Não lá
Se eu acreditasse em coincidências, acharia que vivi um grande momento místico-cultural na noite do último domingo, quando fui assistir a um dos filmes mais esquisitos que já vi na vida. O título (que, tanto quanto sei, ainda não foi traduzido para o português) é “I’m not there”. Seu diretor, Todd Haynes. Seu tema, Bob Dylan – talvez.
Sim, essa é uma introdução confusa – mas eu garanto que não tem nada a ver com o fato de eu estar saindo hoje de férias (mais sobre isso mais para frente). Deixe-me tentar explicar… Um filme de Haynes sempre é assistido (especialmente por mim), com expectativa máxima, desde que vi (e lá se vão quase 20 anos!) “Superstar: the Karen Carpenter story” – uma espécie de biografia da cantora dos Carpenters (notória por ter sido uma das primeiras vítimas famosas de anorexia), “interpretada” por uma boneca Barbie. Sua nem tão farta assim filmografia ainda inclui um pequeno clássico cult, “Velvet Goldmine” – algo próximo de uma reconstituição da trajetória de David Bowie nos tempos do “glam rock” (um filme que faz parte também do meu, digamos, currículo formativo – para mais detalhes, consulte meu livro “De a-ha a U2″).
Recapitulando: “Bob Dylan – talvez”; “uma espécie de biografia da cantora dos Carpenters”; “algo próximo de uma reconstituição da trajetória de David Bowie”. Nenhum trabalho de Haynes (pelo menos entre os que eu assisti) é exatamente alguma coisa. Suas narrativas são elaboradas sugestões de histórias que poderiam ser – e que às vezes até foram -, mas que nunca vamos saber. Assim, meio estranho mesmo.
“I’m not there” faz parte da mais que abundante programação da Mostra de Cinema de São Paulo deste ano. É possível que você ainda pegue uma sessão até o final da temporada (quem sabe o filme entre, como azarão, naquela repescagem dos melhores da mostra), mas sua estréia oficial é incerta. Uma pena, mas tem sempre a esperança de um DVD (para não falar da possibilidade de você encontrar o filme aqui mesmo, na internet). Recomendo-o de maneira especial, até como complemento da discussão que começamos na semana passada – e que discussão!
Já que você vai ficar um tempinho (um mês!) sem encontrar algo novo por aqui, rogo que dedique suas possíveis próximas visitas por aqui para ler os comentários sobre o post anterior – referente, claro, ao filme “Tropa de elite”. “I’m note there”, nesse sentido, faz um estranho espelho com “o filme do capitão Nascimento”. Quem diria… Todd Haynes e José Padilha unidos pela simples confusão entre ficção e realidade… E é essa a estranha coincidência que eu evocava lá no início do texto: que prazer, logo depois de uma excitante discussão com quem passa por aqui sobre o que “Tropa de elite” significa no Brasil de hoje (e basta você passar os olhos nos comentários para ver que a discussão foi boa), deparar com um trabalho como esse, supostamente uma biografia sobre um dos artistas mais cultuados de todos os tempos – em que as possíveis histórias que o envolvem são interpretadas por atores diferentes (numa delas, inclusive, quem o encarna é uma atriz – Cate Blanchett, na melhor interpretação da sua carreira, sem exageros), e seu nome sequer aparece.
Quando Dylan é vivido por Christian Bale, ele é John (ou Jack); Richard Gere é Billy (ou Mr. B); Marcus Carl Franklin (que, aliás, é uma criança), é Woody; a própria Cate Blanchett é Jude (foto ao lado); Ben Whishaw, Arthur (foto acima); e ainda tem Heath Ledger… Em termos de narrativa cronológica, “I’m not there” faz “Amnésia” (de Christopher Nolan) parecer linear, e David Lynch, um diretor cartesiano.
Tudo se confunde no filme – não só uma história com a outra, mas a própria biografia de Bob Dylan. Fatos históricos permeiam as seqüências como convites à confusão entre fato e ficção. Nada é apenas uma coisa ou outra – e não é nem mesmo a mistura. Haynes transporta o espectador para um lugar que não pode ser definido – um “não lá”. Não é apenas Dylan que não está presente no filme (ou está?), mas nós que assistimos também começamos a duvidar da nossa experiência de assisti-lo. O que só faz com que o trabalho seja realmente genial.
Como “Tropa de elite”. Como a instalação da artista colombiana Doris Salcedo, “Shibboleth”, atualmente no Turbine Hall” da Tate Modern, em Londres – que eu visitei há poucos dias e que ilustrou o último post (e que muitos acertaram na mosca que trabalho era aquele – bravo!). Todos esses trabalhos, como verdadeiras obras de arte, são abertas a múltiplas interpretações. Você pode ver o diretor José Padilha explicando à exaustão aspectos do seu filme, e mesmo assim (veja os – até o momento que escrevo isso – 123 comentários que mandaram sobre ele) querer desenvolver sua própria interpretação sobre a saga do capitão Nascimento. Idem para o trabalho de Doris Salcedo: no texto do site da Tate, ela até se refere à longa história de racismo e colonialismo que permeia o mundo moderno – mas quem disse que aquela fenda no chão não pode ilustrar a aparentemente irreversível divisão social do Brasil? E por que não achar que, fazendo as pessoas andarem sobre essa fenda, a artista quer mostrar como somos indiferentes às conseqüências gravíssimas que essa divisão pode criar?
Quando o trabalho é bom, são múltiplas as interpretações – dos vôos mais altos (Haynes, Padilha e Salcedo) aos exemplos mais ordinários que podem ser tirados na música pop (escrevo isso ao som de uma impagável versão de “Panic”, dos Smiths, oferecida pelas Puppini Sisters – umas loucas que regravam sucessos “quase contemporâneos” como se fossem cantoras da era de ouro do rádio – procure já!).
E é nesse espírito, de descobrir coisas assim, que estou saindo de férias – e aqui, sim, começa nossa “despedida”. Faz tempo que não paro – paro, mesmo – por um mês inteiro. Assim, permita-me achar que o descanso é merecido. Nos encontramos de novo aqui no final de novembro – mais precisamente no dia 26. Pode até ser que, tomado de uma saudade arrebatadora da nossa conversa (e quem vai dizer que não é uma conversa), eu mande aqui uma daquelas fotos com a singela pergunta: “onde eu estou?”. Mas não garanto – melhor dizer apenas que vou para o “não lá”!
Como cantavam as Go-go’s em “Vacation”, um clássico pop sobre (justamente) férias: “Vacation / all I ever wanted / vacation / had to get away / vacation / meant to be spent alone”… Geralmente eu até me dedico a traduzir as coisas que cito aqui, mas hoje, desculpe, tenho um avião para pegar. Até… breve?