Beleza
“Sobre a beleza”, terceiro livro da autora inglesa Zadie Smith, traz a cena de sexo mais triste que já li. Não tem nada de errado com essa frase: o que a autora descreve é mesmo uma triste cena de sexo. Se você nunca passou por uma experiência dessas – que inverte todas as expectativas possíveis, já que sexo, pelo menos como contaram para a gente, existe para o nosso deleite e prazer – é porque ainda não viveu o sexo na sua totalidade. Ou então porque você não está sendo honesto (ou honesta) consigo mesmo (mesma).
Mas pode deixar esse “check-up” erótico para uma outra hora. Quis apenas mencionar essa passagem de “Sobre a beleza” para celebrar (finalmente!) a tradução do livro para o português – lançada agora pela Companhia das Letras. Li o livro, em inglês, assim que ele foi lançado, no final de 2005. Passei um réveillon meio bizarro na praia de Ipanema aquele ano, onde “On beauty” (no seu título original), com sua edição de capa dura – e depois de algumas taças de champanhe – foi adotado como uma espécie de objeto de adoração. Entusiasmado com o que tinha lido até então, eu e mais um bando de amigos brindávamos em torno daquele volume – para mim, um verdadeiro ritual de devoção; para o resto da turma, uma desculpa para agir tolamente, no melhor espírito de “adeus, ano velho”…
Entre um devaneio e outro, me lembro de fazer votos de que o livro fosse lançado por aqui em breve – tamanho o meu entusiasmo com aquele trabalho da autora (que já havia me conquistado com seu livro de estréia, “Dentes brancos”). Por que eu estava gostando tanto de “Sobre a beleza”? Só fui entender melhor quando terminei a leitura, já em 2006: o que me fascinava em Zadie Smith era sua capacidade de – mais uma vez, e, de certa maneira, de uma forma ainda mais profunda do que em “Dentes brancos” – pintar um grande retrato das tensões sociais contemporâneas.
Descrita assim, a abordagem de Smith parece um porre… Mas o que a autora faz, e de maneira deliciosa, é exatamente isso: intercalar histórias de personagens bem atuais com conflitos modernos (sociais, raciais, intelectuais, sexuais), que vão da família ao trabalho – e, mais especificamente no caso de “Sobre a beleza”, passando pela “nobre academia”.
Se, em “Dentes brancos”, essas tensões apareciam na tão liberal e diversificada sociedade londrina, desta vez o cenário é o círculo acadêmico da cidade de Wellington, na Nova Inglaterra, Estados Unidos. Poderia ser pretensioso (e, em alguns momentos, quase o é), se Smith não desenvolvesse sua história usando de um equilíbrio perfeito entre a seriedade e a ironia, o escracho e a sinceridade, a crítica e a aceitação de forças que nem os mais intelectuais (supostamente, como ela sugere, as pessoas que todos esperam ser as mais preparadas para enfrentá-las) conseguem escapar.
“Sobre a beleza” é, a princípio, um instantâneo de uma família bastante heterogênea. O professor Howard Belsey é inglês; sua mulher, Kiki, afro-americana. Seus filhos, Jerome, Zora e Levi, não são exatamente rebentos descomplicados… E as relações entre eles são tudo menos simples, como você percebe logo de cara, nos e-mails que Jerome manda ao pai (calma: o livro é mesmo tão bom que você até perdoa Smith por ter começado sua obra com esse irritante recurso “pseudo-modernoso”). Logo você descobre que a tensão sugerida nessas mensagens é só o anúncio de embates ainda mais graves e violentos – quando não emocionalmente mutiladores. A principal causa disso é a rivalidade entre os Belsey e os Kipps – ou melhor entre a insanidade liberal de Howard e o conservadorismo de Monty Kipps – o patriarca (e também acadêmico) da outra família apresentada na história.
Sem tirar muito a graça para quem vai ler – e eu espero que você encare com gosto as 446 páginas da edição brasileira nesse fim de ano – vou só acrescentar que as diferenças intelectuais vão se acumulando e se metamorfoseando em incidentes pessoais, sociais e sexuais. Gerações se misturam em infidelidades, mal-entendidos se transformam em desafetos, e grandes paixões ficam reduzidas a irrecuperáveis desilusões. Fico tentado a usar o adjetivo “monumental”, mas a própria Zadie Smith não permite esse elogio, já que está constantemente lembrando o leitor de que sua história é mundana – e engraçada!
Escolho aqui, aleatoriamente, uma passagem – referente a um concerto ao ar livre a que os Belsey vão assistir:
“Zora estava dando cotoveladas na região medial do pai. Howard observou os olhos de lua cheia que sua filha estava apontando para o reitor French. Era típico de Zora que, ao encontrar-se de verdade diante da figura autoritária que havia passado a semana inteira xingando, ela simplesmente desmaiasse aos pés da tal figura autoritária.”
Nesse outro trecho, no qual Howard comete (mais) uma infidelidade, ela passa, com facilidade, do humor à sacanagem:
“Ela sem dúvida tinha lido Lolita. Então o braço dela deu a volta em seu pescoço e Lolita transformou-se em sedutora (talvez tivesse aprendido isso com a sra. Robinson também), chupando sua orelha com sofreguidão, e depois de sedutora ela passou para namorada queridinha de colégio, beijando com carinho o canto da sua boca.”
E, mais adiante na história, da sacanagem à tristeza:
“Howard, já chorando também, levantou-se de onde estava e sentou-se atrás da esposa. Envolveu sua sólida nudez com os braços. Num sussurro, começou a implorar – e, ao pôr-do-sol, recebeu – a concessão que as pessoas sempre imploram: um pouco mais de tempo.”
Essa é a frase que conclui a triste cena de sexo que mencionei no começo deste texto – e não é nem a frase mais triste que Zadie Smith usa para descrever a tentativa de aproximação de um casal que vive junto há trinta anos (“quase todos felizes”, como lembra Kiki). O que se expões ali é uma questão de pele – mas não uma questão racial, com a qual a autora muitas vezes gosta de nos confundir. Mas algo que a pele evoca no que diz respeito à intimidade, à identificação, ao afeto, à proximidade. E às idéias, claro.
Há alguns anos, em 2001, quando li “As correções”, de Jonathan Frazen, fiquei emocionado com a capacidade de um autor contemporâneo fazer um retrato tão intimista, tão preciso, tão tragicômico e tão devastador de uma família moderna – americana, sem dúvida, mas com ecos que pessoas da minha geração do mundo em qualquer sociedade poderiam se identificar. Com “Sobre a beleza”, e correndo por outra raia que a de Frazen, Zadie Smith conseguiu um feito ainda maior: um painel que, apesar de extremamente contemporâneo é ainda mais universal.
As disputas, a incomunicabilidade, as mágoas silenciosas, e os insultos trocados entre a família Belsey – todos esses comportamentos estão conectados com tudo que diz respeito ao nosso dia-a-dia. Mas por trás desse cotidiano, estão nossas angústias e nossos defeitos mais atemporais. Humanos, claro.