Isso já deve ter acontecido com você também: você assiste a um espetáculo (um filme, um programa de TV, um show – qualquer evento cultural), e você tem aquela sensação de que ele foi feito especialmente para você, que, de alguma maneira, aquilo que foi mostrado com gestos (movimentos, imagens, palavras, músicas, sons – qualquer manifestação da criatividade humana) está lá para traduzir a sua história pessoal. Comigo isso já aconteceu várias vezes, mas nunca de uma maneira tão forte e intensa quanto na noite da quinta-feira passada, quando fui assistir a “Mar de gente”.
Foi uma semana abundante em ofertas performáticas em São Paulo, de ópera eletrônica (“O guarani”) a uma das companhias de balé mais respeitadas do mundo (Nederlands Dans Theater), passando, é claro pelos onipresentes humanóides do Blue Man Group (que também fui ver, mas prefiro guardar meu comentário para uma outra hora – aguarde a Curva das Expectativas Flutuantes na próxima quinta-feira). E entre tantas opções eu fui ver justamente a estréia do último trabalho do coreógrafo Ivaldo Bertazzo – o tal “Mar de gente”.
Não foi, claro, uma escolha gratuita. Ivaldo, que é uma das poucas pessoas que eu tenho a honra de chamar de mestre, foi alguém com quem trabalhei intensamente durante 12 anos. Comecei a freqüentar sua escola de dança em 1981 – e dois anos depois eu já estava dando aulas como seu assistente. Nesse período, participei de mais de 12 espetáculos (pelas minhas contas… pode ser que um ou dois tenham escapado) e passei por um processo de consciência corporal (uma expressão que infelizmente sempre parece mais pretensiosa do que ela realmente é) que carrego comigo até hoje. Trago a experiência do gesto, da dança, do movimento em cada momento do meu cotidiano – e faço isso sem o compromisso de um bom aluno que quer repetir a lição. Pelo contrário: as lições do mestre Ivaldo (para mim, é difícil chamá-lo de Bertazzo…) são assimiladas sem esforço e passam a fazer parte do nosso cotidiano como se tivéssemos nascido sabendo aquilo (e, quem sabe, não nascemos… já chego lá).
Ivaldo me deu, enfim, o presente da dança – essa mesma que já tentaram usar contra mim, numa tentativa pífia de desmoralizar o que é um dos ensinamentos mais preciosos que eu já tive nesses 44 anos. Um dia ainda vou escrever sobre essa minha experiência corporal (ah… os livros que ainda estão só em projeto…), mas, por hoje, vou preferir falar dela através de trinta garotos e garotas que eu vi no palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo (eles ficam em cartaz até o dia 08 de julho e depois vão para o Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre – e ainda devem confirmar outras cidades).
Não canso de repetir que minha vida teria sido diferente se eu não tivesse encontrado a dança. E, ao assistir ao elenco de “Mar de gente”, essa foi novamente a primeira coisa que me veio à cabeça. Aquelas pessoas dançando ali, mostrando um porte, um universo gestual, uma dignidade naqueles rostos – como eu digo no texto do programa que fui convidado a escrever – maior do que qualquer coisa que eles poderiam ter sonhado. Isso despertou em mim uma alegria (misturada com saudade, vitalidade e surpresa) que há tempos eu não sentia em nenhum espetáculo.
Antes de prosseguir, queria tirar do discurso um ruído que sempre aparece nos comentários sobre o trabalho de Ivaldo nos últimos anos. Já há algum tempo, ele trabalha com jovens de comunidades geralmente classificadas como carentes. Usei o “geralmente” porque sempre que ouço ou leio essa expressão sinto um leve incômodo… Essas comunidades, inevitavelmente situadas nas periferias das grandes cidades, são carentes sim – mas carentes de recursos básicos, que qualquer cidadão merece ter pelo simples fato de existir, desde que seja abraçado por um governo com um mínimo de consciência social (eu diria também “ética”… mas essa é uma palavra perigosa nos últimos tempos… se entrarmos nessa, vou me perder do que realmente quero dizer aqui). No entanto, essas mesmas comunidades são abundantes em todos os aspectos que as privações que a ausência de cidadania lhes impõe insiste em ignorar: talento, garra, criatividade, força de vontade, brilho – e todas essas outras coisas que os mais cínicos preferem chamar de “aspectos humanos”. Um breve passeio por uma periferia coloca todas essas qualidades dessa gente na sua cara – e, para os mais sensíveis, que preferem não circular por essas áreas, só assistir a um episódio de “Antônia” (ou mesmo o filme) pode te dar uma idéia do que eu estou falando.
Antes que isso vire um discurso político, porém, só queria lembrar que fiz esse “parênteses” para dizer que os jovem do elenco de “Mar de gente” veio da periferia sim. Veio de comunidade carente sim. Mas não é só por isso que eles devem ser admirados. Eu tenho horror daquele olhar condescendente que diante de um trabalho como esse parece dizer: “nossa, para alguém que veio de onde eles vieram, ficou muito bom…”. A esse tipo de comentário, um sonoro verso do hit de hit de Cris Nicolotti. Estou aqui para celebrar o trabalho desses meninos e meninas primeiro – e depois ver o que significa isso, considerando o universo de onde vieram.
Logo quando o elenco vai entrando no palco, praticamente junto com a platéia, a primeira coisa que você percebe é que não se tratam de pessoas que você esperaria ver num espetáculo de dança. Pelo menos não aquele clichê com que as pessoas se acostumaram a pensar num grupo de bailarinos – mesmo depois de tanta Pina Bausch (e tanto Mark Morris , que infelizmente nunca veio ao Brasil com sua trupe) as pessoas ainda acham que bailarino “é tudo a mesma coisa”… Mas esse elenco, insisto, há de se juntar a tantos outros para derrubar essa idéia! Lentamente eles vão se sentando nas escadas no cenário e você vai vendo que cada um deles tem um traço diferente: uma boca enorme, uma cabeleira enorme, uma perna meio curta, uma bunda meio saltada, olhos que não poderiam ser mais distintos. Eles têm expressão! Vem coisa boa por aí.
Estou me referindo, claro, às coreografias – para mim, facilmente reconhecíveis, já que trabalhei tanto tempo com Ivaldo. A dança indiana (em especial o “kathak”, que é das muitas coisas que eu me orgulho de ter feito bem um dia…) é uma linguagem recorrente no trabalho do coreógrafo e volta em “Mar de gente” como uma onda renovadora. Mas estou também me referindo ao desenvolvimento desses bailarinos no palco.
“Desgraciadamente”, como se diz em espanhol, memorizei os nomes de apenas parte do elenco (por enquanto). Por isso, os que cito a seguir não são mais nem menos belos e belas do que os outros – são apenas aqueles que minha memória já claudicante conseguiu apreender. Como a Vanessa por exemplo, com aqueles braços e pernas poderosas – que a certa altura desliza pelo palco como um animal sinuoso e insinuante. Ou o Deivison, que também atravessa o palco, em outro momento, arrastando uma pedra, mas que oferece muito mais na despretensão de seus movimentos nas coreografias que participa. Deivison tem uma das caras mais honestas que eu já vi, e essa honestidade, não duvide, se traduz em todo seu gestual.
Tem o Douglas, que é como se o David, de Michelângelo, tivesse deixado crescer o seu cabelo de maneira descomunal e emprestasse um pouco da beleza dos traços africanos. Aquela massa que se move desafiando a gravidade é um imã para os olhos da platéia, assim como os braços da Ariane toda vez que ela ataca de “kathak”. Aliás, não faltam motivos para seu olhar se perder pelo palco: o rosto iluminado e delicado da Fernanda, em ligeiro contraste com o contorno forte da sua bunda; os lábios impressionantes da Samara (que vêm como um bônus para seus gestos precisos); o corpo longilíneo e elástico do Rubens, que termina sempre num sorriso largo; as extremidades impecavelmente definidas da Ariane, especialmente na dança indiana; a presença sutil de Josenilton, que mais parece um indiano nobre infiltrado no elenco; a alegria que esbanja da cara da Amanda; o centro gravitacional do Anderson (Dias da Silva), que ameaça influenciar o da própria Terra, certamente uma herança da dança de rua; e a inspiração infinita que foi ver o outro Anderson (Ferreira Xavier) se mexer de lá para cá, o tempo todo pelo palco com uma vivacidade que me remeteu à minha própria história.
Todos os bailarinos e bailarinas do elenco – mas talvez o Anderson, em especial, com sua altura não exatamente privilegiada, que é compensada por uma presença valiosa de um eixo natural e uma refinação na execução de cada passo raramente vista até nas companhias mais tradicionais – parecem provocar a própria definição da dança. Apenas de olhar aqueles corpos você pode tirar a conclusão apressada de que ninguém ali deveria estar fazendo aquilo. No entanto, com o talento de cada um deles trabalhado pelas mãos de um mestre, ali estão eles brilhando no palco: o Anderson, o outro Anderson, a Samara, o Rubens, a Vanessa, a Fernanda, o Deivison, a Ariane, o Douglas, a Amanda, o Josenilton – e mais todos que eu posso citar escolhendo aleatoriamente seus nomes na ficha técnica do espetáculo, Priscila, Mayara, Gilson, Lucas, Angélica, Silvana, Wanderley… São ao todo trinta nomes que insistem em contrariar uma observação careta que grita: “vocês não deveriam estar dançando!” – mas eles estão dançando sim, e estão assim suspensos num estado de beleza que vão levar para a vida inteira.
E é aí que minha biografia se cruza com a deles. Quantas vezes eu não ouvi que “eu não deveria estar dançando”? Até hoje, com o esdrúxulo episódio recente de um vídeo antigo meu dançando que foi ressuscitado pelo YouTube e pela TV, quantas pessoas não se aproveitaram para fazer seu comentário estreito e preconceituoso? A sorte é que eu passei por um aprendizado tão sofisticado quanto o que esses meninos e meninas que estão trabalhando com o Ivaldo acabaram de passar. E quem ganha um presente como esse – posso garantir – não fica derrubado com nada.
O que nos leva – agora sim – ao cotidiano da periferia de onde vêm o elenco da Cia. de Teatrodança Ivaldo Bertazzo. Depois de vê-los dançar, você acha que isso faz alguma diferença? Garanto que não para eles. Porque o que importa ali é a dignidade (sei que já usei essa palavra, mas aqui não cabe outra…) – dignidade essa que eles aprenderam a ter, através do movimento. Todos ali descobriram como usar esse corpo tão estranho – e qual corpo que não o é? – a seu favor. Mais do que isso: por mais de uma hora, eles se colocam no palco para mostrar que isso é possível para qualquer um. Eles são um exemplo sim – mas não um exemplo fácil de uma ONG barata (você sabe que existem ONGs e ONGS, não sabe?). Cada menino desses, cada menina dessas são dignos, apesar do lugar de onde vieram – e o serão para sempre. Eu sei disso…
A essa altura, já alcancei aquele estágio em que começo a pedir desculpas pelo tamanho do texto… Mas, se você veio comigo até aqui, por que não me acompanhar um pouco mais, só para eu poder falar um pouco das danças propriamente ditas de “Mar de gente”? Vai ser só mais esse parágrafo, pois tenho que registrar como Ivaldo consegue, como poucos, misturar linguagens num resultado totalmente original. Da grande roda romena às linhas de uma travessia pelo palco com o vigor que um Moussorgosky inspira; dos movimentos em tempos diferentes precisamente executados numa escada ao “duelo” de “kathak” moderno sobre uma cruz de papel; das acrobacias dos meninos oferecendo combinações impossíveis entre aqueles corpos ao múltiplo pas-de-deux já no final do espetáculo; e da briga de casais coreografada à valsa em marcha-a-ré que encerra a apresentação emprestando o giro dos dervishes, Ivaldo está se reinventando a cada momento – e, com isso, sendo cada vez mais generoso com seu público.
E esse público também sou eu. Que ironia…
Crédito de todas as fotos: Priscila Prade