Antropogênese?

sex, 07/03/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Em teoria, antropogênese é o estudo da origem (gênese) da espécie humana. Na prática, é uma das perguntas mais comuns – e uma das que ainda não têm resposta clara. Afinal de contas, de onde viemos? Se o leitor está pensando que já sabe a resposta (“Nós viemos dos macacos, é claro!”), já vou alertando que o buraco é mais embaixo…

A Universidade da Califórnia em San Diego, em conjunto com o Instituto de Pesquisas Salk, resolveu estabelecer um centro para explorar as origens da humanidade e entender as várias características, não só comportamentais, mas também genéticas e bioquímicas, que nos fazem humanos. Para isso, pesquisadores de diferentes áreas, incluindo neurocientistas, antropólogos, filósofos, bioinformatas, químicos e médicos, reuniram-se para estabelecer o Centro de Pesquisa Acadêmica e Treinamento em Antropogênese (abreviado do inglês: Carta).

O centro teve a generosa contribuição (3 milhões de dólares) da G. Harold & Leila Y. Mathers Foundation, que durante os últimos dez anos financiou encontros entre especialistas a portas fechadas. O objetivo do novo centro a curto e médio prazo é formar pesquisadores-doutores especializados em antropogênese. O Carta está sendo dirigido por vários pesquisadores, dentre eles Ajit Varki, especializado no metabolismo de açúcares.

Um dos açúcares que Varki estuda está ausente apenas em humanos, mas é encontrado em todos os outros mamíferos estudados, incluindo macacos. Sabemos que muitos açúcares são moléculas sinalizadoras presentes nas membranas dos neurônios. O grupo de Varki agora está tentando eliminar esse açúcar no cérebro de camundongos e observar se ocorrem mudanças em seu comportamento.

Outra pesquisadora envolvida na direção do Carta é a antropóloga Margaret Schoeninger, que estuda o papel da dieta na evolução dos hominídeos. Ela é uma das autoras do livro “Meat Eating and Human Evolution”, ou “Consumo de carne e evolução humana” (vou precisar de uma outra coluna só pra falar desse livro…). Dentre outras observações interessantes, ela aponta que, há meio milhão de anos atrás, nosso ancestrais já ingeriam uma quantidade de carne que é intolerável para o mais carnívoro dos primatas atuais.

Isso porque grandes quantidades de carne produzem excesso de nitrogênio, que é tóxico para as colônias benéficas de bactérias presentes no estômago dos chimpanzés e gorilas. Agora, a questão que Shoeninger acha realmente interessante é: se viemos dos macacos, como o sistema digestivo dos nossos ancestrais tolerou a mudança de uma dieta rica em frutas e folhas para uma alimentação baseada substancialmente em gordura e carne animal?

A direção do Carta também conta com o professor Pascal Gagneux, um biólogo especialista em evolução molecular de humanos e primatas. Ele observa que, se hominídeos e chimpanzés divergiram evolutivamente há aproximadamente 6 milhões de anos, seria esperado que a mesma diversidade genética encontrada em humanos fosse encontrada nos “primos” chimpanzés. Muito pelo contrário!

O grupo de Gagneux encontrou um único grupo de chimpanzés no oeste da África, composto por 55 indivíduos, que possui dyas vezes mais variabilidade genética do que todos os humanos juntos. Em outras palavras, chimpanzés que vivem nessa pequena comunidade são mais diferentes geneticamente entre eles do que você é diferente de qualquer outro dos 6 bilhões de humanos do planeta.

Gagneux interpreta esses dados como uma evidência de que, em algum momento da nossa evolução, a população humana caiu drasticamente e chegamos muito perto da extinção. Estaríamos tão acostumados com a idéia de que a população humana está crescendo desenfreadamente que temos a tendência a pensar que sempre foi assim. Ainda somos bem vulneráveis geneticamente.

Voltando ao Carta, as atividades propostas pelo centro incluem: desenvolvimento de um Museu virtual de antropogênese comparativa, organizar o acesso a fontes de pesquisa de grandes macacos (chimpanzés, gorilas, bonobos e orangotangos), desenvolver bases de dados de coleções de ossadas doadas para a universidade, facilitar a criação de um curso eletivo de graduação em origens humanas, bem como desenvolver um periódico científico indexado que tratará de temas relacionados a antropogênese.

Como disse antes, o buraco é mais embaixo: temos de cavar bem fundo no nosso genoma, além das escavações em sítios arqueológicos, para entender nossas origens. Quais foram exatamente os episódios moleculares que moldaram o nosso cérebro como ele é hoje? Mais ainda, será que distúrbios da mente moderna, como depressão e esquizofrenia, não seriam conseqüências desse rápido desenvolvimento?

Talvez outra pergunta cabeluda que o Carta se depare lá na frente seja: Será que valeu a pena termos evoluído tão rápido, e a esse custo? Esse tipo de pergunta requer um grupo de pensadores transdisciplinar, integrando diversas áreas do conhecimento. A idéia é que, ao tentar responder essas questões, aprenderemos muito sobre nós mesmos e nossa capacidade modificadora.

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17 Comentários para “Antropogênese?”

  1. 1
    Frank, o excelso!:

    Napa…
    Fiquei muito contente com esta coluna.
    Espero ansioso maiores por maiores desdobramentos desses tópicos de sua parte…
    No final das contas, eu sempre estive certo…
    O plano ainda está de pé.
    There can be only one.

    Brgds.

  2. 2
    Telma:

    Caro Dr Muotri,
    Acompanhei sua entrevista na radio CBN sobre a discussao em torno das celulas-tronco. Senti um enorme orgulho de te-lo como representante brasileiro nessa area concorrida. Ouvimos muitas besteiras por aqui, mas seus comentarios foram simples, diretos e muito claros. Passou a mensagem pros politicos e pra populacao. So gostaria que tivesse sido mais longa e que pudessemos fazer perguntas ao vivo…
    Quero que saiba que vc e uma inspiracao para os novos biologos!
    Abracos bem brasileiros
    Telma

  3. 3
    Felipe:

    Estou no meio do curso de Biologia, cursado na Universidade Federal de Viçosa, e faço minha as palavras da Telma. Suas colunas sao fontes nao só de inspiraçao para nós biologos, mas é tambem uma rica fonte de discurssao e principalmente de conhecimento.
    Se elas forem usadas em sala de aula , podem trazer bons frutos a nós alunos, afinal de contas, vemos todo nosso conhecimento teorico aplicado na pratica.

    Abraços e mais uma vez , muito obrigado

  4. 4
    Rodrigo Nakayama (Naka):

    Grande Alysson!
    Foi muito bom escutar você na CBN!
    E sua coluna aqui no G1 está cada vez melhor!
    Você nos enche de orgulho!
    Abração

    Ass: Naka

  5. 5
    Daniel Duarte Abiorana:

    Caro Alysson,

    Você poderia me indicar um bom livros sobre Desing Inteligente?

  6. 6
    Guilherme:

    Concordo com os comentários anteriores, com toda a razão!
    Fico também muito orgulhoso, e não por ser aluno de um curso de biologia, pois não sou, mas por estudar Psicanálise também, bem como filosofia… etc… Penso que tais pensamentos e discussões são essências para tanto…

    Enfim, parabéns pelo excelente blog!

    Abraços…

  7. 7
    mara:

    Muito boa a coluna, Dr Muotri!!
    Evolucao e realmente um assunto muito interessante e deveria ser mais divulgado!!
    Beijocas,
    Mara

  8. 8
    Meire:

    Caro Alysson,
    Acompanho suas colunas desde o comeco e posso dizer que estou adorando!! A cada 2 semanas um assunto super interessante. Adoro quando voce aborda assuntos polemicos!
    beijinhos

  9. 9
    Rogerio:

    Achei seu blog por acaso e não consigo parar de ler teus textos. Voce consegue balancear bem a informação com a provocação. Parabéns Dr. Muotri, ganhou mais um leitor assíduo!!!!

  10. 10
    Meire:

    Ola
    Fiz um comentario no dia 19 e ainda nao saiu!

  11. 11
    Gabriel Goedert Freitas:

    Olá! gostaria de saber se já existe córneas
    produzidas por células tronco, sendo assim, minha mãe que enxerga pouco, poderia fazer um transplante sem perigo de rejeição!
    Abraços.

  12. 12
    Bábyla:

    Olá Dr. Alysson, peço licença para responder a pergunta do Gabriel.

    Oi Gabriel, existe pesquisa nessa área sim, trabalho com reconstrução de superfície corneana e engenharia tecidual com células tronco de polpa de dente, projeto coordenado pela Dra. Irina Kerkis do Instituto Butantan e Dr. Humberto Cerruti. Temos resultados promissores em modelo animal. Acredito que em breve possamos “passar” essa tecnologia para os humanos. Deve estar se perguntando: “células tronco na polpa de dente?” Sim!!! E sem nenhum risco de formação tumoral ou rejeição.

    Ah Dr. Alysson, parabéns por mais um excelente texto.

  13. 13
    Gisele:

    Caro Alysson,
    Seus textos são impecáveis cientificamente, sempre com muito cuidado e vc acaba atraindo uma série de leitores interessantes. Recomendo a todos os seus textos anteriores, sempre cheios de conhecimento.
    Ouvi sua entrevista na CBN e achei super estimulante, já estava pra te escrever isso. Não sei como o G1 conseguiu te recrutar frente aos grandes jornais como a Folha e Estado, mas fez um excelente negócio, parabéns a toda equipe pela escolha.
    Beijos!!

  14. 14
    Carina:

    Adorei os textos e gostaria de le-los com mais frequencia!!!
    beijos.

  15. 15
    Fernando Luiz Lima de Oliveira:

    O entendimento do passado é imprescindível para o futuro, e isso faz dos estudos sobre evolução os mais importantes do mundo. E com a ajuda da genética podemos chegar perto da verdade absoluta.

  16. 16
    sandra Primavera:

    Por equanto estou parendendo muito com vc.
    Continue assim.
    Bj…

  17. 17
    Thiago Salazar:

    Realmente dizer que o “homem veio do macaco” é o modo mais simplista de buscar compreender a evolução. Nossos antepassados surgiram na África e se espalharam pela Europa, Ásia, Oceania, Américas. Compreender todo esse processo é uma “pedra fundamental” no conhecimento da humanidade acerca de si mesma, e imprescindível para moldarmos um futuro melhor! Obrigado pelo tema, Dr. Muotri!



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