O som do verão

qui, 19/07/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Um nada tímido arco-íris cobria parte de São Paulo ontem, quarta-feira, quando cheguei do Rio. Ele era escandalosamente visível, à esquerda da via Dutra, pouco antes de ela terminar na Marginal do Tietê, como se para cortar todas as conversas fúnebres de quem chegava à cidade pelo aeroporto de Guarulhos – gente que, como eu, tentava voltar para casa por uma rota ironicamente mais prática do que a outrora tão simples conexão Congonhas-Santos Dumont. Tais conversas (eu podia acompanhar, claro, apenas a do táxi que me conduzia, mas não tenho dúvidas de que o assunto nos outros veículos que nos cruzavam girava quase que exclusivamente em torno disso) – tais conversas, enfim, eram sobre o pior acidente aéreo ocorrido no Brasil, terça passada, aqui mesmo, na maior cidade do país.

Era mesmo um arco-íris teimoso, não apenas aquelas meias curvas mais comuns, mas um risco colorido completo, de uma ponta a outra da cidade, como se quisesse trazer uma boa notícia. Mas veio mais chuva – isso era por volta das 14h30. Depois veio até um pouco de sol. E depois veio o frio, como uma moldura precisa para a contagem de corpos que iam sendo resgatados até a chegada da noite.

O acidente era, claro, chocante demais, presente demais, gráfico demais, próximo demais, revoltante demais e – alguns insistem – previsível demais para demandar qualquer reflexão sensata. Como um antídoto de eficiência duvidosa, me vi forçado a encaminhar meu próprio pensamento – talvez inspirado até pelo arco-íris – a viajar por outros céus. E em questão de minutos estava de volta à Tunísia – um lugar de onde voltei há pouco mais de uma semana, mas que me deu a impressão de pertencer a um passado meio distante.

Não só o país, como todas as experiências que tive por lá, que comecei a recolecionar, me lembrando de que tinha me comprometido a escrever aqui, entre outras coisas, sobre a trilha sonora que me acompanhou nessa viagem. Para isso, cheguei em casa e dei um “shuffle” no playlist “Tu-tu”, no meu iPod. Você se surpreenderia se eu dissesse que a seleção não tinha nem sequer uma música tunisiana?

Ocorre que eu juntei essas músicas na escala anterior que fiz para chegar no país africano. Parei em Londres por dois dias e, lá, “enchi o tanque”. Quase 90% das músicas que levei na bagagem vieram de duas das minhas lojas favoritas de lá, a Sounds of the Universe e a Sister Ray. Mas, devo confessar que duas faixas fundamentais para minha trilha de verão eu achei na “boa e velha” Virgin Megastore, de Tottenham Court. Vamos ver se você adivinha quais eu encontrei por lá…

Mas antes, um esclarecimento: talvez você tenha tropeçado com a aparente contradição do título deste post, repetida no parágrafo anterior. Como assim – som do verão, trilha do verão em pleno julho? Ah… mas lembra daquela apostila de geografia que explicava que as estações são invertidas nos hemisférios da Terra? Pois bem, enquanto aqui atravessamos um inverno, é o verão de lá – de lá dos Estados Unidos, de lá “das Europa” (e até de lá do norte da África, claro) que produz alguns dos mais adoráveis (e descartáveis) produtos culturais a cada ano.

É por isso que, por exemplo, sempre nessa época, são despejados em nossas telas, produções de gosto duvidoso, critérios artísticos ainda mais suspeitos, mas que são absolutamente deliciosos de se ver. Pensou em todas as trilogias que estrearam nos cinemas nas últimas semanas, pensou certo. Pensou em “Ratatouille” (que eu fui ver esta semana e fiquei completamente extasiado – aguarde post aqui mesmo sobre isso), pensou certo. Algo parecido acontece na música pop, quando artistas batalham para emplacar “o som do verão” – repetindo, o verão… deles.

Essa briga – apaixonante de se acompanhar – produz canções tão descartáveis quanto os filmes lembrados acima, mas que vão certamente fazer parte do registro de férias inesquecíveis – namoros, noitadas, um dia na praia, uma noite de sexo, ou simplesmente um pôr-do-sol, vão estar para sempre conectados a um certo refrão (que você repete, muitas vezes sem ter idéia do que aqueles versos querem dizer).

Nós também temos isso por aqui – ainda de uma maneira menos institucionalizada. Pense em “Musa do verão”, de Felipe Dylon. Ou “Só love”, de Claudinho e Buchecha. Ah, você tem mais de 40 anos? Então pense em “Pintura íntima”, do Kid Abelha (no tempo em ele ainda se orgulhavam de carregar umas “abóboras selvagens” no nome). Como se diz em Portugal… percebeu? Pois então, lá no hemisfério norte, a disputa é acirrada, e todo ano produz, pelo menos um bom par de “clássicos”.

A minha trilha sempre é um pouco mais alternativa, como você já vai ver. Mas, como eu não acredito em pureza… sempre pego algo emprestado das paradas mais surradas, mais óbvias. Essa escolha, em 2007, foi “Umbrella”, de Rihanna. Sei que já falei tanto dela que vocês começam a desconfiar que minha relação com a cantora é pessoal… Mas o que eu posso fazer se, de fato, ela estava em todo lugar – na internet, em qualquer biboca de Londres e até nos quiosques de chá de menta em Túnis? Sua onipresença era tão grande na minha viagem que me fez lembrar de outro verão, o de 2004, quando eu fazia a Fantástica Volta ao Mundo e ouvia “Trick me”, de Kelis, em qualquer canto desse planeta – literalmente.

Se você me permite só mais um parágrafo sobre o tema, eu queria tentar explicar porque “Umbrella” é tão perfeita: porque ela parece passar uma flecha em mais de quatro décadas de música soul, tem uma letra que é ao mesmo tempo sacana e romântica, um refrão que parece simples, mas é extremamente elaborado (te desafio a acompanhá-lo sem errar nas primeiras três vezes que você a ouvir), e… bem e ainda tem Rihanna! OK? Posso passar adiante, para as outras músicas que eu levei na viagem?

Conhece Tiombe Lockhart? Nunca tinha ouvido falar também (e olha que eu leio a “Fader”…) até me deparar com a capa de CD mais bizarra dos últimos tempos, bem na Sounds of the Universe. Tudo bem, o disco estava entre os recomendados… mas mesmo assim eu não poderia deixar de ouvir alguém que se apresentava daquela maneira. E quando dei o “play”… bem, veio vindo aquele violão, depois aquela batida surda, um prato rouco e em seguida a voz. Que voz é aquela? Não sei – só sei que você se vê induzido a acompanhá-la por essa estranha canção que mal tem refrão, mas que é simplesmente genial: “Tip of my tongue”. Como as chances de você ouvir isso em qualquer FM brasileira são insignificantes, tente procurá-la agora na internet – ou aproveite e compre logo o CD todo, “The Tiombe Lockhar bootleg #1″. Sua vida vai mudar – para melhor.

Outra preciosidade que ouvi na mesma loja é menos recente. Na verdade, foi gravada em 1967. Chama-se “Beggin’”, de Frank Valli & The Four Seasons. Nasceu depois dos anos 80? A wikipedia está aí para isso mesmo. Ou então tente escutar diretamente esta faixa, já que você está na internet, e veja se isso não é mais uma prova definitiva de que o pop é divino – e não uso o adjetivo como uma hipérbole, mas no seu sentido mais puro: de algo que vem “do Homem”! Como é possível alguém criar algo assim? Só mesmo uma devoção infinita pode fazer isso brotar da imaginação humana.

O que nos leva a outra música da trilha deste meu verão – essa ainda um pouco mais antiga… tipo século 17… 18… Tipo Vivaldi, “Nisi Dominus”. Explicações – rápidas, antes que você desista de ler. Eu dancei essa música, lá nos anos 80, num espetáculo muito especial (que fiz, claro, com Ivaldo Bertazzo), chamado “O cavaleiro da rosa”. Ouvi esse trecho dessa composição religiosa de Vivaldi por uma temporada inteira… e, depois, nunca mais. Cheguei a procurar aqui e ali, sem sucesso, até que encontrei sua introdução (inconfundível) no filme “Dogville”, de Lars von Trier. Mas quem disse que eu achava essa trilha? Mas eis que, sem querer, me deparo com um CD de “Manderlay” (o filme seguinte do diretor) – com trechos das músicas usadas em “Dogville”! Com ele, fui até a seção de Clássicos e, depois de breve investigação… lá estava “Nisi Dominus” (mais especificamente a faixa 15, “Cum Dederit Dilectis Suis Somnum”), em todo seu esplendor. Foi para o iPod, óbvio!

Assim como foram também “I used to dance with my daddy”, do Datarock (prova de que o futuro está logo ali); “Overpowered”, da Róisín Murphyn (prova de que o futuro vai beber nos anos 80); “What’s a girl to do”, do Bat for Lashes (prova de que o futuro é atemporal); e todo o novo álbum do Manic Street Prechers, “Send away the tigers” (prova de que o futuro é irrelevante). Ah, e “Tio Bitar”, o novo disco da minha banda obscura favorita, Dungen (que merece um post só para ela um dia desses). Mas, em altíssima rotação mesmo, só Rihanna, Tiombe Lockhart, Frankie Valli & The Four Seasons e Vivaldi. E é com Vivaldi que eu volto à lembrança do arco-íris de ontem e à tragédia de anteontem.

Nessa coisa fantástica que é o infinito do YouTube, encontrei uma performance justamente dessa música que me marcou tanto, que por um feliz acaso me acompanhou à Tunísia e que, de maneira mais forte, não me sai da cabeça desde terça. Está logo aqui embaixo. E é com ela, celebrando o “fructus ventris” (esse sim, para sempre), na voz do ótimo contra-tenor Andreas Scholl, que eu faço votos de este seja um fim de semana sereno. Acho que estamos todos precisando disso.

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27 Comentários para “O som do verão”

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  1. 27
    ALVS:

    Tao linda e tao triste…

  2. 26
    Fernanda rabelo:

    Ei Zeca!
    Primeiramente obrigada pelo “Bravo” endereçado a mim.rs
    Maravilha de Vivaldi! Combina bem com o espetáculo do anoitecer que vc andou apreciando por lá…Os violinos do início me lembraram os violoncelos dos meninos do Apocalyptica…que é claro que vc deve conhecer!rs
    Eu não poderia deixar de registrar aqui a “minha” parte preferida da sua viagem. Adoro os “causos” que se ouvem das pessoas do local, como seu motorista de táxi! Acho que saber ouvir é o que lhe torna um grande contador de histórias!;-))
    Beijos,
    Fernanda

  3. 25
    Josiane:

    Olá!
    Não te conheço pessoalmente, mas sempre te vejo no Fanstástico (estou fazendo isso neste exato momento), e em algumas outras reportagens, o que me fez sentir uma certa simpátia por sua pessoa, pela sua maneira de expressar. Vc é um profissional admirável, precisamos hoje no Brasil de repórteres assim como vc, pois a televisão é um nos meios mais eficazes de se conseguir persuadir uma grande massa da população, e usando-se pelo lado positivo, podemos ter um grande resultado.
    Adorei o blog, prometo aparecer aqui mais vezes!

    Prazer.

  4. 24
    Carol Corsi:

    Zeca gosto muito de nihanna,anotei os nomes das músicas que vc comento,to confiando em vc.Beijos

  5. 23
    MARCOS LIMA:

    OI, PESSOAL,
    GOSTARIA DE SUGERIR UM BLOG BEM LEGAL DE UMA PESSOA QUE TAMBÉM É DA GLOBO. VISITEI ONTEM E ACHEI MUITO BEM ESCRITO E BEM-HUMORADO. É DA REPÓRTER DO PROGRAMA DO JÔ. CHAMA-SE “O MUNDO GIRA, A LUSITANA RODA E EU… SÓ NA CARONA”. O LINK É https://tatirez.blog.terra.com.br
    ABRAÇOS!

  6. 22
    sergio:

    “O QUE VOCÊ FEZ, HOJE, PARA MELHORAR A QUALIDADE DE VIDA NA SUA CIDADE?”

    qualquer ato, um qualquerzinho só, mas que tenha sido feito pensando em melhorar a qualidade de vida de nossa cidade (ou país – ou bairro).

    Não adianta ficar criticando os bostas do governo, se nós não fazemos pequenos atos conscientemente.

    PENSEM NISSO.

    campanha de cidadania e consciência de coletividade.

  7. 21
    Anônimo:

    Na verdade meu comentário é sobre você…
    Te acho um dos homens mais lindos da televisão.
    Quando você veio aqui na minha cidade (Maringá) em um Congresso de Jornalismo… ah… não perdi mesmo!
    Você é lindo!
    Abraços!

  8. 20
    Anônimo:

    Gosto muito de ler o que você escreve…Sempre passo por aqui, porém nunca faço comentários…Mas dessa vez vale a pena reforçar..
    parabéns por sua palavras sutíls e pelos recados objetivos (refiro-me ao acidnete).
    Quanto as músicas, é inacreditável como vc descobre coisas…Escutei Umbrella – Rihanna, e também gostei muito…
    Beijos.

  9. 19
    Aline:

    Gostei desse post. Não conheço muito sobre a trilha que você escolheu, mas a música final é bem bacana. Gostei mais desse post, pelo fato dele não ter focalizado o acidente em si. Achei que você conseguiu me atingir bem mais com esse texto do que caso tivesse falado sobre o fogo do avião da crise e tal. Adorei porque você juntou a sua viagem com o que está acontecendo aqui. Adorei porque foi simples, sem sensacionalismo, objetivo,mas que conseguiu atingir a minha subjetividade na minha maneira de encarar as situações.
    ADOREI!
    um cheiro!!!

  10. 18
    Anônimo:

    Tenho sempre enorme prazer em ler seu blog. Hoje especialmente pela semelhança de sentimento e pela música perfeita para acompanhá-lo.

  11. 17
    Maracélis:

    Olá Zeca!!!!
    Bom Zeca desta vez não vou te elogiar tanto…Adorei sua trilha e seus comentários sobre as músicas e tal.Mais não foram como um arco-íris pra mim não,atodo momento fiquei na expectativa….-Será que ele vai citar mais alguma coisa sobre o acidente!!!!Ouvimos críticas de todas as partes,queria ler uma sua,sei lá talvez pela sua forma de criticar que me soa tão sútil.Mais tudo bem.Se quer saber temos mesmo é que oferecer uma boa música para nossos amigos do governo,eu sujiro aquela famosa,da Cris Nicolotti….kkkkk
    E vc o que acha desse som de verão///
    Beijos !!!!

  12. 16
    Anônimo:

    Te admiro d+…. Sobre o acidente- triste, amargo, sem respostas. Beijos

  13. 15
    Anônimo:

    Sister Ray só se for do Velvet Underground. Cheers!

  14. 14
    Anônimo:

    segue uma versão de Tiombe Lockhart. Genial.
    https://www.youtube.com/watch?v=j2m1hU1Fzrw

  15. 13
    Anônimo:

    ZECA, TÔ TE CONHECENDO AGORA…ADOREI OUVIR A MUSICA,OBRIGADUUUUUU

  16. 12
    Luiza:

    Olá Zeca

    Há muito tempo eu tinha uma birra com você, por causa do show do U2, eu não tinha gostado muito do que você falou no início. Mas minha opinião mudou após eu ler um capitulo de seu livro “de A-ha a U2″, que irei comprar amanha eu acho, que fala sobre U2. Muito bom mesmo.
    Quanto a musica Umbrella muito boa mesmo

    bom final de semana
    ;D

  17. 11
    Kelly:

    Belissima essa música. Quando fiz vestibular (há muito tempo atrás), estava tocando esta música, me deu uma sensação estranha de melancolia e de como não podemos prever certos acontecimentos, mas que sobrevivemos a eles. Eu passei neste vestibular, mas acabei escolhendo uma outra faculdade, o que se mostrou um erro mais tarde. Acabei voltando e fazendo o mesmo curso. rsrsrsrsrs
    Meu silêncio aos parentes das vítimas, e solidariedade. Que clamem por melhorias no setor, que o Brasil não derrame seu próprio sangue.
    Não achei que estava no avião, por causa da rota, mas sei que a vc também deve ter ficado uma sensação estranha como na maioria aqui.
    Um final de semana em paz para voce.
    Bjos

  18. 10
    Giana Guterres:

    E com certeza, nós teremos um ótimo final de semana mais leve e mais sereno com teu texto, sempre maravilhoso, que sempre me leva à outra dimensão… =D Beijinhos carinhosos a todos!

  19. 9
    patrícia:

    zeca, você como sempre impecável! adoro seu blog!! ahh.. quando vai sair aquela entrevista com os arctic monkeys?? bom final de semana!!

  20. 8
    SONIA:

    fiquei apavorada,achei que você estava no avião,afinal todos nós sabemos que o seu endereço mais certo é o espaço aereo,senti um alivio quando olhei a lista de passageiros pela net,Zeca a música não podia ser mais apropriada,é melancólica,mas ao mesmo tempo traz paz,é o que preciso,moro em Cumbica, praticamente na cabeceira do aeroporto de Guarulhos,da pra você imagina a minha aflição?
    se cuida Zeca,gosto muito de você, não apenas do jornalista,mas do ser humano que conheci pessoalmente.

    BEIJOS

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