O que está sendo feito para apressar a descoberta da cura

qui, 21/11/13
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A sensação de que é preciso fazer algo é comum em familiares próximos, indivíduos afetados por alguma doença ou condição incurável. Por experiência própria, recebo centenas de mensagens toda semana de pais de autistas brasileiros perguntando o que é possível fazer para acelerar o processo de descoberta e chegar logo a tratamentos clínicos. O sentimento não é restrito ao Brasil e acontece com familiares em outras partes do mundo também.

Minha intenção com essa coluna é discutir formas que podem acelerar todo o processo, mostrando algumas das iniciativas que acontecem fora do Brasil. Nos EUA, a consciência de que curas para doenças complexas serão fruto de uma colaboração multidisciplinar começa a tomar impulso. Encontros como o P4C (Partners for Cure), acontecem cada vez com mais frequência. Nesses encontros, uma mistura de cientistas, grupos de familiares, investidores, médicos e profissionais da indústria farmacêutica exploram o “quem” e “quando” os tratamentos vão surgir.

Ao perguntarmos “quem” serão os responsáveis pelas curas, esbarramos nos modelos tradicionais de pesquisa científica. Poucos sabem que, apesar de muitos cientistas se dedicarem a buscar curas para diversas doenças, a moeda científica são trabalhos publicados em revistas. Pouco importa academicamente se os dados gerados serão realmente utilizados clinicamente. Além disso, cientistas também se preocupam com financiamento e gerenciamento do laboratório, algo que frequentemente desvia o foco da cura. Portanto, o modelo atual de ciência é desconectado com a urgência dos pacientes. Um exemplo claro é o tempo de publicação de um trabalho cientifico (meses ou anos depois de que a descoberta foi feita). Publicações mais rápidas poderiam disseminar novos conhecimentos mais efetivamente.

Iniciativas que surgem desses encontros são modelos experimentais que já estão sendo desenvolvidos por associações de pacientes. Uma conclusão comum é que a união de organizações sem fins lucrativos com a indústria, governo e laboratórios acadêmicos tem sido uma atraente opção positiva para todas as partes envolvidas. Algumas dessas iniciativas podem ser exemplificadas pela fundação Michael J. Fox de combate ao Mal de Parkinson. Nesse caso, o grupo desenvolveu um aplicativo de celular que detecta alterações no padrão de voz de pacientes e a relaciona com o progresso clínico da doença. De forma semelhante, um grupo de ELA (esclerose lateral amiotrófica) conseguiu reunir dados clínicos de 8.600 pacientes identificados a partir de 18 ensaios clínicos. Esses dados estão sendo estudados por cientistas de mais de 30 países diferentes. Um modelo inédito também está em andamento numa iniciativa de combate ao câncer. Uma nova empresa, Curious, organiza pesquisas cientificas mediada por grupos de pacientes através de plataformas de acesso aberto.

Fora da esfera cientifica, familiares e pacientes podem contribuir de outras formas. A doação filantrópica a laboratórios acadêmicos é algo comum nos EUA. Ao contribuir financeiramente para um laboratório, associações de pacientes ajudam o cientista a focar na cura. Essa ajuda não precisa vir necessariamente de associações de familiares ou ONGs. A doação individual é frequentemente esquecida como uma opção viável, principalmente no Brasil, aonde a cultura da doação filantrópica praticamente não existe. Falo com experiência no exterior, apesar de meu laboratório já ter recebido doações nos EUA, Europa e Ásia, nunca houve uma única contribuição vinda do Brasil. Por menor que seja, todo apoio recebido acaba somando para acelerar a desejada cura. Esse tipo de crowdfunding tem crescido em outras esferas da sociedade, muitas vezes com projetos bem menos impactantes do que o tratamento de uma doença humana.

Outra forma de contribuição são formas de conscientização social. Nisso, os americanos dão show de criatividade. Vista algo da cor rosa e lute pelo câncer de mama. Deixe o bigode crescer e converse sobre o câncer de próstata. Na minha área, autismo, grupos de pais estão revolucionando esse conceito através de parcerias com a iniciativa privada. Uma vez por mês, a famosa rede de cinemas americana AMC recebe os autistas e familiares para pré-estreias. Todos no cinema são informados previamente do evento. As luzes na sala são controladas para que o ambiente não fique completamente escuro, e o som moderado. Além disso, os autistas podem se levantar, correr, dançar e se expressar da forma que quiserem. Atitudes semelhantes acontecem em academias de ginástica, piscinas, bufês infantil, cafés, cabeleireiros, dentistas, com baby-sitters, etc. Além de prestar um serviço comunitário para os familiares, essas iniciativas localizadas ajudam na divulgação e conscientização do autismo. Aos poucos, o autismo vai sendo divulgado em comunidades pequenas, que vão amplificando o conhecimento.

Finalmente, existe a opção de lobby político. Pode-se ressaltar a importância e o impacto de um tratamento para os cofres públicos, por exemplo. Nos EUA, esse lobby acontece bi-lateralmente, ou seja, tanto políticos que procuram mais conhecimento, como grupos de pais que se reúnem com políticos cobrando serviços. Quando sugiro isso a grupos brasileiros, o desânimo é aparente. A sensação de impotência e incompetência política em nosso país é muito grande. Parece ser mais fácil conseguir uma audiência com o presidente dos EUA do que com um vereador brasileiro. Mas não podemos esquecer que a tendência é melhorar. Os recentes avanços políticos no Brasil são uma indicação de novos ares.

Foto: Cure It Foundation

Desafiando a morte com a morte

qui, 10/10/13
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Nada mais apropriado para o mês das bruxas do que uma historia sobre a morte. Mais ou menos nessa época do ano de 2004, a americana Jeanna Giese dava entrada no hospital de Wisconsin com uma série de sintomas muito esquisitos. Pra piorar, o quadro clínico estava deteriorando rapidamente. Jeanna foi analisada pelo Dr. Rodney Willoughby. Após ver a paciente, o médico só tinha uma preocupação: se o que Jeanna tinha eram sintomas de infecção com o vírus da Raiva, ele estava condenada a morte. O que acontece logo depois é algo que transita entre um milagre e uma impossibilidade médica.

Jeanna, então com 15 anos de idade, chega da escola com uma certa indisposição. O braço esquerdo apresenta uma certa tremedeira, algo que imagina tenha sido causado por um excesso de uso durante o treino de voleibol. Uma semana depois, a menina começa a apresentar visão dupla, enjoo e outros sintomas de febre, como dor de cabeça. Cada dia ela fica mais cansada e indisposta, não conseguindo mais articular sentenças durante uma conversa, os músculos começam a ficar rígidos. Os pais levam a menina ao neurologista local, que intrigado com a rapidez do quadro clínico, resolve internar Jeanna. É nesse momento que os pais dela lembram do episódio da filha com o morcego vampiro.

A mãe de Jeanna conta que, cerca de um mês antes, Jeanna fora mordida por um morcego desorientado ao tentar retirar o animal que havia ficado preso na igreja da comunidade. A mordida fora no dedo indicador da mão esquerda. O médico fica imediatamente pálido ao ouvir a história e transfere Jeanna para um outro hospital, para ser tratada por um infectologista, Dr. Rodney. Jeanna chega num estado completamente alterado, como se fosse uma zumbi, não respondendo a estímulos ao seu redor, alheia a tudo, com o corpo bem rígido, aos berros, babando e salivando constantemente. O quadro da garota piorava a cada hora e Rodney fecha o diagnóstico: a menina estaria com Raiva.

Para quem não sabe, Raiva é uma doença causada pela infecção com o vírus rábico, em geral através de um outro organismo infectado. Infelizmente não existe cura pra Raiva, a pessoa está condenada à morte. É a considerada a doença mais mortal do mundo, 100% fatal. Há registros da doença desde que existe escrita humana. Conhecemos a doença por milhares de anos e nunca descobrimos uma cura. Existem exemplos de tratamentos alternativos em diversas culturas, por exemplo, durante o império romano, se você fosse mordido por um morcego, poderia tentar comer o cérebro de um galo com mel misturado com carne de cachorro salgada. Se não funcionasse, a alternativa era esfregar o ânus de uma ave depilada sobre o local da ferida. Esse tipo de “cura”, na verdade deveriam ser apenas casos de indivíduos mordidos, mas cujo vírus não tenha conseguido infectar o humano.

O vírus da Raiva tem um ciclo diferente da maioria dos outros vírus. Ele não entra pela corrente sanguínea, mas penetra através da lesão (a ponta do dedo, por exemplo) e gruda a um nervo qualquer através de um receptor. Uma vez dentro, ele se multiplica e caminha através das conexões nervosas, escalando nervo a nervo, até chegar ao cérebro. Isso acontece na velocidade de um a dois centímetros por dia, ou seja, dois a três dias para completar o caminho de um dedo, mais alguns dias para atravessar o braço, e mais algumas semanas até atacar o cérebro. É somente nesse período, aonde o vírus percorre os nervos periféricos lentamente, que existe uma janela de oportunidade para se aplicar a vacina contra o vírus, estimulando o sistema nervoso a lutar contra a infecção. Uma vez que o vírus chega ao cérebro, a vacina é ineficaz. Ninguém sabe exatamente o que o vírus faz ao chegar no cérebro. Em alguns casos, induz paralisia dos membros e leva o indivíduo a coma. Mas o mais comum, nos casos clássicos de infecção, a pessoa tem espasmos incontroláveis junto com convulsões, babas, gritos e olhares profundos. São como se fossem zumbis, mortos vivos. Nesse estágio, não há o que fazer, tenta-se apenas dar uma morte mais humana ao paciente.

Sob a perspectiva do vírus, o que acontece é que ele domina o cérebro dos infectados, deixando a pessoa mais agressiva, aumentando as chances dela morder alguém e espalhar a infecção. As vitimas também ficam com aversão a água. Com muita sede, os pacientes tentam tomar líquidos, mas não conseguem, pois os músculos da garganta retraem ao ver a água. Essa é outra estratégia do vírus para aumentar sua concentração na saliva do infectado, criando uma verdadeira mordida da morte.

Quando Rodney disse a família que Jeanna tinha Raiva, já era um estágio muito avançado para a vacina. Porém, foi proposto um tratamento experimental baseado em uma hipótese controversa que não havia sido considerada anteriormente. Segundo essa ideia, o vírus da Raiva não destruiria fisicamente os neurônios, apenas os modificaria para que ficassem superestimulados, dificultando o funcionamento. Ou seja, o cérebro, per se, se manteria intacto. Essas observações são confirmadas em estudos post-mortem, que reportam ausência de danos no cérebro dos pacientes mortos por Raiva. Mais intrigante ainda, nesses pacientes, não existe evidencias do vírus no cérebro, sugerindo que o sistema imune consegue se livrar do vírus, porém tardiamente.

A visão de Rodney é simples: se pudéssemos conseguir mais tempo para que o sistema imune atue, o vírus seria eliminado do organismo, deixando o sistema nervoso intacto, dando uma chance de sobrevivência para Jeanna. Praticamente o procedimento seria o de induzir coma em Jeanna, mantendo um anestesista controlando suas funções vitais, e dando oportunidade ao sistema imune dela reagir. O risco do procedimento seria alto: ela poderia ficar com lesões permanentes no cérebro ou mesmo nunca mais voltar a andar, ficaria presa dentro do próprio corpo. Decidiu-se seguir em frente com o tratamento experimental, induzindo-a ao coma.

Sete dias em coma, eles retiram uma amostra do liquido espinhal e constatam que o sistema imune estaria reagindo. Passa-se mais uma semana e Jeanna vai acordando vagarosamente, porém não apresenta nenhum movimento corporal a não ser resposta da pupila. Após dois dias os reflexos começam a voltar lentamente e, em uma semana, ela está recuperada. Teve que reaprender uma série de movimentos básicos, como se voltasse a ser um bebê, procedimento que levou mais ou menos dois meses. Jeanna Giese torna-se a primeira pessoa a sobreviver a Raiva sem uso de vacina e entra para os livros de história médica!

Desde esse caso, o protocolo de Rodney foi tentado em outras situações similares no mundo todo. De trinta casos experimentais, (apenas) cinco sobreviveram. Em paralelo, pesquisadores do CDC americano descobriram que algumas pessoas de uma comunidade no Peru, que vivem em contato próximo com morcegos vampiros, possuem anticorpos endógenos que neutralizariam o vírus da Raiva. A única forma que esses indivíduos teriam anticorpos seria através do contato prévio com o vírus. Mas eles não tinham qualquer sintoma neurológico, como se fossem imunes à doença. Essa observação levantou questionamentos sobre a real eficácia do método de Rodney. Talvez existam indivíduos humanos que sejam imunologicamente especiais, naturalmente resistentes à Raiva. Poderia ser o caso de Jeanna e dos outros sobreviventes.

As criticas a Rodney foram fortes, alguns médicos chegaram até suspeitar que o protocolo experimental poderia inclusive piorar o quadro clínico e deveria ser descontinuado. Outros sugerem que o dinheiro gasto na implementação desse tipo de protocolo clínico deveria ser aplicado em vacinas, prevenindo populações menos favorecidas, ao invés de buscar a cura de poucos infectados. Rodney rebate a essas criticas dizendo que não se pode simplesmente abandonar os pacientes e que, se existe uma chance de cura, essa merece ser estudada. Cita exemplos em câncer e outras doenças antes consideradas letais. Tudo começou de forma experimental, sem muito embasamento científico, e hoje temos tratamentos e cura. O fato é que Rodney desafiou a Raiva, desafiou a morte, e hoje existem pacientes que sobrevivem a infecção. É pra refletir.

Crédito da imagem: Hudson Garcia



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