Como surgiu a arte?
De volta às minhas reflexões sobre a natureza humana, um aspecto interessante é a qualidade artística que, até onde sei, é tipicamente humana e nunca foi descrita em outros animais.
Antes de entrar em reflexões mais profundas, gostaria de deixar claro o que estou chamando de arte (a palavra vem do latim ars, que significa habilidade). Um pré-requisito da arte é levar ao produtor da arte e/ou ao observador uma experiência estética ou emocional. A idéia é que a arte envolva habilidade e inteligência criativa. Dessa forma, instrumentos criados pelos homens pré-históricos pra facilitar a obtenção de alimento não seriam considerados arte nessa definição.
Alguns pesquisadores tentaram definir uma região especifica do cérebro como responsável pela arte. O fato de pacientes de Alzheimer perderem a capacidade artística (os desenhos ficam desorientados e o paciente perde a perspectiva espacial) realçou a importância do lobo parietal direito (parte do cérebro lesionada em pacientes com Alzheimer) para artes visuais e criatividade (Cummings e Zarit, 1987). Estudos revisados por Ahmed e Miller apontam que o hemisfério esquerdo é mais importante para funções relacionadas à linguagem, leitura, escrita e cálculos. Por outro lado, o hemisfério direito seria dominante para funções artísticas, emoção e habilidades espaciais e visuais.
Mas por que gastamos tanto tempo com arte? Na busca de alguma vantagem evolutiva para a prática, Ellen Dissanayake, uma antropóloga que estuda arte e cultura na Universidade de Washington, em Seattle, descobriu algo que pode ser tanto revolucionário quanto senso comum. Segundo Dissanayake, o impulso artístico estaria presente desde o nascimento, e seria um característica tão antiga, universal e persistente que se pode ter certeza de que ela é inata, e não adquirida.
Muitos pesquisadores acreditam que a arte seja uma conseqüência de cérebros mais desenvolvidos, aparecendo acidentalmente durante a evolução humana. Seria como um subproduto de um cérebro capaz de resolver problemas e que se chateia facilmente, procurando outras formas de entretenimento para saciar as redes neurais envolvidas com o sentimento de recompensa.
Dissanayake, por outro lado, acredita que a arte seja uma adaptação evolutiva mantida por méritos próprios e não um simples ornamento dispensável da cultura humana. A arte seria essencial para a sobrevivência da espécie humana. Afinal, a produção artística consome uma bela porção de tempo e energia humana, uma extravagância que não seria aceitável para um mero resquício evolucionário. Além disso, a arte nos traz um sentimento de prazer, e atividades prazerosas são geralmente as que o processo evolutivo considera muito importante para deixar ao simples acaso, correndo o risco de perdê-las.
Mas se a arte é tão importante assim, serve para quê, afinal? Alguns teóricos consideram que a arte seja uma forma de exibição sexual, ou uma forma indireta de retratar o seu repertório genético envolvido com a criatividade, fornecendo uma vantagem adaptativa.
No entanto, pode até ser que, na cultura ocidental, a arte seja uma forma que a elite artística encontrou de se destacar do mundo real, competindo por reconhecimento. Mas, para culturas tradicionais e durante a maior parte da história humana, a arte serve como uma forma de agregação comunitária, seja através da religião, de guerras ou simplesmente pelo senso de identificação grupal. A arte amplifica a experiência, tornando-a memorável e significativa.
A arte não surgiu como um privilégio de poucos, mas sim para as massas. É através da arte que o indivíduo se apega ao social, fortificando-se com a troca de informações e se preparando melhor para encarar o mundo. Dessa forma, a arte deveria funcionar como um elixir social e não como um fator de exclusão.
Segundo Dissanayake, muitas características do processo artístico, como as convenções estilísticas, padrão tonal, reciprocidade e criatividade, são idênticas à mais primitiva relação social humana: a íntima relação entre mãe e filho.
Depois de estudar centenas de horas de relacionamento entre mães e filhos em diversas culturas, Dissanayake pôde caracterizar fatores essenciais que caracterizam a forte ligação dos dois. São fatores visuais, vocais e gestos que aparecem espontaneamente e inconscientemente entre mãe e filhos. Esses fatores nunca deixam de operar de acordo com algumas regras: chamada e resposta, entonação da voz, movimento dos olhos, sorriso exagerado, repetições e variações do mesmo tema, sensação de recompensa com o riso etc.
As regras desse relacionamento têm um tempo ideal para acontecer e funcionam com respostas esperadas para cada tipo de ação. Caso esse delicado sistema não funcione de forma ordenada, observa-se uma chateação tanto por parte da mãe quanto do filho. Para Ellen, essa coreografia comportamental é muito semelhante ao processo técnico e construtivo da arte. Essas operações rituais, estruturadas entre mãe e filho, teriam um grande valor estético.
E operações estéticas são operações artísticas. Seja numa peça musical ou numa coreografia de dança, o artista sempre procura repetições, exageros, manipulação da expectativa e variações dinâmicas sobre um mesmo tema. Ele usa as ferramentas que mães usaram, e ainda usam, para criar uma conexão com os filhos durante milhares de anos.
Segundo essa visão, que me agrada muito, somos todos artistas inatos e, na sociedade ocidental, desaprendemos arte conforme nos tornamos adultos, trucidando uma das mais belas características humanas.