A dama imortal: HeLa, para os íntimos!
No ano de 1943, Henrietta, de 23 anos, e seu marido David Lacks mudaram-se do estado da Virgínia, no interior dos Estados Unidos, para um gueto pobre na cidade de Baltimore, na costa leste – mais desenvolvida. Com a mudança, ela largou parte da família trabalhando numa plantação de tabaco, não muito diferente da situação vivida durante os anos da escravidão. Eles sabiam que viveriam em condições bem melhores do que aquelas em que foram criados. O que não sabiam era que em menos de uma década mais tarde, depois do quinto filho, o útero de Henrietta daria à luz uma revolução na medicina.
Passando para o inverno de 1951, em fevereiro, encontramos David esperando, com os cinco filhos, Henrietta voltar de uma consulta médica no famoso hospital de Johns Hopkins. Henrietta teve um estranho sangramento dias antes e seria examinada em breve. O médico detectou a presença de um tumor de colo de útero, retirou uma amostra para exames e liberou Henrietta. O diagnóstico foi rápido: o tumor era maligno. Henrietta seria submetida a um tratamento com rádio (o elemento químico), na tentativa de matar as células cancerígenas. Mas, antes da primeira sessão, um jovem residente retirou mais uma amostra do tumor.
Dessa vez, a amostra caiu nas mãos de George Gey, chefe do departamento de cultura celular de Hopkins. Durante décadas, George e sua mulher, a enfermeira Margaret, procuravam uma ferramenta para entender o câncer. Estavam convencidos de que uma linhagem celular tumoral, que pudesse ser propagada indefinidamente fora do corpo humano, seria algo extremamente valioso. Poderiam estudar e testar as células em diversas condições que não seriam possíveis no corpo humano. Um pensamento arrojado para a época – lembrem que ainda não havia cultura de células e muito menos a estrutura do DNA. A obtenção de células tumorais seria o primeiro passo.
Vinham fracassando havia vinte anos, mas no dia em que George recebeu a amostra do Henrietta muita coisa mudou. As células derivadas de Henrietta multiplicavam-se rapidamente. Consumiam o meio de cultura e se acumulavam umas sobre as outras, crescendo por toda a placa, em todos os cantos. Um fenômeno jamais descrito até então. Da mesma forma que cresciam em cultura, as células se dividiam descontroladamente no corpo de Henrietta. Em outubro do mesmo ano, quase todos os órgãos haviam sido tomados pelo tumor, levando-a à morte.
No mesmo dia em que Henrietta morreu, George Gey aparecia em cadeia nacional de televisão com um tubo contendo as células de Henrietta. Batizou-as de células HeLa (Henrietta Lacks) e disse que nelas estariam depositadas as esperanças para a cura do câncer – previa uma revolução na medicina. Henrietta foi enterrada numa vala sem identificação em sua cidade natal e sua família não sabia de nada sobre essas células. E sabem muito pouco, mesmo hoje em dia. Ignoram que logo após a morte de Henrietta, as já famosas células HeLa auxiliaram Jonas Salk na produção da vacina contra poliomielite, que atingia milhares de crianças no mundo todo. As células serviram para distinguir, entre os diversos subtipos de vírus da pólio, qual seria o responsável pela paralisia. O uso dessas células ultrapassava os limites do estudo do câncer.
Com isso, diversos pesquisadores também queriam usar as células HeLa, e George passou a distribuí-las livremente. Elas foram usadas para estudar diversos outros tipos de câncer, o ataque de vírus, a síntese protéica, o controle genético e os efeitos de diversas drogas e da radiação. Foram cultivadas em toda parte do mundo, inclusive no espaço! Mesmo assim, David Lacks e seus cinco filhos não sabiam da conexão das células HeLa com a morte de Henrietta. Na verdade, David relutara em deixar os médicos retirarem amostras de Henrietta. Só deixou quando foi convencido que isso poderia resultar na eventual cura do mesmo câncer, caso ele aparecesse novamente na família. David seria informado dos andamentos das pesquisas com as células de sua mulher. Nunca teve notícias e tocou a vida. Cerca de 24 anos depois da morte de Henrietta, durante a visita de sua nora, Bárbara, à uma amiga da cidade, algo curioso aconteceu.
Nessa visita, Bárbara conheceu um casal de cientistas, também amigos da anfitriã da casa. Ao se apresentarem, os cientistas disseram que trabalhavam com células em cultura que tinham o mesmo sobrenome de Bárbara, eram conhecidas como HeLa, pois derivaram de uma mulher chamada Henrietta Lacks. Bárbara estava confusa; como os cientistas poderiam estar trabalhando com as células de uma pessoa morta há anos? Os cientistas explicaram que essas células eram imortais e haviam se tornado referência no mundo todo. Mas por que ninguém havia contactado os Lacks em todos esses anos? A família resolveu então contactar o hospital ela mesma. E o momento não poderia ser mais oportuno…
As células HeLa estavam totalmente fora de controle. Como eram robustas e se dividiam muito rapidamente, eram fáceis de ser manipuladas em qualquer laboratório. Surpreendentemente, diversas outras células, bem mais difíceis de cultivar, haviam se tornado tão domésticas quanto as células HeLa. Em 1974, Walter Nelson-Rees, pesquisador da universidade da Califórnia, em Berkeley, começou a espalhar um rumor nada agradável: as células HeLa haviam contaminado todos os estoques celulares do mundo. Ninguém podia acreditar nisso. Durante quase três décadas, pesquisadores fizeram complexos experimentos no que achavam ser células de placenta, de próstata, de glândulas mamárias. Seriam todas elas simplesmente células HeLa? Acreditar nisso seria aceitar que toda a pesquisa, todos os anos de trabalho, carreiras inteiras e toda verba destinada a esses estudos de nada valiam.
A verdade era que as células HeLa tinham se infiltrado na maioria das outras culturas celulares, contaminando-as através de pipetas, luvas, rótulos trocados ou mesmo respingos, dominando completamente as placas de cultura. E ninguém sabia distingui-las na época, pois não havia métodos precisos. Para aceitar ou rejeitar essa terrível notícia, os pesquisadores precisavam de novas evidências, precisavam de mais informações sobre as origens das células HeLa. Pode até ter sido coincidência, mas logo após o telefonema dos Lacks para o hospital passaram a receber diversas cartas pedindo doação de sangue e amostras de tecidos de outros membros da família. A partir dessas doações, os pesquisadores poderiam obter informações preciosas sobre Henrietta, como seu tipo sanguíneo, por exemplo, que poderia ser útil para desvendar a contaminação.
Walter Nelson-Rees estava destemido a provar sua teoria. De posse de diversas informações sobre o perfil genético de Henrietta, Walter conseguiu demonstrar que mais de 40 linhagens celulares, humanas ou não, eram na verdade células HeLa. Muitas dessas linhagens vinham de indivíduos caucasianos, mas estranhamente apresentavam uma variação de uma enzima que só era encontrada numa pequena população de afro-americanos, da qual Henrietta fazia parte. Walter publicou suas conclusões na década de 70, numa série de estudos na famosa revista “Science”. Chamava a atenção para o problema da contaminação e apontava os estudos que deveriam ser retratados ou re-avaliados. Walter atormentava o ego de muitos cientistas famosos e de laboratórios de prestígio. Sua atitude causou certo desconforto e a hostilidade se tornou aparente.
Walter passou a receber ameaças e ataques pessoais. Ninguém estava disposto a retratar seus trabalhos ou perder a credibilidade. Muitos grupos continuaram a publicar trabalhos mesmo sabendo que suas células estavam contaminadas, gerando uma série de artefatos científicos. Em 1981, Walter decidiu abandonar de vez a carreira científica e abriu uma galeria de arte em San Francisco. Mas seu legado continua. Hoje em dia, estima-se que haja pelo menos 49 laboratórios com linhagens celulares ainda contaminadas com células HeLa e que resultaram na publicação de 220 trabalhos científicos até 2004! Numa atitude original, a revista “Nature” passou a requisitar recentemente a prova de identidade de novas linhagens de células-tronco embrionárias humanas.
A confusão entre as intenções dos pesquisadores e o que os familiares entenderam do que seria feito com as amostras de Henrietta é apenas um dos elementos que revelam um dilema ético nessa história. Uma coisa é o aceite do paciente para pesquisa acadêmica, outra coisa é desenvolver um produto comercial derivado da amostra doada, como aconteceu com as células HeLa. Muitas vezes, esses conceitos não são claros e merecem um estudo mais detalhado. Talvez a ciência biomédica na década de 50 não estivesse madura para isso. No caso dos Lacks, eles ainda têm o sentimento de que foram traídos pela comunidade médica, que alguém fez muito dinheiro em cima do tumor de Henrietta.
De qualquer forma, essa coluna tem como objetivo relembrar esse episódio da história da ciência e refletir sobre como um simples ato de cultivar células no laboratório pode ter implicações bem mais abrangentes do que se pensa inicialmente. Células HeLa não foram derivadas de uma pessoa chamada Helen Lane ou Helen Larson, como aparece em diversos textos científicos – talvez uma tentativa de apagar a verdadeira identidade da HeLa? A verdade é que as HeLa foram derivadas de Henrietta Lacks, mulher, negra, pobre e imortal, que contribuiu com avanços científicos em todo o mundo.
P.S.: Esta coluna é dedicada aos doutores Carlos Menck, do departamento de Microbiologia, e à doutora Mari Sogayar, do departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo. Ambos pioneiros na cultura de células no Brasil e com quem aprendi a delicada arte de cultivar e reconhecer células HeLa e tantas outras no laboratório. Mais informações sobre a história da HeLa no artigo “Cells That Save Lives are a Mother’s Legacy de Rebecca Skloot”, New York Times, e no livro “A Conspiracy of Cells”, de Michael Gold, State University of New York Press.