A (primeira) descoberta do DNA

sex, 29/08/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

São realmente poucos os que lembram quem descobriu o DNA. Mesmo entre biólogos moleculares, é difícil encontrar um que saiba. Acho que a razão disso foi o tremendo impacto que a estrutura da molécula, revelada por Watson e Crick na década de 1950, trouxe para a biologia. O descobrimento da estrutura do DNA ocultou por completo a história de sua própria descoberta, 75 anos antes.

Foi em 26 de fevereiro de 1869 que o suíço Johann Friedrich Miescher escreveu uma carta para seu tio relatando sua nova descoberta, na Universidade de Tübingen, na Alemanha. Friedrich, como era conhecido, descobriu uma substância que estava presente no núcleo de todas as células, e que possuía uma característica química diferente das proteínas ou outro componente celular conhecido. Sem saber do valor desse achado, o jovem médico iniciou uma das maiores revoluções científicas, que, anos mais tarde, iria mudar completamente a compreensão do conceito de vida, além de promover inúmeros avanços médicos.

Friedrich nasceu numa família de cientistas, em 1844, e foi exposto desde cedo a conceitos e debates científicos. Nesse contexto, não foi novidade que ele desenvolvesse uma atração pelas ciências naturais. Mas, como era costume na época, Friedrich formou-se médico primeiro, aventurando-se depois na ciência básica, principalmente na bioquímica. Essa inclinação foi influenciada por um tio, professor de fisiologia na Universidade de Basiléia, na Suíça, que acreditava que as questões relacionadas com o desenvolvimento dos tecidos somente seriam resolvidas com base química.

Friedrich começou a trabalhar sob a supervisão de um famoso químico na época, Felix Hoppe-Seyler, que o encarregou de caracterizar a composição química das células. A idéia era utilizar linfócitos, células do sistema imune que estão presentes no sangue, usadas no laboratório de Hoppe-Seyler. Infelizmente, era difícil conseguir grandes quantidades desse tipo celular para análises químicas. Friedrich decidiu então tentar leucócitos, outra célula do sangue, que ele conseguia em abundância no pus. As células eram isoladas de curativos purulentos de um hospital da cidade (lembre-se de que não haviam anti-sépticos, e o que não faltava era machucado cheio de pus!).

Depois de padronizar as condições para isolar células, Friedrich começou a caracterizar as proteínas. Logo percebeu que a complexidade protéica era enorme. Como muitos na época, ele acreditava que entenderia como a célula funcionava caracterizando a diversidade protéica. Numa de suas tentativas, Friedrich descobriu uma substância com propriedades únicas: conseguiu precipitá-la com ácidos e, ao ser dissolvida novamente, tornava a solução alcalina. Essa deve ter sido a primeira purificação de DNA da história. Mais interessante ainda, a substância parecia estar totalmente localizada no núcleo celular, uma estrutura de intenso debate científico naquele momento. Friedrich batizou o novo composto de “nucleína”. Vale lembrar que, mesmo sem saber qual a real função do núcleo da célula, outro biólogo alemão, Ernst Haeckel, já havia proposto que ele continha os fatores da hereditariedade. Isso três anos antes da descoberta de Friedrich.

Essa discussão toda sobre o núcleo celular estimulou Friedrich a aprimorar os métodos de purificação da nucleína. Conseguiu isso digerindo os lipídeos com álcool e as proteínas com pepsina, uma enzima que degrada proteínas, abundante no estômago de porcos. Pois é: lá foi ele isolar pepsina e, tratando a nucleína, demonstrou que realmente a substância não era mesmo de origem protéica. A caracterização química da nucleína revelou que ela continha carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, além de grandes quantidades de fosfato (algo raro nas moléculas orgânicas caracterizadas na época). Com isso, Friedrich se convenceu que tinha em mãos algo original. Próximo passo: publicação!

Quando o manuscrito de Friedrich ficou pronto, ele já estava num outro laboratório. Mesmo assim, decidiu que publicaria os achados na revista científica cujo editor era Hoppe-Seyler, seu antigo supervisor. Ironicamente, Hoppe-Seyler decidiu não publicar os resultados da pesquisa antes de comprovar por si próprio os achados de Friedrich. Essa atitude ocorreu porque naquele momento, o laboratório de Hoppe-Seyler estava sob suspeita, pois outros experimentos não estavam sendo duplicados. Além disso, o fato de Friedrich ter sido um ex-aluno fez com que Hoppe-Seyler fosse ultra-rigoroso com o trabalho.

Pra piorar, os resultados iniciais de Hoppe-Seyler não replicaram totalmente os achados de Friedrich. Obviamente, as condições ideais tinham que ser restabelecidas, e isso levaria tempo. Levou quase dois anos! Em 1871 o trabalho foi finalmente publicado, com um título nada atraente: “Composição química das células do pus”. No mesmo jornal, dois outros artigos de Hoppe-Seyler, confirmando a descoberta e purificando a nucleína em outros tipos celulares de diferentes espécies, foram publicados. Agora com seu próprio laboratório, Friedrich tinha que competir com Hoppe-Seyler, que se interessou em continuar as pesquisas com a nucleína. É incrível como essas histórias são tão atuais!

Enfim, Friedrich não desanimou e decidiu estudar a nucleína nas células germinativas (como os espermatozóides e os óvulos), afinal ele tinha grande interesse em hereditariedade e desenvolvimento dos tecidos. Logo percebeu que o esperma era rico em nucleína e, portanto, uma ótima fonte para seus estudos bioquímicos. Friedrich aproveitou-se do fato de estar perto de uma companhia que pescava e comercializava salmões. Tinha acesso a salmões frescos e começou a usar esperma de salmão como fonte de nucleína, aprimorando rapidamente seus protocolos de isolamento.

Vale notar que nessa época, aconteciam intensos debates na comunidade científica sobre como o embrião se desenvolvia e como funcionava a hereditariedade. Num de seus artigos, Friedrich escreveu que a nucleína poderia ser um dos responsáveis pelo processo de fertilização, mas não acreditava que seria capaz de transmitir características hereditárias. Como a maioria naquela época, Friedrich estava convencido que as proteínas eram responsáveis pela hereditariedade.

Chegou a especular que as diferenças atômicas entre as proteínas poderiam gerar a diversidade esperada para todas as formas de vida. Foi mais além, dizendo que, durante o desenvolvimento embrionário, a fusão da informação das duas células germinativas eliminaria eventuais erros nas proteínas. Essa visão parece antecipar o conceito genético de alelo, onde um gene defeituoso do pai pode ser compensado pela presença do gene correto da mãe e vice-versa.

A continuação das pesquisas de Friedrich foi intensa, e eu precisaria de uma outra coluna só pra falar dela. A determinação dele como cientista foi notável, mas foi também responsável pela sua morte. Ficava cada vez mais tempo no laboratório, isolado socialmente, dormindo pouco e exausto, até que contraiu tuberculose. Morreu com apenas 51 anos. Após sua morte, seu tio e admirador publicou uma compilação de seus trabalhos. Escreveu na introdução que os achados de Friedrich não seriam esquecidos com o tempo, mas que suas idéias seriam sementes para futuros frutos científicos. Mal sabia ele…

PS: Segue um protocolo simples para a extração do DNA usando produtos de cozinha. O principio ainda é bem parecido com o de Friedrich.

DNA

Samurai sem mestre

sex, 15/08/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Durante o período feudal no Japão, samurais desempregados e sem mestres eram chamados de “Ronin”. Recentemente, um grupo de pesquisadores americanos descreveu um Ronin moderno, capaz de regular a pluripotência das células-tronco embrionárias, sem qualquer relação com outros “mestres” regulatórios (Dejosez e colegas, Cell, 2008).

Células-tronco embrionárias, ao contrário de células-tronco adultas, são pluripotentes. Isso significa que elas possuem a capacidade de se especializar (ou diferenciar) em diversos tipos celulares. Células pluripotentes são então consideradas indiferenciadas, literalmente em crise de identidade. Células-tronco adultas têm uma capacidade restrita e, em geral, diferenciam-se apenas em células do tecido onde se encontram. Por exemplo, células-tronco neurais costumam se diferenciar em diversos tipos de neurônios, mas não em células musculares. Faz sentido no contexto de reposição celular de cada tecido.

Além de pluripotentes, as células-tronco embrionárias conseguem se dividir indefinidamente quando colocadas em cultura. Essa imortalidade celular não passa de um artefato. Isso não acontece no organismo, só mesmo dentro de um laboratório, com as condições de umidade, temperatura e nutrição bem controladas. Quando fora dessas condições ideais, as células-tronco embrionárias começam, espontaneamente, a se especializar em outros tipos celulares – algo semelhante ao que acontece no útero materno.

Exatamente como as células-tronco embrionárias conseguem se manter imortalizadas e ainda reter a pluripotência em cultura é uma questão fundamental da biologia. Sabendo disso, os cientistas serão capazes de reproduzir os estágios iniciais do desenvolvimento embrionário. Com isso, pode-se estudar o que acontece quando o processo não vai como o esperado, por exemplo, em doenças genéticas do desenvolvimento ou no caso de malformações embrionárias.

Pois bem, sabe-se que três fatores são importantes para a pluripotência, ou seja, sem eles as células não proliferam na forma indiferenciada, perdendo essa característica. Esses fatores são as proteínas Oct4, Sox2 e Nanog, conhecidas na área de células-tronco como “mestres” da pluripotência. A forma como essas proteínas atuam é bastante curiosa. Quando em quantidades balanceadas, esses fatores agem em parceria, ligando especificamente uma série de genes que instruem a célula a se manter dividindo, além de ativar os próprios genes codificantes. Dessa forma, os fatores formam um sistema de retroalimentação, isto é, capaz de manter sempre os níveis protéicos na quantidade desejada. Essa é tida como a estratégia clássica de pluripotência e é atualmente utilizada para a reprogramação celular.

Mas seria isso suficiente? Usando estratégias genéticas, o grupo americano mostrou que a proteína Ronin é essencial para estágios iniciais da embriogênese, além de ser crítica para a derivação e propagação das células-tronco embrionárias em cultura. Também demonstraram que a presença de Ronin é capaz de manter as células proliferando, mesmo em condições que normalmente levariam à especialização.

É curioso notar que a Ronin age de forma independe dos três prévios fatores “mestres”. Mas como isso acontece? Para tentar entender o mecanismo de ação, o grupo comparou o perfil genético de células normais com outras contendo quantidades excessivas de Ronin. Os dados apontaram para uma modificação epigenética no DNA, na estrutura da cromatina, correlacionada com a repressão (e não ativação, como no caso dos três fatores mestres) de certos genes no genoma. A análise dos genes revelou então que o Ronin parece agir como um repressor de genes responsáveis pela especialização celular.

Nas células, um importante fator que define se um gene vai se “ligar” ou “desligar” é o contexto da cromatina ao seu redor. A cromatina nada mais é do que o conjunto de diversas proteínas agregadas à fita do DNA. Essas proteínas auxiliam a fita a se desenrolar (ligar) ou enrolar (desligar), expondo os genes aos “mestres” da ativação.

Com isso, os autores do trabalho demonstraram que o Ronin é um novo fator que regula a pluripotência celular e que, por funcionar através de modificações epigenéticas, atua de forma distinta dos fatores de transcrição Oct4, Sox2 e Nanog. Essa forma de agir do Ronin parece ser mais ampla, pois atua de forma indireta na regulação gênica global.

Essa descoberta sugere que devemos reconsiderar a estratégia clássica da pluripotência e estar preparados para um mecanismo molecular mais refinado, capaz de sentir o ambiente extracelular e se reorganizar de acordo com ele. Ao meu ver, essas vias genéticas devem ser todas ativadas no instante da fecundação, remodelando a cromatina para acesso dos ativadores. Com o tempo, as vias serão desligadas conforme o embrião se desenvolve, provavelmente através de sensores/receptores celulares estimulados por sinais extracelulares oriundos de um gradiente molecular. Ah, quem me dera ser um átomo consciente nesse exato momento…

Klaatu barada nikto

sex, 01/08/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

alyssson cmDesta vez não fui a nenhum congresso científico. Ou melhor, a nenhum congresso científico propriamente dito. Desta vez estive na Comic-Con International, a maior feira de histórias em quadrinhos (HQs) do mundo. E por que resolvi contar isso numa coluna de ciência? Vá lendo com a mente aberta, leitor…

A Comic-con acontece anualmente em San Diego, na Califórnia, e reúne não apenas milhares de fanáticos por quadrinhos, mas uma série de produtos agregados – em geral derivados das HQs – como filmes, seriados de TV, videogames, fotografia, material para colecionadores, fantasias, RPG, computação gráfica, design e assim por diante. Devo confessar que fiquei assustado com o tamanho da coisa. Foram quatro dias inteiros, com dezenas de atividades em paralelo, além de um monumental espaço de expositores, autógrafos, cartunistas amadores etc. Tudo isso e mais as centenas de nerds vestidos como seu personagem favorito. Muito engraçado e descontraído.

weisnerComecei a me interessar pelas HQs desde cedo, principalmente aquelas que envolviam ciência. Era bem divertido aprender sobre física, química e biologia e depois impressionar os amigos com conceitos “avançados” para nossa idade. São diversos os exemplos de cientistas nas HQs, alguns do bem, como o Prof. Pardal ou o Franjinha, e outros do mal, como o Dr. Evil ou Magneto. O fato é que as HQs conseguem transmitir conceitos científicos complexos de uma forma acessível. Talvez o grande mestre nessa arte seja mesmo o Will Eisner (autor do Spirit, famoso personagem dos jornais nos anos 40 e em breve num cinema perto de você). Will Eisner foi o precursor do estilo de novelas gráficas e da arte seqüencial. Usando ângulos criativos, iluminação dramática e um fundo detalhista, ele conseguia incluir sutilmente os conceitos de tempo e conseqüência em suas histórias.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o exército americano usou a arte de Will Eisner para ilustrar uma revista mensal sobre a manutenção de equipamentos. Os manuais de equipamentos da época eram complicados e difíceis de ler. Will Eisner mudou tudo. Com quadrinhos, ele conseguia ensinar desde como fazer a manutenção de jipes e rifles até como se comportar socialmente após uma batalha. O sucesso foi imediato. Infelizmente, o preconceito contra os “gibis”, ou revistinhas de criança, afastou as HQs das artes tradicionais e também da ciência. São poucas as publicações que se utilizam dessa forma de comunicação para ensinar ou divulgar ciência, tanto para crianças quanto para adultos. Uma pena. Acho que temos um bom mercado pra isso, mesmo no Brasil.

daíA outra forma de contribuição das HQs para a ciência é a inspiração. Histórias de ficção científica sempre cativaram o imaginário de milhares de crianças. Algumas crescem e tornam-se cientistas, talvez estimuladas em parte por causa disso. Hoje em dia, percebo que os filmes são os maiores responsáveis por semear esse gosto pela ciência. Filmes inspirados em HQs proliferam nos cinemas, e os diretores estão cada vez mais buscando uma base científica para explicar os mistérios extraterrestres ou superpoderes adquiridos pelos heróis. Não vejo nada de ruim nisso, se a ciência por trás estiver correta.

E por falar em ficção, durante minha visita à Comic-Con, pude assistir a trechos do filme dirigido por Scott Derrickson, The day the earth stood still. O filme, uma regravação do clássico de 1951 e a ser lançado no final do ano, tem Keanu Reeves no papel do extraterrestre Klaatu que chega à Terra para alertar os líderes do planeta sobre as conseqüências das agressões terráqueas ao ambiente mundial. Tema bem atual e relevante, por sinal. No filme original, a famosa frase “Klaatu barada nikto” é usada num momento crucial e acaba por salvar o mundo, gerando acaloradas discussões filosóficas sobre a posição da humanidade em relação a potenciais vidas fora da Terra. Tempos atrás, a equipe da produção da 20th Century Fox contatou nosso laboratório para contribuir com uma cena do filme. Vou fazer mistério e apenas dizer que essa pequena contribuição brasileira tem relação com células-tronco!

Tenho certeza de que o valor instrucional da ficção em HQs pode funcionar por outro lado também. Sei de diversos casos nos quais a ficção inspirou descobertas científicas. Mas isso é outra história…



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