Avaliando revistas de ciência e cientistas

sex, 19/06/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

O progresso na ciência é fruto da publicação de novas ideias e experimentos, na maioria das vezes em periódicos ou revistas científicas que se baseiam na revisão anônima por outros cientistas da mesma área.  Existem diversas opiniões sobre quais são as revistas científicas mais influentes. Infelizmente, tem sido difícil encontrar um método métrico simples para quantificar esse impacto.

A maioria dos cientistas acaba confiando no já desgastado Fator de Impacto (FI), que é publicado virtualmente pelo portal ISI Web of Knowledge. O FI consiste na média do número de citações num determinado ano dos trabalhos científicos publicados em revistas nos dois anos prévios. Diversos fatores podem influenciar o FI, como o número total de citações ou número total de trabalhos publicados por ano.

Um recente trabalho de estatística concluiu que nenhum dos parâmetros usados atualmente reflete com clareza a influência das revistas científicas (Bollen e colegas, e-Print Archive 2009). No entanto, um novo parâmetro foi recentemente proposto, o Eigenfactor, que tenta classificar a importância das revistas de uma maneira semelhante à usada pelo algoritmo do portal de buscas do Google. Durante a busca, o Google mostra os resultados baseando-se na frequência de acesso aos links relacionados à palavra-chave utilizada. Dessa forma, classifica os links mais utilizados como os mais relevantes, colocando-os no começo da página que mostra os resultados da busca.

Na prática, o Eigenfactor tem uma correlação forte com o número de citações recebidas por uma determinada revista. Por exemplo, o gráfico ao lado mostra o Eigenfactor de 2007 das 200 revistas mais citadas, contra o número total de citações (Alan Fersht, PNAS, 2009). Para quem está acostumado com os periódicos científicos, o resultado é um tanto inusitado. Três revistas se destacam das outras como as mais influentes em ciência: “Nature”, “PNAS” e “Science”. Uma das surpresas é a “PNAS”, que publica alguns artigos sem a revisão por pares – privilégio esse restrito a membros da academia americana de ciências. Outra surpresa fica por conta da revista “Cell”, cuja reputação é respeitadíssima no meio acadêmico, e que aparece numa posição bem inferior a outros jornais tidos como de baixo impacto.

O terrível legado do FI é que ele tem sido empregado para avaliar cientistas, e não as revistas em si. Essa percepção é, a meu ver, totalmente equivocada. A avaliação de um pesquisador deve ser feita através da análise cuidadosa de sua produção científica ao longo dos anos por cientistas experientes em áreas semelhantes. Infelizmente, burocratas buscam uma fórmula métrica simples. A ênfase no FI aumenta com a falta de avaliadores competentes em determinadas áreas.

Um exemplo extremo disso acontece em alguns países europeus, que avaliam seus cientistas e a qualidade dos trabalhos dando valor zero aos trabalhos publicados em revistas com FI menor que 5 e valores acima de zero aos trabalhos publicados em revistas com FI maiores que 5. Segundo essa lógica, um trabalho publicado na revista “Journal of Molecular Biology” não vale nada, mesmo sendo essa uma das melhores revistas na área de estrutura de proteínas.

Vale lembrar que todas as revistas têm um amplo espectro de citações nos trabalhos lá publicados. Mesmo as revistas de maior FI já publicaram trabalhos que nunca foram citados, trabalhos fraudulentos e mesmo alguns que são bem ruins. Dessa forma, fica ridículo julgar um cientista baseando-se apenas no tipo de revista em que publica seus achados.

Talvez a melhor das piores maneiras métricas de se julgar a contribuição de um cientista seja pelo índice h, que classifica a influência do pesquisador levando em conta o número de citações que este recebe pelo número de trabalhos publicados. Um “h” de 100 significa que 100 trabalhos publicados foram citados pelo menos 100 vezes cada (Hirsch J., PNAS 2005). Curiosamente, o trabalho do índice “h” já teve um assombroso número de acessos pela internet comparado ao número de citações (262) desde a publicação em 2005. O sistema do índice “h” também não é perfeito. Por exemplo, uma descoberta fenomenal pode levar tempo até ser reconhecida pela comunidade científica e ficar sem receber citações por um tempo longo.

Conforme a ciência avança e se especializa cada vez mais, fica difícil fazer uma avaliação justa da produção cientifica de um pesquisador num espaço de tempo curto. Daí a tentação de usar sistemas métricos. Por isso mesmo, é importante não se basear num sistema único. Afinal de contas, ciência é sempre relacionada com progresso social que, em última instância, é um fator baseado no julgamento humano.

Papo animal

sex, 05/06/09
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Durante um curto período da minha infância, lembro que confessava segredos de colégio ao meu único amigo canino, Rex. Antes de continuar, devo declarar que a originalidade do nome deve ser creditada ao meu irmão mais velho, primeiro responsável quando o assunto era o cão da família.

Rex sabia da menina de quem eu gostava e quem era o verdadeiro culpado por urinar na porta da sala dos professores, infernizando as freiras do colégio. O fato de saber que Rex jamais revelaria meus segredos era, certamente, confortável. Infelizmente, o cão não permaneceu conosco por muito tempo, insistia em cavoucar os vasos da Dona Vitória…

Muitas pessoas cultivam esse desejo de se comunicar com animais. Imagine então se realmente pudéssemos ouvi-los responder. No último volume da famosa revista científica “Cell”, um grupo de cientistas alemães acredita que deu um pequeno passo nessa direção, ao criar um camundongo carregando um gene relacionado com a linguagem humana (Enard, W. e colegas, “Cell”, 137: 961-971, 2009).

O gene em questão, o FOXP2, foi descoberto em 1998 porque, numa família inglesa, ele continha mutações que causavam um bloqueio na articulação da linguagem. A descoberta empolgou evolucionistas e estudiosos da linguagem, pois outros animais também possuem o gene FOXP2. No entanto, a versão humana difere da dos camundongos e chimpanzés na seqüência do DNA, como se espera de um gene que tenha sido selecionado evolutivamente para ter um papel importante na linguagem. O que os cientistas fizeram foi substituir o gene do camundongo pelo gene humano usando técnicas tradicionais de engenharia genética.

Acredita-se que diversos genes contribuam para a linguagem humana, pois não só tivemos que modificar a anatomia de nossa garganta e cordas vocais como também usamos várias conexões cerebrais para formar e compreender sentenças e vocabulário durante uma conversa. Existem diversas evidências apontando para o fato de que a linguagem não é produto de um único gene. Dessa forma, seria surpreendente se o camundongo com a cópia genética humana alterasse a forma como se comunica com outros camundongos ou mesmo modificasse algumas estruturas cerebrais envolvidas com a comunicação verbal. Pois foi exatamente isso que o grupo alemão diz ter conseguido.

Para começo de conversa, a substituição do gene FOXP2 pela versão humana no camundongo não trouxe grandes alterações físicas ou fisiológicas no camundongo. Foram analisadas cerca de 300 características nos roedores, e elas simplesmente não são diferentes daqueles animais com a versão não-humana. No entanto, no cérebro, o grupo detectou uma pequena diferença na região conhecia como gânglio basal. Essa região está envolvida com o processamento da linguagem em humanos. Segundo os autores do trabalho, nos camundongos humanizados, essa região do cérebro parece conter neurônios com estruturas mais complexas. Neurônios são células ultraespecializadas e bem diversificadas do cérebro. Alguns neurônios são simples e outros possuem uma arborização bem ramificada. Acredita-se que, quanto mais complexo ou ramificado o neurônio, maior o número de conexões em que ele estaria envolvido.

E para saber se essas alterações possuíam alguma implicação funcional, o grupo usou um conhecido teste comportamental em roedores. Ao isolar os bebês-camundongo de suas mães, esses passam a emitir uma vocalização característica de alerta, apenas detectada por ultra-som. O som emitido é usado pela mãe como um auxilio para achar e identificar sua prole dispersa. O grupo alemão detectou que nos camundongos “humanizados”, o grunhido emitido era ligeiramente diferente do produzido pelo grupo controle normal.

Parece fenomenal, não? Com mais de 20 milhões de diferenças entre o genoma de humanos e chimpanzés, a alteração de um único gene humano ser capaz de modificar a “fala” de camundongos é realmente intrigante. Tão intrigante que eu resolvi ler o trabalho para maiores detalhes e acabei me decepcionando. Talvez a principal razão do meu descontentamento seja que os principais resultados foram extrapolados de um número reduzido de amostras de neurônios em cultura. Ora, quando retirados os neurônios do seu ambiente natural no cérebro, esses estão sujeitos a diversos artefatos. Isso pode ser controlado, e o grupo certamente usou controles adequados, mas as diferenças observadas são tão pequenas que me questiono se continuariam sendo significativas caso fossem aumentados os números amostrais.

Além disso, ao observar os resultados das outras figuras, noto estatísticas semelhantes, sugerindo que o grupo formou conclusões baseando-se em uma série de diferenças sutis, nenhuma individualmente forte o suficiente, o que diminuiu drasticamente meu entusiasmo pelo trabalho. O grupo fora liderado pelo respeitado pesquisador alemão Svante Pääbo, cuja reputação é mundialmente conhecida por trabalhos cientificamente bem fundamentados, como a publicação de partes do genoma do homem de Neandertal. Estaria esse trabalho apoiado nessa reputação ou será que os quase 300 resultados negativos sensibilizaram os editores? Será esse mais um caso de um trabalho da “Cell” impossível de se reproduzir?

Talvez alguns leitores achem que eu estou sendo muito duro com o trabalho, mas acredito que as implicações propostas pelo grupo alemão são de grande impacto e, portanto, devem passar por rigorosas críticas científicas. Enquanto a publicação aguarda a validação do tempo e o surgimento de novos modelos animais para estudar evolução humana, continuo a imaginar o que seria de mim se o Rex conseguisse algumas cópias humanas do gene FOXP2…



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