“Odd”
A melhor revista que já existiu chamava-se “Spy”. Durou pouco (1986 a 1991, na sua melhor encarnação), como as coisas boas. Americana, criada e escrita quase que inteiramente em Nova York, ela era uma revista – resumindo injustamente seu conteúdo em uma frase só – que satirizava dois universos ainda emergentes na época: o dos yuppies e o das celebridades. Digo emergentes, claro, porque hoje – quem não sabe? – todo mundo é yuppie e celebridade. Mas, mais sobre a “Spy” assim que um casal amigo meu que prometeu me trazer de Natal dos Estados Unidos depositar o recém-lançado livro com as melhores reportagens da revista em minhas mãos.
Citei a “Spy” agora apenas para justificar o título deste post (ou quem sabe, intuitivamente, pensando que os dois artistas de quem vou falar poderiam muito bem ser personagens da revista se ela ainda existisse). A justificativa é a seguinte: em uma de suas colunas mais memoráveis – ou “boxes”, como a gente chama em imprensa – eles faziam uma lista de produtos encontrados em supermercados pelo mundo com nomes que soavam engraçados em inglês. Como “odd”, por exemplo. Para a maioria dos brasileiros consumidores, o título acima remete mais à prateleira de detergentes de um supermercado. Mas “odd” é bem mais que isso.
O primeiro dicionário online que consultei me deu quatro significados (e nenhum deles combina muito com um detergente!): ímpar, desemparelhado, ocasional (ou casual), e estranho (ou bizarro). E é justamente o último deles que eu queria usar para descrever duas experiências recentes em Londres: a exposição “In the darkest hour there may be light”, na Serpentine Gallery (mais estranha que bizarra) e o filme “Borat: cultural learnings of America for make benefit glorious nation of Kazakhstan” (mais bizarro que estranho). Primeiro, a exposição.
Pequena como é, a Serpentine Gallery (situada nos jardins de Kensington, no Hyde Park londrino) é uma das instituições artísticas mais influentes da cena contemporânea. De Gabriel Orozco a Cindy Sherman, de Takashi Murakami a Oscar Niemeyer, de Thomas Demand a Ellsworth Kelly – todas as exposições montadas por lá são provocantes e pertinentes. Essa que inaugurou no sábado retrasado (25 de novembro) para o público não é diferente. “In the darkest hour…” é uma amostra da coleção pessoal do artista britânico contemporâneo mais notório (e atrevido?), Damien Hirst.
Você pode não conhecê-lo, mas se tem um mínimo de interesse em artes plásticas certamente já esbarrou os olhos em sua obra mais famosa: um gigantesco tubarão de verdade conservado num enorme tanque líquido. Lembrou? (se não lembrou, aproveita que você está na internet e dá uma busca rápida no seu nome; satisfação garantida…). Pois a última provocação de Damien é mostrar, não trabalhos seus inéditos, mas sua coleção de obras de outros artistas contemporâneos (e do século 20) que ele nada modestamente – como se vê em suas constantes aparições na imprensa – se orgulha em adquirir avidamente. Um Francis Bacon aqui, um (ou dois) Andy Warhol acolá… Mas a maioria dos trabalhos que ele selecionou para a exposição é de artistas que têm menos de 20 anos de carreira: Sarah Lucas, Tracey Emin, Gavin Turk, Angus Fainhurst, Bansky – a lista é enorme…
O que eles têm em comum: a evocação da morte. A explicação é do próprio Damien que sempre se refere a isso nas entrevistas recentes (exemplo de um pensamento seu: “arte é a coisa mais próxima da imortalidade que conseguimos produzir”). Se existe uma coisa que esse cara gosta mais de falar do que morte é sobre o valor que ele paga pelos seus quadros – cifras nos milhões de libras esterlinas, evidentemente. Morte e dinheiro, repetidos à exaustão, martelados na consciência da legião de fãs do artista (que, pelo menos na Inglaterra, é tratado como um “pop star”). Tanto que é inevitável ver nessa insistência um jogo mental do próprio artista para distrair o observador. Se você aceitar o convite, o risco é todo seu.
Eu, por exemplo, não me arrependi. Nas apertadas salas da Serpentine, fiz questão de me espantar/deliciar com o caixão de néon de Sarah Lucas (“New religion”), a estupenda imagem de um olho (humano? animal?) de John Isaacs (“The incomplete history of unkown discovery”), as caveiras de Steven Gregory, o enorme pássaro preto sobre um pedestal de espelho de Jim Lambie (“The byrds – black parrot”), o quadro antigo com uma interferência moderna de Bansky (“Modification of oil painting no.7″), a foto de um frango depenado de pernas abertas colocado no ventre de uma dolescente por Sarah Lucas (sim, de novo, ela é genial), e, já que é para repetir, um outro trabalho de John Isaacs: a impressionante perna (só a perna) mutilada de um cowboy gordo (os detalhes do fêmur exposto são particularmente repugnantes). Foi agradável/terrível até reencontrar, neste novo contexto, uma daquelas cadeiras elétricas de Andy Warhol.
Impossível não sair um pouco perturbado da visita à coleção de Damien Hirst – mais perturbado até do que saí de outras exposições dedicadas exclusivamente aos seus trabalhos. Quando você acha que vai respirar, encontra, do lado de fora de Serpentine, mais algumas esculturas enigmáticas (como o gorila sem braço, de Angus Fairhurst e o cavalo puxando uma carroça de legumes gigantes de… Sarah Lucas, mais uma vez). De repente, é como se você percebesse que a perversidade de Hisrt (descontada a ironia) não é privilégio só dele… Tem mais de onde ele veio – e eles estão se reproduzindo! O nome da coleção é “murderme” (junto assim mesmo, como se traduzisse “mateme”). E essa pequena expressão te acompanha em cada passo que você der depois dessa visita – mesmo que você esteja andando sobre a relva do Hyde Park…
(nota curiosa: Damien Hirst foi o vencedor de 1995 do Turner Prize, o mais prestigioso de toda a Inglaterra – cujo anúncio é manchete de todos os jornais do dia, inclusive na TV… Você pode imaginar isso por aqui?… Bem, a coincidência curiosa é que o deste ano será anunciado hoje. Escrevo isso antes de saber o resultado, mas vamos torcer para o meu candidato ganhar: Phil Collins – não aquele que você está pensando, mas um homônimo dele. E assim eu posso fazer um post inteiro dedicado ao seu trabalho – que é sensacional)
Como disse lá em cima, a coleção de Damien Hirst era “odd” – mais estranha do que bizarra. E o filme “Borat” que assisti também nessa passagem por Londres não é menos “odd” – ainda que mais bizarro do que estranho.
Explicar exatamente quem é Borat Sagdiyev daria um trabalho enorme (se você quiser, tem até uma biografia – de ficção – dele na wikipedia). Para simplificar vamos dizer apenas que ele é o personagem cômico mais hilário que apareceu recentemente na televisão mundial. Seu criador é o ator inglês Sacha Baron Cohen – que é também o “pai” do bem menos engraçado Ali G. Borat conseguiu um sucesso moderado no circuito “cult” nos últimos cinco anos. Mas foi agora, com o lançamento do filme nos cinemas americanos e europeus que ele estourou.
O título da versão de suas aventuras para o cinema (traduzido aqui no espírito do próprio Borat) já conta parte da piada: “Aprendizados culturais da América para produzir benefícios à gloriosa nação do Cazaquistão”. Ou seja: Borat, um repórter “kazakh” de TV, deixa sua cidadezinha (filmada na Romênia, diga-se), onde ele pratica seus passatempos favoritos – pingue-pongue, “disco dancing” e banho de sol (de onde vem a famosa foto dele com um maiô verde-limão) – e parte para uma série de “choques culturais” na convivência com os americanos. O resultado só não é mais hilário porque, do meio para o fim do filme, uma esquisita sensação de incômodo vai te dominando.
Filmado como um documentário (as pessoas que interagem com o “repórter” não sabem que ele é um comediante e respondem seriamente suas provocações até perderem a paciência), “Borat” é uma grande “pegadona” – quase angustiante. As minhas seqüências favoritas (sem entregar muito, não se preocupe) são as com um grupo de feministas, com a instrutora de etiqueta e no culto evangélico. Tem também, claro, a cena em que ele luta pelado com seu empresário que o acompanha na viagem… Em nenhum filme de terror que assisti vi uma reação tão histérica da platéia: enquanto ele se engalfinha com Azmat (seu um tanto obeso produtor) – e com isso rebatiza uma das posições sexuais mais notórias (qualquer londrino engraçadinho vai te contar que “fazer um 69″ agora se diz: “fazer um Borat”) – o público, especialmente o feminino, urra. Isso mesmo: urra de horror.
As gracinhas de Borat estão vindo com um preço alto: praticamente todas as pessoas que ele cruzou no filme estão processando a produção – inclusive a cidade romena usada como cenário! Todos assinaram um consentimento de uso sim, mas dizem que foi de má fé… Hummm… Será que eles teriam se preocupado tanto com sua imagem assim se “Borat” não estivesse sendo o sucesso de bilheteria que foi? (até a semana passada, já tinha chegado nos US$ 110 milhões só nos Estados Unidos). Bem, para que se perder em perguntas tão “filosóficas” quando é possível apenas rir das situações bizarras expostas no filme?
Vi “Borat” e a coleção de Damien Hirst num espaço de menos de 24 horas – e ainda estou destilando os efeitos de tanta estranheza no meu repertório de coisas favoritas dos últimos doze meses. Eu sei, ainda é um pouco cedo para fazer aqueles batidos balanços de fim de ano (vou evitar até o último recurso, mas não sei se sairei vitorioso do desafio…).
Mas só por essas duas amostras, já posso dizer que 2006 foi um ano muito “odd”. Ímpar?
1 abril, 2010 as 11:29 pm
Eu vi um documentário brasileiro, sobre a visao que os estrangeiros tem sobre o Brasil atraves do cinema, e os diretores se enforcavam com um pouquinho de corda que a diretora dava.
Eles diziam cada absurdo.
Ela nem precisava de esforço pra que os americanos caissem no ridiculo, pelo preconceito, ou ignorancia sobre o Brasil, pais que esdcolheram para retratar em seus filmes. Quero ver o Borat, vou achar duplamente divertido.
14 maio, 2007 as 12:32 pm
Oi Zeca!
Adorei encontrar você falando sobre o Borat aqui. Assisti ao filme em uma disciplina de mestrado para discutirmos algumas questões sobre identidade. Num primeiro momento nos deparamos com uma questão curiosa: pensamos que dentro de uma análise não caberia classificá-lo como sendo uma comédia. É necessário olhar para o Borat sob a perspectiva da relação “eu” e o “outro” (conhecimento/reconhecimento/inclusão/exclusão).
Gostaria sinceramente de ouvir sua opinião a esse respeito.
Grande abraço!
28 fevereiro, 2007 as 10:08 pm
Oi Zeca!
Vi o filme hojhe e devo confessar que esperava mais… tinha lido uma resenha na internet, eu acho, que relatava que o filme pretendia fazer os americanos se confrontar com seus proprios preconceitos: a partir disso, eu imaginava uma crítica à sociedade puritana que eles são, o culto ao excesso (na comida, no desperdício, no consumo – eu já morei lá e sei como é), etc… Mas na verdade achei o filme muito escatólogico! Óbvio que há algumas cenas engraçadas, mas eu achei que o resultado final não leva a lugar nenhum e é mto tosco! No jantar na casa da família, por exemplo, quem não ficaria completamente chocado quando ele volta à mesa? Ou com a perseguição dos dois no hotel (a cena do 69 então!!)? Na verdade achei o resultado meio óbvio, qualquer pessoa que fizesse as coisas que ele fez receberia as mesmas reações!
Bem Odd mesmo!!
Bjos!
13 dezembro, 2006 as 12:42 pm
Nossa!
Que bom que consegui de terminar de ler o post, pois ando sem tempo. Como disse o amigo acima, sempre venho aqui para me atualizar e ao mesmo tempo, procurando um bom entretenimento. E você Zeca, sabe que gosto muito de seu blog, mas quem não deve ficar muito contente é o meu patrão… hssssssss Agora preciso ir, pois já vi que há novos textos…
Um abraço!
Maxsuel
11 dezembro, 2006 as 5:09 pm
Hey Zeca!
ADOREI esse texto! Não só pelo “tema” não mais que “bizarro”, mas pela forma que vc apresento-o!!!
Fui pesquisar sobre o Damien Hirst e o cara é um tanto quanto excêntrico realmente! Mas eu gostei…
Um beijão!!!
Má
11 dezembro, 2006 as 12:34 pm
Nossa! Quanta experiência cultural! Fiquei até curiosa pra ver tudo isso. Suas férias foram bem enriquecedoras. Conheço o Borat em aparições na MTV (VME), mas acho que num dá pra ter ideía do que ele apronta nesse filme. Um grande beijo pra ti!
Carolina Barretto
7 dezembro, 2006 as 6:09 pm
Achei Borat um saco. Já o S. adorou. What´s wrong with you guys?
6 dezembro, 2006 as 3:07 pm
Com certeza, o dicionário online que você consultou foi o Michaelis… Consultando o mesmo Michaelis para a palavra Bizarro, sendo que agora Português – Português, estranhamente, aparecem os significados: Bem apessoado, Elegante, generoso. Um tanto quanto bizarros ou esquisitos esses significados, não? Dependo do ponto de vista, podem até se encaixar muito bem no contexto do seu texto.
Já terminei a faculdade de engenharia tem um tempo, mas toda segunda e quinta frequento as aulas de Cultura e Entretenimento do Tio Zeca (sacanagem né?!). Adoro os textos longos, quem não deve gostar muito é meu chefe…
Abraços
6 dezembro, 2006 as 9:33 am
Olá, admiro demasiadamente seu trabalho. Bela viagem ham . abraços, tudo de bom, e uma critica construtiva: seu texto é enorme, um internauta pouco interessado certamente desistiria no meio do post. Abraço.
5 dezembro, 2006 as 6:39 pm
Ei carííííssimo!
Puxa, essas suas férias foram riquíssimas em experiências culturais e sensoriais, hem? Que legal! Pelo visto voltou cheio de gaz e cheio de histórias p gente!
Bom te “ler” de novo!
Beijos mineiríssimos!
Wanessa
5 dezembro, 2006 as 6:36 pm
oi zeca,
Ontem estive na sua conversa com o publico na saraiva de campinas no shopping iguatemi. Não resistindo auma tal coincidencia estou mandando aqui o endereço do orkut de um amigo meu ,de belém, que ,realmente , é a sua cara.HAahahaha parece brincadeira mas ontem quando eu te vi não acreditava na semelhança. Caso tu queiras ver o perfil deste meu colega o endereço segue abaixo,o nome dele é Rafael Massih. https://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=8560402679519498006
o meu endereço de orkut caso precise é:
https://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=12669145833378901003
valeu e desculpa qualquer coisa caso não tenhas gostado
abraço
5 dezembro, 2006 as 5:52 pm
Adorei!!!!! Só acho que deve ser um poney carregando legumes gigantes, e não um cavalo como foi dito… Mas achei maravilhoso, e é um prazer ler seu textos.
5 dezembro, 2006 as 1:44 pm
A cena da luta e’ bizarra! Big Yewwww!!!
beijos
5 dezembro, 2006 as 10:46 am
Descobri o blog faz pouco tempo. Para mim é uma experiência transformadora ler seus textos. Percebi que estou totalmente por fora da cena cultural contemporânea. Preciso melhorar isso!
abs.
5 dezembro, 2006 as 9:39 am
Dei pesquisada em alguns trabalhos de Damien Hirst e vi que realmente o cara é totalmente fora de contexto…muito diferente…parabens pelo texto
Estou adorando sabermais sobre a cultura londrina
abs
andre
5 dezembro, 2006 as 8:19 am
Ei Zeca.
Sabe do que você me fez lembrar com estas coisas bem estranhas e bizarras? – De um livro maluco, com uma estória mais maluca ainda. Vi no STARTE em 2000, no quadro “Guarde Este Nome”. O título era House of Leaves. Lembro até hoje de você virando o tal livrão de cabeça para baixo. Muito louco…
Mas não me pergunte como eu me lembro disso e tantas coisas mais.Você vai achar que sou mais maluca que o tal livro!
E o CD do filme Magnólia(não vi o filme),mas gostei das músicas da Aimee Mann,até comprei esse CD! Bem legal!
Beijos
Dinah.
5 dezembro, 2006 as 12:18 am
parabéns zeca. na modorrenta cobertura semanal de cultura que as semanais brasileiras nos apresentam, eis que surge vc. adorei o seu blog que traz notícia de verdade. espero ansiosa por cada post. bjs
4 dezembro, 2006 as 8:51 pm
OI,TUDO BEM?
li, reli, li de novo,é impossivel ficar indiferente a um texto tão rico em cultura,não importa se é estranha ou bizarra,da forma que você escreve ela fica “odd”
enquanto lia seu texto tinha a sensação de estar conversando com você no sofa aqui de casa.
BJOS
PS:axou meu livro?
4 dezembro, 2006 as 8:19 pm
oi. quantos dias sem escrever! vc escreve toda semana aqui, mas estava de férias, é isso? Mas voce nao estava lançcando seu livro de música pop?
deve ser mesmo uma cena de horror desse cara brigando pelado. que foto ótima.
Beijo
4 dezembro, 2006 as 7:37 pm
Vc até pode não fazer um balanço “oficial” do ano, mas doido por listas como vc é, já deve ter feito várias.
Absolutamente “odd” seu texto de hoje.
Bjs.