Antes que os livros acumulem…

qui, 31/01/08
por Zeca Camargo |
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zecapilha350.jpgPreocupado ou preocupada com a pilha de livros que só cresce ao lado da sua cama? Você é tomado ou tomada por uma estranha aflição assim que lê um artigo sobre um livro que faz você achar que deve lê-lo – ou, pelo menos, comprá-lo – imediatamente? O acúmulo de leitura faz você confundir duas (ou mais) histórias que estão te entretendo no momento? Pois pare de se preocupar! Com apenas um livro você será capaz de afastar todos esses dilemas. Ele acaba de ser lançado no Brasil e se chama “Como falar de livros que não lemos?”.

Não se trata de um daqueles livros pequenos, tipo engraçadinhos, expostos aos lado do caixa da livraria, feitos para uma risada rápida (“Cem coisas para fazer com um coelho morto” – título fictício), ou para oferecer conselhos aparentemente práticos (“Escapando de uma prisão de segurança máxima e outros truques fáceis” – também inventado), ou mesmo para despertar uma curiosidade que você não sabia que tinha (“Divirta-se com as operetas” – idem). “Como falar de livros que não lemos?” é um volume enxuto (pouco mais de 200 páginas, na edição brasileira, pela Objetiva), mas razoavelmente denso, e seu autor, longe de ser humorista, é professor de literatura francesa na Universidade de Paris: Pierre Bayard.

Seria um tratado acadêmico, não fosse o estilo de Bayard tão simples e suas referências tão acessíveis (ele cita Montaigne – sempre divertido – e Aristóteles, é verdade, mas também o filme “O feitiço do tempo” e aquele que é provavelmente o “best seller” mais erudito de todos os tempos, “O nome da Rosa”, de Umberto Eco). Sua idéia – que é bem simples – é explicada e justificada com um raciocínio limpo e claríssimo – tanto que basta uma manhã para você completar a leitura do livro… só para se arrepender logo em seguida – isso se você ficar convencido, como é a vontade do autor, de que nenhum livro precisa, de fato, ser lido. Nem mesmo o dele.

Logo na introdução, Bayard estabelece a impossibilidade (um tanto óbvia) de lermos tudo que é publicado no mundo (e olha que ele nem entrou na internet… sua análise refere-se apenas ao livros com páginas de papel de verdade) – e a conseqüente opressão que isso nos impõe, e que gera, segundo o autor, “uma hipocrisia geral sobre os livros efetivamente lidos”. Ele continua: “Conheço poucos domínios da vida privada, à exceção do dinheiro e da sexualidade, sobre os quais é tão difícil obter informações seguras quanto o dos livros”. Fácil de entender…

A partir daí, Bayard define algumas nuances entre o “ler” e o “não-ler”. Numa classificação que ele emprega para cada livro citado, o autor divide tudo o que o homem já escreveu em “livros que não conhecemos”, “livros que folheamos”, “livros de que ouvimos falar” e “livros que esquecemos”. Onde encaixar os livros que de fato lemos? Ora, que ingenuidade: eles não existem… Quando muito o folheamos – mesmo que seja do princípio ao fim, mas sempre numa leitura errante; ou então nos dedicamos um pouco mais a ele durante um tempo, quem sabe até chegando a completar sua leitura – apenas para nos esquecermos mais tarde do que dele absorvemos (é para confirmar isso que Montaigne é evocado).

Um choque? Sem dúvida! Mas é incrível como Bayard te convence (e rapidamente) de que o exercício que você achou, a vida inteira, que serviria para “alimentar sua alma”, “estimular seu intelecto” ou “despertar sua imaginação” (ou qualquer outro eufemismo que você quiser sugerir) não passa de uma manobra capenga de vaidade. E por quê? Porque o que importa, mais do que qualquer livro, é a idéia sobre ele.

O primeiro exemplo que o autor usa para ilustrar sua idéia (num estilo que lembra o de Alain de Botton, Bayard apóia-se sempre em referências inusitadas para desenvolver um pensamento), é o bibliotecário da obra monumental de Robert Musil, “O homem sem qualidades” – que Bayard classifica como “livro folheado e do qual ouviu falar”. Um dos seus principais personagens, o general Stumm, ao visitar uma biblioteca para “inspiração” (o intuito é bem mais complicado que isso, mas ficamos por aqui apenas para você entender a passagem de Musil), fica chocado ao saber que o bibliotecário nunca leu nenhum daqueles livros – feito do qual muito se orgulha. O importante, o texto parece querer dizer, é a “visão de conjunto” – e Bayard explora bem a idéia: “a cultura é antes de mais nada uma questão de orientação. Ser culto não é ter lido este ou aquele livro, é saber se orientar no conjunto dos livros, portanto saber que eles formam um conjunto e estar em condições de situar cada elemento em relação aos demais”.

Quer um tempo para recuperar sua respiração?

Para retomar o próprio fôlego, reli o que tinha escrito até agora e percebi que não estou nem no começo da minha justificativa sobre por que “Como falar dos livros que não lemos?” é tão bom… Vou ter problemas de espaço de novo – a menos que… a menos que você também leia o livro e a gente possa então discutir sem que eu precise descrever tanto o livro! Mas será mesmo necessário que você o leia? Ou basta que você leia sobre ele – ou ao menos saiba o que as outras pessoas estão falando dele? Ou ainda, sempre seguindo o raciocínio de Bayard (especialmente a sua conclusão), o ideal não seria nem tocar o livro e simplesmente imaginar uma discussão sobre ele?

Depois de descrever as nuances entre “ler” e “não-ler”, Bayard enumera situações onde você é obrigado a discutir livros que não leu: com seus professores, com o próprio autor de uma obra e até mesmo com a pessoa amada (numa curiosa tentativa de descrever nosso complicado envolvimento emocional, ele usa justamente o filme “Feitiço do Tempo” para mostrar como é possível – num devaneio – seduzir alguém pela paixão que ele ou ela tem por um determinado autor). E aí ele entra no argumento principal: a de que não devemos ter vergonha de não ter lido este ou aquele livro (ou mesmo qualquer um?). E mais: deveríamos desejar não conhecer livro nenhum para podermos ter a chance de inventá-los!

“Tornar-se a si mesmo o criador de obras pessoais constitui, então, o prolongamento lógico e desejável do aprendizado do discurso sobre os livros não lidos. Essa criação significa um passo a mais na conquista de si e na liberação do peso da cultura, a qual é freqüentemente, para os que não aprenderam a dominá-la, impedimento de ser, e portanto de dar vida a obras”, conclui Bayard já quase no final de seu livro. Impossível não encerrar essa leitura com um sorriso meio cínico.

Você tem todo direito de se perguntar agora aonde eu quero chegar sugerindo uma leitura dessas – ou, no mínimo, propondo uma discussão dessas – às vésperas do Carnaval… Garanto que minha última intenção é estragar sua festa! Contudo, acredito, como sempre – e até contrariando em parte o próprio Bayard, que um pouco do que você leu aqui vai ecoar em algum momento cognitivo seu daqui para frente. E, quando isso acontecer, só peço que você me escreva de volta, contando a experiência.

A pergunta que Bayard faz no título de seu livro permite muitas variações: “Como falar de filmes que não vimos?”; “Como julgar bandas que não escutamos?”; “Como comentar blogs que não visitamos?”; “Como criticar programas que não assistimos? – e por aí vai. Me conte uma outra hora como você vivenciou isso…

Nos encontramos de novo, não na segunda de Carnaval, mas quinta-feira que vem. E para não ficar esse clima “pesado”, vou terminar (rapidinho) com um “trailer” de um outro livro que vou comentar um outro dia e que faz um estranho contraponto a “Como falar dos livros que não lemos?”. Esse volume ainda não foi lançado no Brasil (mas você pode encontrá-lo claro, aqui mesmo na internet); chama-se “Bizarre books – a compendium of classic oddities” (“Livros bizarros – um compêndio de esquisitices clássicas”). É uma grande lista de títulos (apenas alguns poucos comentados) tão estranhos que você às vezes fica com medo de imaginar o conteúdo deles… Como eu disse, o comentário sobre ele fica para um outro dia – mas, para alegrar seu feriado, aqui vão alguns exemplos de obras que – inacreditavelmente – um dia já foram editadas:

bizarrezeca250.jpg“Amendoim salgado: 1.800 coisas que você não sabia”
“Sorvete para pequenas plantas”
“Exercícios na banheira”
“A tolerância das plantas com Heavy Metal”
“Sandálias pré-históricas do nordeste do Arizona”
“Como abandonar um navio”
“Carta aberta ao homem que matou meu cachorro”
“A termodinâmica da pizza”
“A dança da urina dos índios Zuni no Novo México”
“Irmãs menos conhecidas de homens bem conhecidos”

E, o mais importante para os dias vindouros:

“Como evitar o trabalho”

Bom Carnaval!

A Curva está de volta!

seg, 28/01/08
por Zeca Camargo |
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Quando você já está quase se recuperando das listas de “melhores de 2007”, todo mundo resolve fazer sua seleção de “apostas para 2008”! Como assim? Mal decidimos correr atrás do que ficou faltando no ano passado, e já temos que nos preocupar para não perder o trem deste ano? Ah, a doce escravidão do pop… Mas lembre-se: há sempre o perigo de você ficar ligeiramente desorientado no tiroteio de previsões…

Na música, por exemplo – só para ficar numa área que este blog cobre com certo afinco. Alex Miller, o mais aventureiro dos colunistas no “NME” (inglês), aposta que a salvação de 2008 será The Virgins. Será? “Rich girls” me parece bastante ordinária – ainda que “Radio Christiane” esboce alguma promessa… Mas aí a “Spin” (americana) vem com oito bandas que você tem que ouvir “agora!” – com ponto de exclamação mesmo. Oito! Fora The Wombats (os caras por trás da brilhantemente batizada “Let’s dance to Joy Division – irresistível já no título), e um cara com o dúbio nome de Jay Reatard (a quem fui apresentado pela sempre certeira lista dos melhores do ano da loja nova-iorquina Other Music), nenhum dos outros artistas passou pelo meu radar. Também, nenhum deles, pelo que pude conferir na internet, merece ainda uma atenção especial – a algo que vi na capa da última “Fader”, e que se chama Santogold (e digo “algo” porque não consegui definir exatamente do que se trata… mas já deu para perceber que é bom!). Nem sinal de Vampire Weekend (minha modesta aposta), que, como já tem um disco lançado (e condecorado com quatro estrelas pela própria “Spin”) deve estar sendo considerado “2007 demais” para este ano… Para onde apontar nossos ouvidos então?

O exercício é meio frustrante, mas o jogo é esse mesmo: a graça dessas “apostas” é justamente o frisson de selecionar, antes de todo mundo, um nome surpreendente o suficiente para emplacar – e se um dos artistas que você escolheu fizer mesmo sucesso, o crédito será todo seu… Se não der certo, não se preocupe: poucos são os que virão te cobrar (dois artistas que me inspiraram em 2007, Tiombe Lockhart, e a banda Yeasayer, passaram batidos… mas me pergunte se bateu algum remorso?).

Não é diferente quando o assunto é cinema. Com o festival de Sundance, que encerrou sua edição de 2008 ontem, começam a surgir os palpites de quem vai emplacar nas telas das próximas temporadas. Prepare-se para enfrentar filas, nos vindouros festivais, para as sessões de “Frozen river”, de Courtney Hunt, e, especialmente, “Rei do pingue-pongue”, do sueco Jens Jonsson… Berlim (outro festival que ainda conta) deve provavelmente confirmar o russo “Rusalka” (“Sereia”) como o queridinho alternativo do ano. E mesmo quem não gravita pelo “circuito independente” já tem pelo menos um filme para aguardar ansiosamente: “Sex and the city” (será que o distribuidor no Brasil vai traduzir o título por algo mais “digerível” par o grande público daqui, tipo “As loucas aventuras das quatro quarentonas em Nova York”?). E não vamos nem falar do novo “Batman” (“The dark night”) que, como se não bastasse o bom boca-a-boca gerado por Christian Bale novamente no papel principal, ainda ganhou um triste “empurrãozinho” com a morte de Heath Ledger – quem não vai querer ver?

E mais: todos esses filmes que boa parte do mundo já viu em 2007, mas que, graças ao bizantino critério dos distribuidores nacionais, o público brasileiro vai ver tão tarde que eles só devem entrar na lista dos melhores de 2008… Ou melhor: o público vai ver se o Oscar ajudar…

Pois então… Prometi, no final do post anterior, tocar nesse assunto hoje. Porém, só depois me dei conta de que, nem que eu tivesse um bom tempo livre neste fim de semana (que não foi realmente o caso), eu não poderia falar muito sobre as indicações do Oscar, simplesmente porque boa parte dos filmes anunciados pela Academia das Artes e Ciências Cinematográficas na última terça-feira simplesmente não está em cartaz no Brasil… Digo isso baseado nos filmes que estão nas salas de São Paulo – mas, como os comentários sempre deixam claro por aqui, a situação pelo país afora é ainda pior!

Dê uma recapitulada nos candidatos deste ano – e acompanhe comigo: dos cinco indicados para o Oscar de melhor filme, apenas dois estão em cartaz (“Desejo e reparação” e “Conduta de risco”) – isso, para não entrar a discussão “número de salas em que eles estão sendo exibidos” versus a distribuição de “A lenda do tesouro perdido”… Entre os filmes que concorrem na categoria “direção”, a situação é ainda pior: apenas “Conduta de risco” pode ser visto nos cinemas.

Melhor ator? Bem, se você perdeu as magras semanas em que “No vale das sombras” esteve em cartaz no ano passado, sua única possibilidade de avaliar um indicado é, novamente, “Conduta de risco” – que, do alto das suas oito indicações, pode ser visto, diga-se, em exatas sete salas (“Alvin”, apenas registrando, “abrilhanta” 38 cinemas na mesma cidade). Melhor atriz? A mesma coisa: por enquanto você só pode julgar o trabalho de uma atriz, Marion Cotillard, em “Piaf – Hino ao amor” (3 salas, em horários específicos – aproveite!). Preciso fazer o mesmo com cada categoria? Não, né?

Assim, ficamos com a promessa de algumas estréias para o Carnaval (excelente escolha, essa época onde o último lugar que a maioria das pessoas quer estar é numa sala de projeção…), e o resto… Bem, o resto é entregar para o acaso…

Não é isso, porém, que vai me impedir de dar palpites sobre as indicações desse ano: está de volta a Curva das Expectativas Flutuantes! Para quem chegou há pouco tempo por aqui – e mesmo para quem precisa refrescar a memória (afinal, a última vez em que ela apareceu foi em setembro no ano passado) –, uma rápida explicação: a idéia foi explicitamente chupada da revista americana “New York” e pretende simplesmente colocar eventos/produtos culturais numa curva de expectativas baseada principalmente em comentários e bochichos (e não em avaliações críticas); ou seja, o critério de inclusão é o quanto a atenção do público e da mídia está voltada para alguma coisa, do “pré-bochicho” (quando a expectativa por algo ainda é embrionária) à “ressaca da ressaca” (algo que está sendo revisto de maneira positiva, depois de ter sido malhado por todo mundo). Esse é o ciclo da nossa tão volátil atenção ao mundo pop…

Enfim, como a “base” da brincadeira (para a qual você está perenemente convidado a contribuir, acrescentando ou criticando) é justamente uma leve noção do que está nela, podemos montar uma só com os filmes indicados para esse Oscar sem nem mesmo tê-los visto! Assim, aqui está ela: a primeira Curva de 2008!

Lá no início, “The savages”, que apesar de elogios intensos a Philip Seymour Hoffman e Laura Linney (os dois atores do filme), nem sequer registra por aqui – não muito diferente de “O escafandro e a borboleta”, o que coloca os dois títulos no “pré-bochicho”. Na outra ponta, na “ressaca da ressaca”, Paul Thomas Anderson, que depois de ser escorraçado (não por mim…) por “Embriagado de amor”, volta triunfal com “Sangue negro” – uma espécie de vingança, tão bem-vinda quanto à de “Ratatouille”, que muita gente achou que era só mais um “desenhinho”, e está no páreo pelo melhor roteiro original. Ali no meio, Cate Blanchett, com duas indicações, está coberta de “ótimas críticas”, e um filme como “Onde os fracos não têm vez”, que todos tratam com tanta reverência, encaixa-se perfeitamente no estágio de “superexposição” antes mesmo de estrear. Entendeu o espírito? Mais explicações, aqui, num post escrito no distante novembro de 2006, quando a Curva estreou… (e, para quinta, estou reservando algo especial para o seu Carnaval – até lá!)

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O que é moda para você?

qui, 24/01/08
por Zeca Camargo |
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herchcovitvhva_zeca_2401.jpgJá reparou que o que separa “costura” de “cultura” são apenas duas letras? Isso no dicionário, claro. No nosso cotidiano essa separação praticamente não existe. Entre os dois extremos dessa idéia – os “fashionistas” insistindo que “Moda é A cultura”, e os pseudointelectuais contra-atacando com “Moda NUNCA foi cultura” -, acho que os dois conceitos interagem numa convivência pacífica e produtiva.

Fiquei pensando nisso na segunda-feira passada, logo depois que saí de uma jornada pelo último dia do São Paulo Fashion Week – Inverno 2008. Mais de uma vez fui bombardeado com a mesma pergunta que usei no título de hoje: “Zeca, o que é moda para você?”. Sério: foram dezenas de vezes (de onde saíram tantos “correspondentes fashion”?). Mas antes que eu me desanimasse com a pouca originalidade da cobertura em geral (nobres exceções, claro, como a garota – não me lembro de qual veículo – que me pediu para definir o limite entre loucura e criatividade na moda!), percebi que a insistência no assunto tinha me ajudado a elaborar uma resposta na linha do parágrafo acima – e no final estava até grato ao enésimo repórter que queria saber o que era moda para mim…

Mas fui ao SPFW trabalhar (fazer uma entrevista com Alexandre Herchcovitch para a série que estou fazendo, no “Fantástico”, sobre o Japão) – e não digo isso apenas como uma desculpa esfarrapada por estar lá… Sempre que pude – e desde os primórdios do evento – tentei acompanhar esse festival de criação. Agendas, compromissos e viagens nem sempre permitiram que eu fosse um freqüentador assíduo dos desfiles. A última vez que assisti com afinco ao espetáculo, me lembro de encontrar algumas vezes com Silvio de Abreu – que estava ainda fazendo pesquisas sobre o mundo da moda para uma novela de sua autoria que ainda nem tinha nome, mas que ficou conhecida como “Belíssima” (em se tratando do Silvio, claro, um grande sucesso). Por aí você já calcula o tempo em que fiquei afastado das passarelas – ou melhor, do público das passarelas.

Assim, foi com ligeira nostalgia que, depois de ter entrevistado Herchcovitch, decidi ficar para conferir os outros desfiles do dia. Como o acaso está sempre ao meu lado, o “cardápio” incluía mais dois nomes que nunca me deixaram menos do que curioso: Marcelo Sommer e Ronaldo Fraga. Não podia acreditar na minha sorte! Herchcovitch, Sommer e Fraga, de uma tacada só? Não podia perder!

sommer_zeca_2401.jpgMesmo que seu contato com moda seja periférico, tenho certeza de que você já esbarrou em alguns desses nomes – se não nos três. Com estilos totalmente diferentes, cada um deles se tornou uma referência na moda brasileira, por sua inventividade e ousadia. Do Alexandre, fico até sem graça de falar, pois é difícil escolher algum adjetivo para elogiá-lo que ainda não tenha sido usado – e se você ainda não aprendeu a admirá-lo, não sou eu nesse humilde post que vou te catequizar… Sommer, que alguns menos informados podem descartar como superficial, é, na verdade, um dos mais inusitados criadores brasileiros. E Ronaldo, que, além de ser meu amigo pessoal (e que isso não faça você pensar que eu estou exagerando), é o mais teórico e surpreendente de todos – um cara que, a cada desfile suscita não apenas suspiros e elogios, mas também parágrafos e parágrafos de elaborações sobre o que ele mostrou na passarela.

Relendo o último parágrafo, percebi que alguém pode ter a impressão (errônea) de eu estar fazendo um “ranking”: esse é mais isso, aquele outro é mais aquilo… Por isso, faço questão de esclarecer que não se trata disso. Tentei apenas pincelar o talento de cada um dos estilistas que se apresentavam na última segunda no Ibirapuera para poder falar um pouco dos desfiles.

Não sou crítico de moda – aliás, não sou crítico de nada… Sou apenas um consumidor – de moda, de cinema, de livros, de música, de arte, de TV. E assim como avalio o que consumo nas telas, nas livrarias, nos palcos e nos museus, minha atitude com relação à moda é exatamente essa: eu consumo. Portanto, nada mais natural do que eu escolher o que me agrada nas passarelas usando os mesmos critérios com os quais eu tomo minhas decisões com relação a outros produtos culturais. Reconheço que esses critérios são um pouco confusos (qualquer pessoa que leu meu post anterior já pode ter certeza disso!) – mas não é isso que está em questão agora… Só queria tentar explicar o que me deixou tão fascinado vendo os últimos trabalhos desses estilistas. Então, lá vai!

Respeitando a ordem, começamos por Alexandre, que, sobre uma passarela de dormentes lançou uma procissão de vaqueiros elegantes. A tentação de usar a palavra “caubói” é grande, mas quando a gente se lembra de que o primeiro modelo abriu o desfile com uma enorme capa de couro que parecia estar ainda alguns momentos atrás vestindo um animal, vem a certeza de que a inspiração de Herchcovitch estava mais para o sertão brasileiro do que o oeste americano… Seus vaqueiros, contudo, vinham (como sempre vem tudo que ele cria) com um estranho ruído: tudo tendia para o preto. A cor, que poderia ser apenas uma paleta inocente, servia de camuflagem para as pequenas extravagâncias que surgem aqui e ali nas roupas ao longo do desfile. Até que quando o último modelo entra com um enorme poncho de franjas você imagina que aquele visual pode habitar, com toda a naturalidade, a próxima Festa do Peão Boiadeiro. Para usar um elogio que a gente vê mais na imprensa americana do que na nacional, eu diria que foi um triunfo!

Ainda sob a influência do preto de Herchcovitch, foi com um certo choque que encarei o laranjão proposto por Sommer para a próxima estação. Levou até algum tempo para que eu percebesse que existia uma frágil conexão entre os dois desfiles. Porém, a presença sertaneja na coleção de Sommer tinha mais a ver com a alegria de uma festa junina do que com os peões de Alexandre. O tal laranjão que saltava aos olhos era uma referência direta à fogueira central dessas festividades – e estava por tudo: das calças masculinas ao xale das meninas que evocava as prendas gaúchas. Mas quem dera todo o noivo e toda a noiva de uma quadrilha se vestisse com aquele charme… Seus xadrezes nunca se misturam de maneira inconseqüente: tudo tem um equilíbrio mágico que escapa com folga do jogo gratuito de cores. Sommer apontou um novo caminho da roça – e quem quiser que tome o rumo!

fraga_zeca.jpgFechando o dia, Ronaldo Fraga. Eu vivo sob o feitiço das suas criações desde que, há mais de dez anos, eu presenciei o momento em que vários modelos entraram numa passarela com enormes cabeças de papel machê (que lembrava aqueles bonecões de Olinda) reproduzindo o rosto do próprio estilista, vestindo roupas inspiradas nos trabalhos do Bispo do Rosário (Wikipédia! já!). De lá para cá, mesmo que eu não conseguisse ir aos seus desfiles, tentava ver alguma coisa na internet só para ter a certeza de que Ronaldo tinha, mais uma vez, apresentado algo de genial. Para o inverno 2008, como pude ver de perto, não foi diferente. E seu tema era tão óbvio que quase passa despercebido: tecidos! Ou melhor, sua paixão por tecidos. Melhor ainda: suas lembranças das antigas lojas de tecidos que ainda proliferavam há até bem pouco tempo, e que fizeram parte de um imaginário do tempo em que o mundo da moda, para a imensa maioria das mulheres brasileiras, começava e terminava no armarinho da esquina. Foi desse ponto de partida que Fraga elaborou sua homenagem aos tecidos: com estampas relendo os moldes das revistas de “corte & costura”, detalhes impossíveis de serem reproduzidos em escala industrial, volumes voluptuosamente desenhados nos corpos das suas modelos. Na passarela, varais sustentavam fantasmas de outros vestidos – formas soltas no ar à espera de um material que nem precisa ser tão nobre assim para transformar o corpo humano: justamente o tecido.

Com essas três experiências – que, insisto, foram apenas uma fração da amostra da criatividade brasileira na moda -, saí do São Paulo Fashion Week, animado com tanta criatividade. E com a certeza de que o trabalho desses três – Alexandre, Marcelo e Ronaldo -, se não tomar contas das ruas da maneira exata como foram apresentados (alguém ainda não sacou que o que é exibido na passarela não tem exatamente essa intenção?), fará certamente eco em milhões de modelitos a povoar nossas festas e calçadas pela próxima estação – dando uma cor (ou mesmo que só um verniz) à nossa cultura.

E isso, para mim, é moda – pode economizar essa pergunta da próxima vez que a gente se encontrar…

(Segunda-feira, falamos de Oscar? Preciso de um tempo para digerir essas indicações…)

Fotos: Bianca Tatamiya/G1 (Alexandre Herchcovitch e Marcelo Sommer) e Flavio Moraes/G1 (Ronaldo Fraga)

Uma confissão

seg, 21/01/08
por Zeca Camargo |
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Finalmente resolvi tornar público algo que me acompanha desde a adolescência (dezenove anos ainda é adolescência não é?).

Antes, porém, um breve comentário sobre… bem… os últimos comentários: eu sabia que não ia ser simples levantar um tema como as diferenças de cor no Brasil aqui neste espaço – ainda mais sobre a representação dessas diferenças nas artes e na literatura. Mas fiquei realmente surpreso pelo que as pessoas escreveram. Tem alguns minutos extras? Então confira algumas opiniões enviadas. Da lembrança de Chris Offili e do sensacional Steve McQueen (o artista plástico – não confunda com o não menos sensacional ator homônimo), evocados pela Ana, ao esforço – bem lembrado pela Kelly – de Emanoel Araujo no Museu Afro-Brasileiro, as contribuições foram preciosas. Para não falar das outras idéias e referências lançadas: Inez Oliveira evocou “Negrinha”, de Monteiro Lobato; Humberto citou MV Bill e a exposição “África”; o Pedro e o Rena inevitavelmente lembraram das novelas; o Alex Rabelo (B L A C K) citou a garota-propaganda “black power” da rádio mineira onde trabalha; a Andréia chamou a atenção para uma mostra que me passou totalmente despercebida no ano passado chamada “Navio Negreiro” – são coisas demais para resumir aqui. Vale a pena ler – e quem sabe até continuar o debate… afinal, para que estamos aqui?

Dito isto, vamos à confissão: é algo que eu tentei esconder por muito tempo, e não sem razão. Todas as vezes que eu tentava trazer o assunto, a primeira reação das pessoas – inclusive amigos próximos – era a rejeição. Eu sempre achei que não era nada que eu tivesse que me envergonhar, e, quando surgia uma oportunidade, lançava o tema sem constrangimento – apenas para ser fortemente reprimido pro todos. Depois de uma série de experiências ruins, resolvi guardar essa dita “aberração” apenas para mim. Nunca abandonei essa minha, digamos, “distorção” – mas passei a praticá-la como um prazer solitário, sempre com muito medo de que, se fosse pego envolvido de alguma maneira com essa história algo de muito ruim poderia acontecer com minha imagem, ou mesmo com a minha reputação e a maneira como as pessoas passariam a me encarar. Até que nessa minha viagem recente a Nova York (eu falei que ia render, não falei?), eu tive uma experiência que foi a gota d’água! Através dela, vi que tudo que me amarrava até então era uma bobagem, que os preconceitos que eu sentia eram, na verdade, fantasmas criados pela minha própria imaginação – e me senti, finalmente à vontade para confessar: eu adoro “Xanadu”!

xanadu300.jpgPara os que nasceram depois de 1980, vale uma explicação rápida: esse é o nome de um filme musical, lançado justamente no início da década de 80, com trilha sonora de uma banda chamada Electric Light Orchestra, estrelando uma atriz australiana chamada Olivia Newton-John, no papel de uma musa que vem à Terra ajudar a inspirar um artista principiante – que então decide abrir uma grande discoteca com uma pista de patinação num teatro “art déco” abandonado que pertencia ao personagem de Gene Kelly. Sim, eu compreendo que essa última frase, para os mais moços, tem informações suficientes para uma tarde inteira à deriva pelas ondas das “wikipedias” e “imdbs” da internet. Mas deixe essa pesquisa para depois porque nada que você descobrir “escavando” dados sobre “Xanadu” vai fazer você entender meu envolvimento com esse filme. Assim, faça como os mais velhos, que já tinham idade para ir ao cinema há 28 anos (e que também devem estar tentando descobrir a razão dessa minha paixão), e me acompanhe nessa confissão.

Eu adoro tanto “Xanadu”, que tenho de admitir que esse é o segundo filme que eu mais vi na minha vida: foram oito vezes, no cinema (mais que isso, só “Lolita”, de Kubrick, que totalizou 11 vezes – ou seja, se quiser traçar um perfil do meu gosto cinematográfico por esses dois extremos, desista!). Mas antes de me julgar apressadamente, me entenda: eram os anos 80 – e valia realmente tudo. Ou melhor, eu achava graça em tudo. Digamos que até hoje eu ainda acho graça em tudo – dificilmente eu deixo de me interessar por alguma coisa, seja filme, música, qualquer trabalho artístico, sem dar uma chance ao artista… Mas é que o “tudo”, naquela década, era um inventário do mau gosto.

xanadumais300.jpgMas apesar de perceber (ainda que superficialmente) que eu crescia em tempos extremamente cafonas, esclareço: não fui ver “Xanadu” tantas vezes como um exercício “camp”. Eu realmente gostava do filme – e especialmente das músicas da trilha sonora. Admito que poucas coisas são tão datadas quanto o som da Electric Light Orchestra: guitarras e sintetizadores em abundância, trechos inteiros em falsete, batidas “disco” em cadência de rock, e um excesso de efeitos especiais. Mas eu adorava… E não só as faixas mais “pesadas”, mas também as baladas: “Suspended in time”, por exemplo, era de fazer inveja aos Bee Gees (estamos falando de anos quase trinta anos atrás, lembre-se!). Divertia-me com o pastiche de “big band” com “heavy metal”, de “Dancin’ ”; com a euforia de “All over the world”; e com a apoteose da canção-título, “Xanadu”!

E mais: aqueles patins… Atire a primeira pedra o adolescente que cresceu num ambiente urbano entre os anos 70 e 80 e não sonhou em colocar um par desses nos pés… Ver uma das maiores estrelas da época (e acredite, Olivia Newton-John era então uma grande estrela) sobre oito rodas era uma espécie de catarse difícil de ser reproduzida hoje em tempos onde uma diva sem calcinha nem levanta a sobrancelha de seus fãs. As danças eram divertidas, os cenários eram coloridos, e a história… bem, a história não tinha o menor pé nem cabeça – mas quem estava se importando com isso? Aliás, ampliando ainda mais a questão: quem é que se importava com alguma coisa naquele tempo? (post-it virtual: lembrar de escrever aqui, um dia desses, sobre o livro “New wave”, apresentado por Jean-François Bizot – o fundador de uma das melhores revistas de todos os tempos, a francesa “Actuel”).

Mas não quero ficar aqui apenas relembrando o passado… Recomendo, outrossim, que você tente encontrar uma cópia de “Xanadu” e assista você mesmo a essa “obra-prima alternativa” – especialmente se sua intenção for me crucificar por esse “pecado menor”…

Para trazer o assunto para o presente, fui assistir a uma versão do musical na Broadway, que estreou no final do ano passado e sobrevive em cartaz não sei muito bem como – uma vez que as críticas foram, como se diz por lá, “mixed” (mistas). Aliás, eu sei como: os responsáveis por isso são os fãs do filme (e possivelmente os filhos desses fãs, já que, espalhados pelo público, eu encontrei pessoas que nitidamente tinham nascido depois de 1980). São eles que (como eu) estão lá lotando o teatro, movidos por uma forte nostalgia, mas também para lembrar (novamente) como é bom rir de si mesmo. Claro! Porque essa é a única maneira de apreciar esse trabalho – seja na tela ou no palco.

xanaducabin300.jpgUm “monstrengo” como esse (pode procurar em listas de “os piores filmes de todos os tempos”: ele vai estar em todas, quando não em primeiro lugar!) não apareceu no nada. Assim como a criatura mutante de uma das coisas mais divertidas que eu vi no cinema no ano passado, “O hóspede”, “Xanadu” é fruto dos detritos que eram produzidos na época: o filme só existiu porque existia uma cultura para isso. Todos os exageros, todos os ridículos, todas as piadas (explícitas ou implícitas), todos os desacertos do filme, são simplesmente um condensado do “caldo cultural” absurdo no início daquela década. Na época, eu (talvez precocemente) já tinha percebido que a melhor saída para atravessar aquele momento era rir de tudo em volta. E, para isso, não poderia haver veículo melhor do que “Xanadu”.

De um jeito quase perverso, o mesmo processo se repete na versão da Broadway – com a única diferença de que a maioria do público, já um pouco mais maduro é capaz de usufruir dessa ironia conscientemente. E assim, garanto, fica tudo muito mais divertido. Isso – para quem não registrou bem a palavra quando eu a usei há alguns parágrafos – é “camp”.

Claro que muita gente já definiu esse conceito bem melhor e de maneira mais aprofundada do que eu agora aqui – se o assunto te interessou, tente achar uma edição de 1964 do “clássico” de Susan Sontag, “Notas sobre o camp” (ou arrisque uma edição em inglês, largamente disponível nas livrarias virtuais). Mas, para os iniciantes, “Xanadu” é uma ótima introdução. Para ter uma idéia do que eu estou falando, confira algumas reportagens feitas pela imprensa americana, como essa do programa “Nightline”, da ABC, que tem bons clipes do musical; ou, se quiser saber o que a própria Olivia Newton-John achou da adaptação, veja a cobertura, em vídeo, do jornal “The New York Times”. Ah ! – e se gostou do que viu, pode ir direto ao site oficial da peça e se esbaldar!

Para encerrar, mais um obrigado. Foi bom ter dividido isso com você – uma espécie de terapia! Pode ser que você não volte nunca mais por aqui – o que seria uma pena, pois a vida (nem a vida deste blog) não é só “Xanadu”. Mas pelo menos eu fiquei livre do medo de falar sobre esse assunto. E me sinto bem melhor… quase tão bem quando, junto com toda a platéia do Helen Hayes Theather, naquela noite de primeiro de janeiro deste ano, eu cantava, a plenos pulmões: “I’m ali-i-ive!”

Sombras

qui, 17/01/08
por Zeca Camargo |
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“Sei que estou vagueando, em círculos concêntricos que se alargam, na direção da ponte – e depois de volta na direção sul da avenida Clinton à Atlantic, a divisão entre o velho e o novo, com as lojas da África do Norte e do Oriente Médio, com seus jarros de azeite de oliva; caixotes de grãos, café e frutas secas, temperos e ervas secas; baldes cheios de azeitonas; e pela tarde, especialmente aos sábados, gente branca. Eu suponho que não deveria ter nada de errado nisso, mas tem, para mim, e, quando eu faço compras, para eles. Eu fico na fila e eles me encaram até que, claro, eu encaro também. Daí eles desviam o olhar. É estranho que seja necessário um pouco de imaginação para entender que eu gosto de azeite de oliva e de queijo ‘feta’ da Bulgária por uma pechincha, também. É mais estranho ainda que eles não parecem ter imaginação nem nessa quantidade tão pequena. Tem vezes em que eu já preferi extrapolar, generalizar – uma reprovação generalizada de um grupo inteiro baseada na observação de alguns poucos nervosos. Quando eu me mudei pela primeira vez para Nova York, Shake pediu uma bolsa para estudar os hábitos dos brancos do Upper East Side – seus rituais, sua cultura. O pedido foi, claro, recusado.”

zeca-11.jpgEsse parágrafo foi tirado do livro que estou lendo agora, “Man gone down”, de Michael Thomas. Seu título pode ser traduzido por “Homem abatido” – não no sentido de “doente”, mas de “eliminado”. Foi escolhido pelo jornal “The New York Times” como um dos cinco melhores livros de ficção de 2007 – razão pela qual eu o peguei para abrir minhas leituras de 2008. E é a história de um grande fracasso. O parágrafo, apenas um entre tantos tão bem escritos (e que eu espero ter traduzido com certa justiça) já dá um bom esboço do personagem central da história. Para quem ainda não “captou”, aqui vai mais um trecho – esse curto -, antes de a gente continuar:

“Existem poucas coisas piores, socialmente, do que ser uma pessoa marrom numa pista de dança de um evento só de brancos. Eu não gosto de dançar em lugar nenhum, muito menos sóbrio”.

Ainda não terminei o livro – estou um pouco aquém da metade das suas 428 páginas. Mas, por passagens como essas, é possível perceber que essa não é a história de um fracasso qualquer, mas da queda vertiginosa de um negro americano que arriscou sua sorte num círculo social onde ele não é bem-vindo, e onde nada está montado para que ele se dê bem. Em resumo, uma sociedade como a nossa – e se você acha que a sociedade americana é muito diferente da brasileira, no que diz respeito ao convívio entre negros e brancos, melhor procurar outra coisa para ler.

O personagem principal, cujo nome jamais sabemos, tem quatro dias para juntar um dinheiro impossível para alguém nas suas condições – cerca de 12 mil dólares. E quais são “suas condições”? Michael Thomas faz um retrato tão bem multifacetado que seria uma injustiça descrevê-lo aqui com apenas um punhado de adjetivos. Mas basta saber que ele é um negro, numa sociedade como a nossa para poder imaginar… Aliás, se você, como as pessoas da loja de especiarias que aquele parágrafo lá em cima descreve, estiver precisando de um pouco mais de imaginação, deixe-me acrescentar: ele está separado de sua mulher (branca) e de seus três filhos, sem emprego e com a ambição de ser escritor – ah, ele também é alcoólatra (sem beber já há alguns anos, mas, como com qualquer pessoa que sofre com essa doença, eternamente assombrado pelo problema).

Quem aqui me acompanha neste blog sabe que eu sempre desconfio de coincidências… Mas veja só: comecei a ler esse livro recentemente, na viagem que fiz a Nova York – e no mesmo dia em que visitei uma exposição extraordinária: a retrospectiva de Kara Walker, no Whitney Musuem, uma das experiências mais emocionantes que tive recentemente num museu.

Talvez você tenha tido a chance de passear na 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, e tenha se deparado com seu trabalho poderoso. Se esse não foi o caso, você pode aqui mesmo fazer uma visita virtual à exposição nova-iorquina – ou até “pegar carona” numa cobertura alternativa (parte 1 e parte 2) de alguém que visitou o Whitney na abertura para a imprensa e registrou tudo (com comentários bastantes irônicos – que você pode simplesmente ignorar, em favor de uma apreciação mais detalhada da mostra).

Walker é uma artista negra, com um trabalho extensivamente elogiado, e uma narrativa que apenas parece simples. Na sua pesquisa artística, ela foi resgatar antigos estereótipos da representação dos negros na história de seu país: africanos, muito antes de eles serem hifenizados (como em “afro-americanos”) – sim, escravos. E, como todo artista brilhante, ela pegou tudo isso e extrapolou.

Dos desenhos antigos das negras de largos beiços, peitos fartos e bunda grande, ela fez retratos ainda mais exagerados. Dos negros “arrumadinhos”, vestidos como seus senhores, e dignos de serem representados nas elegantes silhuetas recortadas em papel escuro, ela extraiu narrativas perversas. Enfim, de registros que durante anos foram vistos como “naturais” ao mesmo tempo que eram instrumentos de escárnio (para depois se tornarem simplesmente piadas grotescas), Kara Walker construiu um universo de maldades e abusos, humilhações e preconceitos, crueldades e intolerâncias – e jogou todos nós dentro dele.

zeca-21.jpgSeus trabalhos não se limitam ao papel: espalham-se por paredes inteiras e, em alguns casos, se esparramam em sobreposições de recortes onde a experiência de “o espectador fazer parte da história” é inevitável (no próprio site da exposição do Whitney, indicado acima, você vê salas que, para atravessá-las, o visitante é obrigado a cruzar uma dessas projeções, num exercício maldoso – ou talvez nem tanto assim – de fazer tornar você parte da experiência retratada). Mas é sobretudo nos seus filmes, releituras de antigos teatros de sombras, que o soco de Walker é mais certeiro.

Não é difícil encontrar ao menos um trecho de um de seus trabalhos na internet – a própria “visita pirata” que eu indiquei acima traz dois desses momentos fortes: um em que uma ilha se transforma numa enorme cabeça e “engole” náufragos no mar, e outro onde o sexo é explícito e explicitamente usado para ilustrar as relações de poder de antigamente (ao que você imediatamente se pergunta: “será que só antigamente?”). Para um exemplo complementar, este outro filme traz mais uma imagem recorrente no trabalho de Walker: a do menino negro que tem sua perna serrada por um “sinhozinho”.

zeca-3.jpgA escolha da palavra que fecha o último parágrafo não foi acidental. Para mim foi impossível visitar a retrospectiva do Whitney e não pensar na própria experiência brasileira de escravidão e de racismo. E veio a inquietação: que artista brasileiro está tratando desses temas? Ou ainda: que artista brasileiro, tratando desses temas, está ganhando exposição e reconhecimento?

Saí do Whitney, numa manhã em que a sensação térmica era de menos 14 graus e, andando do lado ensolarado da avenida Madison, tentei retomar a leitura de “Man gone down”. E as perguntas não pararam: quem no meu país, na minha cultura, está escrevendo sobre isso? E, na mesma linha anterior: que escritor está trabalhando esses temas e sendo publicado e reconhecido? Não encontrei respostas. Pobre Brasil… É como se não tivéssemos esse tipo de confronto na nossa história. Ou será que simplesmente não queremos encarar isso? Eu sei, eu sei: o “tour de force” de Ana Maria Gonçalves, em “Um defeito de cor” cutuca exatamente algumas dessas feridas antigas – mas quem está atualizando o debate? Sei também que temos um riquíssimo discurso de discriminação na nossa música contemporânea – numa linha lúcida que vai de Luiz Melodia a Racionais MC. Mas será que essa discussão só se restringe a esse campo?

Jogo essas questões todas para você numa tentativa aberta de que quem me lê aqui prove o contrário: mande para mim exemplos, através dos comentários, de boas obras de arte daqui que estão tratando disso. Tomara que eu esteja errado – ou, pelo menos, mal informado! Eu fico aqui esperando com o livro de Michael Thomas na mão. Ele ainda não foi traduzido para o português, mas faço votos fervorosos de que seu lançamento no Brasil não demore, para que mais gente possa aproveitar trechos como esse (que é exatamente onde eu parei minha leitura da última vez):

“Minha promessa. Eu nasci um menino pobre e negro com uma inteligência acima da média, e assim, como futuro líder do meu povo, eu ganhei a luz para que a guardasse – não para deixá-la brilhar, mas para segurá-la na escuridão como uma estrela encoberta pelo manto da noite até que eu estivesse pronto para revelá-la. Mas há algo de estranho em atravessar a vida como um experimento social…”

Radiohead: duplicar e triplicar

seg, 14/01/08
por Zeca Camargo |
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radiohead_2008.jpgVem aí Vampire Weekend. Isso não tem nada a ver com o Radiohead, mas como essa vai ser uma das bandas de 2008, achei melhor falar logo dela – assim, quando você começar a ouvir esse nome por aí, por favor, lembre-se de mim (aliás, se quiser já ouvir alguma coisa agora, comece por “Mansard roof”, refresque com “Oxford comma”, e feche com “Apunk”, no MySpace).

Mas vamos lá: Radiohead!

Antes de mais nada, é importante dizer que, diante de qualquer trabalho deles, nenhum fã da banda – ou mesmo que tem mesmo uma admiração reservada por ela – está livre da influência de “OK computer”. Quando esse CD apareceu, em 1997, o impacto foi tão grande que as reverberações podem ser ouvidas até hoje (parece que já chegaram em Saturno!). “OK computer” era (e é) tão genial, tão diferente, tão inesperado, tão honesto, um tapa na sua cara tão forte, que uma simples escutada contínua era capaz de deixar marcas permanentes em quem a ele emprestava seus ouvidos.

Eu, claro, não fiquei imune a isso – como pude checar novamente ao reler uma resenha sobre o disco, que fiz então. E durante todos esses anos, desde 1997, fui tomado por uma espécie de sebastianismo (Wikipédia – rápido!), aguardando o retorno messiânico “daquele” Radiohead. “Kid A”? Muito bom – nem que fosse pelos 4 segundos que abrem “Everything in its right place” (tudo, de fato, no seu devido lugar… que petulância começar o disco mais esperado do final do século 20 com aquelas notas glaciais!); ou simplesmente pela faixa mais injustamente esnobada por todos os DJs do mundo, “Idioteque”. “Amnesiac”? Mais um título sensacional, mais uma capa enigmática, mais um punhado de faixas desafiadoras – mas ainda longe de algo que pudesse encostar “OK computer”. “Hail to the chief” chega em 2003 e, como indicava a sua primeira faixa (“2 + 2 = 5”), suas partes não somavam muito bem: momentos belíssimos entrecortados por sonoridades confusas – um provável truque perverso do próprio Radiohead, como se a banda estivesse dizendo indiretamente aos fãs: “ainda não é isso, mas estamos tentado – e com afinco!”.

A cada um desses lançamentos, eu voltava para “OK computer”, só para ter a certeza de que ele continuava imbatível. Perguntava: seria possível mesmo superar aquele conjunto? A elegância de “Karma police” coexistindo com o desespero de “Let down”? A tempestade cerebral de “Paranoid android” anunciando a calmaria quase bucólica de “No surprises”? O conceitual-cabeça de “Exit music (for a film)” com o sensual-épico de “Airbag”? E a conclusão era sempre a mesma: “OK computer”, ainda na frente.

Entra, então, “In rainbows”. Oficialmente, ele chegou dia 10 de outubro do ano passado – um lançamento comentadíssimo, não apenas por ser exclusivamente virtual (o disco só estava disponível para ser “baixado” pelo site da banda), mas também pela proposta inovadora de deixar para os fãs a decisão de quanto eles deveriam pagar pelo prazer de ter o álbum em seu arquivo pessoal. Muito se falou dessa nova abordagem na relação artista e público (com o item “gravadora” perversamente fora da equação). Foram matérias e matérias com previsões abstratas sobre o futuro da indústria fonográfica e especulações vazias sobre quantos (e quanto) fãs pagaram de fato por “In rainbows” – estimativas bem “chutadas” colocam o “preço” médio do trabalho entre R$ 10 e R$ 16.

Este post, porém, não vai acrescentar nada a esse debate – desculpe. O que vem a seguir é um comentário à moda antiga… Como os próprios formatos para consumir música estão mudando, as maneiras de analisá-la também se renovam. Mas, se o Radiohead insiste num “velho” conceito chamado “álbum”, acho melhor acompanhá-los na intenção com uma crítica do disco. “Ah”, dirão os mais engraçadinhos, “por que você não fez isso em outubro?”.

Primeiro porque, como um bom quarentão, ainda tenho reservas quanto a “baixar” qualquer coisa da internet – mesmo que seja autorizada pelo autor (reparou as aspas no verbo “baixar”?). E, também como um bom quarentão, ainda gosto da minha música servida num CD – ou num vinil. Aliás, no caso de “In rainbows”, pude me empanturrar com os dois formatos: comprei, logo no dia primeiro de janeiro – quando já estava disponível nos Estados Unidos – a versão “metida” do álbum: o CD oficial, o CD de bônus (mais oito faixas inéditas, 26 minutos e 53 segundos fesquinhos!), um livreto com as letras, um “livrão” só com arte (fotos e grafismo, assinados por Stanley Donwood, colaborador de longa data da banda), e dois discos de vinil, com as dez faixas impressas em 45 rotações por minuto (pergunte ao seu tio o que significa isso).

Não posso, de fato, reclamar: ouvi “In rainbows” de tudo quanto foi jeito. Assim, aqui está o veredicto.

Não é um “OK Computer”. Mas também eu não tenho mais “só” 34 anos; nesses dez anos, já dei uma volta ao mundo e escrevi três livros; o cenário musical – brasileiro e internacional é outro; já passamos pela revolução do iPod; as Torres Gêmeas desabaram; o “BBB” chegou à oitava edição; o biocombustível não é mais uma alternativa, mas uma salvação; Britney Spears circulou uma dúzia de vezes o ciclo de ascensão e queda de uma celebridade; o mundo reconheceu a inventividade do cinema brasileiro; “mensalão” já veio e já foi como se nada tivesse acontecido; Los Hermanos apareceram, gravaram quatro discos e entraram em um hiato; e “esse” Radiohead já não é “aquele” Radiohead.

Esse pequeno panorama é, claro, uma mera alegoria apenas para lembrar que as coisas mudam, e que, sebastianismos à parte, não faz o menor sentido esperar por um novo “OK computer”. Deixei claro? Inclusive para mim mesmo? Acho que sim! Dito isso… “In rainbows” é sensacional – e se eu tiver de explicar esse adjetivo em apenas uma frase, vou pegar emprestado o verso de uma das faixas novas do próprio Radiohead (“Faust arp”): é exatamente “o que você sente agora”. Elaborando: da bizarra batida “disco” que abre o álbum (“15 step”) ao pseudo-reco-reco hipnótico que marca seu final (em “Videotape”), todo o conjunto de músicas é a tradução mais eficaz de tudo que você deveria sentir agora – e não apenas com seus ouvidos…

Um rápido faixa-por-faixa: do estranho convite à dança de “15 step” você é levado a um brilhante arremedo de u2 em “Bodysnatchers” – que na verdade é uma releitura de PIL pelo olhar sempre assustador de Thom Yorke; as coisas ficam mais calmas e chamam à reflexão em “Nude”, só para pegar um pouco mais de ritmo em “Weird fishes/Arpeggi” (achou o título estranho? Você não viu nada…), onde, dessa vez, o arremedo é de Coldplay – ou melhor, é o Radiohead mostrando como o Coldplay deveria ser desde o início; quem procura uma canção de amor, o mais próximo que eles têm a oferecer nesse disco é a música seguinte, “All I need”; aí surge “Faust arp” – e você finalmente se lembra por que se apaixonou (pela banda ou por uma pessoa qualquer) pela primeira vez (mais sobre essa faixa daqui a pouco); “Reckoner” é o momento mais distante do trabalho, mas quem se sente afastado logo é reconquistado com “House of cards” – uma bossa nova futurista, se é que eles alguma vez pensaram em gravar uma coisa assim (alerta “Bebel Gilberto” em potência máxima!); depois vem “Jigsaw falling into place”, cujo nome (mais ou menos, “Quebra-cabeças encaixando no lugar”) funciona como uma senha para entender o disco todo (musical e poeticamente); e o disco fecha com a aparentemente inofensiva “Videotape” – “aparentemente” porque você não dá nada na primeira vez que ouve, mas de perto, ela é a segunda melhor faixa de “In rainbows”, na minha humilde opinião.

E qual seria a primeira? Disparado, “Faust arp”. Passar aqui, num texto, a sensação de ouvir essa música é um exercício de frustração. Mas, como eu sou teimoso (e fiquei particularmente encantado com essa canção, que não parece fazer o menor sentido, mas que é simplesmente perfeita), vou tentar: numa melodia tão delicada e ao mesmo tempo coesa, que parece feita de fios de uma teia de aranha, as frases musicais se sucedem de maneira tão natural que nem parecem que foram compostas uma a uma – é como se a faixa tivesse nascido pronta, inteira, indivisível; a voz de Thom York reescreve palavras como “tingling” e reinventa expressões como “on again off again” – tudo dentro de uma de suas poesias mais inspiradas, com imagens intensas, que enchem os olhos pelos ouvidos e, sem nunca romper a fragilidade da canção, explodem como as tintas que ilustram o livreto do CD: um corpo morto do pescoço para cima, um elefante tropeçando na sala, alguém que cai como dominós fazendo belos desenhos no chão; e tudo isso duplicando e triplicando, duplicando e triplicando…

Esse comando – que é também um verso de “Faust arp” e que emprestei para o título deste post – é, para fãs como eu, uma leitura do desejo eterno de que sempre exista música boa no mundo. Talvez não tão boa quanto à de “OK computer”… mas bela o suficiente para nos inspirar por muitos e muitos anos. E quem melhor que o próprio Radiohead para desejar isso?

Duas evidências irrefutáveis de que menos é mesmo mais

qui, 10/01/08
por Zeca Camargo |
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jogodecenazecava.jpgComo eu dizia no post anterior, estava com o texto sobre “Jogo de cena” pronto. Mas uma curiosa correspondência me fez reescrevê-lo para acomodar uma outra coisa que eu vi num cinema. O que me fez conectar as duas coisas foi a escancarada economia de recursos de ambos os trabalhos – sobretudo o fato de que esse despojamento acabou resultando em dois produtos culturais exuberantes.

Primeiro, “Jogo de cena”. Como brinquei no meu post sobre a “lição de férias” que eu mesmo havia me imposto, o trabalho de Eduardo Coutinho não é para ser visto apenas uma vez. Mas ao contrário de filmes que praticamente pedem uma segunda assistida (“Syriana”, “Babel” – você conhece o estilo), “Jogo de cena” convida a repetidas sessões não pelas pontas soltas que deixa, mas pelo simples prazer de rever um trabalho instigante e refinado.

O “refinado” é, antes de tudo, por conta da atuação das atrizes – e das não atrizes (já explico). Mas o adjetivo se aplica também à extrema sensibilidade com que o diretor costura os depoimentos, numa tentativa (bem-sucedida, diga-se) de confundir o telespectador – que demora a perceber que está diante de um jogo. E quando percebe, é porque já caiu na armadilha do diretor para confundir o que é verdade e o que é ficção.

Colocando assim, “Jogo de cena” parece um tratado. Nada disso: o filme não poderia ser mais simples – e o fato de que ele consegue deixar o espectador tão intrigado, com tão poucos recursos é minha primeira evidência irrefutável de que menos é mesmo mais. Vou tentar descrever o que acontece na tela sem tirar o possível prazer que você terá de assisti-lo por inteiro (mesmo sabendo da impossibilidade de “Jogo de cena” em larga escala, tenho fé de que o DVD não demore a ser lançado – e, quem sabe, adotado como currículo obrigatório em qualquer curso de artes dramáticas).

Cerca de 95% do filme é preenchido por uma câmera parada mostrando depoimentos de várias mulheres que passam pelo palco de um teatro vazio – as cadeiras vazias no fundo, o diretor e sua enxuta equipe fazendo “pontas” casuais, e é só. De vez em quando, a câmera acompanha uma das mulheres subindo até o palco por uma escura e claustrofóbica escada em caracol. Visualmente, mais nada acontece. Mas quando essas mulheres abrem a boca…

Estou chamando todas as participantes do filme de “mulheres”, mas algumas são atrizes conhecidas: Marília Pêra, Fernanda Torres, Andréa Beltrão. Outras são rostos vagamente familiares – e quando uma delas explica que é do grupo Nós do Morro (uma das iniciativas culturais mais interessantes do país, que há vinte anos forma profissionais nas áreas de teatro e cinema – a princípio para crianças e jovens do Morro do Vidigal, no Rio, mas que hoje está aberta para todas as comunidades carentes), você se lembra de que pode tê-la visto em alguma produção independente. Um terceiro grupo é composto apenas de mulheres que não são atrizes. Ou são?

Ah… esse é que é o jogo – esse é o labirinto proposto por Coutinho. Todas as histórias são fortes – mas serão todas elas verdadeiras? Em alguns momentos as atrizes aparecem discutindo o próprio “ofício”: quando fica claro que algumas estão reproduzindo histórias de mulheres que responderam a um anúncio de jornal colocado pela produção do filme, elas “abrem o jogo” e falam sobre a dificuldade de viver um personagem, quando esse personagem é ordinário – e, por favor, não interprete “ordinário” como “chinfrim” ou “banal”: as mulheres que estão lá abrindo para o público um episódio da sua vida são tudo menos isso. Na verdade, elas são tão complexas que o esforço das atrizes em encarná-las é enorme. Andréa Beltrão confessa que se perdeu várias vezes na interpretação. Marília Pêra nos confunde com seu discurso sobre a capacidade de demonstrar a dor. E Fernanda Torres dá a melhor justificativa para a impossibilidade da tarefa proposta por Coutinho quando fala que uma atuação medíocre de um bom personagem (criado por um dramaturgo ou um roteirista) ainda se segura porque o material é consistente o suficiente, mas isso não acontece quando sua fonte é alguém da vida real.

Mas à certa altura você começa a desconfiar que mesmo esses depoimentos podem ter sido ensaiados. Então você começa a desconfiar que mesmo as outras histórias não são totalmente verdadeiras. Alguém que se apresenta como Nilza (é a Nilza?) faz um longo relato e termina indignada com pessoas que passam a vida inteira sem olhar para o céu – quando, sem aviso, desarma tudo. Se é que desarma… E quando você já está quase nocauteado por tantas incertezas, Coutinho, numa surpresa final, aplica aquele soco por baixo, com a esquerda – e você sai desnorteado do cinema.

E olha que eu estou fazendo uma versão resumida de tudo que me passou pela cabeça quando saí da sessão de “Jogo de cena”. Tudo isso, com tão pouco…

persepolisva.jpgE foi exatamente essa última frase que me veio à cabeça quando saí de outra sala de cinema, em Nova York, onde assisti, na semana passada, à versão para as telas de “Persépolis”. Esse filme de animação (quando a expressão “desenho animado” parou de ser usada mesmo?) tem estréia prevista no Brasil em março, mas eu sou tão fã dessa história em quadrinhos – oops, desculpe, dessa “novela gráfica” –, que não resisti: arrumei 90 minutos na minha apertada programação na cidade para ver a adaptação da história da iraniana Marjane Satrapi.

Já tinha lido muita coisa sobre esse trabalho, que ela mesma dirigiu, ao lado de Vincent Paronnaud – especialmente sobre a fidelidade com que a narrativa do livro foi transferida para o cinema. Mesmo assim, fui surpreendido pela simplicidade da adaptação: com recursos mínimos e ainda a “desvantagem” de ter quase todas as cenas em branco e preto, “Persépolis” é, com o perdão do clichê, uma festa para os olhos.

Claro que as enormes manchas escuras combinam, e muito bem, com o clima da revolução que transformou o Irã no final dos anos 70 – seja pela severidade dos véus adotados pelas meninas nos colégios ou pela penumbra obrigatória das reuniões secretas. O preto vai bem também com o universo “underground” de Viena, onde Marjane foi passar a adolescência. Mas o que poderia se tornar algo cansativo, aparece sempre de maneira inesperada – a ponto de o filme adquirir uma narrativa alternativa: a da própria cor preta.

O fato de a personagem central – a garota iraniana que cresce numa família de intelectuais (alguns, ferrenhos comunistas) em meio à turbulência política e religiosa de seu país – ser absurdamente carismática, também ajuda. Seja na infância cheia de fantasias (ela queria ser “profeta” quando crescesse) ou na adolescência inquieta e cheia de atropelos, Marjane monopoliza sua atenção o tempo todo – e quando ela chega a Paris (abreviando, de certa forma, a história original dos quadrinhos) você imediatamente deseja que aquele não seja o fim. Não é, claro – mas ninguém garante que vem aí a parte 2…

Por ter agradado tanto (e não apenas a mim – o filme é um dos “queridinhos” da crítica nova-iorquina nesta temporada), “Persépolis” é minha segunda evidência irrefutável de que menos é mesmo mais: numa época em que a “arte da animação” se orgulha de oferecer produções tão sofisticadas como “Ratatouille” (já aplaudido aqui), a obra de Satrapi não poderia vir mais na contramão. Com poucas mirabolâncias técnicas, constrói um universo extremamente original – e originalidade, acredite, é a doce vingança de quem ouve o tempo todo que só existe um jeito de fazer as coisas certas…

Como ignorar a gravidade

seg, 07/01/08
por Zeca Camargo |
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Já estava pronto – prontinho. O texto de hoje – o primeiro de 2008. Eu ia começar o ano falando de “Jogo de cena” – isto é, falando mais sobre “Jogo de cena”, filme de Eduardo Coutinho que eu apenas citei rapidamente no post anterior (mas que é um exercício de atuação tão precioso que merece uma discussão certamente mais ampla). Mas aí eu fui atropelado por esta foto:

no-ar2.jpg

Quer dizer, eu quase fui atropelado por esse cara ao tirar essa foto, durante uma sessão do espetáculo “Fuerza bruta”, que eu assisti na última quarta-feira, em Nova York. Tirei alguns dias de folga, na tentativa vã de cumprir algumas lições de férias que eu mesmo tinha me proposto (só para seu controle, adiantei a leitura de “As benevolentes”, ouvi os discos que queria e não só reli “Persépolis” de um fôlego só, como também vi o longa metragem – mas isso é assunto para outro dia). A tentativa foi vã, porque eu escolhi justamente Nova York para passar esses dias de folga – e, numa cidade onde as tentações culturais (para ficar só numa categoria de tentações) são infinitas, quem disse que eu conseguia me concentrar em uma coisa só… Sim, essa breve viagem vai render alguns posts – e eu ainda estou devendo “Jogo de cena” (que prometo para quinta-feira). Mas hoje vou tentar focar em uma coisa: “Fuerza bruta”!

A exclamação que fecha o parágrafo anterior não está lá à toa. É impossível não pensar nesse espetáculo sem um suspiro entusiasmado (ah… achou que suspiro era só de melancolia?). O que provoca isso não é apenas o fantástico pique que essa trupe demonstra durante quase uma hora em cena, mas também o entusiasmo criativo que cada exercício proposto pelo grupo propõe. E no que consistem esses exercícios? Num infinito desafio à gravidade.

O que não é novo – diga-se. Trapezistas existem desde que alguém resolveu espetar um mastro numa lona e chamar o espaço redondo sob esse teto de picadeiro. De diversas formas – inclusive a bem-sucedida (ainda que com uma estética duvidosa) fórmula do Cirque du Soleil – essa arte de expor corpos no ar já foi reinventada inúmeras vezes. Aliás, o próprio conceito de “Fuerza bruta” não é novo: desde 1995, um certo espetáculo chamado “Villa villa” começou a chamar a atenção… em Buenos Aires (mais sobre isso daqui a pouco). No começo deste século, o espetáculo estreou em Nova York e – pronto! – virou uma febre mundial. Já passou inclusive pelo Brasil (onde você estava em maio de 2004?) e, já há algum tempo, a companhia por trás disso, De La Guarda, virou sinônimo de performance vibrante e criativa – o que poderia ter sido um problema…

Um problema, aliás, de qualquer criador: quando você faz, ou melhor, quando você inventa uma coisa diferente, como pular para outro patamar criativo? Ah… Picasso… Sim, Picasso – mas e nós outros, pobre seres menos inspirados… como fugir da armadilha de querer repetir o mesmo truque só para continuar agradando? Estou colocando o “dilema” assim, de maneira um pouco… jocosa, mas a questão é bem real e atormenta muitos artistas – atormenta menos os que apenas posam de artista e são capazes de, sem o menor peso na consciência, gravar o mesmo disco dezenas de vezes, fazer o mesmo filme indefinidamente, ou escrever praticamente o mesmo livro sem se cansar. Mas o artista mesmo não consegue não sofrer um pouco com uma angústia do tipo “e agora?” toda vez que vê uma página em branco, um instrumento musical descansando, ou uma tela imaculada. Ou ainda – no caso do De La Guarda – um palco vazio – se é que o que inspirou esses caras da primeira vez foi mesmo um palco vazio…

Brinco com isso porque, desde “Villa villa”, o grupo parece desafiar todas as convenções de um espaço teatral. Eles usam qualquer canto do ambiente onde estão se apresentando – e, quando isso não basta, eles introduzem nesse espaço uma esteira de corrida, um elevador improvisado, uma teia de cordas e roldanas, ou mesmo aquela massa admirada que está ali assistindo tudo de boca aberta, também conhecida como platéia. Tudo que está em volta faz parte de um espetáculo do grupo – e você também! Acrescente luzes mirabolantes, uma ótima trilha sonora eletrônica, um pouco de fumaça, e o constante desafio à gravidade e… bem, como se diz geralmente em histórias de sucesso, o resto é história.

Eu assisti “Villa villa” em Nova York, em 2001. Sim, foi depois do 11 de setembro – logo depois, em dezembro, quando estive na cidade fazendo algumas reportagens. E me ocorreu que aquilo era um antídoto bastante adequado para a atmosfera lúgubre que envolvia Manhattan na época. O que os caras mostravam ali era uma afirmação do poder que nós (a gente, nós, humanos) temos de transformar as coisas a nossa volta – com a força desses nossos corpos, com esses músculos que cobrem nossos esqueletos, com essa pele que define a nossa dimensão, e sobretudo com aquilo que comanda tudo isso: nossas idéias. Saí de “Villa villa” maravilhado com as possibilidades que ele propunha e desejei, mesmo, que eles ficassem por muito tempo em cartaz por lá (o que aconteceu).

Essa admiração vinha também – não posso deixar de registrar – do fato de esse barulho todo estar sendo feito por uma companhia que não vinha exatamente do eixo cultural “dominante”, aquele circuito “hemisfério norte”, que fica só naquele toquinho de bola entre Europa e Estados Unidos. E não só isso: o grupo tinha feito sucesso “apesar” de ser argentino – e não “por causa” disso. Explico melhor: o que o De La Guarda apresentava não era um clichê da cultura argentina, uma “revisitação” do tango ou qualquer outra releitura da conhecida (e admirada) herança portenha. Não, “Villa villa” era um espetáculo universal e, assim, pelo menos para mim, a prova de que não é preciso você ter um pedigree para criar uma coisa legal que possa ter um impacto no mundo todo (já viu algo da Deborah Colker? Então você sabe do que estou falando).

De fato, você quase não lembra que o De La Guarda é argentino. Ainda mais nessa sua nova encarnação – agora que o grupo foi rebatizado de Fuerza Bruta, o mesmo nome do novo show –, em que a maior parte do elenco é composto por norte-americanos, a origem deles é um mero detalhe (vale ressaltar, claro, que o diretor artístico, Diqui James, e o diretor musical, Gaby Kerpel, são os argentinos “no passaporte”, que estão com a trupe desde o início). O que sobra então? Uma performance genial.

O que eu mais gostei em “Furza bruta” foi o fato de eles terem reinventando a linguagem que eles próprios tinham apresentado anteriormente. Sim, ali estavam os mesmos elementos: a boa música eletrônica; os deslocamentos de público; a rejeição de um palco convencional; as performances atléticas; e, sobretudo, o desafio à gravidade. Mas tudo diferente – tudo pensado de uma maneira diferente. Fruto, claro, de algumas cabeças que se sentiram desafiadas com a própria obra e resolveram dar um novo salto. Literalmente.

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Mas, desta vez, o salto é “para baixo”. Explico: a coisa mais legal desse espetáculo – na verdade, uma série de números isolados, unidos não numa narrativa linear, mas como uma série de orações coordenadas, onde a ordem do que é apresentado realmente não afeta o resultado final –, enfim, a coisa mais legal desse espetáculo é o momento onde a platéia fica embaixo da ação. Isso mesmo, como essa foto ao lado mostra, nós (a platéia) ficamos sob uma grande piscina na qual parte dos atores se esparrama, criando desenhos corporais inesperados. Cá debaixo, só podemos, apreciar como crianças num número de mágica, ângulos que até poderiam ser pornográficos, mas que, no espírito do espetáculo, está mais para o lúdico.

Outros momentos se destacam. A corrida insana sobre a esteira rolante (que ilustra o início deste post). As paredes de isopor e papel que são destruídas de vez em quando (como na foto abaixo). A dança perpendicular ao solo (uma releitura de “Villa villa”, só que dessa vez numa cortina de papel prateado). A raquete rotativa onde um homem e uma mulher revezam apoios – não tente entender! O pandemônio de gente dançando e arrebentando pequenas placas de papelão e isopor umas sobre as outras – não tente entender isso também… o que são palavras diante de um espetáculo cinético como esse?

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Como eles já vieram se apresentar no Brasil, o negócio é torcer para que voltem. Ou para que alguém por aqui tenha uma idéia ainda mais brilhante, e faça ainda mais sucesso do que eles. Nada mal abrir o ano com um desejo desses, hein?

Na quinta, falamos sobre “Jogo de cena”, combinado? Quem sabe até lá alguma sala da sua cidade resolveu exibir essa preciosidade (viu como eu leio os comentários?)…



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