Meio cheio ou meio vazio?
Passei a última semana a pensar, cá com meus botões, se valia ou não a pena discorrer sobre “Leite Derramado”, o romance recém-lançado por Chico Buarque. Claro que a dúvida não se aplica à relevância do livro ou à qualidade da história, afinal nem é preciso mencionar que o genial compositor, cantor e autor bissexto – dentre algumas outras atribuições que me faltam agora – é daqueles artistas que já garantiram para si o status de estar acima do bem e do mal, se é que isto é de fato possível.
Mesmo que não seja, cabe dizer que “Leite Derramado” é um livro cuja leitura se faz imprescindível. Embora a narrativa se concentre nos devaneios de um centenário moribundo e saudosista a beira da morte, Chico consegue conduzi-la de maneira interessante, com o brilhantismo usual e a precisão de quem passou a vida em busca das palavras certas. Estando o protagonista da história entrevado numa cama de hospital, toda a ação provém de pensamentos e memórias, vivenciados ou inventados, nunca se sabe ao certo.
É o próprio Eulálio d’Assumpção quem se encarrega de passar a limpo sua biografia, sem interlocutores ou segundas interpretações, apenas a sua verdade. E é aí que o talento de Chico se faz valer, a partir da importância que ganham os detalhes, sem os quais não conseguiríamos imergir no universo do personagem. As páginas vão passando e a sensação é a de que estamos atados ao autor por um escafandro; aos poucos o tubo que conecta à superfície é liberado e, sem perceber, somos conduzidos ao fundo do poço.
Lá embaixo, no escuro, o que se sabe vem dos relatos imprecisos e delirantes de um ancião arrogante e rabujento. Suas palavras nem sempre inspiram confiança, sendo difícil discernir sobre os motivos que o levaram a desenvolver uma obsessão doentia pela mulher Matilde, drama algo semelhante ao de Bentinho e Capitu. Também não há como ter certezas quanto à sua contribuição para a decadência que afligiu a nobre linhagem a qual pertenceu, fato que influencia enormemente o enredo.
Entre belas passagens, dignas dos mais notáveis versos de suas músicas, Chico dispõe-se também a esboçar as complexidades e ambuiguidades presentes na constituição da sociedade brasileira do século XX. Acontecimentos históricos do período permeiam a saga de declínio do personagem, ao passo em que se consolida a transição do Brasil colonial, escravocrata e controlado pelos barões do café, no país do futuro, urbano e democrático.
Posto isto, voltemos a hesitação do primeiro parágrafo: por mais que pareça usual comentar este ou qualquer outro livro, sempre fica a impressão de que o exercício consiste num baita desserviço. Neste caso em específico há tanto para ser percebido que nem as mais completas resenhas deveriam desencorajar interpretações individuais. Portanto, já que o leite foi derramado mesmo…
A história de Chico Buarque é, sobretudo, um ensaio dedicado à solidão. Ao desalento sentido por quem sabe que desperdiçou todas as chances que teve de amar e ser amado. É sobre a certeza de que o tempo nunca volta atrás. Uma vez derramado o leite, ainda resta o copo. Meio cheio ou meio vazio?