““Bon anniversaire”

seg, 29/01/07
por Zeca Camargo |
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Semana passada, repeti um prazer simples – e raro… Comprei uma das minhas revistas favoritas, Les Inrockuptibles” de uma pilha de um quiosque no meio de uma calçada em Paris.

Estava eu degustando a particular felicidade desse momento, quando descubro, na página 38 da edição de número 582, um artigo sobre o aniversário de 30 anos do Centro Georges Pompidou – também conhecido como Beaubourg. Eu caminhava justamente na direção de lá, para visitar duas exposições que certamente serão comentadas aqui em breve (a do artista mais genial da segunda metade do século 20, Yves Klein, e a do centenário do criador de um dos melhores personagens de história em quadrinhos de todos os tempo – Hergé, o pai” de Tintin), e me senti especialmente afortunado de poder visitar esse templo das artes contemporâneas (e o plural aqui não é mero recurso narrativo) justamente nesse período.

Não que o próprio Beaubourg transparecesse um clima de festa… A data do aniversário é amanhã – a cerimônia de abertura oficial aconteceu em 31 de janeiro de 1977. Mas, pelo menos até quinta-feira da semana passada, nada nas dependências do centro cultural indicava uma comemoração.

Antes mesmo de entrar lá dessa vez, olhando aquela vasta praça que permite que as (ainda hoje) bizarras formas da construção criadas por Renzo Piano e Richard Rogers sejam apreciadas (ou mal-apreciadas, dependendo do espectador), lembrei da primeira vez que entrei lá, em janeiro de 1980, e me deparei com uma gigantesca retrospectiva de Salvador Dali. Moleque, mochileiro, eu mal sabia o que era o Pompidou. Tinha a referência arquitetônica – nos anos 70, não tinha como escapar das imagens do ousado edifício, nas páginas coloridas da revista Manchete”… Imaginava que era apenas” um museu (ele abriga um museu, o Museu Nacional de Arte Moderna, mas é, claro, mais que isso) – uma espécie de antídoto do Louvre, que eu visitara pela primeira vez também nessa viagem. Sabia, enfim que tinha de conhecer. Mas nada me preparou para aquela experiência.

E experiência” é mesmo a melhor maneira de definir o que acontecia por lá. Logo na entrada, naquele imenso hall, colossais cachos de uvas e baguetes caíam do teto, que era riscado pelo cabo de uma colher gigantesca, cuja concha recebia um jorro ininterrupto de um líquido que parecia ser vinho tinto. Centenas de pessoas circulavam sem um itinerário definido – com seus olhos ainda menos preocupados em encontrar um rumo. Era um festival sensorial – meu primeiro contato com um tipo totalmente diferente de exposição, nada linear, multimídia (a palavra ainda era moderna na época), multidisciplinar (outra novidade), e extremamente preenchedora. Na galeria subterrânea, um carrossel com vitrine de jóias desenhadas pelo surrealista. Quadros e fotos e objetos e frases se misturavam pelas paredes (quando havia paredes) – e, sobretudo, numa sala escura, Um cão andaluz” me esperava (imagine o prazer e a sensação de desnorteamento de assistir esse filme pela primeira vez).

Acho que fiquei um três dias indo lá – e tendo dificuldades para dormir, já que o centro fechava tarde (algumas noites, ficava – e ainda fica – aberto até as 23h!). Ia para a cama sempre excitado com o que tinha experimentado – uma excitação, aliás, que foi se repetindo a cada vez que eu tinha a chance de fazer uma visita à Paris (e, inevitavelmente, de ir ao Beaubourg). Assim, fui aos poucos entendendo melhor toda aquela proposta” (até essa palavra era moderna então…). Proposta essa que, segundo o artigo da Les Inrock”, vinha sendo gradualmente abandonada nos últimos anos. Resumindo bem, o Centro Pompidou foi criado para ser um verdadeiro centro cultural interativo, onde música, cinema, artes performáticas, artes plásticas, arquitetura, literatura, filosofia, ciências sociais, educação – e até gastronomia! – se cruzassem. Foi assim na primeira – e impecável década. Exposições inovadoras, como uma série de retratos paralelos e simbióticos de capitais culturais (Paris/Moscou”, Paris/Nova York”, Paris/Berlim”, Paris/Paris”), que durou até meados dos anos 80, ou totalmente experimentais, como Magiciens de la terre” (mágicos da terra), de 1989 – que eu tive a sorte de ver e que abriu todos os horizontes possíveis das manifestações artísticas, ampliando os olhares de curadores do mundo todo -, ajudaram a construir uma reputação invejável para o Beaubourg.

A mim, mero expectador do que o centro tinha para oferecer a cada vez que eu estava na cidade – mesmo que fosse para um trabalho rápido -, aquele lugar sempre foi fascinante. Fora aquela introdução daliniana”, outros momentos memoráveis foram uma instalação de Natal nessa praça da entrada, com centenas de pinheiros de onde se ouviam sussurros em várias línguas; a própria (e indescritível) descoberta de uma nova visão sobre as artes em Magiciens du monde”; a contemplação dos quatro dorsos femininos em bronze de Matisse; Féminin/Masculin”, em 1985; a revelação do suprematismo de Quadrado negro sobre fundo branco”, de Malevicth, numa carona que peguei numa excursão guiada numa ala então dedicada ao construtivismo russo; a primeira mostra dedicada a Yves Klein, em 1983; e, claro, essa de agora, do mesmo artista, que está exposta até dia 05 do mês que vem (e da qual eu pretendo falar aqui na quinta-feira que vem). Até quando o que estava em cartaz não era algo de especial, ia só para sentir a vibração.

Para mim, sempre um estrangeiro de passagem (leia-se, turista”), foi uma surpresa descobrir, no artigo da Inrock”, que a crítica geral é a de que o Beaubourg está deixando de ser, cada vez mais, um organismo interdepartamental, se segmentando mais e mais – além de, no que se refere às exposições, ter procurado quase que exclusivamente, nos últimos anos, um caminho que tende às mostras monográficas (grandes retrospectivas de um artista só – Francis Bacon, Jean Cocteau, Sophie Calle). Engraçado… Nunca deixei de sentir aquele endereço como algo pulsante – e único. Mais único ainda, quando eu trazia a referência para o Brasil e percebia que raras eram as instituições culturais que, por aqui, almejavam um funcionamento tão orgânico e interativo como o Beaubourg.

Nesse jogo cruel de comparar instituições culturais, nós sempre saímos perdendo (e, por favor, me contradiga se você tiver um bom exemplo…). O que não significa que eu tenha a esperança de um dia entrar num espaço com a mesma energia do Pompidou em solo nacional. (Para você sentir um pouco do que estou falando, basta entrar no site do centro – www.centrepompidou.fr – e dar uma olhada no que ele oferece. Entre outras coisas, você pode olhar o acervo inteiro do Museu Nacional de Arte Moderna: procure por um link collection en ligne”, ou on-line collection”, ou colleción en línea”, e veja, aqui nesta mesma tela nada menos que 58.000 obras da coleção, os 129 Légres, os 411 Duchamps, os 184 Picassos, os 1.089 Rouaults, os 193 Arps, os 87 Gioacomettis – e por aí vai… Confesso que não deixo de sentir uma certa inveja boa dessa geração toda que só precisa de um clique para conhecer um museu como esse…).

Enquanto isso não acontece, fico irremediavelmente sonhando com a possibilidade de um novo frio na barriga a cada subida daquelas escadas rolantes transparentes (que fazem o zigue-zague da marca registrada da fachada do Beaubourg), com o que é uma das vistas mais lindas de uma das cidades mais lindas do mundo revelando-se lentamente a cada andar. Apesar das críticas (e a do Les Inrock” não é a única…), mal posso esperar pelos próximos 30 anos!

A primeira grande curva de 2007

qua, 24/01/07
por Zeca Camargo |
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E não estamos falando de Juliana Paes, claro, já que ela abandonou todas as suas em 2006. É bem provável que você já esteja familiarizado com a nossa Curva das Expectativas Flutuantes, que pretende registrar o nível de entusiasmo que os eventos culturais despertam na mídia e no público. Essa já é a terceira versão (você pode consultar as anteriores aqui). E a primeira de 2007.

As expectativas, confesso, eram altas. Geralmente o verão brasileiro é marcado por uma torrente de novas idéias, novas caras, novas musas. Mas até agora, temos visto mais torrentes de chuva do que qualquer outro tipo. O tempo está nublado – e não só lá em cima.

O jeito foi apelar para alguns indicadores lá fora… com honrosas exceções – como o filme “Antônia”, por exemplo, que pelo bochicho, deve repetir o mesmo sucesso da série de TV.

No pré-bochicho (e põe “pré” nisso!), um filme previsto para 2009 – e a razão de tanta (e tão antecipada) euforia é o nome do diretor por trás dele: James Cameron, que anunciou recentemente seu primeiro projeto desde o mega sucesso “Titanic”. Chama-se “Avatar” – é uma ficção científica e… bem, mais detalhes daqui a dois anos!

As indicações para o Oscar vão naturalmente puxar essa curva. Por isso Judi Dench está ali nas “ótimas críticas”, por sua interpretação em “Notas sobre um escândalo”. Já a campanha geral para dar finalmente uma estatueta a Martin Scorcese, por “Os infiltrados”, chegou no ponto de saturação: ele merece, mas calma… “Borat” – que os brasileiros finalmente vão poder ver muito em breve – merece uma segunda chance: seu prêmio no Golden Globe de melhor ator em comédia, fez ele subir novamente na curva, se recuperando da ressaca da mídia (e tudo isso antes de estrear por aqui hein?) – a mesma ressaca que agora ameaça “Dreamgirls”; mesmo antes de chegar as telas nacionais, as expectativas são tão altas que a possibilidade de decepção é grande.

Mas nem tudo é Hollywood… Do pop inglês vem também a colaboração mais elogiada da temporada: Damon Albarn e Paul Simenon estrelando “The good the bad and the queen”. E uma enorme ansiedade positiva acompanha o novo disco do Artic Monkeys.

Para não deixar a nossa terra de fora, a montagem de “Dois cavalheiros de Verona”, de Shakespeare, dirigida por Ulysses Cruz (em cartaz em São Paulo) está arrancando elogios. E o Carnaval bate todos os recordes de animação antes do tempo e desponta na categoria “superexposição” semanas antes de alguém botar sequer um bloco na rua (tirando, claro, a Bahia, que vem botando blocos na rua desde novembro – de 1985!!) – uma categoria que, aliás, DJ Tiesto quase se encaixou (a sorte é que sua turnê só vai até o fim do mês… mas, atenção, ele vai voltar no segundo semestre!!). Falando em shows, não sou muito amigo de Chris Martin (como quem já leu “De a-ha a U2″ deve ter percebido…). Mesmo descontando esse fator, o Coldplay vir tocar no Brasil a essa altura da carreira, só pode mesmo ser uma ressaca…

Que o verão então passe bem depressa – e novos ventos venham arejar a próxima curva!

Nem “Quero ser John Malkovich” nem “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”

seg, 22/01/07
por Zeca Camargo |
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Eu adorei esses dois filmes. Mas eu não tive vontade de ler o roteiro deles, como quando assisti “Mais estranho que a ficção”. Aliás, eu nunca quis ler um roteiro de filme antes. Nunca nem pensei que eu ia querer ler o roteiro de um filme antes. Aconteceu.

A comparação com os dois filmes do título não é gratuita. Se você leu alguma crítica (na imprensa nacional ou internacional) sobre “Mais estranho”, deve ter esbarrado também com uma referência a esses dois outros trabalhos. É uma ponte fácil: ambos têm roteiros que saem bastante do linear – quando não entram na meta linguagem, desenvolvendo um roteiro sobre o próprio roteiro (e aí o melhor exemplo é o não menos surrado – como citação “cult” – “Adaptação”).

Mas esse clube de diretores traquinas (se é que esse clube existe) não é tão restrito assim. Sobram exemplo de filmes, mais ou menos recentes, onde diretor e roteirista se esmeram em dobrar um pouco mais a narrativa para oferecer (ou seria exigir?) algo mais do espectador que a adrenalina que uma mega explosão ou um beijo “caliente” na tela podem provocar.

Você talvez tenha visto “Amnésia”, com roteiro e direção de Christopher Nolan – aquele onde a história é contada em dois tempos intercalados, um para frente e um para trás (em “flashbacks”) – e cujo personagem principal, para facilitar as coisas, sofre de falta de memória recente (consegue se lembrar de coisas que aconteceram há muito tempo, mas não do que se passou nos últimos dez minutos). A trama, já não era banal, claro. Mas o embaralhamento proposital das cenas deixou o filme ainda mais interessante (sua tentativa mais recente de fazer algo parecido, em “O grande truque”, do ano passado, é menos bem-sucedida, mas também passa longe do ordinário).

Ou quem sabe você teve a coragem de assistir “Irreversível”, direção e roteiro do franco-argentino Gaspar Noé? Me lembro que o grande comentário era a cena de estupro de nove minutos sem cortes – que provocou indignação em boa parte do público francês (para não falar do público americano, que apresentou índice de 100% de indignação). Mas o assassinato que acontece logo nos primeiros minutos de exibição é de uma brutalidade que eu jamais tinha visto antes – e que ainda não vi até hoje. Além desses “detalhes”, porém, o roteiro de “Irreversível” faz mais: pega um truque fácil – contar uma história de trás para frente – e faz disso um filme totalmente original.

Mais exemplos de labirintos narrativos? Ainda não vi “Babel”, que parece que promete. Mas a mesma dupla diretor-roteirista (respectivamente, Alejandro González Iñarratu e Guillermo Arriaga) já conseguiu me tirar do sério com o sub-apreciado “21 gramas”. Que delícia que foi assistir à primeira meia hora do filme sem ter idéia do que estava acontecendo – ou, pior, com a impressão de que a ordem dos rolos exibidos estava trocada (era a única explicação que eu conseguia elaborar enquanto tentava entender o que se passava na tela).

E “Syriana”, então? É como se o diretor Stephen Gaghan (que também assina o roteiro) pegasse o conceito de “21 gramas” e o pulverizasse em uma história ainda mais complicada (de maneira mais contida, até “Três reis”, de David O.Russel, flerta no mesmo terreno – mas confesso que só menciono esse filme aqui para ter uma desculpa para poder citar essa pequena obra-prima “para sua consideração”, como diriam os ávidos donos de estúdios de Hollywood nessa época em que seus filmes disputam uma sangrenta, e nem sempre justa, corrida para uma vaga entre os trabalhos indicados para o Oscar 2006 – uma lista que, só lembrando, vai ser anunciada amanhã).

“Timecode”, de Mike Figgis – já teve a sorte de assistir em algum festival? Não tenho certeza se o DVD foi lançado no Brasil, mas eu duvido que alguém absorva facilmente as histórias nas quatro telas (imagine o espaço da tela comum dividido em quatro retângulos iguais) projetadas simultaneamente – inclusive com o som de uma cena interferindo no da outra. Trata-se, na verdade, de uma história só, que vai convergir no final – mas a fragmentação da narrativa em quatro pontos de vista aparentemente diferentes oferece um desafio (e uma enorme recompensa no desfecho) para quem se esforçar em acompanhar tudo.

Preciso falar de “Cidade dos sonhos”, de David Lynch? Ou você já se esqueceu que, num dos quebra-cabeças mais geniais do diretor, tudo que você viu na primeira metade do filme só faz sentido se você comprar a idéia de que a história mesmo só começa na segunda metade? Ou voltando para a tal turma travessa da moda, o próprio “La science des rêves” (ou The science of sleep”, como foi lançado nos Estados Unidos), de Michael Gondry (diretor e co-roteirista, ao lado de Charlie Kaufman, de “Brilho eterno”), que não é tão bem resolvido, é um ótimo exemplo dessa liberdade com que as histórias vêm sendo tratadas pelo cinema contemporâneo.

E é justamente uma frase de “La science” que me veio à cabeça quando eu assistia “Mais estranho que a ficção”. Numa das seqüências de sonho do personagem de Gael García Bernal, depois de mais um delírio de imagens, ele, numa esperta inversão de expectativas suplica: “estou muito cansado, quero acordar”. Corte para o personagem de Will Ferrel na frente do espelho pronto para mais um dia de rotina anestesiante.

Uma narradora descreve todas suas ações – e reações. Seus pensamentos também. Até que ele começa a escutar essa voz e percebe que ela está comandando sua vida. Harold Crick, seu personagem descobre então que é exatamente isso – um personagem – e o drama passa a ser encontrar seu autor. Não vale a pena contar nada além disso (até aqui, revelei não mais que os primeiros vinte minutos do filme, não se preocupe), mas você já deve ter percebido que tudo se desenvolve num curioso jogo de ficção e realidade – dentro da própria ficção. A maneira como esse jogo se desenrola é tão bem contada que seria um crime eu revelar mais alguma coisa aqui e tirar seu prazer em acompanhá-lo (faça um esforço para “Mais estranho” esta semana, pois, longe de ser um campeão de bilheteria, ele não deve ficar muito tempo em cartaz – e nenhum DVD, que inevitavelmente vai ser lançado em questão de semanas, vai substituir o encanto de ver os recursos gráficos do filme na tela do cinema). Mas basta dizer que a trama é engenhosa o bastante para ter me deixado com aquela vontade – inédita em mim – de ler o roteiro do filme.

Algumas críticas que li sobre esse filme o “acusam” de se render a um final feliz – numa tentativa “démodé” de emoldurar Zach Helm, autor do brilhante roteiro, como vítima da mão pesada de Hollywood, que, sempre de olho na bilheteria, não permitiria um final trágico como a seqüência dos fatos sugere. Mas desconfio que concluir a história tragicamente significaria exatamente se entregar ao previsível. A virada final pode até parecer a solução mais fácil, mas permite que a história flerte um pouco além com a filosofia – esbarrando curiosamente com um outro filme que não tem nada a ver com esse: “Quem somos nós?” (um trabalho que, se eu fosse comentar aqui, bateria todos os recordes de extensão de textos – incluindo esse de hoje, que eu achei que ia ser mais curto, mas que… bem, você já leu até aqui… me libera da justificativa? Obrigado!).

Longe de pertencer a uma “escolinha” de autores levados (se é que ela existe, insisto), Zach Helm (que, conta a lenda, teve seu roteiro disputado em ofertas milionárias pelos estúdios hollywoodianos) escreveu um filme provocante – qualidade essa que o diretor Marc Foster (que – prenda a respiração! – vem aí no final deste ano com a versão para o cinema de “O caçador de pipas”) só multiplicou.

Fui linear o suficiente até aqui? Tomara que não…

(e, por falar em linhas, vem aí, na quinta-feira, mais uma curva das expectativas flutuantes… faça suas apostas…)

Villalobos, o messias

qui, 18/01/07
por Zeca Camargo |
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Quase não escrevo hoje sobre Ricardo Villalobos. Depois de assistir a “Mais estranho que a ficção”, na última segunda-feira e, na seqüência ter visto duas cenas curiosas na novela “Páginas da vida”, quase mudo de tema e escrevo um texto com o título “Mais estranho que a vida real”. As duas cenas eram praticamente coladas no capítulo de segunda: a primeira trazia o casal de personagens gays numa cama conjugal (numa louvável ousadia de Manoel Carlos), supostamente prontos para dormir, mas numa postura que dava a nítida impressão de que eles estavam alocados em sarcófagos individuais de acrílico transparente, onde o toque de pele era não só impossível como sequer imaginável; a segunda cena trazia uma casal mais tradicional, um garoto e uma garota, em situação bem mais íntima, mais… carnal – exatamente quando o pai dela entrava no quarto, não sem levar um pito da filha pela intromissão. Achei incrível que, na nossa cultura, para um casal gay ser palatável ele deve ser anti-séptico, enquanto o casal convencional pode ensaiar posturas dignas de um Cirque du Soleil sob os lençóis, ser surpreendido por uma autoridade familiar e ainda esbravejar a favor da privacidade. Retratos assim, numa obra de ficção me pareceram divertidamente fora do que se vê no cotidiano, e por isso pensei em inverter o título do genial filme de Marc Foster e brincar com a idéia de que o brasileiro prefere uma ficção mais torta que a realidade.

Depois, achei que “Mais estranho que a ficção”, o filme, merecia um comentário só para si – e merece, tanto que você poderá encontrá-lo aqui na próxima segunda. Assim, retomei a idéia de falar sobre Ricardo Villalobos – até para ver se fico livre dessa maldição que me persegue desde que ouvi pela primeira vez “Fizheuer Zieheuer”. Maldição adorável – diga-se.

Chileno, crescido na Alemanha (país de origem de sua mãe, onde é baseado até hoje), e apaixonado por música da nossa terrinha (“Os brasileiros já estavam ouvindo techno duzentos ou trezentos anos antes de todo mundo”, diz ele em sua biografia no site thedjlist.com), eu o conheci por causa de um disco comprado em Lisboa. Sim, trata-se de mais uma daquelas coincidências cosmopolitas das quais não consigo escapar. E, no caso de Villalobos, ainda bem que eu não escapei!

Foi numa loja que fica ao lado do melhor clube grande da cidade, chamado Lux – meio fora de mão, mas com um conjunto de lojas (moda, design e música – para não falar do restaurante Bica do Sapato!) especial. Nas magras prateleiras do que parecia ser um lugar que parecia convidar só os DJs mais alternativos a entrar (eu não estava nessa categoria, claro, mas, entrei na cara dura), encontrei um CD chamado “Alcachofa”. O que chamou minha atenção primeiro, obviamente, foi o título – e só depois fui reparar no nome do autor que, como não conhecia, cheguei até a pensar que poderia ser português (ou brasileiro, quem sabe?). Era o ano de 2003, o mesmo que estava na capa do CD. Lançamento! Não resisti.

Só fui escutar o álbum alguns dias depois, já no Brasil. E em menos de 20 segundos a faixa de abertura já tinha me conquistado – com muito pouco. Muito pouco mesmo. Quase nada. Nos seus pouco mais de dez minutos, “Easy Lee” oferece apenas uma voz distorcida eletronicamente e parcas batidas – e apenas com isso te arrasta por um labirinto de sutilezas do qual você simplesmente não quer mais sair. Confesso que, se eu fosse comentar aqui as outras músicas, teria de colocar o CD de novo para escutar, já que minha paixão por essa abertura ofuscou todo o resto – mas não é o caso. Vagamente, me lembro que todas vão na mesma vibração – talvez não tão mínimas como “Easy Lee”, mas nenhuma delas com uma pulsação que fizesse uma pista de dança sacolejar.

Preciso dizer que fui atrás de tudo que Ricardo Vilallobos tinha lançado?

Não tem sido fácil colecionar sua obra – bastante dispersa como manda a carreira de qualquer bom DJ. Mas juntei o suficiente para admirá-lo numa categoria à parte – house, microhouse, minimal techno, tech-house, subtrance, spacebeat, minichill, nadabeat – qualquer nome que você quiser inventar, ele não cabe em nenhum deles (e olha que alguns desses rótulos eu tirei de páginas da internet…). Para mim ele é simplesmente o cara que faz a música eletrônica mais original com o mínimo de recursos (Spank Rock faz atualmente a música eletrônica mais original com o máximo de recurso, mas vamos deixar isso para outra hora…).

E olha que eu o tinha em tão alta conta antes de ouvir seu último trabalho. Agora que “Fizheuer Zieheuer” não me sai da cabeça já há 16 dias, não sei nem mais como classificar Villalobos. Aliás não sei nem o que dizer sobre essa faixa. Hipnótica? Clássica? Mínima? Profética? Referencial? Seminal? Extra-terrestre? Subliminar? Desafiadora de rótulos? Diabólica? Angelical? Não faço a menor idéia. Só sei que nos seus 37 minutos e nove segundos estão impregnados na minha memória auditiva – e eu não posso ter uma brecha de silêncio que a faixa recomeça na minha cabeça (de qualquer ponto, já que ela parece ser infinita).

“Fizheuer Zieheuer” começa na metade. Ou melhor, começa como termina: em um ponto qualquer. Nos dez primeiros segundos você tem a impressão de que aquele beat já vem rolando de longe. Agradeci muito minha formação em “world music” para poder identificar que, junto com aquela batida minimalista, vem um certo som de metal, provavelmente da Europa do leste. Instrumentos entre a tuba e o oboé sugerem pequenos sopros para marcar o ritmo – uma frase musical de menos de menos de quatro segundos. Repetida por mais de trinta e sete minutos.

Na primeira vez em que escutei “Fizheuer Zieheuer”, me lembrei imediatamente de “Autobahn”, do Kraftwerk – um disco de 1974! Recomendo aos mais moderninhos. Numa faixa única, também longa, a venerada banda alemã conta uma sinfonia quase que exclusivamente instrumental, para ilustrar uma viagem de carro numa autopista. É brilhante: da partida do carro ao rádio sintonizando na estrada, das buzinas dos caminhões passando às batidas que remetem a árvores passando pelo acostamento, “Autobahn” é sim uma pequena obra-prima – e eu acho que precisaria do espaço de umas três semanas neste blog para dissecá-la.

“Fizheuer Zieheuer” é menos descritiva – e talvez por isso um pouco mais revolucionária. Na sua mais de meia hora, o tã-tã-tã inicial não dá um descanso. E é com muita sutileza que Villalobos vai introduzindo outros elementos: uma batida, bem metálica, num compasso que é a metade da base de toda a faixa (por volta dos oito minutos); uma cansada banda de sopros – de provável origem balcânica ou cigana ou qualquer intersecção entre esses dois grupos – primeiro aos cinco minutos e depois mais, em intervalos imprevisíveis); um quase silêncio (aos 27 minutos); e até algo que se parece com uma cuíca (aos 22 minutos). E você não se cansa de ouvir.

Quando eu escrevi lá em cima que “Fizheuer Zieheuer” (se alguém souber de uma tradução plausível, mande aqui num comentário, pois meu alemão é sofrível) tinha se instalado em mim como uma maldição, não era uma reclamação – era algo que eu queria comemorar. E todo meu esforço aqui é para que você também seja contagiado por essa freqüência sonora (aproveite que você está na internet e procure ouvir pelo menos algum trecho dessa música, para perceber melhor o que estou falando). Não é difícil ficar intoxicado por esse som: dos apreciadores de música erudita aos fãs de John Cage; de qualquer pessoa que já dançou sob o comando de um DJ moderninho aos que dançaram sem sair da pista a suíte completa de “MacArthur Park” de Donna Summer; de quem está perfeitamente sóbrio aos que já nem sabe mais de qual substância abusaram. Bem-vindos todos! Já existe uma música para vocês. Um mantra alucinógeno que vai se tornar parte do seu (in)consciente e, uma vez que ele está incorporado ao seu organismo, você vai agradecer para o resto de sua vida.

“Fizheuer Zieheuer” é o som da salvação. E o messias chama-se Ricardo Villalobos.

Mr. DJ

seg, 15/01/07
por Zeca Camargo |
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O melhor do mundo? Pode ser – mas confesso que não fui a raves o suficiente para que eu possa concordar (ou discordar) desse ranking. Mas que esse Tiesto é bom, isso é.

Foi a primeira vez que assisti a uma apresentação dessas do palco. Não sou um grande fã de shows, como já contei (com certa relutância) no meu livro sobre os bastidores das entrevistas do mundo do pop. Mas coleciono, cá comigo, alguns momentos memoráveis. Como quando Robert Plant me convidou para traduzir (do inglês para o português) uma mensagem que ele queria passar para o público brasileiro, durante uma apresentação em São Paulo no início dos anos 90 (o texto era completamente maluco – pelo menos do que eu me lembro -, sobre viagens, povos, horizontes, diferenças e semelhanças; nada fazia muito sentido mas… era o Robert Plant!).

Ou o acústico de Alanis Morrisette em 2005, em Atlanta – provavelmente uma das situações em que eu fiquei mais emocionado por estar vendo alguém que eu gostava tanto de tão perto. Ou – talvez o mais memorável de todos – quando Kurt Cobain, numa das apresentações do Nirvana no Brasil, primeiro cuspiu numa câmera de TV e esparramou sua saliva pela lente (proporcionando uma imagem espontaneamente psicodélica para quem estava assistindo o show em casa!) e depois abriu as calças e mostrou o que quis (para o provável horror de quem estava coordenando a transmissão para os telões…); estava bem na coxia do palco com colegas e disparávamos comentários na linha “não, ele não vai fazer isso, ele não vai fazer isso, ele não vai fazer isso, ele vai fazer isso, ele vai fazer isso, ele já está fazendo isso, não é possível que ele esteja fazendo isso!!”, incrédulos do que nossos próprios olhos mostravam; puro rock…

Enfim, shows assim, já vi muitos, mas “set de DJ”, daquela perspectiva, foi o primeiro. Talvez porque eu nunca tenha levado esses caras muito a sério… Calma! Isso é só uma provocação. Sou do tempo em que Tim Simenon agraciou a capa da “The Face” e foi recebido com estranheza – mas não por mim… Tim Simenon quem? O cara por trás do Bomb the Bass (que uma geração inteira acha que é a banda que criou “Say a little prayer”… pobre Aretha Franklin…), que fez uma pequena revolução na maneira como as pessoas ouviam música no final dos anos 80. E tenho esse exemplar da revista até hoje na minha coleção – só para dar uma idéia de como eu respeito a profissão…

Antes mesmo disso, no início dessa mesma década, em 1982, uma música hipnótica, chamada “Last night a DJ saved my life”, do Indeep – uma banda de um sucesso só (esse mesmo!) – já havia despertado minha curiosidade sobre “o cara que rodava os pratos” para a pista ferver. Seriam eles realmente capazes de salvar vidas como a faixa sugeria? Alguns anos depois, Morrisey, num dos refrões mais poderosos do seu período com os Smiths, pedia a cabeça deles em “Panic” (“Hang the DJ! Hang the DJ! Hang the DJ!” – literalmente, “enforquem o DJ”, repetida até o coro virar um sussurro). A música que eles tocavam, segundo o cantor, não tinha nada a dizer sobre sua vida. Vai ver, não tinha mesmo. Mas que fazia todo mundo dançar… ah, fazia. E faz até hoje, claro.

Por que você acha que Madonna começou uma das suas melhores faixas – chamada justamente de “Music” – com um apelo para um “” anônimo colocar alguma coisa para ela dançar com seu parceiro? Somos seus súditos. É inútil resistir.

Essa mensagem nunca chegou a mim com tanta clareza como na madrugada de sexta-feira passada, em Porto de Galinhas, Pernambuco. Foi lá que eu vi do que DJ Tiesto era capaz. O boca à boca já tinha sido muito bom no domingo anterior, quando ele se apresentou na praia de Ipanema, no Rio – e pode acreditar que um boca à boca de 200 mil pessoas é poderoso. Foi esse evento, aliás, que me motivou a entrevistá-lo para o último “Fantástico”.

A conversa aconteceu naquele cenário ideal, num barco, coqueiros e jangadas ao fundo, num clima aliás, bem diferente do que ele costuma criar nas suas apresentações. A entrevista foi surpreendentemente informal – lembrando sempre que ele é maior estrela que poderia existir na galáxia dos DJs (fiquei pensando nos climas que já enfrentei com outros e outras “números 1″ do mundo pop – sem citar nomes!!! – e cheguei a conclusão inevitável de que eles – os DJs – são uma categoria realmente à parte).

E do que falamos? Bem, se já é difícil pedir para um músico ou um cantor desenvolver verbalmente algo sobre seu trabalho, imagine para um DJ. Não porque eles sejam menos articulados, claro, mas porque o que eles oferecem para seu público é ainda mais efêmero do que o repertório de uma banda. São sons, batidas, pulsos – é um clima. E é preciso ter um certo dom para criar esse clima. Sei disso…

Em doses muito homeopáticas, sempre brinquei de DJ. Desde o tempo em que o ritmo da pista de dança tinha que ser quebrado pela troca do disco de vinil – isto é, o tempo em que o que bombava mesmo era um Santa Esmeralda lá pela um hora da manhã – fico fascinado com a sintonia que um bando de gente sente ao entrar simultaneamente em êxtase ouvindo uma mesma música – e se mexendo ao som dela. Nos anos 80, eu já com acesso à facilidade tecnológica das fitas cassete (!), gravava seqüências “infalíveis” para o deleite do punhado de amigos que juntava nas festas de aniversário. “Tainted love” (Soft Cell), seguida de “Don’t you want me” (Human League) e depois de “Our House” (Madness), fechando com “Dancing with myself” (Billy Idol) – era imbatível. Na década seguinte, aprendi o poder dos contrastes de épocas e juntava “Groove is in the Heart” (dee-lite) com “Ring my bell” (Anita Ward), ou “Big fun” (Inner City) com “I will survive” (Gloria Gaynor) para o delírio geral – e, com a pista toda já hipnotizada, arriscava (com sucesso) algo mais desconhecido como “Touched by the hands of Cicciolina” (Pop Will Eat Itself) ou a tântrica “Come together” (Primal Scream).

Hoje? Fico feliz quando alguém me convida para tocar numa festa, só pelo prazer de ver todo mundo enlouquecer na pista com algo tão desconhecido como “Minha fofa”, de uma banda angolana chamada S.S.P. – mas eu divago…

Esses são relatos de um mero amador. Profissional mesmo é Tiesto. Seu som é poderoso – alto, grave, trepidante. Suas faixas se misturam com a naturalidade de quem está tocando uma coisa só. São ondas sonoras calibrando os humores e os ritmos de um público sedento de ritmo. Bum bum bum! Tsipum tsipum tipsum. Uma música que os mais passivos ouvintes de FM dificilmente conseguem tolerar, mas que faz parte do futuro – palavra do dono da festa! Ainda na nossa conversa no barco, ele timidamente admitiu que esse todas as grandes celebrações caminham para isso, consagrando a supremacia do DJ. E olhando aquele povo todo lá de cima, vibrando com aquelas batidas poderosas, eu não tinha porque duvidar. No controle do deck, Tiesto pulava com uma felicidade quase infantil – ou talvez fosse apenas a satisfação (de adulto) de saber que ele estava inquestionavelmente no comando.

A ordem era enlouquecer. Ninguém desrespeitou.

A vibração, aliás, era tão intensa, que precisei ouvir outras coisas para “sossegar” antes de dormir. Por sorte, no meu iPod, encontrei o antídoto perfeito: “Fizheuer Zieheuer”, o novo trabalho de um outro DJ genial, Ricardo Vilalobos – sobre o qual pretendo escrever aqui na próxima quinta-feira.

Quando encontrei novamente Tiesto no saguão do hotel, apenas horas depois de seu “set” ter terminado (ele já estava de partida para Florianópolis, onde tocou no fim-de-semana; segue em turnê pelo Brasil por todo o mês de janeiro – e não custa lembrar que ele vai estar em São Paulo nesta quinta), eu já estava em outra freqüência… Numa despedida rápida, deu para perceber que o DJ não parecia nem um pouco cansado – ao contrário. Com o frescor de quem tinha acabado de sair de um bom banho, seu rosto estava cheio de energia – certamente um reflexo do bem que fez para aquela gente em Porto de Galinhas (eu inclusive!).

Corpos malditos

qui, 11/01/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Não é sempre que você encontra uma canção em um musical da Broadway cujo refrão (e título) explode num verso simples assim: “totalmente fodido” (no original, “totally fucked”). Também não é sempre que você encontra na Broadway um musical como “O despertar da primavera”.

Os mais familiarizados com clássicos do teatro talvez tenham reconhecido o nome da peça de 1891 escrita pelo alemão Frank Wedekind – um rebelde (e como!) do seu tempo. E aí as coisas começam a ficar ainda mais confusas. Um autor considerado ousado para sua época transplantado para um ambiente careta como a Broadway de Nova York? Mas vamos complicar ainda mais: quem assina as músicas é Duncan Sheik – uma espécie de semi-divindade no cenário alternativo americano. E a coreografia (ainda que tímida) é de Bill T. Jones (que nos bons tempos em que São Paulo dava importância à dança já veio se apresentar por aqui). O primeiro ato tem a canção mais triste jamais escrita sobre um pai molestando uma filha – “The dark I know well”. E a última cena termina com uma defloração (bastante explícita) de Wendla por Melchior – dois adolescentes, entre tantos na história da peça, deliciosa e cruelmente atormentados pelos hormônios que começam a dizer que seus corpos precisam de outros.

Ah – esqueci de acrescentar que é o sucesso (de público e crítica) da temporada. Só posso concordar.

E não apenas porque sou fã de Duncan Sheik. Tudo bem – ser fã de Duncan Sheik ajuda, pois o conjunto de músicas que ele criou é sensacional (você pode encontrar fácil, fácil na internet – compre sem susto). Usando com bastante liberdade o texto de Wedekind, Sheik criou canções que, mesmo sendo fundamentais para a costura da história apresentada no palco, teriam vida independente nas melhores rádios alternativas. Da já citada “Totally fucked” à outra que também tem um título que a maioria das publicações americanas não publica na íntegra (“The bitch of living” – que pode ser traduzido apressadamente como “A merda de viver” – aparece grafada na própria capa do CD com a trilha sonora da peça como “The ***** of living”!), todas canções são de uma melodia que qualquer banda emo time B (e algumas do time A) entregariam seus royalties para ter gravado.

O elenco, de esmagadora maioria super jovem (apenas dois atores mais velhos interpretam dois papéis identificados no programa da peça como “o homem adulto” e “a mulher adulta”), canta tudo com a energia de quem não consegue mesmo entender o que está acontecendo com o seu metabolismo e só tem suas cordas vocais apara expressar tanto desejo. Até, claro, quando alguns descobrem outras partes do corpo para dar vazão a tanta “energia” guardada (já existia “tesão” no século 19?) – e se arrependem amargamente das conseqüências.

Que tema mais atual – talvez você já esteja pensando. De fato. Aliás, os clássicos não servem exatamente para isso, para nos lembrar de que as grandes questões nunca são resolvidas? Mas de quantas remontagens de clássicos você já teve vontade de sair no meio? Nessa versão de “O despertar da primavera” o único impulso que você tem de levantar é para cantar junto com os atores – ou para dançar.

Outro mérito da encenação, como foi observado pelo crítico Jeremy McCarter, da “New York”, é ter driblado as fórmulas e convenções da Broadway. O diretor Michael Meyer, colocou uma banda de verdade no palco – e até cadeiras para alguns espectadores no mesmo espaço – e o clima é mais de um show de rock do que de um musical (ainda citando McCarter, uma adaptação de “Alta fidelidade”, do livro de Nick Hornby, transformou o universo da música alternativa – tão bem descrito pelo escritor inglês – num pastiche de Broadway e teve sua temporada recentemente cancelada após apenas duas semanas em cartaz).

Assim, falando de temas que não são nada estranhos aos próprios adolescentes, “O despertar da primavera” (“Spring awakening – a new musical”, no título original da montagem) traz embutida a promessa de rejuvenescer a grisalha platéia dos teatros de Times Square… E a identificação não é só na gracinha fácil de colocar palavrões nas letras das músicas. Ao ouvir “The guilty ones”, que abre o segundo ato, é impossível alguém que tenha entre 14 e 17 anos não achar que versos como “algo começou de maneira maluca, doce e desconhecida”, “essa é a temporada dos sonhos”, ou “agora nossos corpos são os culpados, nosso toque preenchendo todas as horas”, foram escritos especialmente para si.

Corpos culpados? Como a própria peça se encarrega de mostrar, eles estão mais para malditos. O adjetivo se encaixa até, ironicamente, no triste retrato da nossa “pobre vítima” do YouTube, Daniella Cicarelli – que por mais algumas horas conseguiu barganhar certa notoriedade por ter tirado o site inteiro do ar para os brasileiros (“mas foi meu namorado!” – tá bom…). Se ela tivesse esse poder de elaboração, talvez saberia lidar melhor com ele. Os adolescentes de “O despertar da primavera” pelo menos tinham a desculpa de serem… bem… adolescentes. Mas com seus vinte e tantos anos, será que Dani já não saberia lidar melhor com essa “maldição” do corpo?

À medida que envelhecemos ele vai nos colocando novos desafios – e a expectativa é de que possamos sempre descobrir novas maneiras de nos relacionar com esse corpo. Fazer o quê? É o único que temos – melhor aprender a lidar com ele. E, para a algumas lições nessa área – especialmente o que fazer com esses corpos depois que eles se tornam adultos e o sexo deixa de ser um mistério (ou, melhor, deixa de ser um mistério e passa a ser um problema) – a temporada nova-iorquina oferece outra chave interessante: uma exposição de Kiki Smith, no Whitney Museum.

Poucas artistas exploraram tão intimamente o corpo humano como ela – o corpo e várias de suas partes, muitas vezes em detalhes escatológicos. Uma rápida olhada em sua biografia (uma versão resumida pode ser encontrada no próprio site do museu, www.whitney.org) explica muita coisa. O fato de ela ter trabalhado com um dos artistas mais alternativos dos anos 80, David Wojnarowicz (que talvez você conheça por ele ter feito uma das versões para o vídeo de “One”, do U2 – aquela onde os búfalos americanos correm desesperados em direção a um precipício), por exemplo, inevitavelmente a aproximou de uma abordagem assim. Wojnarowicz morreu de Aids em 1992 e fez do seu corpo um instrumento fundamental de seu trabalho.

Como ele se manifesta na obra de Kiki Smith? Bem, imagine uma escultura de uma figura feminina agachada, de onde saem tiras de contas amarelas sugerindo pequenos regatos de urina. “Pee body” (“Corpo Xixi”, numa possível tradução), de 1992, não faz parte da retrospectiva, mas o os trabalhos reunidos pelo museu não ficam longe do tema. Pelo contrário: ao juntar obras menos conhecidas (como a boneca vestida com um manto nepalês que emite estranhos sons quando passa um observador; ou o bronze da mulher saindo da barriga de um lobo; ou mesmo a versão da artista para a Virgem Maria, com uma vela de cera transparente e cheia de imperfeições – não muito diferente dos nossos próprios corpos -, que eu nunca havia cruzado em nenhum museu) o Whitney fez um retrato ainda mais profundo e surpreendente da artista.

Enormes potes de vidro com o nome de todas as secreções do corpo humano. A figura feminina de bronze pendurada na parede em pose de quem está prestes a saltar em fuga. As construções da forma humana apenas com materiais que se aproximam da textura de pele. Os desenhos onde bicho e gente se misturam em quimeras. E, finalmente, aquela mulher, também pregada na parede, nua, com os braços estendidos como numa crucificação, mas a cabeça para baixo, coberta por uma longa cabeleira (feita de crina de cavalo).

Essa foi, para mim, a imagem mais forte – o convite irrecusável de confronto com o próprio corpo. Aquele maldito que nos empurra para as tentações inevitáveis de “O despertar da primavera” antes dos 20… E que nos revolta, seja na busca da perfeição ou na aceitação das suas imperfeições, a cada ano que avançamos.

O Pacífico e o Atlântico

seg, 08/01/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Mais duas experiências perturbadoras em menos de 48 horas… Como assimilar? Da última vez que tentei dividir com você essa experiência, deu certo (confira o blog de 30/11/2006). Aqui vamos nós de novo.

Como eu já adiantava, menos de 48 horas separaram a experiência de assistir ao balé Kiri Kiri, na Ilha da Páscoa e o show do Black Eyed Peas, na praia de Ipanema, no Rio. As duas coisas aconteceram há pouco mais de uma semana, mas como ainda não digeri nada direito, ainda vale o comentário. Aliás, tinha me programado para falar hoje sobre o relançamento do livro “Trinta anos de mim mesmo”, de Millôr Fernandes (que vai ficar para daqui a alguns dias), mas como o impacto das duas performances não quer me abandonar, quem sabe se eu escrever…

Bem, primeiro, Ilha da Páscoa, solta e abandonada no meio do oceano Pacífico – tecnicamente território chileno, mas se você mencionar isso a algum nativo de lá corre o risco de voltar nadando desse que é o lugar mais isolado do mundo (não tenho condições técnicas de confirmar essa informação, mas se uma pesquisa no Google tiver ainda alguma autoridade, pode acreditar nisso). Só para você ter uma idéia, o vôo de Santiago até lá leva cinco horas!

Quem nasceu na ilha, só se refere ao local como Rapa Nui. São todos extremamente orgulhosos de seus ancestrais – e não é só por causa do respeito que as enormes (e quase sempre carrancudas) estátuas de pedra (chamadas de moais) despertam. Ter antepassados nessa ilha significa fazer parte de uma história de coragem e resistência – para não falar dos mistérios… Como eles chegaram lá? Como desenvolveram uma civilização naquele lugar? Por que destruíram a natureza? Como sobreviveram? E, principalmente, como eles carregavam aquelas estátuas de dezenas de toneladas pelas ilha toda?

Cada pessoa que você conversar vai te dar uma versão ligeiramente diferente para cada resposta. Não vale a pena nem desenvolver sobre isso aqui (digite “rapa nui” no teclado e clique em “pesquisar” para enveredar por essa área). O que gostei de notar foi que esse orgulho e esse respeito às tradições é ligeiramente mais genuíno do que o que encontrei em outras ilhas daquela parte do planeta (talvez a mais genuína de todas foi a dança que assisti em Tuvalu – mas isso é para outra hora). Mas o quanto desse orgulho seria só de fachada?

Ao dançarem para um bando de turistas que pagavam cerca de R$ 40 para ver o espetáculo numa sala apertada de um dos melhores hotéis da ilha, minha primeira reação foi duvidar da autenticidade daquela espécie de “arapuca para gringos”. Com dez minutos de performance, porém, o vigor dos bailarinos e bailarinas afastava qualquer suspeita de blefe: eles estavam ali se divertindo – e, claro, representando sua cultura. Eu sei, eu sei… Dá para dizer a mesma coisa dos espetáculos de capoeira, de frevo, de “dança do peru de atalaia”, ou qualquer outra manifestação similar no Brasil. Quem já esbarrou numa apresentação dessas em algum recanto turístico tem todo direito de protestar… Mas acredite: eu estava lá para ver – e como ex-professor de dança, pode me dar um crédito. Não era brincadeira. Com meninos de sunguinha (por baixo da saia de ráfia) e biquínis de casca de coco (sem falar em alguns adereços de plástico…). Mas a dança era para valer.

No entanto… Como você pode reparar na foto, no fundo da sala havia uma árvore de Natal que estava me incomodando – e acho que incomodando os músicos também, que a toda hora tinham de desviar da decoração em meio a seus vigorosos movimentos. Por que o incômodo? Você acha que uma dança como essa combina com uma árvore de Natal? Como um grande ímã, a árvore atraía meu olhar sempre que eu buscava um outro ponto de atenção em meio à festa. O que ela estava fazendo ali? Bem, lembrando aos turistas de passagem que a temporada era a do Natal. Mas o contraste entre um símbolo tão forte da cultura ocidental com a vitalidade daquela dança ancestral era perturbador.

Duas noites depois, estava diante de um outro contraste. Porém, dessa vez, o oceano que servia de fundo era o Atlântico, que lambe cariocas e turistas na praia de Ipanema. Nessa noite porém, ele parecia não querer lamber ninguém: dava a impressão que queria fugir (ele também) da multidão que se concentrou por lá depois da meia-noite do dia 31 de dezembro. O “ele também” foi usado em solidariedade às dezenas de milhares de pessoas que pensaram que poderiam se divertir naquela passagem de ano, mas que desistiram de chegar perto do palco montado nas areias, antes mesmo de a banda tão esperada, o Black Eyed Peas, começar a tocar… O que era para ser uma sensação, virou um grande mico – e eu, que perseverei e cheguei até uma ala onde tinha uma visão razoável do show, ia olhando aquele espetáculo acontecendo e sentindo que, a cada música, ele ficava mais parecido com aquela árvore de Natal da Ilha da Páscoa.

Fãs do Black Eyed Peas, calma. Não tenho absolutamente nada contra a banda – aliás, quem dera eu tivesse tido a chance de entrevistá-la para incluí-la no meu livro! Mas naquele momento, ela não estava se encaixando na celebração. Veterano que sou de passar o réveillon no Rio (sempre tem um plantãozinho para fazer…), não me canso de elogiar a tranqüilidade com que essa noite especial geralmente transcorre. Mesmo com os dias tensos que a cidade viveu no fim do ano, a expectativa era de mais uma noite feliz dedicada a desejar tudo de bom a todos no ano que entrava – uma cerimônia que vou evitar de chamar pelo clichê de “espiritual”, mas que tenho de reconhecer que é, no mínimo, comovente.

Mas dessa vez o clima era outro. Minutos depois da frustrada (pela chuva e pela névoa) queima de fogos em Copacabana, a fissura de assistir aos show em Ipanema tomou conta da galera – e imediatamente percebi que a vibração era uma que eu ainda não havia experimentado. Não exatamente negativa, mas ligeiramente pesada, tensa – sem o espírito que eu estava acostumado a ver nessas ocasiões. O que estava acontecendo? Por que essa noite parecia diferente das outras?

Veja bem… Não quero aqui ser o purista que defende as tradições nem o crítico ranheta que lamenta a mudança dos tempos. Não estou dizendo que a árvore de Natal não deveria estar na mesma sala dos bailarinos rapa nui nem que uma banda estrangeira não deveria vir para animar (estragar?) a festa de milhões de brasileiros (e alguns milhares de estrangeiros) no Rio. Sou sempre pelo processo contínuo (e randômico!) que estamos sempre construindo para resultar em algo tão fascinante chamado cultura. O que quero registrar aqui é, como já disse, o incômodo que essas interferências acabaram causando em mim. É a elas que eu ainda estou tentando me adaptar.

Semana passada, em Nova York, amigos que moram na cidade me perguntavam sobre a viagem da Ilha da Páscoa e do réveillon – e eu caía sempre na armadilha de comentar ambas aventuras com ressalvas (ou pelo menos com menos entusiasmo do que aquele que esses amigos aprenderam a esperar de mim). Será que estou levando mais tempo para aceitar essas mudanças? Ou apenas estou passando por dias intensos demais (semana que vem comento dessa outra viagem) para absorver tudo? Preciso de tempo, admito. Só não quero começar, de uma hora para outra, a achar que o mundo está perdido.

Mas espere! Será que o mundo está perdido? Longe disso. Ou será que… mais ou menos? No livro “Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso” (editora Record – recomendadíssimo!), o autor Jared Diamond explora a idéia de que a antiga sociedade rapa nui, que construía insanamente seus templos de moais, acabou se auto-destruindo. Segundo ele, bastaram alguns séculos para o povo da Ilha da Páscoa acabar com suas florestas, extinguir sua flora e fauna, e levar sua complexa sociedade ao caos e ao canibalismo. A pergunta que ele faz em seguida é interessante: será que vamos pelo mesmo caminho?

Seria dramático demais sugerir que um “ritual” como um show na praia possa ter a importância de um sinalizador do caos. Mas a idéia é tão perversa quanto tentadora…

Chiaroscuro

qui, 04/01/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Nada como começar o ano com música. Um prazer só comparável, na proporção inversa, à irritação de perceber que meu corretor ortográfico se recusa a aceitar o título deste post. Justo agora, quando eu preciso tanto desse vocábulo, chiaroscuro (não uso aspas pois o dicionário registra a existência da palavra no nosso léxico), para descrever a saudável mistura musical oferecida por quatro cantoras excelentes que ouvi nesse passagem de ano: Negra Li, Céu, Nicole Williams e Regina Spektor (ouvi muito ainda outra cantora que não quero revelar agora, para deixar como elemento surpresa para daqui a pouco).

Nos dicionários, chiaroscuro recebe uma definição que tem a ver com a pintura, descrevendo um jogo de luzes na tela, numa dança de contrastes entre superfícies iluminadas e a total escuridão. Como isso se refere à música? A relação não é tão direta assim. Estou emprestando a expressão para designar a saudável mistura de influências entre o som “negro” e “branco” que essas quatro cantoras fazem em discos lançados ainda em 2006 (nem todos no Brasil).

Isso me ocorreu quando ouvia Céu. Com esse nome improvável, tive uma forte resistência em dar atenção à ela, até que vi um vídeo de “Roda”. Que música estranha! Lembrava um pouco de Massive Attack, um pouco de Tricky (e, claro, de Martina Topley-Bird). E tinha um sotaque “soul”. Mas era em português. Curioso o suficiente para me fazer ter vontade de ouvir todo o disco de estréia dessa cantora de pele tão clara e traços tão finos.

Antes de você levantar a questão dos estereótipos, deixo claro aqui que estou falando de música – e de como vícios de anos de segmentação não nos deixam enxergar que certas classificações já não valem mais. Continuando no exemplo de Céu, é inegável que suas músicas têm uma boa batida – de produção bastante sofisticada. Se eu quisesse usar o clichê mais terrível da crítica musical poderia escrever que você pode até esquecer que quem está cantando é uma menina de pele clara. Melhor mesmo é ir além desse comentário e admitir que seu CD, brilhante, não cabe em definições conhecidas.

Assim como o de Negra Li. Já falo dela. Mas, ainda sobre Céu: cordas se misturam com percussão, refrões de samba se intercalam com versos rígidos, e uma montanha de efeitos agradam os modernos (a introdução de “Mais um lamento”, por exemplo, poderia figurar sem destoar das coletâneas européia de lounge – até você descobrir que está, na verdade, ouvindo algo mais para o samba!). Uma boa fórmula – não fosse uma injustiça dizer que esse trabalho é feito de fórmulas.

Negra Li – agora sim – pode ser até mais fácil de ser acusada de usar esse recurso. Na primeira vez que você ouve “Negra livre”, seu último trabalho, a tentação é logo classificar todas as faixas como “soul”. Fácil assim. Mas dê-se o luxo de escutar o disco inteiro mais uma vez e você vai perceber que estamos mais uma vez diante de uma “mistureba” de gêneros. Imagino que parte de seu público vai se sentir traído ao ler aqui que eu não classificaria o som de Negra Li como essencialmente “negro”. Mas também tenho confiança de que uma boa parcela de seus fãs (e quem sabe a própria Li) vai se sentir respeitada por não ser levianamente encaixada num rótulo.

Na faixa “Compaixão”, por exemplo, quando ela canta, ao falar sobre políticos, um verso como “Não vejo em seu rosto o sorriso do bem”, e está tão obviamente falando do cotidiano da Vila Brasilândia (um bairro da periferia de São Paulo), Negra Li não pretende fechar sua questão com uma discussão entre a comunidade negra. Ela está é chamando todos para o assunto – no verso e na música. Da delícia do suíngue de “Você vai estar na minha” à poderosa balada “Tudo era lindo” (que pode lembrar tanto Tim Maia quanto à mais bobinha – e branquela – canção da Jovem Guarda), ela reafirma constantemente que não precisa de rótulos.

Quem faz “música branca” e quem faz “música negra”? Aliás qual a relevância de uma pergunta como essa?

Passemos à área internacional. Regina Spektor foi uma das minhas melhores descobertas do ano passado. Pianista de Nova York, pouco fotogênica, mas com um rosto digno de uma esfinge, ela remete primeiro a uma figura manjada do cenário alternativo americano: Tori Amos. Mas numa segunda ouvida (e sempre é importante uma segunda ouvida!), “Begin to Hope” , seu álbum mais recente (e inédito no Brasil), você começa a pensar em Roberta Flack. Ou até em Minnie Riperton! Não lembra? Um clipe inacreditável “de época” da música “Lovin’You” está disponível – adivinha – no YouTube. Confira!

A faixa de Regina Spektor que me fez lembrar desse clássico é “Fidelity” – uma pequena obra-prima do ano que passou. Mais um exemplo? “On the radio” – mesmo nome da famosa faixa de Donna Summer. Não tem a batida “disco”, claro. Se arrasta para um gospel suave. Mas ninguém me tira da cabeça a idéia de que, se for remixada com uma pegada dançante, pode fazer um estrago nas pistas. E mais: se alguém te dissesse que “Better” é uma faixa esquecida da trilha sonora original do musical “Hair” (um dos primeiros caldeirões de mistura musical), você acreditaria sem problemas. Essa integração de música “negra” e “branca, no caso de Spektor, é sempre puxada mais para a “branca” – é verdade. Assim como Nicole Willis leva seu som bem mais para o soul. Mas qual o problema?

O “mélange” de Nicole é ainda mais sutil. Seu terceiro CD “Keep Reachin’ Up” (também inédito no Brasil), revisita descaradamente os ritmos da época em que a gravadora Motown dominava o pop americano (anos 60 e 70). E se sai muito bem. Por pouco não esbarra no pastiche, é verdade. Mas com uma voz daquelas, ela se livra com facildade da acusação… Ouça “My Four Leaf Clover”, por exemplo. Ou “Invisible Man”. Não chegam a ter a transcendência de “Hey Ya!”, do Outkast, mas se saem muito bem na categoria “o velho de roupa nova”. Será porque essa americana toca com um banda finlandesa?… Essa é que a surpresa: quem está por trás de um dos melhores sons “negros” do ano é uma banda de finlandeses! É… branquinhos! Bem… quer rever essas categorias novamente?

Não tenho dúvidas de que, se você se interessar por alguma dessas cantoras, vai discordar em maior ou menor grau dessas comparações. Afinal, a gente tende a entender, a escutar, algo novo pelo filtro das referências que já temos. Recomendo então o exercício de “limpar” seus ouvidos e partir do zero. Essa é a melhor maneira de aproveitar não só Céu, Negra Li, Regina Spektor e Nicole Willis, como também a quinta cantora que ouvi na temporada e citei no início do texto: Nina Simone.

Foi lançado por aqui uma preciosidade chama “Nina Simone – remixed & reimagined”. E é genial. Algumas das melhores faixas (treze no total) dessa cantora inimitável estão retrabalhadas nessa coletânea, por gente como Coldcut, DJ Logic e François K. – todas sensacionais. A minha favorita é “Ain’t got no – I got life” (sim, da trilha sonora de “Hair”), por Groovefinder. Mas tudo é bom. Inspirado. Tudo bem: o material original é muito bom – obrigado “dona” Nina. Mas que coisa boa poder imaginar que qualquer umas das cantoras citadas hoje aqui pode ser ainda “remixada e reimaginada”, cruzando, ainda mais, fronteiras musicais que a gente nem imagina que possam existir.

Brancas, negras, e além – reinventando o chiaroscuro.



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