In(mani)festação da mente

ter, 31/05/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Uma das manifestações mais intrigantes da mente humana pode ser causada por uma simples desilusão. Pacientes que sofrem da síndrome de Morgellons acreditam que parasitas misteriosos caminham por baixo da pele, causando uma sensação, no mínimo, horripilante.

Relatos dos pacientes com essa síndrome parecem scripts de filme de horror. Vermes e insetos, infestando o corpo, caminham pelo corpo deixando traços e ovos por onde passam, mordendo vagarosamente a carne e eventualmente perfurando a derme em busca de liberdade.

Alguns acreditam que filamentos ou fibras desses insetos possam ser vistos dentro da pele. Os relatos são tão diversos quanto misteriosos. Alguns acham que os insetos seriam “aliens” parasitando o corpo humano. Outros acreditam em uma teoria da conspiração, um subproduto de químicos no ambiente usados para controlar comportamentos humanos.

Comunidades de pacientes norte-americanos se reúnem virtualmente na tentativa de pressionar as autoridades a estudar os casos e levá-los a sério. Armados com insetos capturados em vidros e saquinhos plásticos, eles visitam diversos médicos na esperança de encontrar a causa física.

Porém, até o momento, nenhum agente causador, um fungo, uma bactéria ou mesmo um inseto foi diretamente relacionado aos sintomas da síndrome.

Mas um estudo publicado semana passado por um grupo da Mayo Clinic, em Minnesota, nos Estados Unidos, revisou amostras coletadas de 108 pacientes e chegou a uma conclusão intrigante: a percepção da infestação existe apenas na mente dos pacientes (Hylwa e colegas, Archives of Dermatology, 2011).

Os pacientes foram acompanhados durante 7 anos. Amostras trazidas pelos próprios pacientes ou biópsias coletadas pelos pesquisadores foram analisadas no microscópio. Em um caso, encontrou-se restos de um piolho. Nos outros 107, nenhuma evidencia de inseto ou qualquer outro parasita.

As coceiras, erupções e outros machucados na pele foram identificados como sintomas típicos, mundanas, que foram agravados pelos próprios pacientes na tentativa de retirar eventuais parasitas ou frear as coceiras.

As fibras, frequentemente apontadas pelos pacientes como evidência física, foram classificadas como restos de células da pele, cabelos, fibras sintéticas de carpete ou roupas. Ainda nesses filamentos, encontraram-se vestígios de moscas-de-banana, que não colonizam o corpo humano.

A conclusão do artigo é clara: os pacientes sofrem de uma síndrome psicológica, descrita na literatura dermatológica como “delírio de infestação parasitária”. O artigo desafia a tradição das comunidades de pacientes com a síndrome de Morgellons, que acusavam a comunidade médica de descaso e preconceito.

O estudo mostrou claramente que o diagnóstico não se altera, seja com amostras dos pacientes ou coletadas em biópsias no laboratório. O problema estaria realmente na mente dos afetados.

Mas será que evidências cientificas seriam suficientes para convencer os próprios pacientes de que o problema não está na pele, mas no cérebro? Aparentemente não. A associação dos pacientes com síndrome de Morgellons se manifestou dizendo que os estudos não foram suficientemente profundos e demandam mais investigação.

Para eles, outro problema seria o de diagnosticar futuros pacientes com sérios problemas dermatológicos como se fossem portadores de síndromes psiquiátricas. Enquanto o debate continua, um outro trabalho ainda não publicado, do CDC (Center for Disease Control) dos EUA, antecipa resultados semelhantes ao da Mayo Clinic num futuro próximo.

Na minha opinião, seria interessante entender melhor como essas desilusões surgem na mente humana, se há um potencial criativo tão grande a ponto de justificar o que os olhos não vêem. Respostas para os Morgellons prometem influenciar outras áreas do conhecimento, trazendo novas ideias sobre vias neurais relacionadas à fé e à abstração humana.

Estudos da compaixão

sex, 13/05/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Existe algo que me incomoda na prática médica e estudo da medicina. Acompanho alunos da área de saúde na Universidade da Califórnia, desde a entrada na faculdade até a formação profissional. Vejo estudantes brilhantes cursando o primeiro ano, cheios de vontade de aprender mais sobre os mistérios das doenças e com curiosidade sobre a percepção do paciente. Porém, já no final do curso, encontro profissionais “gelados”, buscando a solução para o problema o mais rápido possível para se dedicar ao próximo paciente.

Esse modelo, que não acredito que seja restrito aos EUA, ensina ao profissional de saúde a se afastar do paciente, procurando a não-interação ou a ausência do contato pessoal. Isso acontece como forma de defesa, prevalecendo o medo de se relacionar com o paciente ao se aproximar aos problemas dele. A relação médico-paciente acaba se restringindo a doença e tratamento. Talvez isso seja um reflexo da dinâmica da sociedade moderna. O fato é que esse tipo de atitude acaba por afetar o processo de cura, causando confusão de diagnósticos ou mesmo atrasando todo o tratamento. É contra-produtivo.

Meu questionamento parte de um principio da neurociência. Estudos de empatia e altruísmo, tanto em animais como humanos, sugerem que ao nos colocarmos mentalmente no lugar de um indivíduo com determinada dor, somos mais capazes de distinguir e entender o sofrimento alheio. Pessoas com baixo nível de empatia ignoram esse tipo de “dica não-verbal” e não correspondem à expectativa do outro. É interessante notar que esses trabalhos conseguem realmente quantificar o nível de compaixão utilizando métodos de neurociência sofisticados, como ressonância cerebral, ou testes bem simples, como identificar rostos com mais ou menos sofrimento em fotografias.

Mas como treinar os profissionais a ter compaixão? Neurônios chamados de “vonEconomo”, presentes na ínsula frontal do córtex e em parte do sistema límbico anterior, seriam responsáveis pela geração do sentimento de compaixão e consciência social. Esses neurônios são mais abundantes em humanos do que em outros “apes” (superfamília que inclui macacos de grande porte e humanos) e, aparentemente, não existem em outros primatas. Também foram encontrados em elefantes e baleias, o que talvez indique que cérebros grandes usem esses neurônios para conectar regiões fisicamente afastadas (Allman e colegas Ann. NY. Acad. Sci, 2011).

Estudos de meditação com monges budistas permitiram descobrir que com treinamento adequado é possível induzir essas regiões do cérebro, aquecendo-as ou resfriando-as mentalmente. O aquecimento dessas regiões (não necessariamente um aquecimento físico, mas mental, induzindo o metabolismo) conseguiu alterar a compaixão sentida pelos indivíduos quando expostos a faces de outras pessoas sofrendo. A distinção da dor torna-se muito mais sensível. Resfriando essa região cerebral deixaria o individuo com menos compaixão.

Isso significa que podemos controlar mentalmente o nível de compaixão em determinadas situações. Esse tipo de treinamento permitiria que profissionais de saúde aquecessem mentalmente a ínsula frontal do córtex antes de interagir com o paciente, amplificando e reinforçando a percepção do sofrimento. Ao final da consulta, o profissional poderia então esfriar a ínsula, desligando-se do paciente e evitando um conflito emocional.

Obviamente, esse treinamento deveria fazer parte do currículo de graduação dos profissionais de saúde que interagem diretamente com pacientes. Infelizmente, não acho que estamos preparados para esse tipo de estratégia. Falta reconhecimento de que a compaixão auxilie no tratamento por parte dos profissionais e mesmo dos próprios pacientes. Enquanto não chegamos lá, penso também que esse tipo de treinamento fosse útil não apenas num contexto de saúde, mas em outras esferas sociais, como debates políticos, ou mesmo no dia-a-dia. Temple Grandin, uma autista norte-americana, conseguiu aplicar a compaixão no design de matadouros de gado para redução de estresse, revolucionando a qualidade da carne consumida hoje em dia. Existem outros exemplos de compaixão melhorando nossa qualidade de vida. Pergunto como seria o mundo daqui a 50 anos se conseguíssemos treinar as crianças de hoje a ter mais compaixão?



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