Sócio-conectado

sex, 31/08/07
por Bruno Medina |

Ontem participei de dois eventos inusitados e bastante distintos, que não costumam fazer parte do cotidiano, pelo menos não do meu. O primeiro foi uma webconferência -aliás, devo registrar que nunca havia estado em uma- conseqüente da minha participação num programa televisivo, e o segundo, foi um coquetel.

A conferência através das câmeras é um quadro fixo do programa Urbano. Nele, quatro pessoas discutem temas que variam a cada semana; o debate serve como pauta para investigações posteriores, e é claro que eu não vou adiantar o assunto para não perder a graça. O resultado vai ao ar às onze e quinze da noite do próximo dia 13, pelo Multishow. Recordando minha participação, agora percebo ter negligenciado um tanto o tema em questão, e muito disso se deve ao fascínio que a novidade de conversar virtualmente exerceu sobre mim.

A tela foi dividida em quatro campos e eu me senti um dos participantes do jogo-da-velha do Faustão (quem lembra?); dentro de um quadradinho, tendo pessoas no andar de cima. Num determinado momento não resisti, levantei da cadeira e fiz aquela brincadeira idiota de tio, fingindo estar descendo numa escada-rolante. Não sei se o pessoal curtiu a piada, no entanto é preciso considerar que se tratava de minha primeira webconferência…

Certa vez ouvi dizer que uma boa metáfora para o uso que fazemos da internet atualmente -frente às possibilidades reservadas para o futuro- é alguém tentando sugar geléia de mocotó por um canudo, e foi essa a exata sensação que tive durante a conversa. A banda larga brasileira não é larga o suficiente para comportar essa façanha. É preciso ser paciente para aturar os congelamentos de imagem e os constantes atrasos de sincronia no papo.

Quando eu falava, as pessoas só ouviam uns quinze segundos depois e, durante esse hiato, eu pensava que ninguém tinha me ouvido. Daí eu perguntava “alguém me ouviu?” para perceber, no instante seguinte, que sim. Enquanto comentavam minha resposta, eles ouviam a mim perguntando “alguém me ouviu?” e interrompiam o discurso para responder. A confusão só ia aumentando e foi preciso se acostumar ao efeito “sanduíche-iche”. Os produtores do programa me garantiram que no ar funciona bem, o jeito é mesmo esperar duas semanas para conferir.

Um tanto frustrado com minha primeira experiência sócio-virtual, segui para o coquetel convencido de que nada substituirá a presença física nas relações humanas. Apenas chegando ao local lembrei que eventos dessa natureza são famosos por duas razões; escassez de alimento e número enorme de pessoas com as quais você não faz nenhuma questão de encontrar. Acrescento ainda um conselho: não vá com sapato desconfortáveis.

Depois de uma hora o garçom das empadinhas já me evitava, porque, a cada vez que ele aparecia, eu pegava de três pra cima. Encontrei um refugio estratégico atrás de uma pilastra de onde era possível ver as bandejas passarem sem ser visto. Também era uma ótima posição para evitar os “malas”, e aqueles assuntos sem pé nem cabeça decorrentes das ocasiões onde há bebida alcoólica liberada. Minha lombar já dava sinais de desgaste quando avistei um assento livre no fundo do salão. Uma miragem em meio a tanta gente de pé. Na minha frente, pessoas assistiam a um vídeo muito interessante, mas que não era páreo para o conforto que o sofá representava naquele momento. Refastelei-me em suas rechonchudas almofadas, estiquei as pernas e apoiei a cabeça na parede, proporcionando alívio imediato para o corpo faminto e cansado.

Ao abrir os olhos, deparei-me com o diretor da exibição, e minha postura transmitia nada além de absoluto e total desinteresse. Levantei-me prontamente e, com um sorriso sem graça, apoiei as mãos nas cadeiras simulando uma expressão de extremo desconforto. Não colou.

Considerando os dois eventos da noite -o virtual e o real- resta fazer o balanço: falei e não fui ouvido, conversei com quem não queria, fiquei de pé e passei fome. Entre a webconferência e o coquetel, acho que fico com o primeiro porque, nesse caso, quando as coisas começam a ficar estranhas, sempre se pode atribuir a culpa à falha na conexão.

Ledo Engano

ter, 28/08/07
por Bruno Medina |

Amigos leitores, aviso de antemão que hoje vou escrever sobre futebol. Mas o que pode ser novidade no tema mais recorrente entre os cronistas brasileiros? O que ainda merece atenção depois dos brilhantes textos de Nelson Rodrigues e de tantos outros notáveis que dedicaram boa parte de suas linhas ao ato de registrar as nuances deste que é verdadeira paixão nacional? E o que Bruno Medina -alguém que nunca demonstrou afinidade com o esporte – tem a dizer sobre o assunto?

Além das razões citadas acima, para piorar minha situação, acrescento que vou “chutar cachorro morto” e abordar o maior dos clichês dentro do universo futebolístico: os erros de arbitragem. Talvez seja um sinal dos tempos, o cara que não é nenhum especialista em futebol se interessar por escrever sobre o tema. Em minha defesa alego que basta acompanhar minimamente o noticiário para perceber a alarmante freqüência com que as mancadas dos juízes têm merecido destaque.

Apenas na última rodada foram pelo menos quatro erros gritantes que prejudicaram diretamente o resultado das partidas: um gol do Grêmio possibilitado por um “tapinha” do jogador que recolocou a bola em jogo depois de tirá-la das mãos do goleiro do Fluminense; um pênalti marcado a favor do Internacional – fruto de uma falta marcada fora da área; pênaltis não marcados para ambos os times no jogo Flamengo x Goiás; e outro pênalti não marcado a favor do Vasco, na disputa com o Sport, em Recife.

Há pouco mais de três meses, uma atuação infeliz da bandeirinha Ana Paula Oliveira -anulando dois gols que evitariam a eliminação do Botafogo na Copa do Brasil – trouxe de vez à tona a discussão sobre o que pode ser feito para aumentar a eficiência das arbitragens. No caso da moça, a única medida adotada pela CBF foi recomendar seu afastamento temporário dos gramados, o que acabou se configurando numa ótima ocasião para que ganhasse a capa de uma revista masculina.

O clima de “caça as bruxas” está tão evidente que no domingo passado presenciei uma situação inusitada pela tv: o juiz não iniciava a partida porque constestava o posicionamento da câmera dentro de uma das metas. O locutor esportivo da emissora que transmitia o jogo comentava que a preocupação se justificava pelo fato de o árbitro ter sido acusado de cometer erros crassos em sua última atuação.

Diante de todos esses fatos não parece claro que as regras do futebol estão precisando de mudanças? De que adianta os juízes serem confrontados com suas falhas e se desculparem publicamente depois que o jogo já terminou? Não creio que as arbitragens tenham diminuído de qualidade, e sim que a cada dia existem mais e melhores câmeras dentro dos campos.

Por que não se adaptar? Por que não se submeter à evolução? No futebol americano e no tênis os técnicos e jogadores têm direito a um determinado número de interrupções na partida para que lances polêmicos sejam passíveis de uma segunda avaliação possibilitada pelo vídeo. Esse recurso é incontestável, justo com ambas as partes, e isenta os árbitros da cruel tarefa de interpretar em segundos situações que muitas vezes escapam à competência humana.

É claro que os tradicionalistas discordam por acreditarem que o problema está na formação dos árbitros. O assunto rende, e enquanto os erros se sucedem pela incapacidade de as confederações decidirem pela melhor solução, fica o exemplo do vôlei, que passou por uma transformação radical em suas regras a partir de 1998 e provou que esportes populares podem sim ser repensados para melhor.

Quanto ao combalido futebol resta se deleitar com as pérolas do destino que entraram para o hall dos equívocos históricos. Há quem – assim como Nelson Rodrigues – veja graça em tudo isso e consiga rir do fato de que os erros podem ser, no melhor dos sentidos, a alma do negócio:

“a arbitragem normal e honesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável. Só o juiz gatuno, o juiz larápio dá ao futebol uma dimensão nova e, se me permitem, shakespeariana”

Maradona na Copa de 86, sem sombra de dúvidas, é Shakespeare na essência.

O Encontro

sex, 24/08/07
por Bruno Medina |

Uma das melhores coisas de se morar no Rio é poder desfrutar dos benefícios de uma grande metrópole e ao mesmo tempo estar em contato com sua incomum e abundante natureza. Destaca-se a exuberância dos muitos cartões-postais incrustados na paisagem da cidade, e a eles se atribui o mérito de conceder o título de cidade maravilhosa tão contestado nos últimos tempos.

Na rua em que moro, por exemplo, micos andam se equilibrando pelos fios dos postes, e não é preciso dizer que essa é uma cena atípica considerando a escala de milhões de habitantes. Os micos fizeram uma bela amizade com meu cachorro, Oscar, que adora observá-los quando passam pela janela. Famílias inteiras pulam de uma árvore para outra -inclusive um vovô manco- e parecem pedir permissão para cruzar o perímetro da minha casa. Oscar posiciona-se sobre o sofá, como guardião, e observa, hipnotizado, os trejeitos histéricos dos macaquinhos em rota migratória.

Os micos, macacos velhos que são, aprenderam muito bem a lidar com as imposições do crescimento urbano, tanto que nunca se soube de um que tivesse invadido alguma casa a procura de frutas frescas, ou mesmo para subtrair objetos que fossem de seu interesse. Dessa forma, a convivência é harmônica e não causa incômodo para qualquer das partes.

Anteontem, no entanto, um outro filo violou o código de boas maneiras da vizinhança: ainda pela manhã fui surpreendido pela notícia de que havia uma coruja morta dentro da minha casa. Amigo, se a simples presença de uma coruja já não é sinal de boa sorte imagine uma que resolveu morrer na sua sala? Fiquei apavorado, cogitei abandonar a casa e chamar aquela velhinha do Poltergeist -só por precaução- caso essa fosse uma manifestação do mundo espiritual.

Felizmente não se tratava de uma coruja. Era um pássaro, daqueles “streetwear”, meio cinza-meio marrom, mais pra feio. Apesar do alívio em constatar que não se tratava de uma coruja, o meu susto foi maior do que o cabível porque, de longe, o bicho parecia não ter pescoço, o que me levou a concluir que lidava com uma mutação, algo como um trangênico com penas.

A verdade é que ele não agia como pássaro, estava encolhido e com os olhos esbugalhados. Eu sei como é um passarinho dormindo e garanto que não era esse o caso. Também não era fofinho nem despertava compaixão. Como um souvenir empalhado na estante de uma bruxa, permanecia estático, e a conclusão óbvia era a de que realmente estava morto. Não pude deixar de lamentar o fato desse sei-lá-o-que ter escolhido justo a minha casa como seu último pouso.

A primeira reação foi de não querer me envolver diretamente com a remoção do corpo; considerei a possibilidade de Oscar se interessar pela tarefa. Sentindo um astral meio estranho, ele se absteve, preferindo se esconder debaixo da arca da sala. Pois bem, munido de dois saquinhos de supermercado como luvas, parti pra cima do estranho pássaro. Durante minha lenta aproximação ele bateu as asas e decolou para realizar aquilo que se chama de “vôo de galinha”, ou seja, voou baixo por alguns metros e voltou para o chão. Pelo menos estava vivo.

Mesmo assim não seria nada agradável perseguir um pássaro moribundo pelos cômodos da casa. Tampouco poderia simplesmente abandoná-lo a própria sorte na calçada da rua e permitir que se tornasse presa fácil para gatos, cachorros e crianças arteiras. Surgiu a idéia de levá-lo ao veterinário. Imagine eu, na sala de espera, com um pássaro vira-latas dentro de um saco de supermercado. De qualquer maneira era preciso removê-lo da sala, e uma nova investida foi feita, dessa vez com sucesso. Num golpe de sorte, o pássaro-invasor bateu asas feito gavião e, sem hesitar, encontrou seu rumo para a liberdade além da janela.

Olhei para baixo a procura de vestígios de uma tentativa mal sucedida de fuga, não foi o caso, o bicho realmente sumiu. Agora me diga como um passarinho com as patas na cova conseguiu realizar a proeza de zunir pelos ares sem ao menos deixar indícios de sua trajetória? Mistério.

As Macrotendências

ter, 21/08/07
por Bruno Medina |

Não chega a ser novidade para ninguém o fato de que a tv, especialmente no Brasil, serve como instrumento fiel de análise dos hábitos culturais da população. Muito já se falou sobre a tênue linha que divide atendimento de anseios e incentivo ao consumo, sendo esse dilema o ponto de equilíbrio existente entre prestação de serviços e entretenimento.

O que se vê na tela -pelo menos na teoria- deveria ser o reflexo do que as pessoas esperam assistir, embora elas mesmas não saibam disso, deu pra entender? Para determinar essa espécie de “desejo inconsciente” são realizadas pesquisas, e a partir delas surgem as macrotendências.

Macrotendências são uma espécie de dogma do comportamento humano, incontestáveis verdades reproduzidas à exaustão com o intuito de estabelecer um mapa indicativo do melhor caminho até o cerne do pensamento de cada um de nós. O problema é que assim como ajudam a prever reações, as macrotendências têm como efeito colateral a capacidade de criar costumes, invertendo sua relação natural de causa e conseqüência.

Um exemplo prático se observa na minha própria vida; durante a década de noventa ocorreu um “boom” da publicidade. As oportunidades profissionais se multiplicavam em ritmo acelerado e de repente todo mundo (inclusive eu) sonhava em usar suspensórios e passar os dias com os pés em cima da mesa pensando em frases geniais. As peças publicitárias passaram a atrair o interesse do cidadão comum, ganharam o status de arte, e assim surgiram os primeiros programas televisivos sobre o tema. Na década seguinte o que se viu foi um mercado saturado e um enorme contingente de publicitários com diploma nas mãos, mas sem emprego.

Se os anos noventa foram da publicidade, essa década, definitivamente, foi da gastronomia. É a profissão da moda. Desafio qualquer pessoa a assistir uma hora de tv na faixa de horário de sua preferência e não se deparar com alguma referência culinária. É impossível. Fora as atrações inteiramente dedicadas ao tema, também nos programas de variedades, de entrevistas e até nos jornalísticos, há sempre espaço para uma receitinha que seja.

Nos shopping centers, nos grandes magazines (sempre quis usar essa expressão), nas lojas de rua, nos camelôs, por todos os lugares multiplicam-se utensílios de cozinha, dos mais variados tipos em vasta gama de cores. Um sem fim de panelas, caçarolas, pinças, pincéis, conchas, espátulas, abridores, fatiadores, moedores, raladores e muitos outros, com sufixos variados e funções ultra-específicas.

Outro dia abri o jornal e caiu no meu colo o fascículo de uma coleção de receitas, as quais não pretendo colecionar, sobretudo se o tema dos pratos for semelhante ao da ocasião. Aprecio a diversidade da culinária regional, embora ache que um capítulo contendo apenas receitas de carne de bode poderia ter sido repensado e algumas árvores não seriam sacrificadas em vão. Imagino que a maior utilidade desse encarte tenha sido mesmo forrar gaiolas de passarinhos.

E pensar que tudo isso pode ter começado a partir da “Cozinha Maravilhosa da Ofélia”… Esse programa foi responsável por catequizar donas de casa durante décadas, tendo como bíblia livros de receitas triviais -porém de muito bom gosto. Ofélia provava ser possível impressionar os paladares mais aguçados utilizando apenas o que se encontra dentro de qualquer geladeira. Nos tempos atuais o aprimoramento da fórmula “tele-cozinha” sofisticou os cardápios e encareceu a conta do mercado.

Assistir ao preparo de um prato exige máxima atenção; é um tal de emulsão pra cá, reserva o tempero pra lá, e eu ainda assimilando o nome dos ingredientes dos quais nunca ouvi falar e nem imagino onde são comprados. Passada a febre gastronômica não sei o que restará de seu legado: uma volta aos pratos básicos ou uma evolução dos hábitos alimentares? Depende da próxima macrotendência.

Perto de um final feliz

sex, 17/08/07
por Bruno Medina |

No início da década de oitenta, quando videocassetes se tornaram utensílios domésticos tão imprescindíveis quanto liquidificadores, havia muita gente que profetizava o fim das sessões de cinema. A bem verdade, as gigantescas salas de dois andares de outrora precisaram se adequar à demanda dos novos tempos, e então vieram os multiplex. Platéias menores, horários intercalados, poltronas mais confortáveis e um impensável leque de títulos para todos os gostos foram as medidas adotadas para que o hábito de se assistir a filmes na telona não caísse em desuso.

Sinceramente não acredito que qualquer futura tecnologia ainda por nós desconhecida terá a capacidade de substituir o prazer de se ir ao cinema. Apesar de todas as transformações ocorridas nos últimos vinte anos essa ainda é uma das mais populares formas de entretenimento.

Quantos começos de namoro podem ser atribuídos ao escurinho do cinema? A tradição do beijo roubado, da mão hesitante por sobre o ombro e do sacão de pipoca possivelmente perdurarão nossa época, assim como o abominável costume de se falar durante o filme. Por que diabos alguém paga um ingresso de cinema para ficar conversando?!

Ontem fui assistir ao ótimo “Saneamento Básico” do Jorge Furtado e me deparei com aquela clássica turma do cochicho bem atrás de mim. Depois de algumas tossidas e alguns “shiiiiiii” acabei abdicando do meu lugar para me sentar num outro muito pior, mas onde pelo menos havia silêncio. Tudo bem que o filme é engraçado, mas rir de uma piada ou outra não deveria encorajar comentários do tipo “a filha de fulana é a cara da Camila Pitanga” ou “esse menino…, como é mesmo o nome dele? É muito bom ator”.

Minha teoria é a de que algumas pessoas têm uma satisfação doentia ao ouvirem suas vozes sobrepondo o silêncio coletivo. É alguma coisa relacionada à demonstração pública de poder, uma espécie de auto-afirmação torta. A sensação de anonimato costuma proporcionar reações que nunca se dariam em outra circunstância, e esse é o fator determinante para que os espíritos-de-porco se manifestem.

Lembro-me agora de uma sessão de “Má Educação” que ganhou ares de batalha campal. Não sei se o nome do filme teve alguma influência, mas foram necessários uns três esporros daqueles constrangedores e muita gritaria para recobrar a normalidade esperada. A cena terminou com um grupo de adolescentes sendo expulso pelo lanterninha -com direito a voltar depois para apanhar duas meninas que ficaram escondidas- em meio aos aplausos efusivos de uma platéia vingada.

Nesse dia me prometi que nunca mais assistiria a um filme em seus primeiros dias de exibição ou em finais de semana. A dor de cabeça já começa na fila absurda; quando a porta se abre as pessoas agem como uma matilha de lobos ávidos por bons assentos. É velhinha caindo no chão, criança carregada no colo, casal de namorados fazendo barreira pra segurar a fila, família correndo de mãos dadas, empurrão, dedo no olho, isso porque o cinema é um programa para aliviar o stress do dia-a-dia!

O bom desempenho na corrida pode até render um lugar na fileira central, mas o esforço terá sido em vão se atrás de você se sentar aquele cara de dois metros que quando cruza a perna dá um cutuque na suas costas, ou então aquelas duas amigas septuagenárias que passam a sessão inteira perguntando uma pra outra “Hã? O que foi que ele disse?”. Agora, o desespero mesmo vem quando a mãe do seu lado diz pro filho “pode deixar que eu leio as letrinhas que aparecerem na tela, tá?”. Estando o cinema lotado, não tem como fugir.

Como você ficou na fila para entrar, acabou se esquecendo de ir ao banheiro, e aquela vontade incontrolável de fazer xixi só aumenta porque você preferiria fazer nas calças a ter que se levantar e passar imprensado por entre todos os que estão sentados na sua fileira. Vencido pela necessidade, só existe um jeito de realizar a travessia: andando rápido e pedindo desculpas, porque você vai pisar nos pés, vai chutar bolsas e, se desequilibrar, vai meter a mão na coxa de alguém que não conhece. O pior é saber que ainda tem a volta. Apesar do trauma vez ou outra ainda vale se submeter a uma sessão com cara de roubada. Afinal o cinema é ou não é a maior diversão?

ter, 14/08/07
por Bruno Medina |

Há duas semanas, lendo o jornal, deparei-me com um anúncio curioso nos classificados. Um daqueles grandes, diferenciados, que de imediato tomou minha atenção, ainda mais quando li que o serviço oferecido era o de personal friend, ou amigo de aluguel, se preferir. Nos dias que se seguiram pude perceber que a prática -até então por mim desconhecida- tem se popularizado, e o número de adeptos já não a caracteriza como um caso isolado, mas sim como um exemplo contundente das relações interpessoais de nossa época.

O personal friend é um serviço idealizado para pessoas tímidas ou que tenham dificuldades em fazer amizades. Basta um telefonema para por fim aos momentos de angústia e solidão, pois o amigo de aluguel vai ao seu encontro, a qualquer hora e em qualquer lugar, para conversar sobre qualquer assunto, mesmo aqueles que não se conversa com ninguém. O encontro pode durar de cinqüenta minutos a duas horas, e os preços variam de oitenta a trezentos reais. Cabe lembrar que as despesas do passeio, tais como alimentação e transporte, ficam a cargo do contratante.

Com um pouco de imaginação é possível enumerar algumas situações em que a prestação desse serviço caia como uma luva; aquela vontade súbita de jogar buraco as três da manhã, as compras de véspera de natal no shopping center lotado ou mesmo o processo de renovação da carteira de motorista são três ótimos exemplos de atividades cuja realização torna imprescindível companhia, ainda que seja pagando.

De cara achei uma ótima oportunidade profissional para pessoas com tempo e paciência de sobra. Do jeito que a coisa anda, muita gente aceitaria acompanhar um “mala” para faturar um troco e ainda ganhar a entrada do cinema e o lanche de graça. Não existe muita diferença entre essa forma de amizade e a tão difundida presença vip das celebridades nas festas e inaugurações Brasil afora. Pense bem: o artista chega no horário determinado, tira fotos com o dono da festa, ouve meia hora de conversa fiada, finge que conhece todo mundo, toma champanhe, belisca os canapés e sai de fininho, à francesa, com o bolso cheio.

Talvez os primeiros casos de amigo de aluguel da história tenham ocorrido quando galãs de novela passaram a freqüentar festas de quinze anos. Não se sabe exatamente como essa moda começou, mas, desde os primórdios da televisão, jovens atores costumam incrementar suas rendas dançando valsa com debutantes abastadas. No dia da assinatura do contrato com a emissora convém já tirar as medidas do smoking para não perder nenhuma futura oportunidade. O traje a rigor pode custar caro, mas é investimento garantido.

Para os que não são famosos nem bonitos resta anunciar nos classificados e foi lá que encontrei o telefone do personal friend Roberto. Achei que seria importante para o texto fazer contato com um desses profissionais a fim de compreender melhor como o serviço funciona. Dei vazão a minha porção jornalista investigativo e não hesitei em telefonar para o número indicado.

Roberto atendeu com voz cordial e simpática, condizentes com seu nome, que, aliás, havia me soado bastante amigável desde o princípio. Ele me perguntou se eu sabia como funcionava a amizade de aluguel, respondi que não, apenas para deixá-lo explicar. Pelas palavras empregadas percebi que o personal friend já deve ter sido confundido com outro tipo de acompanhante, o que me parece bastante compreensível.

Roberto foi atencioso porém distante, até porque, caso fosse muito receptivo pelo telefone, já estaria trabalhando sem receber. Fez perguntas genéricas apenas para assegurar que não tratava com um psicopata; quis saber o que eu fazia, quantos anos tinha. Disse que precisava deixar claro que não era psicólogo, mas que poderíamos conversar sobre o que eu desejasse.

Informou que não aceitava cheques e que o encontro deveria ocorrer em local público. Prontificou-se a sugerir um lugar dependendo de onde eu morasse. Respondi que ainda precisava pensar sobre o assunto, agradeci e desliguei.

Concluo que o amigo de aluguel pode ser uma boa opção para quem teve ou ainda tem problemas com amizades surgidas de maneira convencional. Empenhando algum dinheiro deve ser possível desenvolver cumplicidade, o que não chega a ser fato inédito quando se vive numa sociedade de consumo. O personal friend pode nunca chegar a ser um amigão de verdade, mas assim, às claras, pelo menos evita-se a decepção com um bando de amigo-da-onça solto por aí. A vantagem, nesse caso, é que a sinceridade pode ser acordada e garantida.

Aniversário

sex, 10/08/07
por Bruno Medina |

Hoje é meu aniversário. Antes de começar a escrever esse texto consultei em vão minha memória buscando algum registro por escrito de um autor que estivesse aniversariando. A dificuldade provavelmente se justifica pelo fato dos aniversários acontecerem apenas uma vez por ano, ou mesmo porque a maioria das pessoas -incluindo os escritores- prefere se dedicar a atividades distantes da rotina no dia em que nasceram.

Já eu sou daquele time que não persegue os acontecimentos incríveis por acreditar que eles só são realmente incríveis quando se dão espontaneamente. Posso até dizer que meus melhores aniversários foram os menos planejados. Essa “necessidade do maravilhoso” atribui uma carga emocional enorme as datas especiais e, pela regra, grandes expectativas envolvem risco de frustração. Ciente disso, minha estratégia mudou: começo o dia assim, tranqüilo, escrevendo para o blog, e tudo que vier depois será uma grata surpresa.

Mas a “necessidade do maravilhoso” alheia contamina qualquer tentativa de serenidade; o dia inevitavelmente será recheado por telefonemas de pessoas capazes de transformar qualquer aniversariante auto-suficiente num carente compulsivo:

“Parabeeeeeeeeeeens!” ou “Parabéns pra você, nessa data querida….”
“Obrigado…” (você ainda não sabe quem está falando)
“Muita paz, muito sucesso, muita saúde, muito amor, e dinheiro também, que é importante, né?”
(você ainda não sabe quem está falando) “E aí, como tá todo mundo (…)?”
“Todo mundo indo, graças a Deus. E você? Tá animado?”
“Acho que sim….”
“Vai ter festa?”
“Não, não, vou ficar por aqui mesmo.”
“Não vai ter nem um bolinho?”
“Talvez, não sei ainda…” (como saber? Alguém compra bolo pra si mesmo?)
“Ah, mais você não vai fazer nada hoje? Marca um lugar pra eu te dar um beijo”
“Não, acho que vou ficar só com o pessoal de casa mesmo esse ano”
“Ah tá, então vai ter pelo menos um bolo”
“Não sei, é provável”
“Será que seus amigos não vão fazer uma festa surpresa? Tá me cheirando a festa surpresa, hein?” (que festa surpresa? Quem falou em festa surpresa? Eu nem tinha pensado em festa surpresa!)
“É, vamos ver.”

Pronto. Terminado o telefonema você se pergunta que espécie de monstro não planeja um dia especial para o próprio aniversário. Que pessoa infeliz e solitária não recebe uma festa surpresa dos amigos? As horas passam e você sente que seu grande dia no ano está escorrendo por entre os dedos, é preciso reagir! Uma festa de última hora? É possível? Um encontro num bar, pelo menos. E se os convidados não comparecerem porque foram avisados em cima da hora? Pior, é se forem apenas porque ficaram com pena de você, que claramente inventou uma festa às pressas para não pensar que é infeliz e solitário? Comprar um bolo, pequeno, só pra garantir? Não, muito triste.

O que importa agora não é a festa, ou a celebração. A questão é por que você não é digno de merecer uma festa surpresa? O desespero aumenta e o prudente é ficar em casa para não perder nenhuma ligação. A toda hora confere se o telefone celular está com sinal e anota o nome de quem liga. Em paralelo faz uma lista das pessoas que deveriam ligar, e quando elas ligam, você dá um “ok” do lado do nome.

Checa o e-mail e sente alívio por ter recebido três cartões de aniversário virtuais: um está com vírus e os outros dois são do banco e do provedor de internet. Você responde as mensagens automáticas agradecendo e convidando o pessoal da equipe para um chope qualquer dia. Nos telefonemas seguintes já pergunta de cara se a pessoa não tem nenhuma novidade pra contar, tipo…, festa surpresa. A partir das cinco da tarde, você próprio liga para as pessoas que não ligaram, só para que elas tenham a oportunidade de te dar os parabéns. Uma hora depois a pergunta inicial passa a ser “você gosta de mim?”.

O dia está apenas começando portanto não me liguem para perguntar se vai haver festa a menos que você tenha conhecimento ou esteja planejando uma. As fotos são de um dez de agosto qualquer, saudoso tempo em que, num dia como esse, minha maior preocupação era saber quantas caixas coloridas eu teria para abrir no fim da noite.

Roubadas

ter, 07/08/07
por Bruno Medina |

Outro dia gastei um bom tempo pensando numa resposta que pudesse ser dada aos músicos do underground que me pedem conselhos. Não sei como até hoje nenhum oportunista se aventurou a abrir uma tenda mística na porta de casas de show, ou se rendeu à febre desses manuais, que no fundo não ensinam nada a ninguém, no máximo, matam o tempo.

Cito o underground, porque sempre que um desconhecido me toma como interlocutor, este tema é o mais recorrente – por motivos óbvios. Não raro, integrantes de bandas novas querem saber como foi a experiência do Los Hermanos, e esperam ouvir de mim algo que os ajude a pavimentar esse pedregoso, porém necessário, percurso.

Não acredito que haja uma fórmula ou determinadas tarefas a serem cumpridas. Cada caso exige uma atitude, e, por conta disso, é importante estar atento a intuição, até porque fazer o que os outros julgam certo costuma dar errado. Nós, por exemplo, gravamos o primeiro disco sem entregar uma fita demo sequer nas gravadoras.

Meu irmão mais novo é vocalista de uma ótima banda chamada Tetrix e quando o assunto “mercado musical” toma nossas conversas, sempre digo para que não fuja das roubadas, pois existem valiosas lições a serem aprendidas. Isso sem considerar que elas costumam render também as melhores e mais divertidas histórias. Em dúvida quanto ao conselho mais apropriado cheguei a conclusão de que prefiro dividir as experiências vividas ao invés de profetizar sobre algo que não tenho nenhuma convicção. Então aqui vai o meu top 3 das roubadas do underground:

3o lugar- O galpão na linha do trem:

O que esperar de um show no meio da semana num lugar em que ninguém nunca ouviu falar? Atravessar vias expressas e desertas da cidade era só um aperitivo perto do que estava por vir. Seguindo um outro carro por um trajeto absolutamente desconhecido, num determinado momento estávamos cercados por mato alto numa estrada de terra sem saída. Como num cenário do “Linha Direta”, havia o receio de se estar na iminência de uma emboscada.

Chegando ao galpão – que em nada remetia a uma casa de shows – montei o teclado sobre palco bambo (depois me arrependi dessa crítica, o palco era uma estrutura digna de eventos internacionais se comparado ao equipamento de som). As caixas, estridentes, reproduziam um disco do Slayer em volume tão insuportavelmente alto que poderiam levar os mais sensíveis a ter convulsões. Lembro ainda de uma passagem de som inútil, dos choques, e de uma loira gorda, espremida numa roupa de couro, estilo sado-masoquista, girando os cabelos como um ventilador com a pá quebrada.

2o lugar- O livreiro da Tijuca:

Música e literatura costumam andar juntas. Uma oportunidade de a banda se apresentar num evento que reunisse essas duas expressões artísticas, e que não estivesse marcado para um lugar escuro e apertado, dificilmente seria desprezada. Bastou esse motivo para aceitarmos participar do sarau num sebo de livros da Tijuca. Ao invés do palco – pequeno que fosse – a nossa frente, cadeiras em semicírculo.

Tocaríamos num concurso de poesias. A proposta não era exatamente um show e sim ter música entre apresentações poéticas, detalhe que não havia sido mencionado até o momento. A sugestão era que a banda se sentasse nas cadeiras e se misturasse aos participantes, aproveitando a atmosfera criativa sugerida por aquele encontro. O repertório teve de ser adaptado às pressas, e eu não sabia se ficava mais constrangido pela nossa situação ou pela dos concorrentes e suas poesias de gosto, digamos, bastante discutível. As músicas pareciam endossar os piores versos e a sensação era a de ser cúmplice de um crime alheio. No final do sarau, o clima era semelhante ao de uma reunião de condomínio misturada com sorteio do Baú da Felicidade.

1o lugar- Halloween no Garage:
Pode até parecer, mas esse não é o título de um filme B ou de terror. Garage é um dos estabelecimentos mais tradicionais do underground carioca. Entre muitos altos e baixos, foi palco de apresentações antológicas da cena alternativa local. Não foi o caso daquela noite de 31 de outubro de 1998. Qualquer um que tenha freqüentado o endereço mais famoso da Rua Ceará sabe que, assim como a carruagem se transforma em abóbora, o casarão só deixava de ser uma oficina de motos para virar uma casa de shows em algum momento indefinido bem depois da meia-noite.

Havia um desejo antigo dos proprietários do local de evitar que as apresentações se estendessem até o nascer do sol e, justo naquela noite, resolveram implementar o fictício horário das 23h. Los Hermanos não seria a primeira banda escalada para tocar, mas a única que se encontrava no recinto no horário combinado. Para piorar tiveram a ótima idéia de propor que nos apresentássemos fantasiados, diante de uma platéia de seis, repito, seis pessoas mais o nosso produtor Alex e o cara da mesa de som. Sem citar nomes, subiram ao palco naquela noite um diabo, uma caveirinha, um fantasma e aquele personagem do filme Pânico.

Tocar fantasiado já seria patético, ainda mais tendo como público meia dúzia de gatos-pintados, literalmente. Mas nada comparável a um convite que recebemos para tocar em Belo Horizonte, sendo que a pessoa que nos chamou havia escutado a fita de outra banda, pensando que se tratava de Los Hermanos, mas isso é outra história.

O Quintal

sex, 03/08/07
por Bruno Medina |

Quase todas as noites Silvia gostava de sentar na beirada da janela do quarto, colocar as pernas para fora e ficar olhando a enorme mangueira que cobria todo o perímetro do seu campo de visão. Havia algo de mágico naquela gigantesca árvore quando a luz da tarde fenecia e aquele híbrido de dia e noite tomava tudo de azul-escuro. Poucos minutos e a árvore de frutos suculentos se transformava em sombra negra, entremeada por feixes laranja de luz da rua ao lado.

Ela gostava de imaginar que aquilo era um navio, um elefante ou um castelo, cada dia era uma coisa, e a coisa vinha surgindo, sem saber bem o que era, até pouco antes de, de fato ser. Às vezes quase era, e, no segundo seguinte, a certeza de não ser.

Numa dessas noites não ventava e a mangueira permanecia absoluta em seu caule. Suas pequeninas folhas estáticas pareciam milhões de beija-flores, naquele momento em que param no ar entre uma flor e outra, ou pelo menos foi assim que Silvia viu. Sem vento a brincadeira não tinha tanta graça; naquela noite ela queria ver um cardume, mas foi beija-flores o que lhe pareceu. Sendo assim, a menina preferiu deitar-se e fechar os olhos, pois desse jeito poderia ver o que quisesse.

Um pouco de concentração e o cardume apareceu, não de sombra, nem de árvore, mas de peixes reluzentes, brilhantes, pontos prateados por baixo de água cristalina num dia de sol franco. No mar havia também ela mesma, correndo, fazendo a água espalhar e molhando tudo em volta, mesmo o que já era molhado. Agora eram duas Silvias, uma às gargalhadas na água e a outra sentada na areia, sorrindo e se divertindo com a alegria daquele momento.

A Silvia da areia levantou delicadamente e bateu a areia das pernas livrando-se dos grãos que a pintavam de branco. Colocou o chapéu de palha, sorriu e iniciou sua caminhada. A Silvia da água finalmente se viu duas, e parou de brincar. Ela quase chamou a outra, mas o que dizer? Enquanto Silvia caminhava, a outra Silvia temia perguntar para onde. Porque se o destino fosse algum lugar que não desejasse ir, seria preciso acompanhar. Ou não? Na dúvida melhor calar, e assim as duas Silvias se separaram, uma pra casa, outra pra vida.

A Silvia da água voltou e, antes mesmo de tomar banho, prometeu-se que nunca mais pensaria na Silvia que partiu. Porque de nada adiantava pensar na outra, ou para onde haveria partido naquele último dia de praia. Talvez estivessem juntas novamente, mas, o melhor seria não contar com a possibilidade. Como não teve coragem para perguntar, Silvia conformou-se com a incerteza, aprendeu a viver com ela. A dúvida se acostuma, emudece, e um dia torna-se um quadro na parede do corredor, um daqueles que a gente vê mas não enxerga, de tanto que passou.

Os anos seguiram, Silvia cresceu, e a menina que olhava a mangueira no quintal foi atrás dos elefantes e castelos do mundo real. Estudou, namorou, viajou, não quis se casar. Largou a cidade natal, ganhou o mundo e aprendeu a perseguir os sonhos, mesmo os que ela ainda não havia tido muito tempo para sonhar. Quando queria ver um navio, ou o que sua imaginação teimasse em inventar, ela ia lá e via. Mas nem sempre era exatamente o que esperava, porque não havia mais mangueira, nem janela, nem jardim.

Havia uma mulher plena, e parte de crescer é justamente não saber direito o que se quer. Nessa busca Silvia estudou jornalismo, formou-se, namorou Pedro, Ricardo, Maurício, Paulo, Eric, Daniel, e outros, que o tempo se encarregou de apagar. Viajou para a França, a Itália, a Espanha, a Inglaterra, a Índia, a China, mas não o Japão. Isso sem contar o Brasil inteiro, parte da América Latina, e tantos outros lugares que nem cabe citar. Não quis se casar. Depois de jornalista foi intérprete, professora, trabalhou numa ONG, estudou culinária, fez curso de cinema, jardinagem, yoga, budismo, vendedora, nadadora, costureira, garçonete, aprendeu de tudo um pouco, cada coisa ao seu tempo, e foram muitas.

Houve chance para dizer e desdizer, para ser incoerente, maldita, amada, dependente, provedora, mulher e menina. Depois de todos esses anos a imaginação deu lugar a memória, de tanto que Silvia viveu. O navio, o castelo, o elefante, todos tinham data, cor e nome, ela não precisava imaginar, ela conhecia. A única coisa que Silvia ainda pretendia conhecer era o destino da outra Silvia, a que saiu da praia caminhando, de quem nunca mais se soube.

De onde morava até sua cidade foi um longo percurso. A casa onde viveu não existia mais, no entanto, a árvore continuava lá. O lugar agora era uma praça, onde balanços, gangorras, bancos e mesas de xadrez circundavam a grande mangueira. Silvia esperou àquela hora do dia e posicionou-se exatamente onde seria a janela de seu antigo quarto. O vento balançou as folhas, a noite sobrepôs a tarde, os feixes laranja de luz começaram a contornar a sombra, e aquele momento de quase ser, chegou.

Silvia fechou os olhos, abriu os de novo, e sentiu a iminência de ver algo, exatamente como sempre foi. Só que dessa vez, ao invés da imagem revelada, o momento seguinte era um que ela não conhecia, onde tudo que se via era apenas a árvore. As lágrimas começaram a brotar-lhe, junto com uma imensa tristeza e um medo que ela nunca tinha experimentado. Abraçada ao tronco da mangueira, Silvia soluçava feito criança, em nada lembrava a mulher que havia sido. Aquela dúvida adormecida ficou maior que a árvore e recobrou a força de anos de contenção: ela precisava desesperadamente saber da outra Silvia. Aos poucos o medo foi passando, o choro secou e, só assim, foi possível se dar conta de que a resposta para essa pergunta sempre esteve com ela.



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