Memórias estocadas na medula?

seg, 26/10/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Na semana passada terminou um dos maiores congressos científicos mundiais, o congresso da sociedade americana de neurociências em Chicago. Reunindo cerca de 32 mil neurocientistas e afins, é nessa Meca científica que diversas novidades na área são anunciadas. Este ano não foi diferente.

Dentre os diversos assuntos tratados no congresso, resolvi relatar aqui algumas novidades sobre tratamentos em lesões físicas diretas na medula. Esse tipo de lesão pode afetar diretamente os feixes nervosos que levam a informação do cérebro às outras regiões do corpo. O trauma também pode afetar regiões que circulam esses nervos, como ossos e vasos nervosos, atingindo indiretamente o funcionamento da medula.

Obviamente, dependendo da região lesionada, os efeitos causados podem ser mais ou menos pronunciados. Ou seja, quanto mais próximo do pescoço (cervical), maior será a área atingida, pois os efeitos são sentidos, geralmente, em regiões abaixo da lesão. A gravidade dos sintomas também dependem da natureza da lesão nos nervos, completa ou apenas parcial.

É interessante notar que, por razões éticas e morais, não existe experimentação em humanos. A maior parte do que sabemos vem de modelos animais. No entanto, fomos aprendendo com o tempo que diferentes espécies têm diferentes capacidades de recuperação. Por exemplo, camundongos conseguem se recuperar mais rapidamente de uma lesão do que ratos. Ratos têm melhores índices de recuperação do que porcos. Suínos já não se recuperam tão facilmente e são, provavelmente, os animais experimentais que mais se assemelham aos humanos. Mesmo assim, roedores são as espécies mais utilizadas, principalmente por uma questão financeira e de espaço.

Estudos apresentados no congresso de neurociência sugerem que a dieta rica em gordura e baixa em carboidratos afeta a taxa de recuperação de ratos lesionados. Outro estudo demonstrou boa resolução em novas técnicas para o isolamento de células-tronco indiferenciadas antes do transplante, como forma de evitar o surgimento de um indesejado tumor, agravando o quadro clínico. O estudo aponta para melhores práticas num futuro tratamento com células-tronco em humanos, o que será imprescindível. Avanços na indução da recuperação pela própria plasticidade neural da medula, por meio da adição de fatores de crescimento, também foram relatados.

Apesar de tantas novidades na área, o melhor tratamento em humanos continua sendo a terapia física. Interessante notar que novos dados estão confirmando isso nos modelos animais. Em um experimento interessante, roedores foram treinados a usar o sistema locomotor de formas diferentes, por exemplo, andando para trás ou para os lados. Note que roedores só costumam andar para frente.

Para treiná-los a andar em outras direções, o animal foi suspenso numa “maca” que deixa suas patas de fora. As patas encostam numa esteira que se move em diversas direções. Assim, ao girar a esteira para frente, o animal, intuitivamente, começa a andar para trás, como que tentando compensar sua posição. O mesmo tipo de exercício é feito para os lados.

Depois de algum treino, os animais já se sentem mais confortáveis e executam os movimentos compensatórios naturalmente. Como se tivessem “aprendido” a andar em outras direções. Pois bem, após o treinamento, os animais foram submetidos a uma cirurgia para causar um tipo de lesão medular controlada – todos os animais tiveram o mesmo tipo de lesão. Como grupo controle, foram utilizados indivíduos que não tinham passado pelo treinamento anteriormente.

A comparação entre os dois grupos sugere que os animais que aprenderam a usar os movimentos inconscientes da esteira conseguiram se recuperar significativamente mais rápido das lesões do que os sedentários. O resultado pode ser parcialmente validado em humanos, para os quais existem dados mostrando que atletas têm um nível de recuperação melhor do que não atletas. Mas não me parece exatamente a mesma coisa.

A explicação dos resultados pelo grupo de pesquisa responsável é interessante. Não se baseia nas explicações tradicionais de plasticidade neural (capacidade que o cérebro tem de reorganizar as redes neuronais após um ferimento, por exemplo). De acordo com as observações feitas, os animais que tiveram o treinamento prévio utilizaram-se dos truques aprendidos na esteira para acelerar sua recuperação.

Obviamente, a lesão impediria que a memória cerebral e consciente desse aprendizado auxiliasse nesse processo, pois a comunicação com o cérebro fora interrompida. Como explicar então o uso dos conhecimentos adquiridos pelos roedores na recuperação? O grupo sugere que existem “memórias” estocadas na medula espinhal e os animais que receberam o treino conseguem se lembrar de usá-las durante o período de recuperação.

O conceito é novo e arrojado em neurociência. Jamais ninguém ousou propor que a medula também serviria como estoque de memória, mesmo que seja física. Se isso for realmente verdade, vai revolucionar a forma como vemos a integração do cérebro com o resto do sistema nervoso. Em geral, existe essa  tradicional “separação” em neurociência: os que estudam o cérebro (grande responsável pelas emoções, memórias e cognição) e os que estudam a medula, responsável por movimentos inconscientes e motores.

Talvez essa visão compartimentada e tradicional do sistema nervoso esteja ficando ultrapassada. Vou ainda mais longe: caso isso se comprove, podemos aprender a usar esse tipo de memória física para estocar outros tipos de memória, fazendo um backup de informações importantes na medula ou simplesmente liberando espaço no cérebro para atividades de execução.

Em geral, o estudo da ciência básica acaba fornecendo substrato para pesquisas mais aplicadas. Aqui parece que aconteceu o contrário. Ao tentar desenvolver protocolos para tratar da lesão da medula espinhal, potencialmente novos conceitos fundamentais do sistema nervoso estão sendo revelados.

PS: A ausência de referências no texto é proposital. Os trabalhos relatados nessa coluna não foram ainda publicados em revistas com avaliação por pares. Portanto, devem ser encarados como preliminares, apenas.

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Telomerase Zen

seg, 12/10/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Meu primeiro contato com Elizabeth Blackburn foi em 2007, em Paris. Havia convidado-a para participar de um congresso sobre elementos transponíveis do genoma (transposons), que acabou resultando num interessante livro sobre a diversidade neuronal (“Retrotransposition, Diversity and the Brain”, Fondation IPSEN, 2008 – vendido pela Amazon).

Blackburn recebeu o prêmio Nobel de Medicina, junto com Carol Greider e Jack Szostak, pela descoberta da telomerase. Desde então, muito tem se falado sobre a telomerase, envelhecimento e câncer. Infelizmente, pouco ou nada se comenta sobre o controle mental desse processo, que é justamente a atual linha de pesquisa do grupo de Blackburn.

A conexão entre telomerase e retrotransposons não é tão obvia assim para a maioria dos leitores, então vale uma breve explicação sobre o tema. Telômeros são capuzes que ficam nas pontas dos cromossomos, protegendo as pontas do genoma. A manutenção dos telômeros é feita por uma série de proteínas celulares que incluem a telomerase. Essa enzima tem a função de reproduzir o DNA que é perdido dos telômeros cada vez que a célula se divide. Assim, a célula consegue evitar o encurtamento do comprimento dos telômeros.

A perda progressiva dos telômeros leva à senescência celular das células em divisão. Dessa forma, a telomerase, com sua função altamente especializada de transcrição reversa, é essencial para a estabilidade genômica e progressiva divisão celular.

Retrotransposons são elementos móveis do genoma, altamente ativos no sistema nervoso. Multiplicam-se por meio da transcrição reversa. Esse mecanismo de transcrição reversa é bem semelhante ao da telomerase, o que sugere uma relação de parentesco evolutivo entre esses dois mecanismos. No entanto, neurônios não se dividem, e portanto não precisariam de telomerases. Segundo Balckburn, neurônios humanos têm sim atividade de telomerase (EB, comunicação pessoal).

Outra observação importante é a correlação da telomerase com o crescimento de tumores. Células cancerígenas perdem a capacidade de controlar a divisão celular e passam a se dividir indefinidamente. Por essa razão, mesmo cientistas fazem a incorreta associação entre câncer e elevada atividade da telomerase. Já foi demonstrado que células cancerígenas continuam dividindo mesmo na ausência da telomerase (Li e colegas, JBC 2005; Lundblasd e Blackburn Cell 1993).

Talvez por isso mesmo, diversas terapias contra câncer baseadas no ataque às telomerases não deram certo até hoje. Aliás, essas terapias podem até ser prejudiciais. Telômeros curtos em células saudáveis aumentam as chances de rearranjos cromossômicos, que podem tornar o câncer ainda mais agressivo.

Essas duas evidências discutidas acima – que neurônios possuem alguma atividade telomérica e que células cancerígenas estão pouco se importando com a telomerase – sugerem que as telomerases possam ter outra função na célula além da proteção dos telômeros. Diversas observações sugerem que as telomerases estariam envolvidas na regulação da senescencia celular de forma independente da divisão celular.

A evidência mais forte entre telômeros curtos e envelhecimento veio de estudos de uma síndrome rara, chamada disqueratosis congênita, causada justamente por mutações na telomerase. Pacientes morrem de falha eventual do sistema hematopoiético, suportando a ideia de que o envelhecimento precoce das células do sangue é uma das causas da mortalidade.

Porém talvez mais interessantes sejam os últimos trabalhos de Elizabeth Blackburn, que correlacionam o tamanho dos telômeros com estresse crônico e depressão. Mas qual seria o mecanismo para explicar o envelhecimento celular por processos psicológicos?

Para tentar descobrir isso, o grupo de Balckburn tem usado da meditação budista como ferramenta para modular o estresse e prevenir o processo de envelhecimento. Vale lembrar que a meditação terapêutica no ocidente está dissociada de influências ritualísticas associadas à prática do budismo. Atualmente, técnicas de meditação são usadas como forma de buscar uma consciência mental focada em um determinado momento. Os efeitos positivos no controle de diversas funções fisiológicas, como respiração e pressão sanguínea, são amplamente documentados.

O estresse cognitivo é indiscutivelmente importante para a sobrevivência do indivíduo, mas se estiver baseado em percepções e dimensões distorcidas da realidade, pode produzir um ambiente não muito favorável à longevidade celular. Impressões distorcidas da realidade incluem falsas projeções e expectativas ou crenças baseadas no medo. Os trabalhos têm acumulado evidências de que o bloqueio desse tipo de pensamento negativo altera a expressão da telomerase sanguínea e evita o encurtamento dos telômeros, o que é simplesmente fascinante.

Os trabalhos de Blackburn estão caminhando num sentido bem diferente da biologia molecular tradicional. Seus estudos estão apontando para o cérebro como o grande responsável pelo envelhecimento, tendo a telomerase como intermediária do processo no nível celular. Ainda são obscuros os fatores envolvidos nessa conexão, mas os vilões mais prováveis são hormônios e danos oxidativos.

O campo ainda é novo e altamente especulativo, além de ter uma série de “buracos” em sua lógica. A justa vinda de um prêmio Nobel para uma pesquisadora que não tem medo de ousar deve trazer novo fôlego e mentes abertas para essa área. Vamos acabar descobrindo que o envelhecemos não com o corpo, mas com a mente.

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