Lente da Verdade

seg, 25/02/13
por Bruno Medina |

Diferente do que nos fizeram acreditar por décadas, tripular carros voadores e possuir robôs para lidar com os afazeres domésticos configuram uma realidade ainda bastante distante em 2013. Por aí tira-se o tamanho da frustração de quem, como eu, quando criança assistia aos Jetsons na TV toda vez que se vê preso num engarrafamento, quando precisa pendurar roupas no varal ou arrumar as compras dentro da geladeira na volta do supermercado. A despeito dos recentes avanços tecnológicos, num contexto em que ainda se admite o papel higiênico e o cartório para os fins que lhes cabem, é possível afirmar, sem hesitação, que o futuro chegou atrasado.

Mas se para toda regra existe uma exceção, vez ou outra há também momentos em que o presente tangencia o enredo dos filmes de ficção científica e nos confronta com algo realmente novo, capaz de transformar não só a forma como desempenhamos funções cotidianas, mas também a maneira como nos relacionamos com as pessoas a nossa volta. Esse parece ser o caso do Google Glass. Para quem não ouviu falar da engenhoca, trata-se de uma armação de óculos desenvolvida pela Google para exibir, numa lente de acrílico convencional, informações e dados obtidos através da interação com a internet, possibilitando, inclusive, a realização de tarefas específicas a partir do comando de voz. Dentre as que merecem ser citadas, fazer pesquisas, tirar fotos, gravar vídeos e projetar mapas tendo como perspectiva o próprio campo de visão, permitindo compartilhar tudo isso em tempo real com os amigos, sem tocar num botão sequer.

Na semana passada, caiu na rede um vídeo que demonstra o funcionamento do produto, supostamente em fase final de testes antes de ser comercializado, e que já deve estar provocando urticárias nos aficionados por tecnologia, estes que mal podem esperar para tê-lo apoiado sobre seus narizes. Assistindo ao filme – diga-se, um daqueles belíssimos e emocionantes filmes recheados de cenas emblemáticas que as grandes corporações fazem com tanta competência quando desejam nos vender algo – fiquei entusiasmado, claro, com o que o Glass é capaz de fazer, até porque, em tese, também sou forte candidato as tais urticárias.

Passados alguns instantes, no entanto, a sensação positiva cedeu lugar a uma certa desconfiança, sobretudo devido a impressão de que estes óculos representam um passo irreversível no sentido de termos nossa visão de mundo verdadeiramente intermediada pela tecnologia. Ora, Bruno, mas não é justo isso que eles se pretendem a fazer? Sim, mas a questão é: será que isso é bom? Explico. Ao lançar o Glass, a ambição dos engenheiros da Google não é revolucionar o que pode ser feito, mas sim a forma de fazê-lo. Notem que quase todas as funcionalidades oferecidas já podem há algum tempo ser encontradas em smartphones, portanto o apelo principal do produto está em substituir um gadget que costuma ser carregado no bolso por um que pode ser ajustado ao rosto.

A diferença essencial que vem a reboque está no novo paradigma que é estabelecido, este que nos coloca numa condição mais passiva em relação a tecnologia, visto que sua interação com o que está ao redor passa a ser menos eletiva (não é preciso puxar nada do bolso ou apertar qualquer botão) e mais pervasiva. Quem duvida, por exemplo, que em breve o uso dos tais óculos envolverá aceitar a visualização de anúncios, disparados pela simples observação de um objeto ou de uma loja na rua? Mais do que isso, caso o Glass se torne de fato popular, penso que daqui há 5 ou 10 anos a narrativa subjetiva e a impressão pessoal podem vir a perder importância em detrimento da facilidade com que se obtém o registro “oficial” dos fatos. Imagine uma roda de crianças acessando seus óculos para mostrar, umas as outras, os filmes de suas férias, sem poder mentir a respeito do tamanho do hambúrguer que comeram ou da onda que pegaram; ou então o chefe, que solicita assistir na íntegra o filme da reunião, para checar se a negociação se deu da forma combinada, ou pior, a esposa ciumenta que exige uma transmissão ao vivo de tudo o que o marido enxerga e ouve na festa de fim de ano da empresa.

Devaneios a parte, não se pode negar que o Google Glass tem potencial para tornar-se um marco tecnológico comparável ao lançamento do iPhone, em especial por viabilizar que algumas tarefas sejam realizadas de forma bem mais prática. Neste momento em que há mais dúvidas do que certezas quanto a forma com que virá a ser utilizado, um conhecido ditado traz luz à discussão: a diferença entre o remédio e o veneno está na dose…

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8 comentários sobre “Lente da Verdade”

  1. Evaristo disse:

    Bruno, o Google Glass me lembrou um dispositivo parecido que a filha do Marty McFly usa em De Volta para o Futuro II, naquela sequência da pizza em família.

  2. Emerson disse:

    Caramba e este ano os membros da Academia já votaram para os filmes do Oscar utilizando a internet…. de volta para o futuro…

    Oscar 2013:
    https://ocinematografo.blogspot.com.br/

  3. Gabriel Neves disse:

    Espero que isso não pegue…. é um daqueles casos de avanço/retrocesso

  4. Ledilene Trindade disse:

    Como profissional da área de tecnologia, eu deveria ser uma dessas pessoas com sintomas de urticaria em relação ao novo produto, mas muito pelo contrário, sou uma dessas pessoas que acreditam que tal avanço tecnológico acrescenta ao sedentarismo e comodismo humano. É fato que precisamos progredir tecnologicamente, mas não a ponto de nos tornamos robôs.. Preocupante, não?

  5. Marcia disse:

    Esse Google Glass promete ein!! Eu vi o vídeo no youtube e fiquei surpresa com tamanha tecnologia e simplicidade ao mesmo tempo, tem tudo pra dar certo!

  6. Marcos disse:

    O problema entre veneno e remédio é que podem vir em vidrinhos ´glasses´ parecidos. E a posologia é difícil mesmo de controlar. A carência humana não tem fim. O celular no bolso – ainda que ainda ato ativo – salva de qualquer vazio e rompe barreiras de tempo e espaço. Somos, em maioria, caras estranhos que não sabemos aonde ir se alguém não aponta a direção. Direção voltada ao totalitarismo do trânsito das redes, pode caber um “se beber, não olhe”, “se olhar, não coma” e por aí vai.
    Nos deram espelhos e vimos um mundo doente muito rosado e bem disposto!

  7. Rafael disse:

    6
    Marcos:
    27 abril, 2013 as 8:16 pm
    “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente muito rosado e bem disposto!”

    Exatamente oq nos deram há anos atrás, com espelhos reais num mundo onde se refletia imagens apenas em riachos, quando trouxeram grande fartura de tecidos e entregaram aos que estavam confortavelmente nús.
    O “avanço” virá sempre, à cavalo ou de lesma, sempre chegará mudando bruscamente nosso cotidiano, por mais que sonhamos com oq pode-se alcançar com esse ‘glass’, não estamos prontos para tudo oq pode desencadear, mas passaremos sem grandes ferimentos, tenho certeza.

    Bora esperar por mais essa, com certeza virá junto de alguns milhões de apetrechos.
    Geração Bugiganga!

  8. Mateus disse:

    Bruno, não tem como mudar gerações porque elas assimilam a época em que vivem. Nos anos 90, quando só existia Netscape e aquelas páginas sem graça li um artigo que ali era só a pedra lascada, que a internet provocaria uma profunda mudança de comportamento na sociedade. Relações virtuais ganhando mais importancia que relacoes reais, e as relacoes reais ficando ainda mais superficiais. Bill Gates disse uma vez que no futuro a intimidade vai ser online e na vida real serão apenas formalidades. Ele descreveu em seu livro uma roupa sensitiva que simularia sexo de forma tão real que as pessoas iriam preferir fazer sexo com elas do que com pessoas reais. A realidade seria cada vez mais virtualizada.

    Agora imagine como era nos anos 80? a gente saia de casa pra tudo, até pra ir nos correios, banco, fazer trabalhos escolares em bibliotecas e escrever a mão, comprar vinil e ter carros que duravam e precisavam de pouca manutenção (Fusca, Chevette).

    Hoje vivemos no mundo do imediatismo virtual onde ninguem sabe aonde vamos chegar.



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