A Arte e a Ciência: PopTech

seg, 31/10/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Recentemente tive uma experiência única como cientista: fui convidado a participar da iniciativa PopTech (https://poptech.org/), em Maine, nos Estados Unidos. Apesar de não muito divulgada no Brasil, a PopTech tem uma presença marcante nos EUA ao promover encontros anuais com uma série de inovadores e líderes mundiais, incluindo políticos, artistas, cientistas e pessoas comuns que podem, com suas ações e boas intenções, plantar sementes de novas ideias e causar um impacto transformador no mundo. Esses transformadores são pessoas que se dedicam integralmente à busca de uma sociedade mais justa e equilibrada. A instituição tem forte apoio de gigantes como Microsoft, National Geographic, Nike e Google.

Um dos objetivos desse encontro é concentrar esses inovadores com o intuito de produzir interações inusitadas, como no caso de artistas plásticos e cientistas. Foi uma semana intensa aonde seu cérebro literalmente não para de refletir sobre os mais abrangentes assuntos. Por uma razão que ainda não sei explicar, acabei interagindo mais com os artistas. Acho que eles me acharam curioso e eu a eles.

Um desses artistas, Milenko Matanovic, tem uma história curiosa. Cidadão da antiga Iugoslávia, Milenko se retirou da sociedade enquanto jovem e acabou por produzir uma carreira de sucesso internacional criando imagens poéticas em seu exilio. Repentinamente célebre, acabou por ser convidado a expor em um circuito de Nova Iorque nos anos 70, onde deslanchou sua carreira como artista internacional. Milenko hoje não é tão influente mais no mundo artístico. Isso porque decidiu abandonar a “arte pela arte” e hoje se decida a conectar a arte com comunidades. Conversando, me contou que sentiu um estalo quando viu pela primeira vez a foto da Terra no espaço, o planeta azul boiando na imensidão do universo. Para ele, aquela imagem, com grande embasamento científico, o fez questionar sua própria arte. Buscando um significado para o que fazia, entendeu que a arte seria limitada no sentido de capturar toda a existência numa obra. Esse insight induziu Milenko a levar sua manifestação artística para projetos sociais. Uma das formas que ele faz isso é trabalhar com diversos setores da sociedade em projetos comunitários, como construção de parques e espaços de recreação. Convidando indivíduos com visões diferentes para opinar e confrontar idéias, descobriu que pessoas comuns são capazes de coisas extraordinárias.

Outro artista que interagi foi o grafiteiro El Seed. Francês de origem árabe, El Seed começou a se interessar pela estética da caligrafia árabe quando adolescente. Passou a usar os caracteres em seus grafites, trazendo momento e a sutileza das curvas para os muros franceses e para a cultura ocidental em geral. Fã do grafite brasileiro, El Seed contou que no inicio costumava traduzir para o inglês e francês as palavras árabes presentes em suas obras. Amadureceu, e passou a achar que a tradução era irrisória depois que descobriu que Billy Jean não era filho do Michael Jackson. Para ele, a arte deve despertar a curiosidade e induzir o amadurecimento. Também deixou de assinar seus trabalhos, pois acredita que a arte deve ser o foco, e não o artista.

Thomas Thwaites leu em algum lugar que o homem moderno, com todo o conhecimento do mundo disponível, não seria capaz de reinventar a tecnologia necessária para fazer uma torradeira. Decidiu encarar o desafio. Comprou numa loja a torradeira mais barata que encontrou e a deconstruiu-a por completo. O resultado? 400 peças de aço, plástico e cobre. Encarou o desafio. Sem conhecimento cientifico prévio, procurou por pessoas que pudessem ajudá-lo a reconstruir a torradeira do zero. Minou ferro, foi atrás de cobre em montanhas da Escócia, criou plástico a partir de batatas, moldou peças em formas de madeira crua. O projeto durou aproximadamente um ano e no final, Thomas conseguiu reconstruir uma torradeira do nada. Bom, não ficou esteticamente atraente, mas funciona. O projeto mostrou que o dogma do homem moderno avesso a tecnologia não sobrevive a própria teimosia humana (pelo menos no caso da torradeira). Mas também mostrou quanto conhecimento acumulado culturalmente existe por aí e simplesmente não temos muita consciência disso.

Também acabei conhecendo Tony Orrico. Vindo de uma família de artistas, foi influenciado pela demência senil de seu pai que, com o passar dos anos, pintava e desenhava a mesma cena repetidamente até o final da vida. Porém, cada desenho tinha uma individualidade. Tony começou a copiar obras conhecidas, procurando reproduzir fielmente os passos de autores famosos. A busca pela sua própria identidade fez com que ele deixasse a mera reprodução e passasse a recortar as imagens, buscando linhas de expressão únicas em cada desenho. Nesse período, passou a ter aulas de dança moderna e a perceber como seu corpo influenciava os desenhos. Durante uma dessas sessões, teve seu maxilar descolado e acabou num consultório médico. A partir daí, as deslocações começaram a ficar mais frequentes. Uma má formação no maxilar causava esse deslocamento pelo menos uma vez por semana, em diversas situações. A crise durava minutos ou horas e Tony teve que aprender a conviver com essa sua característica. Percebeu que isso afetava mais um lado do corpo do que o outro. Angustiado, procurou por tratamentos, incluindo ioga e meditação. Esse processo de cura gerou um insight. Usaria a arte como terapia, mesclando a dança e o desenho. O resultado é impressionante. Tony entra numa espécie de transe, alinhando a discordância do esquerdo e direito através de movimentos repetitivos e estereotipados. Faz isso com lápis nas mãos e os movimentos acabam sendo impressos, criando figuras extremamente curiosas.

A manifestação da arte segue caminhos semelhantes ao da ciência. Refletindo sobre minha própria forma de fazer ciência, pude apreciar o quanto o processo de criação é parecido. Milenko busca conectar pessoas, eu aprendo com neurônios desconectados. El Seed entrou na arte por curiosidade e busca uma estética diferente. O planejamento do cientista também procura por essa estética original através da criatividade do desenho experimental. A torradeira do Thomas mostra que é possível quebrar dogmas, desconstruir coisas e aprender com o processo. Eu desconstruo o cérebro em modelos simples que aumentam em complexidade ao se aproximar da realidade. Os movimentos repetitivos e ultra-focados de Tony, são para mim, movimentos tipicamente autistas. O transe e o balanço são atividades prazerosas para todas as crianças, mas nos autistas isso é exacerbado. A transformação de Tony mostra o quanto nosso cérebro é plástico e que somos nossos próprios agentes transformadores.

Vivemos num mundo em transição, caminhando para um destino incerto. Precisamos urgentemente re-imaginar a geografia da Terra, mantendo as ilhas de utopia vivas. Oportunidades como essa deveriam estar a disposição de todos os profissionais interessados em crescimento pessoal e interatividade como forma de transformar o mundo. Infelizmente, esse tipo de conferência acaba sendo restrita, pouco divulgada e as ideias geradas não necessariamente chegam ao cidadão comum. Torço para que a interatividade comunitária de Milenko afete as comunidades sociais na internet e aumente esse tipo de divulgação, não tão atraente para a mídia comum.

O cérebro canhoto do chimpanzé

qui, 13/10/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Se alguém te jogar uma bola, com que mão você a pega? Aproximadamente 80% das pessoas usa a mão direita. Essa tendência vem desde cedo, bebês tendem a pegar a mamadeira ou um brinquedo com uma mão dominante. O fato de termos maior habilidade com uma mão do que com a outra reflete uma lateralidade nos comandos motores originados de partes diferentes do cérebro.

 

Eu explico, temos 2 hemisférios cerebrais: o direito e o esquerdo. Vários estudos apontam pra funções específicas para cada hemisfério. Por exemplo: o hemisfério esquerdo é geralmente mais dominante pra aquisição de linguagem e destreza motora. Muitos cientistas acreditam que a lateralidade é uma especialização tipicamente humana que favoreceu a evolução do nosso cérebro. Mas será realmente uma característica unicamente humana?

 

Pra responder a essa questão, um grupo de pesquisadores da Universidade de Emory, em Atlanta, estudou grupos de chimpanzés no centro Yerkes de primatas. Chimpanzés são considerados um dos nosso parentes evolutivos mais próximos. Mais de 98% do nosso DNA que se alinha entre as duas espécies é igualzinho ao deles.

 

O grupo, liderado pelo Dr. William Hopkins, teve uma idéia bem simples: observar os chimpanzés durante suas atividades mundanas (como por exemplo descascar uma banana, se pendurar nas árvores, jogar objetos, etc) e identificar se existe ou não uma dominância de um dos lados. Após longas e entediantes horas, os pesquisadores concluíram que a grande maioria dos animais não mostrava nenhuma destreza preferencial. Em outras palavras, como regra os chimpanzés são tipicamente ambidestros.

 

Mas como toda regra tem suas exceções, os pesquisadores também notaram que uma pequena proporção de indivíduos apresentava lateralidade (ou destros, ou canhotos). Foi justamente aí que a coisa começou a ficar mais interessante, no melhor estilo “Planeta dos Macacos”. Qual não foi a surpresa dos pesquisadores, quando eles perceberam que aqueles indivíduos que tinham a lateralidade mais definida apresentavam comportamentos de vocalização e gesticulação muito mais requintados quando comparados com os tipicamente ambidestros. Os novos sons feitos pelos chimpanzés-especiais receberam nomes curiosos, como “vocalização framboesa” e “grunhido de comida extenso” (vale a pena ouvir os exemplos: https://userwww.service.emory.edu/~whopkin/Gesture+Vocal_short1.avi e https://userwww.service.emory.edu/~whopkin/beleka2.avi)

 

Os pesquisadores ainda estão tentando relacionar os chimpanzés-tagarelas com dados de ressonância magnética do cérebro pra investigar se realmente existe algo de especial na lateralidade dos hemisférios desses indivíduos. Considerando nossa enorme semelhança genética, não seria totalmente improvável que alguns indivíduos numa população de chimpanzés apresentem algumas formas primitivas de características que consideramos tipicamente humanas. Improvável seria imaginar que todas as nossas características tipicamente humanas apareceram de um dia para o outro na evolução.

 

A observação de que existem chimpanzés que fogem da regra ambidestra é um convite para uma reflexão evolutiva. Será que o cérebro canhoto de alguns chimpanzés trariam alguma vantagem cognitiva para aqueles indivíduos? Digo isso porque um repertório de vocalização mais refinado e abrangente pode trazer benefícios imediatos na arte da comunicação. Mesmo alguns poucos novos sons podem fazer uma grande diferença num ambiente hostil ou numa conquista amorosa. Em terra de cego, quem tem um olho é rei.



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