Deslivor!

qui, 25/02/10
por Bruno Medina |

caranguejoAvenida Rio Branco, centro do Rio. Temperatura beirando os 40 graus, sensação térmica beirando a porta do inferno. Vestindo calça social e camisa pra dentro, me esgueirava entre os passantes sedentos por marquises quando minha trajetória foi interrompida por um golpe certeiro. Blau. Uma tapa (no feminino mesmo, para enfatizar) no meio da cara, uma bolacha bem dada, de costas de mão, proferida por um camelo.

Calma, a agressão não se deveu ao possível bate boca entre cliente insatisfeito e vendedor desonesto, nem por conta de alguma picuinha que tivéssemos tido no passado e muito menos por ele ter me confundido com um desafeto seu. Pois fui me meter justo na fresta que o cidadão usou para ilustrar, com gestos, a um colega o que falava. Que azar. A necessidade de ratificar seu ponto de vista – presumidamente exagerado – fez o camelo abrir os braços num ângulo tal que, se estivéssemos num campo de futebol, a atitude seria considerada jogada desleal.

Caso houvesse um juiz de calçada, não duvidem, o mínimo que ele pegaria era um cartão amarelo. Claro que doeu, tanto quanto aquela bolada que, quando atinge a ponta do nariz, faz a gente sentir “cheiro de dor”, que é uma espécie de manifestação olfativa acompanhada de dormência, muito comum na infância de qualquer menino sadio.

O sujeito, coitado, até tentou se redimir, evocando um pedido de desculpas submerso pelas buzinas, o falatório e as ofertas gritadas por seus concorrentes. Nestas horas, reza a cartilha, o melhor é seguir adiante para se manter fiel à civilidade. Não pude, no entanto, deixar de me lembrar da ocasião em que fui atropelado por uma bicicleta de açougue que vinha pela contramão. Apesar das escoriações diversas, a situação por si só era tão patética que preferi simplesmente fingir que nada havia acontecido.

Refeito do baque, com a armação dos óculos meio desalinhada, ainda tomei uns 3 solavancos na multidão, o que me fez pensar que das duas uma; ou eu ando muito distraído ou os outros precisam, com urgência, aprumar o senso de direção. Sinceramente, tem muita gente por aí que deveria ter a condição de andar cassada.

Como acontece no trânsito, depois de uma barbeiragem braba dessas, tal qual agredir sem querer um transeunte, o indivíduo se submeteria a um treinamento específico, a fim de evitar novas ocorrências. Pisou no pé dos outros? 2 pontos na carteira. Encontrão? Perde 4. Tapa na cara acidental? Suspensão sumária.

Tendo em vista que todos os cenários futuristas prevêem um incremento significativo da densidade demográfica nas grandes metrópoles, a medida sócioeducativa, embora radical, torna-se indispensável para evitar que as calçadas se transformem em baldes de caranguejos vivos. Não me espantaria se, nas próximas décadas, tamanha a necessidade de negociar espaço, surgisse uma expressão que conjugasse os usos de “desculpa”, “com licença” e “por favor”, para simplificar a vida de quem, porventura, não puder contar com uma unidade de teletransporte para ir ao trabalho.

“Deslivor!”, diriam os apressados, evitando assim perder pontos em suas carteiras de habilitação para andar. Quanto ao camelo, se ainda estivesse vivo, seria obrigado por decreto a caminhar algemado.

Dormindo com o inimigo

dom, 21/02/10
por Bruno Medina |

DSC04408Inspirado pelo maldoso ditado “o ano no Brasil só começa depois do carnaval”, resolvi também postergar para além da quarta-feira de cinzas uma decisão que há muito se anunciava. Sendo sincero, já se vão aí uns dois ou três meses que a coluna chiava e eu desconversava. “É o levanta e abaixa de correr atrás de filho pequeno”, dizia, fazendo careta e apoiando nas cadeiras, embora, aqui dentro, eu soubesse que o problema era bem outro.

A iniciativa de trocar cama e colchão numa só tacada se fez soberana quando minha mulher propôs tirar no par ou ímpar quem iria usufruir do benefício de dormir no futom de solteiro do quarto ao lado. Temendo o raiar de uma crise conjugal, dei o braço (e o bolso) a torcer. Comprar colchões decididamente não é uma coisa que se faz todo dia; tendo em vista o tempo médio de duração do produto – em torno de dez anos – o sujeito com sorte na vida terá umas oito ou nove chances de aprender o que seu corpo de fato exige.

Sim, porque, da última vez em que estive numa loja com esta finalidade, acho que errei. Corrijam-me os especialistas se estiver enganado, mas me surpreendeu perceber que ultimamente, ao longo da noite, eu ia afundando. Esse negócio de densidade não é brincadeira, um número chutado errado no passado pode significar anos de sofrimento. Portanto, antes mesmo de dar boa tarde, fui logo avisando ao vendedor que queria o colchão mais resistente que houvesse no mostruário.

Ele me levou direto a experimentar o que mais se parecia com um toco de madeira forrado de pano. Atenderia perfeitamente ao meu gosto, isso se minha mulher não tivesse alegado que seria preferível dormir na relva. Claro que não levamos. Conforto, depois de casado, é negociável. Pulamos então, os dois, para um modelo de molas, e de repente eu estava deitado em cima de uma maria-mole flutuando numa piscina de marshmallow.

Impossível não associar a experiência ao trauma causado pelo estofador contratado para forrar o sofá, que decidiu, dá cabeça dele, enxertar um pouco mais de espuma no assento. Resultado? Desde então, todas as manhãs, leio o jornal sentado no chão. Posto isso, como escolher em tão poucos minutos a plataforma que servirá aos meus sonhos nos próximos anos? Digo mais: como reproduzir, exposto à curiosidade dos frequentadores de um shopping, o ritual absolutamente particular que precede o sono?

Acabamos optando por um modelo democrático, que, não por acaso, era o segundo mais caro da loja. Até pensei em reconsiderar a compra e tentar me entender com o que já tenho em casa, mas daí me lembrei daquela história, de que, após não sei quanto tempo, dez por cento do peso do colchão corresponde aos ácaros que moram nele. Pode até ser papo de vendedor, mas funciona. Fechei na hora.

Agora estou aqui, convencendo minha lombar de que os cinco dias úteis pedidos para a entrega são um prazo razoável. Só espero não descobrir no meio da madrugada que teria valido a pena testar um pouco mais. Mas, sobre isso, a gente conversa de novo daqui a uns dez anos.

Aprendendo com Chuck Norris

dom, 14/02/10
por Bruno Medina |

churrascoO Carnaval, como se sabe, é mais ou menos como o que se diz de Chuck Norris; não é você que procura por ele, e sim ele que encontra você. Portanto se, como eu, você nunca foi muito chegado em  folia momesca, já deve ter percebido que nem adianta correr porque ele te pega, na esquina do mato, no cume do Everest ou mesmo na Antártida.

A melhor estratégia, portanto, não é nadar contra a corrente, mas se deixar levar por ela. Uma saída honrosa para quem prefere descansar a meter o pé na jaca, mas ainda assim quer evitar a amolação daqueles amigos obsessivos por se esbaldar durante os 4 dias, pode ser, por exemplo, fazer um churrasco:

- vai no bloco/desfile/clube?

- não, vou fazer um churrasco.

- legal.

Eis que então a minha meta para o feriadão passou a ser comprar uma churrasqueira portátil e fazer churrascos, dia sim outro também, até o fim do Carnaval. Não sei nem se é preciso dizer que, até ontem, minha experiênica com carnes grelhadas se restringia a… comê-las. “Mas que mistério pode haver nisso?”, pensei, a caminho da loja de ferragens. Afinal, de tanto observar, não era possível que eu não soubesse o mínimo necessário para propiciar a 5 famintos uma tarde descontraída comendo bem. Ledo engano.

A primeira lição que aprendi como aprendiz de churrasqueiro foi a importância fundamental de se manter a brasa ardendo. Socialmente, do sujeito que assume o espeto (por favor, sem trocadilhos), espera-se maestria quanto ao princípio, e este, claro, não era meu caso. A bem da verdade, foi um pouco intrigante perceber como a honra de um legítimo macho alfa ainda hoje está vinculada à sua capacidade de acender uma fogueira, assim como no tempo das cavernas.

Taca álcool, joga fósforo, ateia fogo num estopim e mete lá no meio, ajeita o carvão e abana. “

- pegou?”

- não.

- então faz o seguinte…

E justo nessa hora quem não tem um jeito irritantemente genial de resolver o problema? Carne já temperada na bandeja, arroz cheirando na panela, molho vinagrete na cumbuca e nada de fogo. Parecia até pirraça. A humilhação só não foi maior porque, num dado momento, tinha tanta gente tentando fazer a brasa pegar que o churrasco em si já estava relegado ao segundo plano.

Quando o fogo subiu era chegada a hora da verdade. Lembrei de meu amigo Paulo Oliveira, do Larica Total, e de seu recorrente conselho: não pode ter medo da comida. Dali para frente era eu, a brasa e as carnes. O resultado? Sinceramente, tanto faz, até porque o que importa nesse caso não é o que você faz do churrasco, mas o que o churrasco faz de você.

Sobe?

sex, 05/02/10
por Bruno Medina |

upFoi em 1853 que o norte-americano Elisha Otis, pendurado numa plataforma de madeira dotada de uma manivela, gritou “totalmente seguro!”, para uma plateia embasbacada. Após o corte proposital dos cabos de sustentação da sua máquina de subir e descer os presentes testemunharam o funcionamento de um revolucionário sistema, que foi providencial para impedir a caixa (e seu ocupante) de se espatifassem no chão. Pronto, estava criado o elevador.

Ao conceber a peça central da engrenagem que possibilitou a verticalização das cidades, Otis não tinha como antecipar que sua invenção ganharia o mundo e evoluiria ao ponto de se transformar num microambiente, dotado de regras específicas e universais de conduta. É esse o código que determina, por exemplo, que, diferente de quando se chega numa festa, no elevador não é preciso se apresentar aos desconhecidos. Que também não é aconselhável rir sem que esteja explícito o motivo da graça, falar alto, dizer palavrões, e, acima de tudo, é claro, não confundir a cabine com o banheiro.

Mas, visto que o artefato foi pensado para cumprir trajetos de curta duração com relativa eficiência, é compreensível que nem mesmo seus usuários mais experientes estejam preparados para responder uma simples pergunta: o que fazer quando o elevador para?

Pois foi essa a questão que pairou ontem por cerca de 20 minutos num prédio comercial do centro do Rio, enquanto eu e mais 5 pessoas nos encontrávamos retidos no interior de um elevador. Longe do calor dos acontecimentos, agora consigo enxergar semelhanças entre a situação e um micro reality show, com o agravante de que, nesse caso pelo menos, você só sabe que vai participar quando já está participando.

Durante 40 segundos os envolvidos esperaram que a falha fosse resolvida, para que pudéssemos continuar mudos a viagem até o andar desejado, o que, obviamente, não aconteceu. As primeiras manifestações vieram de uma moça gordinha que carregava uma pasta. “Que saco!” disse ela, soltando uma bufadinha em seguida.

Quebrado o silêncio, ficou subentendido que realmente estávamos presos. Reparem que é nesse momento que o código de conduta costuma ser jogado para o alto, passando a vigorar então a lei do caos. Também é a deixa para perceber quem é o idiota da vez, um posto que nunca fica sem representação a altura.

“Será que a gente vai pro poço? Esse elevador é meio velho já”, disse um rapaz engravatado, se empenhando ao máximo em parecer corajoso. Os outros 3 passageiros se dividiram entre acolher e rechaçar a inoportuna piada. Mas o que pode ser pior do que ficar preso no elevador com um idiota? Essa é fácil: ficar preso no elevador com um idiota e uma moça claustrofóbica.

Eis que a gordinha releva sua condição, já tremendo e suando muito. Do lado de fora da porta uma voz nos recomendava manter a calma, garantido que o conserto já estava sendo providenciado. “Ai meu Deus, será que vai demorar muito? Será que vai ter ar suficiente pra gente aqui dentro?”, perguntou a gordinha, já não se importando muito em esconder o pânico que sentia.

“Eles dizem que não demora, mas é uma hora, no mínimo”, disse o idiota, afrouxando o nó da gravata. Sim, estava muito quente, o ar parecia de fato pesado e os outros passageiros começavam, aos poucos, a perder a compostura. “A cabine está desnivelada, então talvez tenhamos que puxar vocês pela fenda, ok?”, disse a voz do lado de fora. “Meu filho, eu preciso sair primeiro do que todo mundo, porque sou hipertensa”, disse a senhora que até então permanecia calada. A gordinha arregalou os olhos, como se pressentisse ameaçada a prioridade que pensava ter.

“Mas e se o elevador andar na hora que alguém estiver passando pela fenda?” perguntou um adolescente de cabelo em pé. A hipertensa colocou a mão no coração, o idiota riu, a gordinha suspirou, e eu comecei a temer o desfecho do incidente. Assim como eu, outros passageiros devem ter pensado se seria possível empurrá-la pela fenda, ainda por cima em pânico. Foi então que, de súbito, o elevador se moveu lentamente e abriu a porta, permitindo que todos desembarcassem sem olhar para trás, como se aquilo tudo nunca houvesse acontecido.

A gordinha se recompôs, o idiota apertou o nó da gravata, a hipertensa permaneceu no elevador para prosseguir sua viagem, assim como o fez o adolescente, que enviava um SMS. Nenhum traço de cumplicidade. E eu ali pensando, que se não fosse a invenção de Otis, ninguém teria uma boa história para contar em casa na hora do jantar.

O cliente tem sempre razão

seg, 01/02/10
por Bruno Medina |

merceariaA capacidade de comunicar-se de maneira precisa e de organizar-se em sociedades complexas são, sem dúvida, duas das principais características responsáveis por distinguir nossa espécie de seus ancestrais. Foi graças ao pensamento que se interpõe entre estímulo e reação – a dita racionalidade – que atingimos o nível de desenvolvimento necessário para galgar o topo da cadeia evolutiva. Pelo menos é o que garantiam meus livros na escola…

Pois foi, também, em algum momento entre o soar de grunhidos dos códigos primitivos de linguagem e a fundação das primeiras cadeias de supermercados que se estabeleceu uma instituição, capaz de sintetizar com maestria esse que é dos mais sólidos laços passíveis de se darem entre seres humanos: a sagrada relação entre prestadores de serviço e seus fregueses.

Diria até que no mundo de hoje, em que a correria da vida cotidiana se encarrega de suprimir a intimidade e a sutileza entre pessoas, contatos dessa natureza chegam a desempenhar funções que extrapolam o âmbito meramente profissional. Na prática, as regras do jogo são bastante semelhantes as de um namoro; o tratamento carinhoso e as regalias estão, quase sempre, vinculados à fidelidade.

Parece piada, mas não é. A questão é tão séria que, caso fosse realizada uma sondagem, aposto, não seria difícil encontrar indivíduos mais dispostos a trair seus parceiros de décadas do que o rapaz da barraca de frutas da feira. Eu mesmo, semana passada, pude experimentar na pele a temível sensação de profanar o elo de confiança com um vendedor de balas que faz ponto na esquina da minha rua.

No princípio, nossas conversas sobre amenidades não raro me rendiam cumprimentos sorridentes, troco para notas grandes (sem reclamação), compras no fiado e até balinhas de presente. A gentileza logo se converteu em exclusividade e, assim que descobriu minha marca de chocolates preferida, passou a reservá-los com antecedência, para que nunca houvesse o risco de me frustrar. Bons tempos aqueles.

Bastou que eu, numa dessas tardes de gula repentina e incontrolável, um momento de fraqueza, admito, resolvesse ceder à tentação de torrar 10 reais na carrocinha do concorrente, duas quadras antes da dele. Quando dei por mim e percebi o enorme erro que havia cometido, tentei corrigir, mudando de lado na calçada e escondendo o saquinho pardo dentro da blusa. Tarde demais, eu já havia sido flagrado.

A partir desse dia tudo mudou. Nada de sorrisos, fiado ou chocolate reservado. Fui rebaixado em sua hierarquia para o posto de cliente ordinário, sem direito a qualquer privilégio. Minha meta é reconquistar a confiança aos poucos, sem alarde, para ele também não se sentir senhor da situação. Agora vê se pode: além da obrigação de ser bom pai, bom marido, bom filho e bom cidadão, ainda preciso cativar os brios do vendedor de balas?

Sinceramente, acho que vou mandar o sujeito às favas e instalar na sala de casa uma daquelas vending machines, que funcionam à base de moedinhas. Para elas, ao menos, o cliente continua tendo sempre razão.



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