Sinapses e o livre-arbítrio

sex, 28/01/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A unidade estrutural pela qual a comunicação acontece entre um neurônio e outro chama-se sinapse. Nela os impulsos elétricos percorrem as células nervosas e são traduzido em sinais químicos, liberando neurotransmissores.

Sabemos muito pouco sobre as sinapses. Sabemos menos ainda sobre como são formadas e moldadas pela experiência, ou seja, como o estímulo externo, vindo do ambiente, modifica a atividade das sinapses em nosso cérebro. No entanto, sabemos que elas estão envolvidas nos processos de aprendizagem, memória, inteligência, afeto. Sabemos também que, quando não funcionam direito, podem levar a diversos problemas neurológicos e psiquiátricos.

Um trabalho publicado recentemente tentou catalogar as proteínas que formam as sinapses do neocórtex, coletando material humano removido durante cirurgias. O resultado “proteômico” nada mais é que o primeiro inventário de todos os fatores protéicos envolvidos com o mais sofisticado maquinário para processar informações que conhecemos: o cérebro humano.

Foram 1.461 proteínas catalogadas no trabalho liderado por Seth Grant, do Instituto Sanger da Inglaterra (Bayés e colegas, Nature Neuroscience 2010). No trabalho, as proteínas identificadas foram associadas a seus respectivos genes, permitindo uma análise evolutiva. Esses 1.461 genes correspondem a mais de 7% dos 20 mil genes do genoma humano, uma indicação da importância e complexidade da sinapse, aparentemente uma estrutura bem delicada.

A tolerância de erros nessa estrutura parece ser baixa. Mutações em 133 dos genes encontrados já estão relacionadas a doenças neurológicas e psiquiátricas. Esses genes também estão representados em características afetivas e motoras.

Interessante notar que o estudo revela possível sobreposição de sintomas para doenças psiquiátricas. Isso seria interessante, pois sugere que uma droga contra autismo poderia funcionar para esquizofrenia, por exemplo. De acordo com esses estudos, nossos “primos” Neandertais provavelmente sofriam com um mesmo espectro de doenças mentais na comparação com os humanos atuais. Além disso, o “core” protéico fundamental parece ser bem conservado, sendo muito parecido entre primatas e roedores.

Esse tipo de esforço tem andado de mãos dada com um outro tipo de estratégia, o “conectoma”. Com o nome emprestado do projeto genoma, essa estratégia tem como objetivo mapear todas as conexões do cérebro. Cada neurônio humano faz uma media de mil conexões com outras células. Por baixo, existem 100 bilhões de neurônios, então o cérebro humano teria 100 trilhões de sinapses.

Nesse caso, cientistas de diversos grupos têm focado apenas em cérebros de camundongos, uma versão mais acessível e um pouco menos complexa do cérebro humano. O processo é longo e tedioso. Além disso, esbarra em dificuldades técnicas, como a capacidade computacional de estocar essas informações. Estima-se que para 1 milímetro cúbico do córtex de um camundongo necessita de uma estrutura computacional equivalente ao Facebook.

O mais interessante é que ter o mapa em mãos não significa chegar a lugar algum. Tanto o trabalho proteômico de Seth quanto o conectoma representam apenas um “snapshot” do cérebro, apenas aquele segundo do qual as amostras foram retiradas ou de quando o animal foi morto.

Sinapses e conexões nervosas são dinâmicas, moldadas constantemente pelo ambiente e pelo tempo. Por isso mesmo, os críticos mais severos argumentam que todo esse esforço não vai servir pra muita coisa. Eu não concordo. Mesmo sabendo das limitações dos trabalhos, vejo esse tipo de iniciativa como o primeiro passo para uma “modelagem” neural.

Com o crescimento exponencial de tecnologia para armazenamento de informação digital, consigo imaginar um futuro no qual essas modelagens computacionais serão capazes de prever ondas comportamentais ou mesmo um uso médico para diagnóstico. Seria então possível criar um mapa eletrônico do cérebro de cada pessoa, uma mente virtual que não estaria vinculada ao corpo, mas que pudesse ser alterada por estímulos específicos, simulando situações de risco, por exemplo.

Como será que nos portaríamos se já soubéssemos o que estamos inclinados a fazer? Pra mim, essa seria a prova mais rigorosa da existência ou não do livre-arbítrio.

Fora da ‘caverna’

ter, 18/01/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Foi com curiosidade e desconfiança que li o artigo do “The Economist” sobre o enorme progresso da ciência brasileira, atraindo pesquisadores estrangeiros (“Go south, Young scientist”, 6 de Janeiro de 2011).

No artigo, a revista faz um retrato superficial e bastante otimista das condições científicas no país. Os números citados são mesmo pra impressionar gringos: 10 mil doutores por ano e um salto considerável de publicações cientificas nos últimos anos. Além disso, o texto faz referência a condições de financiamento de pesquisa para laboratórios igual ou superior a muitos países desenvolvidos. Na verdade, o artigo está se referindo a laboratórios do estado de São Paulo que são financiados pela FAPESP.

Obviamente, também cita áreas que devem ser melhoradas, concurso público para contratação de docentes nas universidades (sim, isso continua até hoje), e o uso do português como idioma acadêmico. Mas de qualquer forma, deixa a mensagem clara: no Brasil, o pesquisador estrangeiro terá a oportunidade de crescimento, estabelecer sua própria linha de pesquisa e ser um pioneiro na área.

Não deixa de ser verdade. Laboratórios em São Paulo, com suporte da FAPESP, podem ter um orçamento igual ou melhor do que muitos nos EUA e Europa. Com salário inicial superior ao de universidades americanas, ótimos benefícios e promoção quase automática, o cargo pode ser considerado um dos mais estáveis do mundo. Mesmo assim, o impacto da pesquisa feita no Brasil ainda é bastante tímido.

Um grande problema talvez seja justamente essa estabilidade profissional. Se por um lado permite uma grande flexibilidade e ousadia na pesquisa, por outro elimina a competitividade e ambição. Há de se achar um meio termo.

Essa não é a única razão da falta de impacto nos trabalhos científicos nacionais. Críticos de plantão vão apontar problemas com importação de material científico e falta de massa crítica. Depois de ter feito ciência no Brasil e em outros países, costumo acrescentar um outro fator na lista que acredito seja o obstáculo mais difícil de superarmos: nossa atitude provinciana.

Não sou o único brasileiro que pensa assim. Recentemente, li uma declaração do neurocientista Miguel Nicolelis no Estado de São Paulo que dizia o seguinte:

“O Brasil deveria ter um conselho de gente que está fazendo ciência mundo afora. E não pessoas que ocupam cargos burocráticos em associações de classe. Deveria ser gente com impacto no mundo. E pessoas jovens com a cabeça aberta. Mas as pessoas têm muita dificuldade de quebrar esses rituais. Para entender a que me refiro, basta participar de reuniões científicas e acompanhar a composição de uma mesa. Não há nada semelhante em lugar nenhum do mundo: perder três minutos anunciando autoridades e nomeando quem está na mesa. É coisa de cartório português da Idade Média.”

Ele está correto. Já vi Coral, Prefeito e até motorista particular participando de mesa em congresso científico no Brasil. Pode não parecer muito diferente pra quem está acostumado, afinal sempre foi assim. Mas, pra quem vê a cena de fora da caverna, a situação é surreal. Essa, com certeza, não é a realidade em reuniões científicas sérias no resto do mundo. A ideia de um conselho externo também me agrada, já escrevi em colunas anteriores as razões da necessidade de “olheiros científicos” para avançarmos a ciência nacional.

Esse amadorismo ingênuo reflete na ciência. O número de colaborações internacionais ou entre laboratórios é muito pequeno, por exemplo. A preferência é por reinventar a roda, fazer tudo sozinho. Ou então um superprotecionismo (que também faz parte do provincianismo), que impede o cientista brasileiro de realizar colaborações, pois acredita que vai ser “roubado” pelo estrangeiro. Cada laboratório acaba sendo um microdepartamento, a corrida pela autosuficiencia acaba por deixar tudo lento. Reflexo disso é a completa falta de “facilities” ou estruturas para uso comum nas nossas universidades.

Acabamos por esquecer que aquela imagem de uma maçã caindo na cabeça do cientista sentado embaixo de uma árvore e levando a uma teoria gravitacional revolucionária não é a norma. Inovação e ciência de impacto emergem através de redes de contato, em geral, internacionais. A forma de fazer ciência no mundo vai mudar cada vez mais nos próximos 10 anos na comparação com os últimos 400 anos. O Brasil vai ter que se modernizar para não ficar para trás.

O que será ‘quente’ em 2011

sex, 14/01/11
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

A reprogramação celular, ou seja, o ato de reverter o estado diferenciado de uma célula somática para um estado pluripotente, está listada em todas as listas científicas como uma área de grande impacto nas pesquisas em 2011.

Não é pra menos. Com essa técnica simples, cientistas conseguem criar, em laboratório, células-tronco capazes de se diferenciar em células de todos os tecidos do corpo humano. Melhor ainda, isso pode ser feito a partir de células de um indivíduo adulto, vivo, sem a necessidade do uso de embrião humano. São as já famosas células iPS (do inglês, induced pluripotent stem cells).

Desde sua descoberta pelo japonês Shinya Yamanaka, primeiro em camundongos em 2006, e depois em humanos em 2007, essa área de pesquisa não parou. Foram diversos trabalhos publicados em revistas de alto impacto. A verdade é que a grande maioria focou em avanços tecnológicos, isto é, apresentando pequenas mudanças técnicas que tornavam o processo mais seguro. Os trabalhos mais recentes tentaram utilizar métodos alternativos ao uso de vírus (que podem induzir a formação de células tumorais).

Muitos desses trabalhos são realmente deprimentes, impossíveis de se reproduzir ou apenas acrescentam uma vantagem mínima. Por incrível que pareça, depois de todo esse barulho, a técnica original continua sendo a mais robusta. Mas enfim, mesmo assim a ciência avança.

O uso das células para terapia ainda está longe e os resultados mais interessantes continuam vindo da modelagem de doenças. Interessante notar que foram apenas alguns trabalhos publicados, aonde se aproveita algum tipo de informação. A grande maioria é fogo-de-palha, resumindo-se a descrever a derivação das células iPS de alguns pacientes. Mas a situação pode mudar em 2011.

Com a entrada de diversos grupos inexperientes na área de células-tronco, antecipo que 2011 vai chover trabalho medíocre com células iPS. A razão é muito simples: apesar de ser fácil de gerar células iPS em qualquer laboratório mundo afora, o difícil é induzi-las a se especializar na célula de interesse e usá-las para algo útil. Ai é que está o gargalo.

Como o uso terapêutico das células iPS ainda está longe se tornar uma realidade (os métodos de reprogramação ainda não são seguros o suficiente para transplantes em humanos), os esforços estão concentrados na modelagem de doenças. Nesse caso, espera-se que as células diferenciadas se comportem em cultura como as células humanas do paciente, revelando facetas da “doença” no microscópio.

Nesse tipo de estratégia, é possível estudar as causas da doença e mesmo partir para uma triagem de drogas, procurando novos medicamentos capazes de atenuar o defeito celular encontrado. Esse, ao meu ver, é o trunfo real das células-tronco. Mas encontrar esse defeito tem sido um grande problema.

Além do custo altíssimo de manutenção dessas células, outra dificuldade é manter a homogeneidade durante o processo. Como os protocolos ainda estão sendo desenvolvidos, a variação ainda é grande, o que compromete a interpretação dos resultados. Por isso mesmo, acredito que os melhores trabalhos virão de doenças genéticas, nas quais se pode “consertar” o defeito no genoma, confirmando o resultado.

Esse tipo de experimento controle é clássico em biologia e é conhecido como ganho ou perda de função. Permite que o pesquisador crie uma associação direta entre o defeito celular e a mutação genética. Mas como isso também não é trivial, pois é preciso um bom conhecimento de biologia molecular. Acredito que muitos grupos vão “pular” esse tipo de controle, pelo menos nesse primeiro estágio da área.

Mesmo assim, espero ver diversos trabalhos com iPS em 2011. Outra área que merece atenção é a transdiferenciação celular. Nesse processo, um tipo celular é reprogramado em outro, sem que haja necessidade do estágio pluripotente. Cientistas conhecem o fenômeno há muito tempo, mas o uso da transdiferenciação para o estudo de doenças ainda é questionável.

É legal notar como o interesse em algumas áreas na ciência cresce em determinadas épocas. O mesmo aconteceu alguns anos atrás com a terapia genética. Esperava-se que seria fácil fácil consertar todos as doenças genéticas da humanidade. Tudo acontecia muito rápido, a passos largos, como com as iPS.

O campo emperrou quando um voluntário morreu em um procedimento experimental, revelando a ganância de pesquisadores na busca de resultados a qualquer custo. Anotem, o perigo das áreas “hot” de pesquisa é que elas queimam.



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