O Amigão

sex, 29/06/07
por Bruno Medina |

Diz um conhecido provérbio que “o maior tesouro da vida é a amizade”, e não é difícil encontrar quem concorde com a afirmação. Porque, mesmo que você tenha muito poucos predicados, deve haver alguém, uma pessoa que seja, capaz de compreender, perdoar e até achar graça nos seus defeitos. Amigos, por vezes, tornam-se mais relevantes em nossas vidas do que certos parentes, e justo isso é o bonito da amizade; o fato dela ser uma escolha, e não uma imposição.

Outro provérbio diz que “se conselho fosse bom não se dava, vendia”, e é através dele que podemos medir a importância, a coragem -e porque não dizer- a nobreza de um personagem que se encontra um degrau acima dos melhores amigos. Um posto raro dentro da hierarquia das relações de afeto, a ponto de ser provável que você nunca tenha conhecido um genuíno… amigão.

Cabe aqui fazer uma distinção; amigo é amigo, amigão é amigão. Entenda que o amigão não é apenas um grande amigo, é muito mais do que isso. Amigos do peito se faz aos montes, um em cada esquina. Amigão é um só, e olhe lá. Ainda não cheguei à conclusão se o sujeito nasce amigão, tipo, uma vocação adormecida, ou se essa é uma aptidão que se desenvolve ao longo do tempo, ou mesmo de acordo com a necessidade. Mas o que importa nesse caso é reconhecer que a sina desse clã consiste em transpor o perímetro de segurança das amenidades sociais, vencer o medo da rejeição, e mostrar seu valor justamente nos momentos mais delicados:

Almoço de confraternização da empresa. Você caminha em direção a mesa da diretoria para interá-los dos desafios superados por seu departamento naquele semestre. Aproveita o ensejo para requisitar aquele aumento prometido durante o amigo-oculto do ano anterior. Entretido com a tarefa de abordar o assunto sem causar nenhum constrangimento, você nem imagina que uma lasca de couve-mineira emoldura seu sorriso.

De repente alguém puxa seu braço por trás e coloca um fio-dental na palma de sua mão, recomendando que você altere sua trajetória e inclua uma escala no banheiro antes da visita à mesa da chefia. Depois de escapar por um triz do papel de bobo e do risco de rebaixamento de cargo, tendo o aumento assegurado, você se pergunta por que demoraram quarenta minutos para avisá-lo sobre a gafe. A resposta é simples; porque ser amigão é tarefa para muito poucos. É fazer pelo próximo o que gostaria que fizessem por você. Outro exemplo:

Final dos anos 90, o grunge não é mais o mesmo depois da morte de Kurt Cobain. Você não é mais o mesmo depois dos últimos oito anos em que deixou as madeixas crescerem. A adolescência ficou para trás e agora, os compromissos da vida adulta sugerem uma adaptação de estilo, você decide cortar o cabelo. Na cadeira do barbeiro, ao ver a própria imagem refletida no espelho, é quase impossível não lembrar dos anos de dedicação e do montante investido em cosméticos. A opção por um corte menos radical, um meio termo, acaba vencendo.

A notícia do novo visual se espalha entre os amigos e todos anseiam por sua primeira aparição pública. Você mantém o suspense e espera pela ocasião certa, a festa de aniversário daquela sua amiga/paixão platônica. A data não poderia ser mais apropriada, inclusive porque ela sempre foi uma grande incentivadora dos cabelos mais curtos. Você não se contentará com nada menos do que uma oportunidade para declarar seus sentimentos, aproveitando o impacto positivo que sua nova aparência irá causar. Ao chegar à portaria do prédio, você encontra um colega de faculdade subindo com um saco de gelo. Ele “congela” ao cumprimentá-lo, e antes que você possa dizer alguma coisa, o amigão se revela no exato momento em que pousa a mão sobre seu ombro e diz:

- Raspa. Você está parecendo a Glória Pires.

Assim, a partir de uma palavra, você se da conta de que sua referência de auto-imagem é considerada ridícula pelos demais. A festa foi perdida, mas o lado positivo é que você ganhou alguém em quem pode confiar.

Porque esse vai ser o cara que vai avisar que você está com mau-hálito, que sua namorada é safada, que o mecânico te cobrou por uma peça que não existe no seu carro, que sua blusa preferida te faz pagar “peitinho”, que determinado modelo de óculos escuros não fica bem em você pois seu nariz parece uma quilha de barco…enfim, isso sim é a amizade em seu estágio mais avançado.

Com um pouco de atenção -basta ligar a tv ou folhear certas revistas- é possível observar a falta latente que faz um amigão para certas celebridades. Onde estava Erasmo Carlos nos últimos trinta e cinco anos para não obrigar Roberto Carlos a mudar de cabeleireiro? Que espécie de irmão é Luciano para permitir que Zezé di Camargo use aquelas calças de couro apertadas? Falando em roupa, pelo amor de Deus, quem é a figurinista de Joelma, da banda Calypso? E cadê a amigona da ex-BBB Íris Stefanelli para avisá-la que acabaram seus quinze minutos de fama?

Para encerrar, proponho uma reflexão: olhe para o lado e repare se não existe alguém precisando de uma luz, de um sábio conselho, daquela palavra de sinceridade. Não perca a chance de ser generoso, não se deixe abater pelo medo. Quem sabe hoje não é dia de descobrir sua vocação para ser o amigão de alguém? Ou mesmo perceber que era você quem estava desesperadamente precisando de um…

O meu xou da decepção

ter, 26/06/07
por Bruno Medina |

O texto de hoje é a continuação do último post, a segunda parte da saga de uma criança traumatizada pela crueldade dos episódios ocorridos na jornada rumo ao encontro com seus ídolos. No capítulo anterior, o comportamento inconseqüente de Bozo o leva a decadência, mas, antes disso, a hegemonia do palhaço já dava os primeiros sinais de desgaste. Versão brasileira da franquia de um homônimo norte-americano, seria ele um mero representante do imperialismo?

O traje confeccionado em 1946 (ano de criação do personagem) não sofreu mudanças com o passar das décadas, e pouco tinha a ver com a realidade dos trópicos. Seu discurso moralista, repleto de “boas lições”, remetia mais a infância dos pais do que aos anseios e à realidade dos meninos e meninas que o assistiam. Enquanto Bozo perdia fôlego, na extinta TV Manchete conquistava a atenção da mídia o programa “Clube da Criança”, em especial sua apresentadora, uma modelo muito espontânea -essa sim de tirar o fôlego- fazia quase a mesma coisa que o palhaço, só que com as pernas de fora.

Xuxa era um furacão, uma estrela exponencial, e a Rede Globo se deu conta disso a tempo de lançá-la como aquela que conduziria a revolução no formato dos programas matinais voltados para o público infantil. O conceito, o cenário, as músicas, era tudo tão inovador que o “Xou da Xuxa” se tornou rapidamente uma espécie de divisor de águas em sua categoria. Se Bozo foi popular, então falta uma expressão para designar o que foi Xuxa. Em 1987, antes dos inúmeros discos, filmes, especiais, álbuns de figurinhas e brinquedos associados à figura da loira, eu e talvez boa parte dos meus contemporâneos dividiamos um mesmo sonho: participar de uma gravação do Xou da Xuxa.

O dedinho doía de tanto girar o disco do telefone em vão; antes mesmo de registrar o último número, o sinal de linha ocupada. Não havia redial. Como a sorte não ajudava, o jeito era entrar na fila. Minha mãe e uma amiga resolveram encarar a missão e passaram seis horas na porta do Teatro Fênix com o único intuito de assegurar para seus filhos os tão ambicionados convites. A sensação de conseguir as entradas fazia lembrar a Charlie Bucket e a aventura que o possibilitou conhecer a fantástica fábrica de chocolates de Willy Wonka. Aliás, esse e a Xuxa do final dos anos 80 tinham em comum o fato de serem ambos representantes de um seleto mundo da fantasia, uma espécie de Terra do Nunca da vida real.

Por conta disso, os dias que faltavam para a fatídica gravação foram preenchidos com descomunal expectativa. A fim de domar a ansiedade, resolvi redigir uma carta para a musa. Foram várias as versões, até que o conteúdo e a caligrafia fossem plenamente satisfatórios. Não sei se foi o meu caso, mas acho que Xuxa foi o primeiro amor platônico de muitos. Através de sentimentos inéditos despertados por suas belas formas, outros tantos se descobriram além da infância. Alheio a essa observação que só a idade me traria, na noite que antecedeu o compromisso, eu mal consegui dormir pensando no que diria quando estivesse em sua presença. Passei a manhã inteira assistindo essa cena do encontro se repetir indefinidamente. Quando dei por mim, estava sentado no auditório do lado de fora do estúdio, a poucos metros da concretização do sonho.

Havia, porém, entre o sonho e a realidade, algumas regras a serem observadas. Era terminantemente proibido pedir autógrafo, fotografar ou mesmo tentar falar com Xuxa enquanto a câmera estivesse rodando. As crianças eram instruídas a entrarem no estúdio, uma a uma, pegarem um daqueles “pompons” coloridos e se sentarem no chão. Uma menina hesitou na escolha da cor do “pompom” e conheceu a aspereza de Russo (aquele assistente de palco do Chacrinha), acumulada em vinte anos de profissão. Um dos contra-regras me levou para cima de uma bota gigante que adornava o cenário. Perdi de vista a turma que veio comigo e percebi que a partir daquele momento seria cada um por si.

Tirei a carta que tinha escrito do bolso e percebi que de cima da bota estava na mesma altura da porta do disco voador que traria Xuxa. Essa era uma oportunidade de ouro para fazer a entrega, bastava esticar o braço quando ela saísse da nave. Lembrei do esporro que a menina levou por causa dos “pompons” e percebi que talvez essa não fosse exatamente uma boa idéia. A gravação começou e Xuxa surgiu com beleza e graça indescritíveis. Até hoje me lembro da roupa que usava naquele dia, como esquecer? Ela passou perto de mim enquanto descia as escadas para cruzar a horda de crianças que a separavam do centro do palco, e constatei que o topo da bota era um péssimo lugar.

Pedi ao Dengue que me pusesse no chão, ele não ouviu ou fingiu não ouvir. Considerando minha estatura, a bota representava o segundo andar de um prédio, e alguns minutos foram necessários para que eu tomasse a coragem necessária para me atirar. A queda foi dolorida. Fiquei estendido no chão, recobrando o juízo enquanto procurava meus óculos e sem ninguém para ajudar, todos os olhares estavam voltados para ela. Além de dolorido, estava em franca desvantagem pois, a minha frente, havia pelo menos três fileiras de crianças bastante conscientes de que só quem estivesse na frente das câmeras seria escolhido pelas Paquitas.

A parte detrás do cenário, longe das câmeras, era terra de ninguém, e meninos logo se amontoaram no chão, num incansável corpo a corpo. Quando Dengue e Praga se aproximaram para apaziguar os ânimos, sobraram chutes para eles também. Foi engraçado ver um mosquito gigante e uma mini-tartaruga brigando com crianças e proferindo palavrões cabeludos. Com muito esforço consegui chegar à segunda fila, de onde pude assistir os filhos da amiga da minha mãe vencerem uma brincadeira e receberem o famoso kit “brinquedo-revista”. Quando Xuxa perguntou para quem um deles queria mandar um beijo, o menino ficou nervoso e soltou um “pra você e SUA família”. A saudação equivocada chegou a virar moda por um tempo e o erro no pronome virou consideração a mais com a “Rainha dos Baixinhos”.

Sem dúvida a melhor forma de alçancar a primeira filia era pelo canto do palco. Claro, o meio era onde todo mundo queria estar, muito disputado, mas o canto… então fui seguindo por entre a multidão até a extrema direita do cenário, num lugar onde as câmeras mal captavam, e de lá fui voltando. Pronto, estava na primeira fila. Decidi que me posicionaria atrás de Xuxa a qualquer custo e para isso era preciso deixar de lado a prudência. Eu me jogava em cima, dava cotovelava, empurrava, pisava no pé, até que apareceu uma Paquita. Ela olhou para mim e achei que seria expulso por má conduta. Nada disso, eu tinha sido escolhido! Ela me pediu que aguardasse num lugar onde havia um pequeno grupo de crianças e que todos iriam brincar. Encontrei meu irmão, e comemoramos o fato de estarmos juntos ali. Ele foi o primeiro a ser chamado. Participou de uma prova de desenho e ganhou um kit quase do tamanho de uma prancha de body-board, com todas as espécies de lápis e canetas possíveis de se imaginar. Coloquei a blusa para dentro da bermuda porque ouvi alguém dizer que a próxima brincadeira seria aquela em que vencia quem “roubasse” mais laranjas da árvore. Acabou que outro menino foi chamado. De repente minha prima surgiu – não sei como – ao lado de Xuxa para ganhar de ponta a ponta a competição do banho de chuveiro, e levar para casa um walkie-talkie.

Finalmente chegou a minha hora. Fui conduzido até uma mesinha e lá me puseram sentado. Ganhei um picolé de chocolate e pensei já estar usufruindo as regalias de uma brincadeira muito especial. Depois do walkie-talkie que prêmio poderia esperar? O grupo Fundo de Quintal fez uma apresentação e foi então que entendi, que tinha sobrado. O programa se aproximava do fim e eu havia sido esquecido! As Paquitas selecionaram outras crianças, e as brincadeiras acabaram sem que eu tivesse vez. Antes do apagar das luzes do estúdio, me restava apenas uma possibilidade de êxito: entregar a carta para Xuxa e receber em troca um beijinho que deixasse a marca do batom. Esse seria exibido como um troféu, pelo menos até a hora do banho no dia seguinte.

Levantei da banqueta no meio da música “Só pra contrariar” e segui pelo cantinho, para me posicionar, em definitivo, junto ao primeiro degrau da escada que conduziria Xuxa de volta a sua nave. Meti a mão no bolso para pegar a carta e estar de prontidão e… cadê a carta? A carta caiu do meu bolso! Abandonei o posto e sentei no fundo do cenário, apenas aguardando que a gravação terminasse para que eu pudesse me esquecer daquela tarde. Com o estúdio vazio, encontrei minha carta, pisoteada no chão. Peguei-a e seu destino foi o lixo. Na volta, dentro do carro, pude ouvir em detalhes as incríveis histórias das outras crianças e conhecer de perto seus prêmios, afinal TODAS haviam brincado, TODAS haviam vencido e TODAS haviam conhecido a Xuxa. O único que não tinha ganhado nenhum prêmio e não tinha nenhuma história para contar era eu.

Uma década depois voltei ao programa, dessa vez no palco, como atração. Obviamente não houve tempo, tampouco vontade, de contar a ela essa história.

”Amiguinhos, não façam isso!”

sex, 22/06/07
por Bruno Medina |

Há algumas semanas, quando escrevi sobre a condição de se estar na mão do palhaço, acabei me lembrando de um episódio insólito. Mas depois de um post sobre a precoce experiência com a dança, será que ainda cabe um texto sobre traumas de infância? Uma nova abordagem sobre esse tema poderia levá-lo a ter a mesma sorte do bigode, banido em definitivo deste espaço. Apesar da minha determinação em deixar esta pauta de lado, toda vez que sentava para escrever, ela vinha à tona. Evitei-a enquanto pude, para descobrir que não resta outra opção senão entregar-me a ela, ou melhor, entregá-la a vocês.

Bozo. Estas quatro letras fizeram e ainda devem fazer parte do imaginário de muita gente que cresceu durante os anos 80. Seu programa era exibido de segunda a sexta, depois do café-da-manhã, numa época em que um palhaço ainda podia alçar-se a categoria de ídolo. Papai Papudo, Vovó Mafalda e Salsi Fufu completavam o elenco que se revezava nos esquetes que, invariavelmente, terminavam com tortas de creme na cara e pó de talco simulando explosões. “Bozo Baldinho”, “Bozo Corrida” (aquela dos cavalinhos) e “Bozo Memória” eram as brincadeiras prediletas da garotada que se espremia na pequena arquibancada do cenário do programa, confeccionado à semelhança de um picadeiro circense. Os dias começavam melhores quando o palhaço e sua turma invadiam nossas casas, logo cedo, com animação incompatível com o horário.

Apesar da pouca idade, não compactuava com a prática do selinho no grande e redondo nariz do palhaço, achava aquilo anti-higiênico, mas, ainda assim, conhecê-lo pessoalmente seria uma grande satisfação. A opção de viajar até São Paulo para participar da gravação do programa tinha sido descartada por minha mãe, e as possibilidades de estar na presença de meu ídolo eram remotas. O jeito era me conformar em interagir com ele pela espaço da televisão.

Numa tarde de sábado de um ano que não me lembro, o telefone de minha casa tocou. Alguém trazia a boa nova de que Bozo, em carne e osso, estava dando autógrafos e fazendo brincadeiras no estacionamento do shopping Rio Sul. Eu e meu irmão nos vestimos o mais rápido que pudemos e, munidos de câmera fotográfica, partimos para o local com uma excitação febril. Já na entrada do estacionamento era possível ter noção da popularidade daquela figura. Carros enfileirados, pais visivelmente impacientes, filhos espremidos no banco de trás, ávidos por ver ao vivo aquele que até agora só existia pela televisão. “Sempre rir”, “1, 2, 3… vamos lá”, e “Dá uma bitoca no meu nariz” eram apenas algumas músicas cantadas ininterruptamente durante todo o trajeto de casa até aquele engarrafamento, quando meus pais imploraram por silêncio.

Finalmente conseguimos estacionar. Sortudos que driblaram a fila do estacionamento e chegaram mais cedo já vinham em direção contrária, antecipando o que eu tanto esperava das brincadeiras. Era preciso apertar o passo para ainda ter tempo com Bozo.

Ouvíamos a voz do palhaço e a gritaria histérica da turma, e isso multiplicou ainda mais – se é que era possível – a ansiedade pelo encontro. Era tanta gente que do chão não consegui ver mais do que sua peruca vermelha. A situação não melhorou nem quando fui alçado aos ombros do meu pai. Ganhamos a multidão cavando espaços pouco a pouco, como num tabuleiro de xadrez, imbuídos de espírito guerreiro para alcançar a meta, a corda que cercava o espaço onde Bozo estava. Aquele ponto proporcionava um bom ângulo para fotografia e, qualquer um que estivesse ali poderia considerar a chance de ser eleito para uma brincadeira.

- Quem quer brincar com o Bozo??? !!! – perguntou Garoto Juca.

- Eu, eu! – respondi saltitante. Minha mãe sorriu para mim; dedo indicador fixo no disparador da câmera; sabíamos que realmente havia uma chance, e isso era bom demais para ser verdade!

- Garotada, atenção. Agora o Bozo vai precisar de muito espaço para fazer uma brincadeira especial. Papais, mamães, vamos todos dar dois passinhos para trás. Isso vai ser necessário para evitar que alguém se machuque, pois está muito cheio. De mãos dadas caminhando para trás, conto com a colaboração de todos vocês…

E a criançada não decepcionou, executando com maestria o movimento solicitado, num momento de rara disciplina, principalmente tendo em conta ocasiões como essa. O espaço surgiu, assim como uma penca de seguranças que formaram um corredor de isolamento. Bozo fugiu em disparada, com seus sapatos enormes e os babados da roupa tremulando ao sabor do vento. A organização se desfez em segundos e todos – incluindo minha família – partiram para o mesmo lado, imaginando que o que estava por acontecer seria de fato especial. Quem sabe um cenário até então não revelado, ou mesmo um número musical com a participação de outros personagens? Debruçado no guarda-corpo de vidro, agora já dentro do shopping, minha pouca estatura não foi obstáculo, pude ver o palhaço descendo as escadas rolantes, previamente desligadas com o intuito de facilitar sua saída estratégica.

Como o evento recebeu público muito maior do que o esperado, Bozo não estava conseguindo deixar o local. A produção optou por “inventar” uma brincadeira que o permitisse chegar até o corredor e de lá até seu camarim improvisado. Os mais velhos de pronto entenderam o que havia acontecido e foram embora, cheios de decepção. Já eu, precisei ser convencido por meus pais de que meu ídolo não iria retornar. Foi um golpe duro, uma imagem que nunca se apagou. A partir desse dia o rancor e a incompreensão me impediram de continuar assistindo ao programa.

Mais tarde fui vingado por um fã, outro que também deve ter sido feito de bobo pelo palhaço. O caso ficou conhecido por “amiguinhos, não façam isso!”, frase dita em resposta ao “Bozo, vai tomar no cu”, disparado por telefone, ao vivo, sem chance de defesa, durante o quadro “TV Pau”. Os tempos eram outros. Xuxa assumia em definitivo o posto de rainha dos baixinhos, e Bozo, cada dia menos popular, acabou se entregando à cocaína.

Minha birra com nariz de palhaço só diminuiu depois que passei a ver fãs exibindo o adereço ao som de “Todo carnaval tem seu fim”. Aliás, alguém sabe dizer como e por que esta moda pegou?

Gisele Bündchen Week

ter, 19/06/07
por Bruno Medina |

Jornalistas de plantão, modelos de passarela e vips de toda ordem já podem descansar, encerrou-se nesta terça-feira, em São Paulo, a Gisele Bündchen Week, o mais badalado evento de moda do país. A exaustiva cobertura nos meios de comunicação foi suficiente para saciar a todos, especialmente os que não agüentam mais tantos “looks”, “hypes”, “make”, “trend setters”, ou qualquer outra dessas expressões em inglês, palavras de ordem do dialeto “fashion”, disparadas a torto e a direito nesses últimos dias.

As semanas de moda são um evento antropológico – ou objeto sociológico – bastante interessante. É como um circo, fantástico e fugaz, apresentando de antemão as tendências da próxima temporada. Taí uma coisa que eu nunca entendi, as tendências… Alguém tem a incumbência de determiná-las? Será que existe um calendário, um livro, um manual, talvez, com uma tendência designada para cada ano? Ou será que é um sorteio? “A tendência desse ano é…calças justas com… blusas largas!”

Na estação passada, resolvi tentar ter respostas para esse mistério, e fui conferir os desfiles das coleções. Seja qual for o figurino, é aconselhável sempre levar em consideração o uso de sapatos confortáveis, e preparar-se para andar bastante, entre um desfile e outro, o termo “maratona” faz sentido. A grande maioria dos presentes é adepta do estilo “peguei qualquer coisa no armário”. Mas isso é intrigante, pois, à primeira vista, o que se imagina é que cada um ali passou horas em frente ao espelho de casa considerando cada detalhe do visual a ser exibido.

No mais é como um show, na passarela e nas áreas de convívio, o lugar que verdadeiramente inspirou a frase “ver e ser visto”. Funciona mais ou menos assim: você faz uma presença e assiste a um desfile, faz mais presença, assiste a outro desfile, e vai desse jeito até cansar as pernas. É preciso, no entanto, estar atento às filas que se formam para conseguir bons lugares, a não ser que você seja vip mesmo – não era o meu caso – e a produção da grife reserve seu posto exclusivo, de preferência colado à passarela. Os “guarda assentos” estarão lá, assegurando o atraso das estrelas, que, convenhamos, é praxe, afinal é muito mais chique do que chegar com antecedência.

De repente a música aumenta, as luzes são acesas, os flashes começam a pipocar, e os modelos adentram a passarela. Em cinco minutos, tudo encerrado, hora de seguir para outra tenda. O tempo da moda é o do instantâneo, do imediato. Impossível não ceder a alguns dos conceitos de Barthes, “a moda é desprovida de conteúdo, mas não de sentido. Espécie de máquina de entreter o sentido sem jamais fixá-lo, ela é sem cessar um sentido decepcionado, mas é sempre um sentido: sem conteúdo, torna-se então o espetáculo que os homens se dão a si próprios do poder que eles têm de fazer significar o insignificante”.

Não fui convidado para nenhum desfile da temporada primavera/verão, mas, pelo que me consta, a imagem marcante – como não poderia deixar de ser – foi mesmo a de Gisele surgindo através da porta do elevador para, em seguida, deslizar pela passarela com seu indefectível rebolado. Levou muitos a sonharem com a repetição da cena no prédio em que moram. E como num devaneio, a brasileira mais famosa da atualidade, entrou, caminhou e saiu, para o deleite de uma platéia delirante. Ao final do desfile, a volta triunfante, para mais uma aparição relâmpago, e a saída, em grande estilo, pelo mesmo elevador que a trouxe.

Não sei se algum vizinho estava descarregando um carrinho cheio de compras, ou algum engraçadinho ressuscitou aquela brincadeira infame de apertar os botões de todos os andares, o fato é que o elevador demorou mais do que devia. Foram segundos, o suficiente para causar um princípio de enfarte nos produtores da grife, afinal, quem em sã consciência gostaria de deixar Gisele esperando, seja por que motivo for? Nesses momentos é que acho que ela vale o quanto pesa – quer dizer, no caso das modelos, o ditado é ingrato. Concordo que mereça ser o expoente máximo da moda no país, afinal, é complicado esperar por um elevador com a devida atitude. Quando estou com dois desconhecidos no hall já me sinto estranho, imagine diante de uma platéia daquelas?

Fui um dos telespectadores que teve o privilégio de assistir, no conforto do lar, em tempo real, a essa cena, transformada midiaticamente no supra-sumo de toda uma semana de evento. Não cedi à tentação libertadora do zapping, larguei o controle-remoto quando comecei a ouvir o burburinho característico dos grandes acontecimentos. Aquele empurra-empurra, cabeças de repórteres em quadro, câmeras fotográficas e flashes disparados ao léu. Seria uma entrevista coletiva por ocasião da renúncia de Renan Calheiros? Engano. A voz da repórter, soterrada na relva de fios e microfones, me colocou a par da situação: “gente, eu acho que é ela…vamos aguardar… posso ver o cabelo, alguns seguranças, peraí… Ok, confirmado, Gisele Bündchen chegou!”

– Legal. E daí?

— E daí que ela é a modelo mais famosa do mundo.

– E daí?

– E daí que ela é brasileira.

– E daí?

– Você não gosta de moda, para quem gosta isso é muito relevante.

– Por quê?

– Porque ela representa o Brasil nos desfiles mundo afora.

– … (???)

Não, Gisele Bündchen não representa o Brasil em lugar nenhum. Representa a si mesma, e não há nada de errado com isso. Cabe registrar que não tenho absolutamente nada contra a moça, que é linda e faz seu trabalho muito bem, o problema é depositarem em uma modelo a esperança de algum tipo de estima para o país. O reconhecimento conquistado no exterior lhe garante todo o espaço possível na mídia, e Gisele pode facilmente ser alçada a porta-voz, referência de qualquer tema sobre o Brasil. As respostas expõem a fragilidade de opiniões de alguém que se dedicou exclusivamente à moda, desde muito jovem. A atenção despendida a essas celebridades diz muito sobre a auto-estima nacional.

Nesta semana, o jornal noticiava que Gisele ficou muito aborrecida quando o motorista do carrinho que a levava até a passarela acelerou para evitar a abordagem dos bicões. Também li que foi muito decepcionante para os supervips escolhidos a dedo terem tido seu “direito” de estar no mesmo andar que a musa durante a festa que ocorreu após o desfile subtraído. Sabe-se apenas que ela dançou muito. Ah, francamente, me dá uma notícia relevante aí!

Já soa até clichê atribuir ao mundo da moda frivolidade e, às modelos, inteligência rasa, mas, preconceitos à parte, a Fashion Rio ou a São Paulo Fashion Week, para o leigo da moda, são realmente a Gisele Bündchen Week. A modelo agradece, incrementa o saldo bancário, e decola para outro evento em algum lugar do mundo. Os brasileiros, ainda inebriados por sua visita, vão saber esperar até o ano que vem. Ou pela próxima Gisele.

A morte do videoclipe

sex, 15/06/07
por Bruno Medina |

A idade é dessas coisas que chega sem anúncio. São detalhes – uns cabelos brancos aqui, uma dor de coluna ali, a sensação de que o tempo anda mais veloz – que nos sentenciam o peso dos anos; isso para quem está atento. Para os distraídos, existem outras oportunidades para perceber que as gerações se sucedem, como numa longa fila, e que o ciclo natural consiste numa regra imutável: a atual precisa ceder lugar à próxima. Meus contemporâneos esticam o pescoço, e observam com atenção o engatinhar da geração que surge, a partir do anúncio da morte do videoclipe.

O trecho acima pode ter soado um tanto melancólico. Com razão. No final do ano passado, Zico Góes, diretor de programação da MTV, comunicou a moribunda novidade, e muitos devem ter sentido algo semelhante ao que descrevi. Considerei que, antes de escrever sobre o tema, o mais prudente seria aguardar para atestar de que exatamente morreriam os videoclipes. Seis meses se passaram e não me arrisco a dizer que estão mortos. Uma descrição mais precisa poderia indicar que agonizam, asfixiados pela falta de espaço e de relevância na grade de programação da emissora que os tornou tão populares num passado recente. As peças resumiram-se a meras citações, fragmentos, trechos, porque, supostamente, não existe demanda ou motivo para assisti-los por inteiro.

Já vão longe os dias em que ditavam moda, criavam hits instantâneos e catapultavam bandas do anonimato ao estrelato. Quem tem entre vinte cinco e trinta e cinco anos, testemunhou o apogeu dessa época, quando até o noticiário político e os gols da rodada de domingo podiam esperar para que se pudesse assistir à estréia de clipes no Fantástico. A família se reunia na sala para ver Michael Jackson e Madonna dançarem em cenários improváveis; alguns minutos de um clipe dos Paralamas do Sucesso e a molecada já fazia planos de correr para as lojas de instrumentos no dia seguinte atrás de suas primeiras guitarras.

Seguindo uma tendência internacional, o Brasil também ganhou, no primeiro ano da década passada, seu canal dedicado totalmente à música. No início, transmitida pela tv aberta, depois, por sinal em UHF, a MTV rapidamente virou uma febre, que deixou mães e pais a beira da loucura por conta da insistência dos filhos em adquirir a bendita antena de chifre. Com sorte e um bombrilzinho na ponta era possível distinguir cores, quanto ao som, infelizmente, em muitos apartamentos, apenas uma desanimadora chiadeira era audível.

Com o advento das tvs por assinatura, tudo ficou mais fácil. A MTV cresceu, e o VMB – evento que premia os melhores vídeos do ano – elevou as peças à categoria de arte, atraindo profissionais da publicidade e do cinema. Os orçamentos das gravadoras destinados às produções aumentavam na mesma proporção com que o canal perdia seus principais VJs para as tvs abertas. A MTV possuía o que todo canal almejava: fidelidade de público, linguagem arrojada e fôlego para expandir.

Dito e feito. Chegaram os grandes patrocinadores, o merchandising, e a emissora começou a faturar alto. O descompromisso, responsável por torná-la produto de primeira necessidade entre os jovens – ou mesmo para qualquer um que gostasse de música -, foi lentamente sendo substituído pela perspectiva de lucro, e foi aí que as mudanças mais drásticas começaram a ganhar corpo; o canal identificou seu público alvo, cercou-o, e passou a se comunicar quase que exclusivamente com ele. Portanto, se escapa da faixa etária que vai dos doze aos dezoito (dezoito com boa vontade), a MTV não é feita para você. Os programas de música ao vivo e de clipes saíram da grade, os de comportamento “teen” e enlatados americanos entraram para ficar, e a “Music Television” passou a ter cada vez menos música.

Há um programa – devo admitir que foi esse que inspirou o primeiro parágrafo – em que a tela se divide em duas; na parte inferior, adolescentes, devidamente identificados por seus nicks, conversam sobre coisa nenhuma, trocam publicamente mensagens de texto que só fazem sentido para eles próprios. No fundo, disputando a atenção do telespectador com a curiosa grafia dos diálogos, em meio a tantas outras informações, o famigerado videoclipe. Por aí concluo que alguma coisa está fora da ordem (ou fui eu que me tornei obsoleto) porque, sinceramente, não consigo entender como esse tipo de programa pode ocupar o espaço antes destinado à exibição daquele que foi o grande responsável pela existência da MTV. Será que o fundo da tela ou a internet são os últimos redutos da era dos videoclipes? Será que a geração atual não tem razão para assisti-los? Será que os clipes viraram coisa de velho?

A argumentação dos que defendem a aposentadoria do formato se relaciona com o desejo (e a possibilidade) latente de o próprio telespectador decidir o que quer assistir em sua tv. Segundo a teoria, os clipes exibidos pela emissora estariam em desacordo com a nova tendência, quando o ideal é que cada um seja responsável pela programação que melhor lhe convém. Neste cenário, o site do canal serviria como um grande provedor de videoclipes, escolhidos ao gosto do cliente.

Se essa conjectura ainda não é absolutamente viável devido a limitações tecnológicas, em breve será. Talvez no dia em que não só esse como todos os outros canais de tv passarão a existir de outra maneira. Então, só nos resta aceitar que o novo sempre vem, e se adequar. É curioso pensar que quando a MTV surgiu, no início dos anos oitenta, havia quem dissesse que os videoclipes desnudavam e expunham em demasia os artistas, maculando a mítica relação ídolo-público que só se dava através de fotografias e apresentações ao vivo.

Não por coincidência, “Video killed the radio star”, da banda The Buggles, foi o primeiro clipe transmitido pelo canal nos Estados Unidos. Havia algo de irônico e cruel em assumir o papel de carrasco imputado pelos conservadores. Um trecho da letra da música, traduzido, diz algo como: “… o vídeo matou as estrelas do rádio/as imagens chegaram e partiram meu coração/ponha a culpa no videoteipe …”.

Assim como as rádios um dia temeram por sua sobrevivência, hoje a MTV enfrenta o desafio de pensar que medidas devem ser tomadas para que permaneça sendo referência para seu público. O golpe deferido nos videoclipes deixou seqüelas, mas não o matou. Se por um lado aproximou a emissora de alguns, afastou-a de tantos outros. A pergunta é: será que valeu a pena?

O dia da invenção do amor

ter, 12/06/07
por Bruno Medina |

Hoje é doze de junho, dia dos namorados. Taí uma data difícil de se esquecer. Mesmo se falta um par – motivo indispensável para a comemoração – ainda assim não é possível ficar indiferente, porque tudo a sua volta parece conspirar a favor, ou, quem sabe, contra. Essas vinte quatro horas podem ser de agonia, por exemplo, para aqueles que têm uma relação não oficializada. Digamos, um caso. Dia dos namorados serve à reflexão: o que estava muito bem, confortável para ambos, pode tornar-se subitamente tenso por conta da possibilidade daquela temida pergunta. O saldo pode ser de surpresas desagradáveis. E se aquele colega de trabalho decide aproveitar a ocasião e se declarar para você no horário de almoço? E se o cartão virtual, enviado pela namorada, ao ser aberto vem acompanhado de uma música cafona, tocada em alto brado, e, de quebra, ainda revela a todos do departamento seu apelidinho secreto?

Tudo culpa desses corações enormes pendurados nas vitrines, escolhidos a dedo pelos lojistas na tentativa de despachar de vez as mercadorias encalhadas no dias das mães. Operam também como um sinal de alerta para os distraídos ou ocupados, que já aprenderam o código de regras que vale durante este dia. As indiretas começam a despontar no final de semana anterior; os suplementos de vendas encartados no jornal de domingo aparecem com decorações inspiradas no tema. São inúmeras as operadoras de celular oferecendo promoções mirabolantes, daquelas que lhe renderão um ano inteiro de ligações inoportunas do seu amor durante o horário de trabalho, só porque a tarifa é reduzida. Isso quando o namoro não desanda e o que sobra é a promoção.

Chegar de mãos abanando, não convidar para jantar fora, não dizer “eu te amo” repetidas vezes pode servir de pretexto para uma série de questionamentos, cobranças, ou, até pior, a temida discussão da relação, expressão da qual os homens fogem como o diabo da cruz. São sumariamente acusados de não-românticos os que se atrevem a dizer que dia dos namorados não passa de uma data inventada pelo comércio, com o único intuito de criar mais um motivo para aquecer as vendas. O problema começa quando sua cara-metade não corrobora com esta constatação.

Tudo bem que quem-ama-sempre-tem-um-motivo-para-comemorar etc., etc., mas, convenhamos que a data incita polêmica. Assim como no dias das mães, o buquê de flores dobra de preço, os restaurantes ficam lotados, os motéis têm fila na porta, e quem, a princípio, nem queria comemorar acaba se sentindo um pato. O amor não precisa de uma data, pode ser celebrado todo dia, certo? Errado. O dia é doze de junho, e ai de você se tentar fugir das comemorações! Agradeça ao publicitário paulista João Dória, que no finalzinho da década de 40 criou uma promoção para a extinta loja Clipper. O slogan era “Não é só de beijos que se prova o amor”. No ano seguinte a Confederação de Comerciantes oficializou a data.

No resto do mundo dia dos namorados é dia de São Valentim, 14 de fevereiro, mas por aqui cairia no auge do verão e no meio do Carnaval, não ia “pegar”. Outro motivo deve ter ajudado na escolha, amanhã é dia de Santo Antonio, o famoso santo casamenteiro. O comércio faturando e o coitado do santo de cabeça para baixo dentro do congelador.

A noite ainda pode ser de sina para os famosos. Os paparazzi estão à solta, ávidos por registros da primeira manifestação pública do namoro de casais ainda não revelados. Daqui a dois dias, nas bancas, o casal-revelação do ano, é batata. Mas se você não é famoso é preciso apenas tomar cuidado com aqueles vendedores de flores que surgem do nada em frente a sua mesa de bar.
Configura-se ali, naquele instante, uma daquelas magistrais situações de coação:
“Não vai dar uma rosa pra ela?”, indaga o espertalhão já estendendo o braço e quase esfregando a rosa na cara de sua amada. As pessoas nas mesas em volta discretamente se viram para acompanhar a cena.

- Não, obrigado, hoje não.

Você não quer uma rosa, sua namorada não quer uma rosa, mas…

- “Uma moça tão bonita merece uma rosa todos os dias”, insiste.

Essas últimas frases sempre ganham um volume mais alto, parece que a intenção é mesmo todos ouvirem e o constrangimento aumentar. Feira moderna. Você continua convicto de que não deve comprar algo que não deseja, e a percepção da estratégia maquiavélica é irritante. O golpe de misericórdia:

- Eu faço desconto, leve duas pelo preço de uma.

Pronto, você olha para o rosto de sua namorada e sente que ela agora já quer a rosa de qualquer jeito para não pensarem que está acompanhada de um pão-duro insensível. É a sua honra que está em jogo. Você perdeu, puxa a carteira do bolso e nem é preciso escolher, nesta data só valem as rosas vermelhas. Sai levando duas rosas e, como penitência, quando chega em casa, de madrugada, ainda terá de procurar um vasinho.

Meu primeiro dia dos namorados foi no tranco. Estava na classe de alfabetização e desconhecia que aquele era um “dia especial”. Estava lá, cobrindo as formas pontilhadas na minha carteira, quando de repente surge Raphaela, segurando cuidadosamente um caminhão de plástico com boizinhos na caçamba. Era um presente de dia dos namorados. Na verdade, eu não sabia que ela era a minha namorada e fiquei muito confuso com o presente, até porque não tinha comprado nada para ela. Quando minha mãe foi me buscar, pedi que fôssemos a uma loja escolher um presente para Raphaela, que a partir de então, ganhou o posto de namorada. Pronto, formado o casal, ponto para os lojistas.

A relação não durou muito, talvez porque precisássemos de mais tempo antes de oficializar tudo, pesou o compromisso. Eu era uma criança de seis anos, mas tem muito marmanjo que cai no golpe do presente surpresa. De qualquer forma, hoje é dia de colocar as coisas em pratos limpos, então, se você acha que corre algum risco, desligue o celular, falte ao trabalho e não saia de casa. O conselho também se aplica a quem está solteiro.

sex, 08/06/07
por Bruno Medina |

Atribuí a mim mesmo a ingrata tarefa de transpor para o universo das letras o que se deu na noite de ontem, no primeiro dos três shows que faremos na Fundição Progresso. Eu, que sempre me equilibrei entre palavras e música, percebo que talvez me falte agora a devida habilidade para criar pontes seguras entre esses dois hemisférios. Suponho que nem mesmo os que estiveram lá serão capazes de retratar com merecida fidelidade o que foi ouvido, sentido ou visto naquelas quase duas horas.

No início da tarde, como de praxe, a passagem de som. Cheguei um pouco atrasado, o bastante para ouvir ainda do lado de fora uma massa sonora indecifrável. Era a parte instrumental de uma música do nosso primeiro disco. A cada passo em direção à coxia, as notas ficavam mais nítidas. A demora em percorrer o trajeto foi suficiente para que eu me transportasse até o ano de 1998, mais precisamente até a noite em que tocamos no festival Superdemo, naquela mesma Fundição.

A música que coincidia com minha chegada à passagem de som nossos primeiros fãs conheceram através de uma fita cassete, há quase uma década. Lembro de ter lido, certa vez, que fomos uma das últimas bandas a “estourar” utilizando o formato das obsoletas fitas-demo. A produção em série era artesanal, muito trabalhosa; corríamos a cidade atrás da xerox mais em conta, e era preciso perícia para que ambos os lados da folha matriz estivessem devidamente alinhados, evitando que o encarte ficasse torto. Na primeira demo, “Amor e Folia”, a ilustração das capas era uma rosa pintada à mão com hidrocor vermelho, uma a uma. Nem a possibilidade de divulgar a banda a custa de bolhas nos dedos impediu que fizéssemos o mesmo nas cópias da segunda demo, “Chora”. No total, duas mil cassetes.

Pouco mais de um ano separou aquela Fundição do nosso primeiro show para setenta pessoas no bar Empório. Naquela época, cada um era responsável pelo próprio equipamento – o que é realidade para bandas iniciantes – e fazia muita diferença a distância entre a “garagem” e o palco, porque era eu, no lombo, que carregava o teclado e a estante. Este mesmo percurso que fiz ontem, anos atrás foi feito com custo. Nada que não pudesse ser relevado em nome de participar do maior e mais notório festival de música alternativa da cidade. O público de todas as bandas escaladas, reunido, se acomodava com conforto no hall de acesso da Fundição, a arena seria um exagero. Lembro-me do palco baixo, do chão quadriculado, e da passagem de som, que gerava mais apreensão do que tranqüilidade em razão das várias dificuldades técnicas já pronunciadas.

Era preciso montar o equipamento com agilidade para aproveitar ao máximo os parcos trinta e poucos minutos a que cada grupo tinha direito. Em seguida, desmontar também na pressão para ceder espaço aos colegas do underground, e, mais tarde, repetir o mesmo ritual. A pressa foi tanta que a recompensa foi uma canelada em cheio numa das quinas, caprichosamente pontiaguda, da estante que sustentava – aliás, sustenta até hoje – meu teclado.

E nem a canela roxa, que me incomodou por quase duas semanas, foi capaz de tirar meu ânimo. Agora me escapam os detalhes desse show, mas o saldo foi acima do esperado. O evento rendeu resenhas elogiosas, e, possivelmente, foi responsável pela nossa escalação para o Abril Pro Rock do ano seguinte. O festival repercutia nacionalmente e foi um divisor de águas. Depois dele assinamos nosso primeiro contrato com uma grande gravadora. Outro episódio inesquecível marcou o desfecho daquela noite. Quando saí da Lapa, com um misto de cansaço e agitação, e ainda levado pelo escasso movimento de carros da madrugada, me confundi e avancei na pista errada do Aterro do Flamengo. Quando em velocidade me dei conta de que as placas de trânsito estavam ao contrário, só foi o tempo de avistar um caminhão vindo ao meu encontro, ensaiar uma manobra ousada e, felizmente, fazer a volta. Depois de tanta emoção, ainda foi preciso arrastar aquela maldita e pesada estante até a sala de casa. Antes de dormir, notei que pendurada no pescoço estava a credencial do evento. Guardei-a na mesa de cabeceira, e foi daí que surgiu o hábito de colecionar todas as outras que se seguiram.Ontem não recebi nenhuma para incrementar minha coleção, mas isso não fará com que a data seja esquecida. Os amigos em peso estavam lá, as músicas meio sumidas também, além do intenso encontro entre nós e a platéia. Num determinado momento, Marcelo se referiu ao nosso público como o melhor do mundo. Sinto o mesmo. Os fãs do Los Hermanos cantam uníssonos cada verso, ouvem e esperam pela música que gostam, esboçam singularmente suas emoções sabendo que isso varia em cada pessoa ao lado. Muitos vieram de outras cidades, estados, uma bandeira de Pernambuco coloria o espaço, e todos ali apenas para partilhar aquele momento. Lembrei das histórias dos que se conheceram nos shows e se tornaram grandes amigos, apesar da banda. É muito gratificante constatar que nossas músicas foram capazes de aproximar tanto pessoas de pessoas e, em alguns casos, pessoas delas mesmas.

Foram mais de quinhentos shows, e cada um deles me permitiu ver mais, apesar disso parecer clichê. Passei por lugares em que nunca imaginei estar, fiz amigos e, principalmente, cresci. Cada uma dessas histórias faz hoje parte do que sou, e, provavelmente, me acompanharão para sempre. A partir de domingo próximo, se inicia uma nova etapa em minha vida. Não há como se preparar para um período quando o que fiz nos últimos dez anos não mais norteará minha rotina. No entanto, enxergo essa aparente desorientação com otimismo, afinal, este mesmo sentimento me acompanhou por toda a carreira.

Um recesso por tempo indeterminado será encarado por mim como uma vontade de olhar para o que passou e para o que ainda está por vir com igual peso. Não é possível determinar um prazo para esse processo, porque, se fosse previsível, não seria de fato. Acredito que levará o quanto for.

Permitir-me esta reflexão, tendo claro tudo que está em jogo, é, na minha visão, um ato de profundo respeito por nossa música e pelas pessoas que nos acompanharam. Durante este tempo estarei organizando minhas credenciais, e criando espaço para muitas outras.

Vida louca, vida breve

ter, 05/06/07
por Bruno Medina |

Há meses acompanho com atenção as reportagens e matérias que pipocam por todos os meios de comunicação sobre a tal realidade virtual, mais recentemente associada ao programa Second Life; o conceito já é familiar, embora dessa vez o nome seja tão pretensioso e emblemático que não resisti à curiosidade e quis sentir na pele por que já somam quase dois milhões de adeptos só aqui no Brasil.

Para começar, é preciso baixar um software que, depois de instalado, nos leva à etapa seguinte: constituir as características do seu avatar, denominação dos personagens que encarnamos no programa. Visto que não me foi dado o direito de escolher como vim a esse mundo, pensei que seria uma oportunidade no mínimo interessante poder criar na íntegra meu representante no plano virtual. Primeira decepção. A escolha do meu nome precisava ser feita a partir de uma lista contendo algumas poucas opções. Dentre as possibilidades, acabei optando por me chamar Hugo Paderborn. O nome é esquisito, eu sei, e não foi escolhido com base em nenhuma referência afetiva, histórica ou literária, mas essa sina também acomete a tantos na vida real, nada com que não se acostume.

Avatar batizado, é chegada a vez de confeccionar os atributos de sua aparência; as possibilidades de escolha são amplas: do nariz aos sapatos. O programa – aqui em casa pelo menos – rodava muito lento, e a vaidade cedeu lugar à impaciência, o que deixou meu avatar com um visual bem chocho. Para incrementar seu personagem, existem butiques com modelos personalizados, mas, isso não é grátis, exige um cartão de crédito, e o desembolso de dinheiro de verdade. Linden Dollar é a moeda comum que torna fluida essa fronteira entre o real e o virtual. Como não pretendia empenhar recursos nessa experiência, minhas possibilidades de estilo ficaram bastante limitadas. No meio do processo, por conta do antigo hábito, acabei esquecendo de me criar de bigode, e daria tanto trabalho consertar que preferi ficar de barba mesmo.

Meu avatar estava pronto para ganhar o mundo virtual, e eu, ansioso para conhecê-lo. Era chegado o momento de me lançar às novas e convidativas experiência, e decidi por um lugar cujo nome soou familiar, a Ilha Brasil. Imaginei que encontraria representados nossos pontos turísticos mais conhecidos: uma fauna multicolorida, exótica e abundante, avatares vestidos com trajes tipicamente nacionais. Nova decepção. Algumas poucas avenidas vazias, muitas lojas, e a brasilidade representada apenas por uma pedra que, pelo que me pareceu, pretendia ser o Pão de Açúcar.

Marinheiro de primeira viagem, paguei o primeiro mico achando que todos falavam comigo. Sentia-me bastante popular e bem recebido, quando percebi que é preciso ler a quem se dirige cada comentário quando se está num ambiente com outras pessoas. Lição aprendida segui para o “point” da ilha, onde alguns tomavam sol recostados em pufes, olhando para o nada no meio de uma quadra polivalente. Não me perguntem por que motivo, também não entendi. A maioria das conversas a que tive acesso diziam respeito a ganhar e acumular os tais lidens. Trabalha-se por créditos a serem gastos com roupas, carros, casas e o que mais conseguirem inventar.

Os empregos não são nada edificantes. Um deles oferecia trinta e cinco lindens para quem se dispusesse a ficar sentado num determinado bar, acho que era para aparentar popularidade. Outro trabalho muito comum é servir de homem-sanduíche, aqueles outdoors humanos, normalmente divulgando serviços dos designers de roupas e de outros apetrechos. Aliás, tem muita gente ganhando dinheiro muito real produzindo bens de consumo para os usuários do programa.

Aos poucos, aqui e ali, começaram a surgir as propriedades particulares, onde não é permitido transitar. Enquanto caminhava, o cenário ia se formando a minha frente, lento, incompleto, quadrado e feio. Perambulava pelas avenidas sem destino, entrava nas lojas onde as paredes invisíveis me detinham, as casas não tinham teto, e ninguém falou comigo. Talvez porque minha roupa era simples demais, tipo padrão, e isso me denunciava para os mais experientes como um novato cheio de perguntas, um excluído das tribos que ali coexistem.

Os trajes de certos avatares com quem cruzei intimidavam o contato, mais pareciam super-heróis. Vez ou outra, esbarramos naqueles que se empolgam com o figurino, e chega a ser engraçado analisar até que ponto pode ir a imaginação das pessoas e seu comprometimento, digamos, estético. Escolhem representações bastante complexas e exóticas de si próprias. Tentei puxar conversa, não obtive muito sucesso. Parece que o grande assunto do Second Life é mesmo como ganhar lindens para incrementar cada vez mais o próprio visual.

Existem marcas, e empresas que já compraram seus quinhões em terras virtuais. O programa começa a virar palco para reuniões profissionais, onde executivos engravatados espalhados em cidades distantes podem, por exemplo, agendar um almoço; em situações como essa valem as mesmas regras do mundo real; decide-se aonde ir e quem vai pagar a conta.

Sem dinheiro, trabalho, amigos ou casa comecei a me sentir profundamente infeliz. Encontrei meu refúgio numa espécie de praia, uma paisagem que deveria ser bela e tranqüila, e perambulei por lá por alguns minutos, observando o mar. Essa experiência só agravou minha sensação de solidão, inclusive por pensar que, para muitos usuários, esse programa, não muito diferente de um joguinho de computador, represente a possibilidade de se reinventar. Ilusoriamente, torna-se acessível ser bonito, bem vestido ou andar de carrão.

No mais, o programa incentiva o consumo, o culto narcísico à auto-imagem e à conversa fiada. A proposta de segunda vida não me convenceu, é tediosa e vazia. O intuito dos responsáveis por essa fabulosa invenção pode até ser o de criar mais um ambiente de interação, mas o conceito implícito é apenas um: a questionável possibilidade de controlar todos os aspectos relacionados a sua existência. Não chega a surpreender que a noção de felicidade esteja profundamente relacionada ao consumo, afinal, por trás dessa realidade fantástica estão pessoas que vivem no mundo real, e, em última análise, são elas as responsáveis por tudo que pude presenciar na minha tela.

Poderia daí partir para constatações apocalípticas sobre a época atual e a percepção, míope, que temos sobre o sentido da vida. No entanto, prefiro acreditar que os avatares são bonecos, Second Life, apenas um jogo, e que por trás de cada um dos computadores existem pessoas que têm plena consciência disso. Infelizmente tudo leva a crer que estou errado, e que o sucesso desse programa se relaciona com tempos muito estranhos.

A consciência do que é real em pouco tempo pode se tornar relativa, em todos os aspectos, dos mais banais aos mais significativos. Viveremos para testemunhar uma provável substituição de valores, se é que isso já não está acontecendo. Um pouco antes de me desconectar do programa, resolvi dar um vôo panorâmico, ainda em busca de alguma poesia naquele cenário.

A realidade virtual nos propicia a sensação de que, dentro de seus domínios, quase tudo é possível e permitido, inclusive voar. Imbuído desse espírito, sobrevoei ruas, notei que os avatares se tornavam cada vez mais diminutos, pouco nítidos, semelhantes, uma guinada e estava sobre o mar. Voando cada vez mais rápido, fui deixando a ilha para trás, a espera do que me impediria de chegar até o sol. De forma abrupta meu vôo foi interrompido, o cenário congelou. Fiquei flutuando sobre o nada, sem saber como voltar, como se a minha trajetória nunca tivesse sido prevista pelos programadores. Acima do horizonte, que de perto parecia um desenho de criança, e perdido, a sensação poderia ser a de um pesadelo. Felizmente havia um menu, hora de desconectar.

Na mão do palhaço

sex, 01/06/07
por Bruno Medina |

Há uma expressão, talvez mais popular entre os cariocas, que é bastante apropriada para designar um certo tipo de situação. Diz-se que “Fulano está na mão do palhaço” quando o coitado se encontra entregue à própria (má) sorte, ou quando a circunstância que envolve a pessoa é passível da ressaca moral do dia seguinte. A expressão poderia se aplicar a um tio seu, visivelmente entorpecido, que resolve dançar macarena em cima da mesa, na festa de bodas de ouro dos seus avós. Isso é estar na mão do palhaço.

No final do ano passado, por coincidência, foi um palhaço de fato o responsável por uma daquelas notáveis ocasiões de constrangimento público. Numa das apresentações do Cirque du Soleil, diante de uma platéia formada majoritariamente por vips, um artista do espetáculo puxou a apresentadora Angélica da cadeira e, num rápido movimento, colocou-a de pernas pro ar. Ela, que, na ocasião, estava de vestido, teve a famosa pinta da perna e a calcinha reveladas para centenas de espectadores.

Por conta de situações como essa, tenho horror a espetáculos interativos de qualquer natureza. Sinceramente, quando noto alguém fantasiado vindo em minha direção, mudo a trajetória. Pode ser para divulgar peça infantil, inauguração de farmácia, aniversários, não importa, fujo sempre. Como se pode confiar num marmanjo exageradamente maquiado ou vestido de lobo? Porque ali, quando se passa por ele, é o “personagem” que brinca com você, entendeu? Suas características físicas e, principalmente, seus defeitos estão sujeitos ao comentário e à exposição pública conseqüentes da avaliação de um ser que mora numa toca da floresta!Agora se imagine dentro de uma fantasia claustrofóbica, tendo a sua volta crianças gritando, socando sua barriga, pisando no seu pé, grudando salgadinho no veludo do seu bumbum. Através de dois minúsculos buraquinhos improvisados no cabeção de cinco quilos, você enxerga um cara, assim, sério, como eu. Não tem nem dúvida, vai direto ao ataque.

O pior é quando você paga para ser humilhado. Deveria haver uma classificação oficial para esses espetáculos em que você pode ser tirado para Cristo. Algo como:

“O Ministério da Cultura adverte que os espectadores estarão sujeitos a brincadeiras, deboches e a todo tipo de humilhação que o ator for capaz de imaginar, baseado em suas características físicas.”

Faz uns anos, fui assistir a uma determinada peça. Cheguei cedo, fui ao banheiro, bebi água, comprei um chocolate a despeito de seu preço exorbitante, procurei meu lugar com antecedência, sentei, li o programa do espetáculo, desliguei o celular. Tudo dentro do script. Lá pelo meio do espetáculo, o ator começa a fazer uma coreografia estilo Broadway, e eu, que anteriormente havia julgado que um assento perto do palco era um bom lugar, passei a estranhar o fato de as quatro primeiras fileiras a minha frente estarem vazias. De repente vem um canhão de luz, não lembro exatamente de onde, vagarosamente varrendo as poltronas a minha volta, movia-se em minha direção. Comecei a jogar o corpo para a direita, praticamente deitando no ombro da pessoa ao lado, mas já estava tudo combinado, eu era a bola da vez. A luz estacionou em mim e o infeliz mandou: “você tem uma cara de safado…”. Assim mesmo, com reticências no final. A platéia caiu na gargalhada, claro, e eu ali, naquela incômoda posição de safado da platéia, sem possibilidade de defesa. “Espera aí, não sou safado não! Cheguei cedo, paguei a entrada inteira, até chocolate comprei, para ser tachado de safado?”. É brincadeira, eu sei, mas o único safado do recinto acabou sendo eu! No final, saí de cabeça baixa e todos me olhavam com aquela expressão de “querida, olha o safado indo embora”. Ainda bem que o caso aconteceu bem antes do bigode.

Por conta desse lamentável episódio, fiquei um bom tempo sem pisar num teatro. No ano passado, depois de muita insistência e incansáveis discussões, acabei aceitando voltar à platéia de uma peça. Cauteloso, escolhi uma casa pequena, a peça era de uma conhecida, nenhum perigo aparente. A luz se apagou para que o espetáculo tivesse início, e durante aquele silêncio posterior à terceira campainha, senti que um dos atores estava se posicionando rente à parede, a uns cinco metros de distância de minha poltrona. Meu coração disparou, olhei para a porta, tarde demais, já estava fechada. Voltei-me para o ator, implorando com o olhar que não fosse o escolhido. O pior é quando eles dão susto. Um grito na sua orelha, um estouro, é angustiante essa iminência. Permaneci durante toda a apresentação imóvel, agarrado ao braço da cadeira como se minha reputação dependesse daquilo. O plano era jogar meu corpo no chão e arrastar-me pela fileira até a saída de emergência, caso percebesse que o holofote estava virado para mim. Felizmente, nesse dia não fui incomodado.

Lembrei agora de outro episódio – igualmente embaraçoso – que envolve também o universo teatral. Não se trata do constrangimento pela interatividade, mas sim daquele posterior à encenação. A amiga de um amigo era atriz. A peça em que ela atuava estava em cartaz e ele sempre era convidado a prestigiá-la, então, resolvemos conferir. Era um espetáculo de dança, com música ao vivo e performances variadas, a proposta era interessante.

Num determinado momento surge em cena uma atriz com peitos de fora. Eu e meu amigo nos entreolhamos e ele, tímido ao extremo, ficou torcendo, rezando, para que sua conhecida não aparecesse também, digamos, tão à vontade. Depois da peça tinha combinado de passar no camarim para cumprimentá-la, e preferia que fosse sem conhecer suas partes íntimas. Apesar da pouca visibilidade, percebeu que ela estava escorregando por um tecido, fazendo um rebuscado número de contorcionismo acrobático aéreo. Eu procurava uma blusa, um bustiê, um top, um sutiã que fosse, qualquer tipo de vestimenta que mantivesse aqueles peitos cobertos. O número do tecido à meia luz não acabava, e meu amigo só pensava nas aulas do dia seguinte, nos próximos trabalhos de grupo. Por sorte a moça estava vestida, tudo bem, era um collant justíssimo cor da pele, e ele escapou da interação com os seios dela.

Posso até me precaver em relação às peças de conteúdo suspeito, mas não há como evitar um mal-estar muito, mais muito pior do que esse: os repórteres do Pânico. Eles estão em todo lugar. Enganam os seguranças, se posicionam na passagem, perseguem, correm, gritam, se escondem. Já estive em alguns eventos em que eles ficaram plantados na porta, os alvos ficam sem escapatória. O teor das “brincadeiras” é muito mais nocivo, e tudo é transmitido em cadeia nacional. No último encontro saí ileso, nenhum comentário. Meu colega de banda, Barba, não teve a mesma sorte, foi chamado de Leão Lobo. Perto do que já assisti, foi até um elogio.

Todos esses relatos comprovam que a mão do palhaço é grande e generosa, sempre disposta a apanhar um tímido, um distraído, um pinguço, ou qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade. Se o palhaço ainda não colocou as mãos sobre você, não se preocupe, esse dia, cedo ou tarde, vai chegar…



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