DJs obscuros, os mesmos que nos apresentavam, nos seus programas de rádios em horários para lá de alternativos, “raridades” como Siouxie & the Banshees, Echo & the Bunnymen, Gene Loves Jezebel, celebravam cada faixa dos Smiths como se fossem novas tábuas de mandamentos divinos – ainda que algumas proclamassem coisas como “I wan’t the one I can’t have” (“eu quero aquele que eu não posso ter”) ou trouxessem odes explícitas a um certo “homem charmoso” (“This charming man”)… Todos os DJs – e seus ouvintes – gays? Mais uma vez, claro que não!
Às vezes alguém reclama aqui – talvez com certa propriedade – que eu tenho uma certa fixação com os anos 80. Mas o que eu posso fazer se esses foram meus grandes anos de formação pop? Assim, perdão por – como já fiz antes evocar essa década como um marco de anti-caretice, quando as ditas tribos se misturavam mais, e as pessoas se preocupavam menos em rotular as coisas. E só para você não achar que The Smiths era um “caso isolado”, já ouviu o disco de estréia do Depeche Mode, “Speak & Spell”? Lembra de uma música chamada “What’s your name”? Ah… então vá fazer a lição de casa…
Retomando Miranda Sawyer, hoje as coisas no pop estão tão segmentadas que, de certa maneira (e sei que vou comprar briga com isso), as escolhas musicais estão mais pobres. Eu sei, é uma espécie de paradoxo: justamente quando hoje é possível celebrar a liberdade de um artista ser o que é – porque, aparentemente vivemos tempos menos caretas – os tais “reguladores” que Sawyer destacou parecem fechar os mercados e os públicos para artistas fenomenais. Músicos como o próprio Rufus, bandas com o Gossip, o Scissor Sisters – todos com capacidade para entreter platéias gigantescas em estádios, mas que acabam limitados a show bem menores, para uma audiência “de nicho”.
Pode parecer que eu estou sendo um pouco radical, mas faça você mesmo o teste: você não consegue imaginar uma turma escolhendo um show para ir, aí eles vêem um anúncio do show do Rufus – e, de repente, alguém fala: “ué, mas esse cara não é gay?”, e imediatamente outro responde, “hi… só vai ter gay nesse show”… E pronto: lá se foram mais alguns fãs em potencial de um artista maravilhoso que merecia ser descoberto por multidões.
É óbvio que o público de ontem na Sala Cecília Meirelles, na Lapa, não era maciçamente gay – como não será o de amanhã em São Paulo, nem nos outros shows de Rufus pelo mundo (nem do Gossip, nem do Scissor Sisters, nem… nem de Madonna!). Mas essa (não tão infreqüente assim) rotulação “pequena”, que é – ironicamente – um subproduto da própria liberdade que esses artistas conquistaram, infelizmente, eu temo, colabora para afastá-los de muita gente.
Sem me estender demais (eu sei, eu sei!), é essa lógica que me ajuda a explicar, por exemplo, por que Mika não vendeu 10, 20 milhões de cópias de uma obra-prima como “Life in cartoon motion” – o disco que escolhi (e ainda sustento minha escolha) como o melhor de 2007. E eu tenho certeza de que, através dos comentários, você vai me dar outros exemplos de injustiças assim. E ainda: vai me ajudar a entender por que alguém que delira numa festa com “Dancing queen” (lembra da letra: “feel the beat from tambourine” – “sinta a batida do pandeiro”!), tem uma certa resistência a experimentar o som de um artista rotulado oficialmente como “gay” (e muitas vezes embalado pela própria indústria do show biz para este mercado).
Só posso lamentar que as pessoas que têm essa… chamemos de “travação”, deixem de aproveitar momentos como os que Rufus Wainwright (e tantos outros) oferece(m) no palco. Essa curta turnê pelo Brasil é modesta (ele se apresenta apenas com piano e violão, ambos tocados só por ele) – e nem por isso menos recomendada! Mas só para não ficar devendo o comentário, vou falar rapidamente do tal show de Paris, que era com uma banda completa – e uma festa! Só para dar uma idéia, vamos rever o bis, quando ele volta ao palco, como que pego desprevenido, vestido num robe atoalhado. Em tom de conversa, ele pede desculpas e começa a falar um texto à toa, apenas para distrair a platéia do fato de que ele está passando um batom vermelho na boca e vestindo um sapato de salto alto… Quando você percebe, ele já está no fundo do palco, tirando o robe e, por baixo, está uma modelito clássico de… Judy Garland! E aí ele começa a cantar “C’mon get happy” – e o teatro vem abaixo…
Seria essa apoteose muito diferente daquela que Ivete provocou no seu show histórico no Maracanã? Quando Rufus tira uma lágrima de alguém na platéia cantando “The art teacher” – ou mesmo um sorriso com “Sanssouci” – é muito diferente do que faz Maria Rita ou Marisa Monte nos seus shows? Você mesmo – você mesma – prefere saber da vida sexual de um artista antes de conhecer seu trabalho?
Minha modesta conclusão é que esses rótulos estão aí para confundir – e tudo que está aí para confundir, é melhor a gente dispensar. Assim, se você ainda precisar de uma resposta para a pergunta que eu coloquei no título do post de hoje, não precisa nem procurar muito longe: ela está no próprio cacófato.
A primeira foto mostra Rufus Wainwright em show realizado na quarta-feira (7), no Rio de Janeiro. Crédito: Ag News. A segunda imagem é do show em Paris. Crédito: Zeca Camargo/Arquivo Pessoal