A Rádio-Cabeça

ter, 29/05/07
por Bruno Medina |

O que é radiohead? A maioria dos leitores responderia a essa pergunta dizendo que é o nome de uma ótima banda inglesa, que tem em seu currículo discos de extrema relevância, responsáveis por uma significativa transformação do rock a partir de meados dos anos 90. Outra possível resposta seria a de que, em bom português, radiohead é rádio-cabeça. Não sei se para Thom Yorke e cia. esse é apenas um nome qualquer ou se faz algum sentido em inglês, mas, traduzido, coincide com uma espécie de maldição.

Está confuso? Explico: rádio-cabeça é aquela estação de rádio que transmite repetidas vezes uma mesma música dentro de nossa própria cabeça, e que só a gente mesmo ouve. Não, não sou esquizofrênico, nem ouço vozes, ouço músicas, boas ou ruins que, invariavelmente, tornam-se, em questão de dias, irritantes. Músicas que eu não pedi para ouvir, mas que não posso evitar. Aposto que isso também já aconteceu com você.

Terça-feira, primeiras horas do dia. Você prepara o café na cozinha antes de ir para o trabalho. Através da área comum do prédio, é possível escutar o rádio da vizinha, que está lavando roupa. A qualidade da programação é bastante questionável, e você até acha graça naquela música que ela só ouve quando está feliz. O cantor soa descompassado, a letra é lastimável, e o arranjo, sequer merece comentários. Você termina a refeição e está pronto para começar um longo dia. Dentro do ônibus, distraído, batuca discretamente com as mãos no banco da frente. O ritmo contagia e logo surge uma melodia, que é prontamente assobiada; é a música do rádio da vizinha. “Olha só, eu assobiando essa música…”, você pensa, e trata de corrigir o repertório, assobiando algo de que gosta. Passou.

Depois do almoço, sobra um tempo no escritório e você decide arrumar a papelada, colocar as gavetas da sua mesa em ordem. Agachado no chão, tendo uma pilha de papéis ao seu lado, um colega pára ao lado de sua baia com um risinho sarcástico estampado no rosto:

- quem diria! não sabia que você gostava desse tipo de música…
- que música?
- essa que você estava cantarolando.
- eu? cantarolando?

A partir daí a situação muda de figura, você perdeu o controle. A música afoga seus pensamentos, martela sua cabeça, e aquele trecho (sempre o pior) se repete infinitamente. A vigília se intensifica – para o bem de sua sanidade – e qualquer pensamento musical passa a ser bloqueado. As músicas da rádio-cabeça são como uma doença contagiosa, uma praga, quanto mais rápido o combate, menor a chance de contaminação. Você decide que no dia seguinte tomará café da manhã na rua, só por precaução; assim, evita a nada remota chance de ouvir aquela determinada canção de novo. Manter a mente vazia é uma árdua tarefa, e você pede para o chefe qualquer trabalho, o tempo ocioso agora é seu inimigo. Não pensar naquela música é seu único objetivo, mas isso já é uma forma de pensar nela, então o melhor é relaxar.

A tática começa a dar resultado, é um alívio, diante das horas de batalha travada com esse DJ insano que reside dentro da sua cabeça. O silêncio ecoa em sua mente, tanto que você se distrai, acha que assobiou, mas não tem certeza. Pergunta ao colega da mesa ao lado, ele diz que não ouviu nada e passa a te olhar com desconfiança. Hora de ir para casa, uma boa noite de sono é a receita para por fim a essa obsessão. O ônibus pára no sinal ao lado um carro com o rádio no último volume, adivinha o que está tocando?


Você discretamente tenta tapar os ouvidos, mas não consegue deixar de ouvir, tenta cantar uma outra melodia por cima para abafar, inútil. A moça sentada ao seu lado sorri e canta de olhos fechados, curtindo, para seu azar é sucesso! Transtornado, você grita e ordena que ela pare de cantar. Sua reação surpreende os demais passageiros, que voltam os olhares para seu assento. Constrangido, você resolve saltar e terminar o percurso até em casa a pé. Dentro do apartamento, traumatizado, não consegue ir até a cozinha – onde tudo começou – buscar um copo d’água. Nem arrisca ligar a televisão e dorme torcendo para não sonhar. Por quase uma semana essa sina intercalará todos os seus pensamentos. Você vai cantar, assobiar, batucar, dançar, até que a música se esgote e te abandone, não existe outra alternativa.

A minha rádio-cabeça deve ser bastante parecida com as demais, exceto talvez por duas peculiaridades; a primeira é que começa a transmitir automaticamente dentro do túnel, se a música que estiver tocando no rádio do carro for conhecida. É impressionante, ouço todos os instrumentos, imagino os trejeitos do vocalista, os coros, as pausas. Ao sair do túnel, o chiado do rádio do carro termina e, quando a música interrompida volta no ponto que eu imaginava, concluo que minha rádio-cabeça está transmitindo muito bem, sem interferências.

A segunda peculiaridade já me causou enormes constrangimentos. Em resumo, quando estou conversando com algum músico, minha rádio interna começa a transmitir uma música dele. Eu não consigo evitar. Certa vez, estava no camarim de um festival, e numa pausa na conversa me peguei assobiando o hit da banda em questão. Eu só percebi o que tinha ocorrido quando o cara olhou para mim surpreso. Fiquei sem reação, desconcertado, porque isso poderia facilmente ser confundido com chacota, ou loucura. Esse texto foi motivado sim pela atual programação da minha rádio-cabeça. Pensei que escrever sobre esse tema poderia me ajudar. Então, que seja, a música executada desde sábado passado é essa aqui:

No início até gostei, achei diferente, mas depois de quatro dias de transmissão ininterrupta, não suporto mais os agudos desse cidadão. Tá bom, era só um truque, tipo aquelas correntes que se manda por e-mail. Agora passe esse vídeo para dez pessoas ou acostume-se a Grace Kelly.

Hulk in Rio

sex, 25/05/07
por Bruno Medina |

No início da década de setenta nosso país passou a protagonizar o enredo de um dos crimes mais espetaculares de todos os tempos. O assalto ao trem pagador transformou seu mandante, Ronald Biggs, numa espécie de celebridade mundial, muito por conta de ele ter conseguido a façanha de se manter foragido da Scotland Yard por quase quarenta anos. A Polícia britânica sabia há muito que o paradeiro do bandido era o Rio de Janeiro, no entanto, devido a questões diplomáticas, sua extradição nunca foi possível, e Biggs passou boa parte da vida zombando de seus compatriotas, à sombra dos coqueiros da orla de Copacabana.

Por aqui aprendeu a fazer dinheiro vendendo souvenirs que tinham o assalto como tema. Também era possível, para qualquer turista inglês disposto a desembolsar sessenta dólares, ouvir pessoalmente, num almoço com o próprio responsável, os detalhes do fabuloso crime. Casou-se com uma brasileira e teve um filho chamado Mike, que veio a integrar o grupo infantil Balão Mágico, fato que resultou num bem-vindo aumento da renda do fugitivo. Em 2001, idoso, falido e doente, Biggs retornou a Inglaterra para cumprir sua sentença. Na década de oitenta, foi à vez de outro ilustre bandido, o mafioso italiano Tommaso Buscetta, ser preso na cidade, para mais uma vez associá-la aos noticiários policiais mundo afora.

É possível que esses dois criminosos – e tantos outros de menor expressão- tenham ajudado a estabelecer a indesejável imagem que nos assola no exterior: a de que o Brasil é o porto seguro do crime internacional. O mito foi tão explorado pelos roteiristas de cinema que chegou a se tornar clichê. “Um peixe Chamado Wanda” e “007 e o Foguete da Morte” são apenas dois exemplos da dobradinha “paraíso tropical-impunidade”. No filme de James Bond, rodado em 1979, acontece a impagável luta entre o espião e seu arqui-rival, Mandíbula de Aço, em cima de um dos bondinhos do Pão de Açúcar.

Repare que antes da estação ser destruída, é possível ver uma propaganda do refrigerante 7up. O anúncio só não diz que, naquela época, para comprá-lo, era preciso ir até os Estados Unidos. O tempo passa, mas o cenário não sai de moda; e sempre que se faz necessário para os diretores estrangeiros, o Rio recebe, com sua tradicional hospitalidade, mais um fugitivo.

– Alô? Disque-denúncia?
-Sim, qual é a sua denúncia?
- Tem um rapaz aqui na rua, muito nervoso, que está destruindo tudo!
- A senhora pode descrevê-lo?
-Bom, verde, todo verde, sem camisa, calça rasgada, uns dez metros de altura.
-Minha senhora, isso aqui é um serviço sério, eu posso fazer uma queixa para a polícia.
-Não é brincadeira…as crianças estão dizendo que ele é super-herói.
-Tá certo, então estou mandando o super-homem numa viatura em quinze minutos…

Sim, é isso mesmo. O próximo a se esconder por essas bandas é o incrível Hulk. O segundo filme da série que recebe seu nome, terá cenas filmadas, a partir de outubro, na favela Tavares Bastos, no bairro do Catete. Podemos esperar por bandidos arremessados do alto do morro, barracos destruídos e muitos carros voando pelos ares. Do jeito que a coisa anda, é bem provável que nem se perceba que trata-se de um filme.

Imagino que para alguém grande, verde e famoso, poucos lugares serviriam para esconderijo, mas um deles, com certeza é o Rio. Tão habituados a se esbarrar com artistas de novela, os cariocas dificilmente incomodarão Hulk, ainda mais se ele estiver trajando a vestimenta oficial dos superfamosos: óculos escuros e boné.

Devidamente disfarçado, poderá conhecer pessoalmente o cenário do filme de James Bond, quem sabe escalar o Pão de Açúcar, ao invés de pegar fila e subir espremido no bondinho? Pena que a visita não ocorra durante o carnaval; falando com as pessoas certas, seria destaque do abre-alas de qualquer escola de samba. Outra boa dica para o gigante verde é começar o dia na praia de Ipanema e terminar comendo churrasquinho-de-gato e bebendo caipirinha nos Arcos da Lapa. A habitual bermudinha rasgada sem camisa é apropriada para ambas ocasiões, inclusive para uma possível esticada num baile funk.

Caso aderisse ao programa, aposto que seria convidado por algum MC para gravar seu batidão. No baile poderia conhecer uma modelo/atriz que lhe convidaria para uma feijoada na casa do Romário, em outubro ainda deverá estar comemorando seu milésimo gol. É preciso recomendar que o herói tenha bastante cautela com a culinária típica, seria catastrófica a indigestão de alguém com suas proporções.

Algumas semanas já seriam suficientes para que se enturmasse com a elite cultural da cidade, garantindo assim sua presença nas melhores festas. Não seria de se estranhar um convite para ter seu próprio programa de tv, ou mesmo participar de um reality show. Caso nada disso aconteça, um bom caminho a ser seguido é a política. Alguém com sua popularidade elegeria-se para qualquer cargo que se candidatasse. A única coisa que não recomendo é que Hulk se aventure a tomar café da manhã numa dessas cafeterias do Leblon. O programa virou “cult” e não se escapa de uma considerável fila de espera por uma mesa. Por causa do horário, do jejum e do preço salgado da refeição, muitos perdem o bom-humor, e ninguém em sã consciência gostaria de estar por perto se isso acontecesse com ele.

A vida como ela é

ter, 22/05/07
por Bruno Medina |

Não é de hoje que a vida animal exerce profundo fascínio em nós, seres humanos. A proliferação de programas e canais de televisão dedicados exclusivamente a retratar e investigar os hábitos das espécies comprova nosso permanente interesse em compreender melhor os próprios instintos. Faço parte daquele grupo de telespectadores ávidos por um bom motivo para parar de zapear, e isto quase sempre coincide com a imagem de animais em velocidade ou uma revoada de pássaros retirantes.

Observada com atenção, a vida selvagem está repleta de arquétipos de nossa própria sociedade, dita civilizada. É, no mínimo, intrigante a complexidade da cadeia alimentar, e como a natureza sempre encontra meios para prosseguir, apesar da voraz ação predatória do homem. Admiráveis são aqueles que dedicam suas vidas ao estudo e a documentação dos hábitos dos animais, mesmo que não sejam totalmente naturais.

Tenho uma teoria de que aqueles programas tipo “Falcão Peregrino caça Lebre Selvagem” são armação. Será que os caras ficam mesmo atrás de arbustos por incontáveis horas, gastando película, à espera do Falcão ficar com fome? Sei não, acho que eles trazem o falcão numa gaiola e, quando a lebre passa, soltam o bicho e ligam a câmera. E se a lebre escapa, aproveitam o material no “Especial Grandes Fugas”.

O que nunca consegui entender é como tem sempre alguém disposto a ignorar as leis de sobrevivência do mundo animal e invejar a liberdade de um pássaro, de um golfinho ou de um outro bicho qualquer. Deus me livre! Ser livre assim, com um olho na presa e outro no predador? A vida na natureza é árdua, tensa demais. Não à toa surgiu a expressão “mundo cão”.

Outro dia assisti a um programa sobre o Dragão de Komodo. O simpático lagartão recebe esse nome devido a sua aparência, semelhante a dos dragões mitológicos. Contemporâneo dos dinossauros, só resistiu até os dias presentes pelo fato de seu habitat natural ser a remota Ilha de Komodo, localizada na região central da Indonésia. Ali conseguiu permanecer a salvo do homem. São répteis gigantes, de dois a três metros de comprimento, com mandíbulas reforçadas de onde brotam dentes afiados, semelhantes aos de um jacaré. Alimentam-se de quase tudo que é vivo e ainda são hábeis em escaladas de árvores. Na ilha não há predadores conhecidos para esse animal, mas isso não significa que sua vida seja um mar de rosas.

São constantes as lutas entre os machos pelo direito de cortejar as fêmeas mais prendadas, e, comumente, ao final do combate, estando o derrotado muito ferido, ainda precisa suportar a humilhação de rastejar sob as fezes de seu opositor. O vencedor, cheio de moral, abandona a arena e parte para a conquista da fêmea, sendo, invariavelmente, muito mal recebido. Tudo bem que este não é exatamente um “Brad Pitt” da classe Reptilia, mas as fêmeas são excessivamente relutantes ao acasalamento, e atacam os machos a unhadas e mordidas. E é por conta da mordida que os Dragões de Komodo ganharam notoriedade: sua saliva é tão venenosa que morreriam caso mordessem a si próprios.

Um jovem Komodo pode com facilidade perder a vida se topar pela frente com uma fêmea de personalidade forte. O horror delas aos machos é tanto que houve até casos de paternogenese (autofecundação) em cativeiro. Isso sem contar a possibilidade de um dragão distraído cometer suicídio, caso sinta uma coceirinha nas costas. Sobrevivendo às fêmeas e às coceiras, esse dragão se alimenta, possivelmente, da forma mais sórdida que se tem conhecimento no meio animal; ele morde a presa e espera que ela morra de infecção generalizada. A vítima definha, se arrasta, e o dragão espera, acompanha por dias, semanas se for necessário, até que finalmente se entregue a seu predador. O dragão de Komodo sabe bem que vingança é prato que se come frio.

Essa história merecia um argumento de novela. Seria sucesso garantido. Nem Janete Clair foi capaz de idealizar um vilão tão frio e impiedoso. Seguindo a lógica dos folhetins, os “maldosos” répteis atormentariam a existência de todas as espécies até o surgimento de um pequeno e aparentemente inofensivo rival: a Tamburutaca. Engana-se quem subestima a capacidade desse crustáceo pouco maior que um palmo. Acredite, ele é uns dos mais ferozes predadores do fundo do mar. O jeitão é meio de lagosta, mas quando encontra um caranguejo e se enfeza, solta-lhe um murro na cabeça com a potência de um tiro de calibre 22. É verdade, o bicho é tão bravo que se for colocado num aquário quebra o vidro achando que o próprio reflexo é uma ameaça. Impossível prever quem levaria a melhor neste duelo de Titãs. É melhor desligar as câmeras e deixar cada um no seu canto.

Mas nem só de predadores padece o mundo animal, às vezes, o perigo é inerente à própria condição: quando assisti ao documentário “A Marcha do Imperador”, de Luc Jacquet, não pude conter minha surpresa. Não exatamente pela raridade poética das imagens ou mesmo pela sensibilidade do diretor – não faltaram críticas elogiosas ao filme – mas, sim, porque, por equívoco, associei a obra ao universo infantil. Esperava traquinagens na neve e aventuras de pingüins fofos e desengonçados, deslizando ou exibindo seu jeito quase humano de caminhar. Entretanto, o filme oferece muito mais que isso.

A história começa no verão Antártico, quando todos os anos milhares de pingüins se reunem para encontrar sua possível cara metade. É como um gigantesco “Namoro na TV”, só que sem Silvio Santos e com pingüins. Depois de um pouco de conversa e de um certo charme, afinidades conferidas, os casais começam a se formar e o acasalamento é apenas questão de tempo. Não nos é dada a oportunidade de conhecer os casos das fêmeas que ficam pra “titia” ou dos machos problemáticos que permanecerão solteiros convictos. A narrativa é centrada nos jovens casais, ainda nos primeiros meses de união, se vendo às voltas com a questão da paternidade (acho que esta história já virou enredo de novela).

Daí acontece uma cena de crueldade ímpar: fêmea e macho emparelham-se frente a frente para que ela deixe rolar para ele o ovo fecundado. Este instante é crucial, pois as fêmeas precisam partir numa longa jornada rumo ao oceano em busca de alimento, enquanto os machos encarregam-se de chocar seus futuros filhotes. A operação lembra o desarmamento de uma bomba, tamanha necessidade de concentração e habilidade.

A tensão suspende-se no ar, não há ensaio para este momento. Alguns casais mais sensíveis, tomados pelo nervosismo, ou, simplesmente menos afortunados, deixam o ovo passar direto e cair no chão. A limitação física da anatomia dos pingüins impede que consigam recuperar o ovo, e este fica à mercê do tenebroso inverno que se anuncia, e o filhote é perdido. Assim, porque o pai “bobeou”. Não sei se é possível imaginar a expressão de tristeza de um pingüim, mas é isso que se vê na tela. Deve ter algum termo terrivelmente maldoso na língua dos pingüins para designar “aquele que vacila na hora de receber o ovo”. Nem infinitas primaveras de sessões de terapia dariam conta de um trauma desses. Mais uma vez as câmeras abandonam o casal dilacerado pelo destino fatal e acompanha as fêmeas do bando, que agora partem na jornada pela sobrevivência.

Dragões de Komodo, tamburutacas e pingüins talvez não se dêem conta do que se passa em suas vidas, tampouco possuem um grau comparativo de sofrimento entre as espécies. Agem de acordo com o que seus instintos lhe sugerem. Talvez seja por essa razão que a natureza nos fascine tanto. Quiséramos nós sempre saber como lidar como nossos predadores, os naturais e os adquiridos. De qualquer forma, da próxima vez que desejar a vida de um passarinho, pense que é bem possível que ele aceite trocar de lugar com você. Homem-passarinho,… se não dá uma boa novela rende pelo menos uma minissérie.

O tom do constrangimento

sex, 18/05/07
por Bruno Medina |

Pensando em comprar um carro usado? Desista, eles não existem mais. Pode procurar nos classificados, visitar concessionárias, garanto que não vai encontrar. Os carros usados saíram de linha, foram descontinuados, isso para usar um termo que é a chave para compreender esse sumiço: os carros usados agora atendem pelo nome de semi-novos. A mudança na nomenclatura é uma tendência, uma adequação lingüística providencial nesses tempos comercialmente tão competitivos. No afã de atender prontamente aos anseios do consumidor de hoje, mais exigente, algum gênio da publicidade deve ter se dado conta de que o termo “usado” não cabia bem a um produto que, mesmo com alguns anos de uso, ainda custa caro. “Semi-novo” é mais apropriado, afinal, se não é exatamente novo… é quase. Agora me diz: quem acha que um carro com oito, dez anos tem alguma coisa de novo?

O fenômeno do “semi” não é restrito apenas ao mercado automobilístico, pode ser observado naquelas situações em que é preciso ter cuidado para não levar gato por lebre. O mercado imobiliário é um prato cheio: o “conjugadão” e o “quarto reversível” são dois termos simpáticos para disfarçar a pequena – quando não, mínima – dimensão de um apartamento. “Próximo da praia” é longe, porque quando é de fato perto, o termo utilizado é “quadríssima da praia”. Outro uso encantador é o de “marcas de expressão” no lugar de “rugas”, soa até poético…e por aí vai. A impressão que fica é a de que cada vez mais é preciso empenhar esforços para vender a mesma mercadoria como novidade, e que, se não houvesse a propaganda, muitos de nós já teríamos percebido quão supérfluos são os bens que entram em nossas casas.

Voltemos aos carros; antigamente, o sujeito ia numa loja e escolhia um Fusca, uma Brasília, um Chevette, um Opala ou uma Kombi, dentre poucos outros modelos. Cada um desses era bastante representativo de sua categoria. Para o filho ou alguém que precisasse de um carro para usar na cidade, um Fusca. Para a família classe-média, uma Brasília, talvez um Chevette. Para a mais abastada, um Opala; e para um pequeno negócio, uma Kombi. O que mudou é que hoje, para cada uma dessas necessidades, existem dez, talvez quinze opções de marcas, de modelos, de motorização, de acessórios etc. Um verdadeiro Deus nos acuda, impossível, mesmo para os mais interessados, acompanhar os lançamentos, ou saber ao certo que carro é qual.

Para mim é tudo meio bolinha. Aquele modelo, tipo o Gol que saiu no meio dos anos 90. Daí tem o bolinha curto, o bolinha compridinho e o bolinha caminhonete, todos arredondados por causa da aerodinâmica. Corre o risco de você nem identificar, num estacionamento cheio, seu próprio carro, de tão parecidos que eles ficaram. Sempre penso naqueles coitados que emitem canhotos de identificação nos guichês de entrada dos shoppings e supermercados. Nem sei que nome se dá a esses que, em cinco segundos, precisam registrar a marca, o modelo e a cor de cada veículo que entra. Isso é mais difícil que teste psicotécnico!

Num panorama de tantas ofertas são as pequenas variáveis, os valiosos detalhes, que asseguram a individualização, e esse sempre foi o maior mote para se vender automóveis, aqui ou em qualquer lugar do mundo. É um tal de câmbio não sei o quê, bancos de tal tipo, controle disso, mostrador daquilo, há até suspensão de Fórmula 1. Se o seu orçamento é mais modesto, você leva aquela versão “pelada”, que no painel tem uma ilustração do veículo e um monte de tampas sem sentido para esconder a ausência de muitos acessórios. A palavra de ordem é per$onalizar e, nesse quesito, um dos maiores trunfos das montadoras são as cores. Todas as cores do arco-íris, todos os tons possíveis de imaginar, ao gosto do freguês.

Cada fábrica deve ter uma equipe responsável por esse setor “artístico”, e é de lá que sai essa riqueza criativa inesgotável. Sempre me interessei em saber o nome das cores automotivas, são quase tão divertidos quanto os nomes das fantasias de carnaval daqueles bailes televisionados. Aliás, tintas e fantasias atraem nomes no mínimo curiosos. Vamos a uma lista, elaborada a partir da internet:

Dentre os tons de azul destaco o Egeu, o Universo e o Saturno. Tem também o Bege Arena e o Branco Nepal. E como decidir entre o Cinza Himalaia ou o Londrino? O Vermelho Calipso – esse é campeão – ou o… Verde Saturno?!

Peraí, tem um Azul Saturno e um Verde Saturno? Afinal, qual é a cor deste planeta? A resposta é capciosa; depende da formação de gases de sua atmosfera. Imagino o diálogo entre os funcionários da fábrica:

- Jorge, fizeram mais um tom de verde….
- Outro verde? Neste mês já usamos Pantanal, Pampa e Trópico, haja criatividade!
- Que tal… Verde Saturno?
- Gostei. Mas você sabe se Saturno é mesmo verde?
- Ah, se eu não sei, ninguém sabe. E no mais, quem é que vai pesquisar uma coisa dessas? Fala que é verde e está tudo certo.

Jorge volta o olhar para o catálogo de cores da empresa.

- É, acho que não vai dar, já fizeram um Azul Saturno em 1994.
- Tá vendo, Saturno é azul, não é verde!
- Bom, aí depende do ponto de vista…Piscina, por exemplo, é azul ou verde?

E, aqui estamos nós, constatando não só que Saturno não é verde nem azul, mas também que o nome das cores é escolhido arbitrariamente.

Sim, eu tenho uma história sobre esse assunto, pouco feliz na verdade. Em 1996, eu estava ansioso para ganhar meu primeiro carro. Meu pai e eu já andávamos desanimados de tanto procurar e não encontrar um “semi-novo” em boas condições. Numa quarta-feira qualquer, o anúncio de um Gol, que parecia uma excelente oportunidade de negócio, nos chamou a atenção. Ligamos para o proprietário e o que ele nos disse sobre o carro foi ainda mais animador. Era um Gol 1995 1.6 Mi, gasolina, único dono, e com apenas 6 mil quilômetros rodados. A cor do carro era Azul Vip, nada mal. O problema era que o rapaz morava em Campo Grande e eu em Copacabana. Estava a cerca de quarenta quilômetros de distância do meu possível carro. Mesmo desacreditados por termos visto tanta porcaria, resolvemos apostar que era possível conjugar preço honesto a bom estado. Ali se configurava uma oportunidade realmente especial e foi preciso ter fé para atravessarmos a cidade.

Lá chegando, logo percebemos que a viagem não tinha sido em vão, e ficaríamos plenamente satisfeitos, não fosse por um único detalhe: o Azul Vip. Essa cor desgraçada, que de azul não tem absolutamente nada.

Acho que foi uma brincadeira da Volkswagen, digo, chamar isso de azul, porque o carro é violeta. Tá aí, pode olhar. Violeta, da cor da flor, da roupa de uma fada, da embalagem de modess, do Ursinho Carinhoso que tinha nota musical na barriga.

Consegui essas imagens num site de venda de carros, porque eu mesmo, enquanto tive um, não me atrevi a registrá-lo em fotografia. O carro parecia um amaciante de roupas gigante, era fofo até. Daí você pensa: “tudo bem, você desistiu da compra e rodou mais quarenta quilômetros de volta para casa, acontece…”. Errado. Como o preço era ótimo (claro) e o carro se encontrava em excelentes condições, resolvi sublimar a cor e pagar por ele. Meu pai disse que eu iria acostumar, que o importante era o estado geral, a mecânica impecável. Ledo engano.

De fato, o carro nunca entrou numa oficina, mas, em compensação, sempre que eu pegava no volante podia imaginar um ursinho afivelando o cinto de segurança e me convidando para tomarmos um chá no bangalô do Querido Pônei. Dentro daquele vestido-de-fada-motorizado eu não era digno de nenhum respeito. Nem adiantava aliar o uso da seta ao braço estendido do lado de fora do carro acenando efusivamente, ninguém dava passagem. Os outros motoristas apenas olhavam com curiosidade e desdém.

No shopping o pessoal do guichê sempre perguntava qual era a cor do carro, eu dizia que era azul, eles riam. Imaginem se isso fosse agora. Eu, de bigode, dirigindo um carro desses… Meu pai acabou me convencendo a colocar um aerofólio e uma roda de magnésio, com o intuito de melhorar a aparência do dito cujo. O que aconteceu é que ficou parecendo o carro de corrida da Penélope Charmosa. Não adiantou nada, foi pior a emenda que o soneto.

Dois anos se passaram e, finalmente, troquei o Violeta por um Golf branco. Consegui vender o Gol para um grande amigo, que não se importava tanto com a cor. Não sei exatamente porque motivo, mas ele também se desfez do carro em pouco tempo. Há uns dois anos reconheci a placa e aquele inconfundível Azul Vip numa pacata rua de Botafogo. Não tenho certeza, mas acho que era um ursinho que estava ao volante.

Em boa companhia

ter, 15/05/07
por Bruno Medina |

Não pensem que manter um blog é tarefa das mais fáceis. Em busca de idéias
que possam render bons textos, é preciso estar sempre de olhos e ouvidos bem
atentos, maquinando possibilidades, investigando tanto memórias quanto
notícias, as minhas e as dos outros, dos conhecidos ou dos desconhecidos.
Vale quase tudo. Certa vez, ouvi que a profissão de escritor era uma das
poucas em que se trabalha vinte e quatro horas por dia, até os sonhos podem
servir de inspiração. É verdade. Pouco depois de abrir os olhos, já estou na
função de sair à cata dos fatos, ainda frescos. Muitas vezes nada toma
minha atenção suficientemente para me levar a pensar por escrito, e o radar tem de
permanecer ligado. Eis que ontem, às 8h50, no plantão de notícias deste
portal, leio a seguinte manchete: Cauã e Medina reforçam “esquadra do
bigode”.

https://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL35945-7084,00.html

A matéria é sobre Cauã Reymond, Reynaldo Gianecchini e eu, ou melhor, trata
dos motivos pelos quais cada um ostenta seu bigode. A dupla de atores adotou
o visual por motivos profissionais, este que vos escreve defende
solitariamente a razão estética. Inserido no contexto da reportagem, sou o
único que usa bigode por vontade própria, e isso chega quase a soar
estranho… questionável pelo menos parece ser. Os depoimentos de dois
cabeleireiros reforçam esta impressão, são pouco entusiastas do visual. Mas
foram os testemunhos de quem ousou adotá-lo que me motivaram a voltar, por
uma última vez, ao tema.

Ao final do texto, somos brindados com uma Galeria de Bigodes, que
virtualmente nos apresenta os modelos mais comuns. Muito útil para você que
sempre almejou ter um bigode, mas ainda está em dúvida sobre qual tipo lhe
cairia melhor.

Por mais que tenha recebido dezenas de comentários a esse respeito, sempre
me surpreendo ao saber que parentes, namoradas e amigos, em muitos casos,
fazem ferrenha oposição ao bigode. Familiarizá-los com a Galeria pode ser um
excelente começo. Considere que muitas vezes um bigode exige paciência,
determinação e perspicácia, portanto, é recomendado implantá-lo em etapas:

1) Peça a seus entes queridos que apontem o estilo que mais lhes agradam,
sem compromisso.

2) Em seguida, mostre a foto do Cauã Reymond, diga que o bigode é a
coqueluche do momento, que você quer estar em comunhão com as novas
tendências etc.

3) O próximo passo é deixar o “bichinho” crescer; o visual vai aparecendo
lentamente, assim como um eclipse, e não assusta. Em poucos dias, você
estará de bigode, no entanto, finja que não percebeu nada, negue, diga que
esqueceu de se barbear e vá ganhando tempo.

4) Apare as pontas se o seu intuito não é cultivar o chamado “palito de
picolé enviesado em 90 graus”, ou mesmo se, como eu, sua tendência genética é o
temido estilo “George Michael”.

5) Lembre-se de que aparar as pontas requer bastante habilidade. Caso não se
sinta pronto para isso, não hesite em consultar um barbeiro, o corte é
enviesado, não é para iniciantes. Eu mesmo poderia estar de bigode há uns
bons meses, não fosse minha teimosia em tentar acertá-lo. Depois de
incontáveis tentativas, foi preciso recuar, raspar o bigode torto e deixá-lo
crescer novamente, mas, agora que aprendi, não erro nunca, é como andar de
bicicleta!

6) Pronto, você já está de bigode. E não é que o pessoal mal percebeu?

Confesso que nunca imaginei ver uma foto minha associada às de Cauã Reymond
e Gianecchini, mas, como a própria matéria revela, inegavelmente fazemos
parte (salvo Gianecchini que amarelou) da esquadra do bigode. Não é uma
questão de escolha, quem tem bigode já está no time. Na tela do meu
computador estavam as três fotos lado a lado, os galãs com sorriso
estampado, e eu, enfim, sério. Sou suspeito, mas achei o meu bigode muito
superior aos deles. Daí me veio a idéia de propor uma enquete: quem daqueles quatro lá de cima fica melhor de bigode?

Não quero influenciar o voto de ninguém, e nem sei se é ético observar, mas
desconfio que Carlos e eu somos ou únicos que não estão maquiados na foto. Aí
sim a concorrência fica desleal.

Para terminar, mais um relato sobre a relevância histórica do bigode:

https://pedrodoria.nominimo.com.br/?p=1541

Tô certo ou tô errado?

sex, 11/05/07
por Bruno Medina |

Há muito uma questão me persegue: a postura no palco. O que para mim sempre foi bastante espontâneo, para outros parece envolver algum segredo, ou uma razão desconhecida. Amigos, fãs, família, imprensa, todos querem entender por que não sorrio, por que não danço. Poderia dizer simplesmente que sou sério, concentrado demais, quem sabe tímido, ou uma mistura disso tudo. A resposta seria vaga, inconclusiva e não elucida a questão. Talvez ajude revelar que sempre preferi Charlie Watts a Mick Jagger e que, diferente do primeiro, eu até sorrio sim, dou tchauzinho, danço discretamente, quando tenho vontade. No entanto as pessoas só enxergam o que lhes convém, e criticar acaba rendendo mais. Então, fica eternizado o mito.

Fazer shows e viajar sempre foram um grande prazer, mas, de fato, sou uma pessoa introspectiva, e a minha expressão (artística?!) deve ser aquém do que muitos gostariam. A verdade é que eu e a dança ultimamente não temos nos entendido muito bem, mas nem sempre foi assim. Um dia, há mais de vinte anos, fui um grande dançarino.

O ano era 1985. No Brasil, o regime militar chegava ao fim, e a cena de rock nacional começava a ganhar força, muito por conta do Rock in Rio, o primeiro grande festival desse gênero realizado no país. No âmbito internacional, a Guerra Fria assumia novos rumos, a partir da eleição de Mikhail Gorbatchov como secretário geral do Partido Comunista Soviético. Na América, uma legião de mega-estrelas do pop gravava “We are the world”, para lembrar ao mundo da necessidade de se erradicar a fome na África. Eu era um menino de sete anos, faixa branca de judô, numa academia de Copacabana. Foi uma curta e pouco vitoriosa carreira nas artes marciais, que se encerrou abruptamente; meu irmão, dois anos mais velho, perguntou para a minha mãe por que ele precisava bater nos colegas se não estava com raiva. Acho que a pergunta fez ela pensar, e passamos a fazer natação.

Antes de alcançar a faixa cinza, repeti a branca, se é que isso existe. Meu sensei, Evandro, na primeira avaliação, julgou que eu ainda não estava preparado para assumir os desafios da etapa seguinte, e me manteve na inicial. Quando criança, eu era muito disperso, e, por conta disso, não decorava o nome dos golpes, apesar de saber executá-los muito bem. A prova das faixas ocorria na presença de todos os pais dos alunos, e eu fui o único da turma que não passou. Chorei de frustração, de vergonha, minha primeira grande decepção. Para amenizar o peso daquela tarde, haveria um concurso de dança na academia, logo em seguida à prova. A sensação de exclusão decorrente da reprovação foi aterradora. Pais e filhos se abraçavam, tiravam fotos, comemoravam a conquista. A mim, restava apenas a humilhação, a solidão e a piedade dos colegas. Mas ainda havia o concurso de dança. Enxuguei as lágrimas na manga de meu pequeno kimono, recobrei a auto-confiança, e botei pra quebrar naquele tatame; dancei como se não houvesse amanhã, e venci o concurso.

Hoje desconfio que a medalha que ganhei foi uma espécie de prêmio de consolação, mas a verdade é que esse episódio me fez realmente acreditar que era um grande dançarino. Sensei Evandro jurou que minha vitória tinha mérito, prefiro acreditar que apenas mentiu para que me sentisse melhor. Sua credibilidade ficou irreversivelmente abalada depois que o assisti atuando como jagunço de Sinhozinho Malta em “Roque Santeiro”. Ele estava tentando a carreira de ator e, mesmo de espingarda na mão e chapéu de cangaceiro, a cada capítulo eu esperava que desse um ippon no José Wilker ou no Fábio Jr., o que nunca ocorreu, é claro.

Minha performance de dançarino se aprimorava a cada festa de playground, e, aos poucos, comecei a ganhar mais confiança para criar passos, que eram prontamente imitados por meus colegas. Ao som de bandas como RPM, Legião Urbana e Ultraje a Rigor, eu trilhava meu caminho rumo ao estrelato. Quando assisti à estréia de “Footloose-Ritmo Louco” no Supercine, enlouqueci. A história de uma cidade onde a dança era proibida mexeu demais comigo. O personagem de Kevin Bacon – antes da teoria de que todos os atores do mundo estão ligados a ele por seis graus de separação – ainda não era arroz de festa da Sessão da Tarde, e sim um destemido dançarino que libertava a juventude provinciana da castidade imposta pelo Reverendo Shaw. Revi o filme tantas vezes que decorei a coreografia do rebelde Ren McCormack na cena final: um grande baile de formatura aos padrões americanos, com todos vestindo traje à rigor e balões coloridos espalhados pela pista de dança:

Na grelha do tempo

ter, 08/05/07
por Bruno Medina |

Salvo raríssimas exceções, quem tem um telefone celular está bem familiarizado com o envio de mensagens de texto, ou, se preferir, torpedos. O apelido é uma alusão aos clássicos – e há muito não tão populares – bilhetinhos com galanteios, disparados nos bares de antigamente por intermédio dos garçons. Coisa dos tempos áureos do papel e caneta. Talvez os idealizadores tenham imaginado que sua principal utilidade seria modernizar a paquera, no entanto, os torpedos caíram no gosto popular por um motivo muito menos nobre: são ótimos para ludibriar, evitar papo-furado ou escapar do sermão. Digitar aquelas letrinhas pode até dar trabalho, mas, na maioria das vezes, é muito melhor escrever do que ter que dizer frases como essas:

“Chefe, me atrasei, perdi o ônibus.”
“Adorei te conhecer, assim que estiver menos enrolado, te ligo.”
“Querida, esqueci de pegar o Gabriel na escola, estou voltando.”

São apenas três exemplos da conveniência dos torpedos, que parecem tão adequados aos padrões telegráficos de comunicação dos dias atuais. Em tempos de cada vez menos tempo disponível, eles são uma mão na roda. Por torpedos trabalhamos, namoramos, brigamos, e muito, porque a economia nas palavras não raro resulta em erros de interpretação apenas comparáveis aos cometidos na tentativa de compreender o significado do hino nacional.

A seguir, quatro situações comentadas que sustentam minha argumentação:

1) “Acabei de assistir a sua peça, você não poderia ter feito este papel melhor.”

Essa é fácil. Se houvesse ponto de exclamação seria um elogio, mas, com ponto final, é ironia. Se a pessoa escreveu com pressa e não ponderou sobre a pontuação, esse pode ser o princípio do fim de uma amizade.

2) “A cachorra da sua mãe é demais!”

Trata-se de um exemplo delicado. Dependendo de quem enviou a mensagem, a situação pode acabar na delegacia.

3) “Fica tranqüilo, vou te ajudar a arrumar um emprego. Só você não consegue nada.”

Típico caso em que um ato generoso pode ser confundido com provocação. Basta esquecer a vírgula depois do “Só”.

4) “Duda, desculpa, te amo muito e prometo fazer tudo diferente se você me der uma chance.”

Caso a Duda esteja no cinema, com o aparelho desligado, o caso ainda pode evoluir:

4.1) “Vou entender seu silêncio como resposta. Maldito momento em que fui me apaixonar por alguém orgulhosa como você. Bem que minhas amigas avisaram. Como pode alguém com tantos defeitos se achar tão superior?”

Desfeito o mal-entendido, dificilmente tais palavras serão superadas.

Pois bem, eis que dia desses, ao ligar meu celular logo cedo, vejo que recebi, às 5h32 da madrugada, um telefonema com o código 351, correspondente a Portugal. Confrontei o número com os dos poucos conhecidos que tenho no país e constatei que não era de nenhum deles. Obviamente tratava-se de um engano. Algum tempo depois, recebi a seguinte mensagem:

“Estou em casa duns amigos a comer uma lampreia* e a beber vinho verde, a lembrar-me de dias bem passados, um grande abraço!”

O remetente era o mesmo. A partir daí, tive certeza de que havia alguma confusão entre o meu número e o de outro brasileiro. Enquanto digitava o texto que desfaria o equívoco, me ocorreu que havia uma boa possibilidade deste número de telefone ser a única forma de contato entre dois amigos recentes, separados pelo Atlântico. Achei bonito o gesto do português. Em meio a lampreias, lembrou-se do brasileiro e escreveu. Comoveu-me a tristeza que se abateria naquele almoço, a decepção do silêncio além-mar. Como eu poderia deixar um compatriota em tão má situação, passível de ser considerado um ingrato por ignorar a lembrança de “dias bem passados”?

A questão sobrepôs a simples solidariedade para resvalar no âmbito diplomático, e, tendo em vista as pequenas dimensões daquele país e o poder do boca a boca, seria questão de meses para começarem os cancelamentos de acordos comerciais e as deportações, conseqüentes da má fama atribuída a nós, brasileiros. Imbuído do varonil espírito patriótico, escrevi em resposta:

“Bom receber notícias desse país e de amigos tão queridos. Saudades das noites de música e dos copos virados! Um abraço a todos e até breve!”

Claro que o texto ficou evasivo, não tinha idéia de quem era essa pessoa e ainda corria o risco de me entregar nos detalhes. A mentira foi por uma boa causa, garanto. Um alívio pensar que essas palavras foram compartilhadas durante o almoço, e que o vinho verde desceu redondo, deixando repousar à salvo a tradição de boa amizade entre portugueses e brasileiros. A farsa colou, tanto que outros torpedos se seguiram a esses, sempre em momentos de presumida alegria e descontração, e eu tendo de me virar na árdua tarefa de responder alguma coisa sem transparecer que não sou quem eles pensam. Já está caracterizada uma daquelas situações que não tem mais volta. Apenas me resta manter esse contato, inclusive porque nossa amizade só aumenta a cada novo torpedo. Quem sabe acabo sendo padrinho de algum miúdo português, isso se eu puder comparecer ao batizado sem ser linchado.

Curiosa esta nossa época, quando é possível estabelecer um contato duradouro sem precisar dizer quase nada. Sempre houve amizade à distância, mas as cartas eram escritas de próprio punho, no máximo datilografadas (o que nem fazia tanta diferença, já que máquinas de escrever têm o tempo do pensamento). Eram repletas de belas metáforas e, por vezes, até levavam consigo borrifadas do perfume do remetente. Não sou saudosista, ou avesso aos adventos do mundo moderno, mas fica a impressão de que, a cada avanço da tecnologia, algo que era feito de forma mais sincera, mais autêntica, cai em desuso. Cartões de Natal ou de aniversário… quem os manda hoje em dia? Sempre apressados, preferimos um cartão virtual com uma mensagem padronizada; você escolhe um modelo e manda o mesmo texto para trinta e tal amigos. O valor dessas coisas é inversamente proporcional ao trabalho que exige.

Antes era preciso ir ao Correio, colar o selo (alguns colecionavam), escrever o nome no envelope, se lambuzar com aquela cola nojenta, errar a grafia do nome do filho do amigo e consertar por cima, deixando aquelas letras escuras e confusas. Sinto falta disso, do erro. Hoje tudo parece tão certo, tão preciso, tão urgente, não há espaço para a hesitação. O que se resolvia com uma boa conversa, hoje pode chegar aos tribunais. Não é permitido se contra-dizer. Tudo tem de ser registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar! O que foi dito pode e será usado contra você, não duvide.

Não sei se os torpedos vieram para ficar, é provável que logo sejam substituídos por algo mais eficiente e fácil de usar. Sentiremos saudade, lembraremos deles com romantismo, num futuro possível, quando alguns já não saberão exatamente como nos virávamos com canetas e paqueras não-virtuais. Então eu vou ter que explicar para os meus netos que o churrasco era mais gostoso quando ninguém se importava tanto com aquela sujeirinha na grelha. Êta mundo sem graça!

*As lampreias são peixes de água doce com forma de enguias. Em Portugal, a lampreia é comida normalmente acompanhada de arroz, e é tida por iguaria requintada, sendo vendida nos restaurantes a preços muito elevados.

A culpa é do Carlos

seg, 07/05/07
por Bruno Medina |

Gostaria de agradecer os inúmeros relatos sobre usuários de bigodes, os famosos, os obscuros, os familiares. Confesso que isso me mostrou que não estou sozinho. Muitas pessoas mencionaram seus pais, e a credibilidade que seus bigodes concediam. Meu pai também usou bigode por um curto período nos anos 90, mas a inspiração mesmo veio desse cara aí. Fala a verdade, não parece que ele é feliz só porque usa bigode?

O homem atrás do bigode

sex, 04/05/07
por Bruno Medina |

Olá, para quem não me conhece, vou me apresentar – sou Bruno Medina, músico do Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Confesso que é difícil encaixar o termo “escritor” numa frase, sem que isso pareça arrogante ou, no mínimo, pretensioso. Eu me dou uma colher de chá porque acho que muitos de vocês devem ter conhecido meu antigo blog, o Instante Anterior. Foram quatro anos – no último estive bastante em falta, admito – que me ajudaram a estabelecer uma rotina na escrita, atendendo a uma antiga necessidade de expressão além da música. Fazia um bom tempo que eu queria voltar a postar com regularidade, mas talvez tenha me faltado a devida habilidade para administrar esse desejo simultaneamente a uma agenda bastante atribulada de compromissos com a banda. Mas o plano de voltar a escrever depois de tanto tempo, num espaço onde pouco se esperava ler algo de novo, sempre me levava a adiar essa decisão. A banda entrou em recesso e a desculpa esfarrapada de falta de tempo expirou, não havia porque não retomar o blog. Sentia ainda que era preciso mudar de ares, recomeçar num outro endereço, quem sabe com um outro nome, e aqui estou, inaugurando o Instante Posterior.

Imagino que haja curiosidade quanto ao recesso da banda. Los Hermanos realmente está em recesso. Recesso é recesso mesmo, é a definição do dicionário, no sentido estrito, sem eufemismo. A banda não acabou. Embora pareça claro, também não posso deixar de perceber como assusta outra palavra que usamos na nota divulgada em nosso site: “indeterminado”. Não é infinito, é indeterminado. Às vezes, os termos assumem uma força maior do que seu real significado, e acredito que esse seja o caso. Agora é chegado o momento de parar um pouco, observar e tomar fôlego, para depois prosseguir. Esta é a ordem das coisas, certo?

Certo. Os compromissos se espaçando e algumas curiosas idéias começando a pipocar. Lá pelo meio das férias, decidi deixar apenas o bigode. Antecipo-me em relação às possíveis teorias para afirmar que se trata de uma decisão puramente estética. Todo homem, cedo ou tarde, acaba cedendo à tentação de se ver refletido no espelho por trás de um volumoso bigode. Essa intrínseca relação começa por volta dos treze, catorze anos. Um buço, ou mesmo uma ligeira penugem por sobre o lábio superior, funciona como um passaporte mágico para o mundo dos adultos, e pode nos livrar do guaraná compulsório na festa de quinze anos da prima. Com voz de taquara-rachada, cheios de si, nos sentimos seguros para perguntar ao garçom se o rapaz da cidra ainda demora, ou mesmo se vinho tinto está sendo servido.

Anos depois, tendo a voz mais firme e pêlos por todas as partes do corpo, o bigode deixa de ser a única opção, e é raro ser visto desacompanhado no rosto até que se esteja devidamente casado. Há pouco tempo recebi o chamado, e não hesitei em assumir o polêmico visual. Nos primeiros instantes de bigode, já pude sentir que as coisas haviam mudado. Ao sair para passear com Oscar, meu cachorro, percebi que a habitual cordialidade dos vizinhos cedeu lugar a uma certa sensação de desconforto, manifestada nos olhares desviados e nas cabeças baixas; evitavam a todo custo cruzar o olhar comigo. Até Oscar parecia constrangido, com o rabo entre as pernas tomou o rumo de volta para casa e, mais tarde, mordiscou meu LP dos Strokes, num provável ato de vingança.

A verdade é que o bigode, que já adornou rostos tão célebres (Monteiro Lobato, Einstein, Frida Kahlo, Santos Dumont, Chaplin, Salvador Dalí e Carlota Joaquina, só para citar alguns), nos tempos de hoje goza de muito pouco prestígio por estas bandas.

O que será que aconteceu? Algumas possibilidades logo me ocorreram; é preciso levar em conta os maldosos ditados “malandro é o gato que já nasce de bigode” e “com mulher de bigode nem o diabo pode”, porém não seriam suficientes para justificar tamanha desconfiança que um bigode causa. Uma rápida pesquisa me ajudou, e os indícios começaram a aparecer. Maracanã, 1950, Brasil x Uruguai, decisão do mundial. Um dia a ser esquecido em nossa gloriosa trajetória futebolística. O gol que calou a pátria e arrancou de nossas mãos a taça mais garantida de todas as Copas foi possível pela distração de um determinado jogador brasileiro, um lateral esquerdo, conhecido como… Bigode! Não seria de se estranhar que no país do futebol esse fato pudesse perpetuar o mau agouro de um bigode, mas, para me certificar, fui à padaria, falar com quem realmente entende do assunto.

Antes de entrar notei olhares de apreensão entre os funcionários. O caixa olhou para o balconista, que sinalizou para o proprietário do recinto. Pontas de bigodes se enrolavam nos dedos, no célebre gesto de desconfiança. A presença de um homem de bigode, àquela hora da manhã, gerou cautela. O pão havia acabado. Imediatamente entendi o recado e parti, mas não sem antes notar o calabouço para o qual dois funcionários desceram apressados. Existe algo, eu tenho certeza! Uma organização secreta, uma seita, quem sabe uma espécie de “Código da Vinci”.

No trajeto de volta, de mãos vazias, lembrei que a reprodução que o dadaísta Marcel Duchamp fez de Mona Lisa estampava um bigode e a legenda “elle a chaud au cul” (algo como “ela tem fogo no rabo”). Cheguei em casa tentando concatenar as idéias e o telefone tocou, era uma amiga fotógrafa que havia me convidado dias antes para fazer uma matéria sobre homens de bigode; a pauta caiu. Foram os caras da padaria, é lógico.

Vou seguir nas investigações, e o meu bigode continuará exatamente onde está, até descobrir toda a verdade. Para terminar, um trecho do Poema de Sete Faces, de Drummond, que não era bigodudo, mas devia ter alguma informação privilegiada sobre o tema.

“O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.”

Opa, o homem atrás dos óculos e do bigode sou eu!



Formulário de Busca


2000-2015 globo.com Todos os direitos reservados. Política de privacidade