Como surgiu a arte?

sex, 29/02/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Caverna de LascauxDe volta às minhas reflexões sobre a natureza humana, um aspecto interessante é a qualidade artística que, até onde sei, é tipicamente humana e nunca foi descrita em outros animais.

Antes de entrar em reflexões mais profundas, gostaria de deixar claro o que estou chamando de arte (a palavra vem do latim ars, que significa habilidade). Um pré-requisito da arte é levar ao produtor da arte e/ou ao observador uma experiência estética ou emocional. A idéia é que a arte envolva habilidade e inteligência criativa. Dessa forma, instrumentos criados pelos homens pré-históricos pra facilitar a obtenção de alimento não seriam considerados arte nessa definição.

Alguns pesquisadores tentaram definir uma região especifica do cérebro como responsável pela arte. O fato de pacientes de Alzheimer perderem a capacidade artística (os desenhos ficam desorientados e o paciente perde a perspectiva espacial) realçou a importância do lobo parietal direito (parte do cérebro lesionada em pacientes com Alzheimer) para artes visuais e criatividade (Cummings e Zarit, 1987). Estudos revisados por Ahmed e Miller apontam que o hemisfério esquerdo é mais importante para funções relacionadas à linguagem, leitura, escrita e cálculos. Por outro lado, o hemisfério direito seria dominante para funções artísticas, emoção e habilidades espaciais e visuais.

Mas por que gastamos tanto tempo com arte? Na busca de alguma vantagem evolutiva para a prática, Ellen Dissanayake, uma antropóloga que estuda arte e cultura na Universidade de Washington, em Seattle, descobriu algo que pode ser tanto revolucionário quanto senso comum. Segundo Dissanayake, o impulso artístico estaria presente desde o nascimento, e seria um característica tão antiga, universal e persistente que se pode ter certeza de que ela é inata, e não adquirida.

Muitos pesquisadores acreditam que a arte seja uma conseqüência de cérebros mais desenvolvidos, aparecendo acidentalmente durante a evolução humana. Seria como um subproduto de um cérebro capaz de resolver problemas e que se chateia facilmente, procurando outras formas de entretenimento para saciar as redes neurais envolvidas com o sentimento de recompensa.

Dissanayake, por outro lado, acredita que a arte seja uma adaptação evolutiva mantida por méritos próprios e não um simples ornamento dispensável da cultura humana. A arte seria essencial para a sobrevivência da espécie humana. Afinal, a produção artística consome uma bela porção de tempo e energia humana, uma extravagância que não seria aceitável para um mero resquício evolucionário. Além disso, a arte nos traz um sentimento de prazer, e atividades prazerosas são geralmente as que o processo evolutivo considera muito importante para deixar ao simples acaso, correndo o risco de perdê-las.

Mas se a arte é tão importante assim, serve para quê, afinal? Alguns teóricos consideram que a arte seja uma forma de exibição sexual, ou uma forma indireta de retratar o seu repertório genético envolvido com a criatividade, fornecendo uma vantagem adaptativa.

No entanto, pode até ser que, na cultura ocidental, a arte seja uma forma que a elite artística encontrou de se destacar do mundo real, competindo por reconhecimento. Mas, para culturas tradicionais e durante a maior parte da história humana, a arte serve como uma forma de agregação comunitária, seja através da religião, de guerras ou simplesmente pelo senso de identificação grupal. A arte amplifica a experiência, tornando-a memorável e significativa.

A arte não surgiu como um privilégio de poucos, mas sim para as massas. É através da arte que o indivíduo se apega ao social, fortificando-se com a troca de informações e se preparando melhor para encarar o mundo. Dessa forma, a arte deveria funcionar como um elixir social e não como um fator de exclusão.

Segundo Dissanayake, muitas características do processo artístico, como as convenções estilísticas, padrão tonal, reciprocidade e criatividade, são idênticas à mais primitiva relação social humana: a íntima relação entre mãe e filho.

Depois de estudar centenas de horas de relacionamento entre mães e filhos em diversas culturas, Dissanayake pôde caracterizar fatores essenciais que caracterizam a forte ligação dos dois. São fatores visuais, vocais e gestos que aparecem espontaneamente e inconscientemente entre mãe e filhos. Esses fatores nunca deixam de operar de acordo com algumas regras: chamada e resposta, entonação da voz, movimento dos olhos, sorriso exagerado, repetições e variações do mesmo tema, sensação de recompensa com o riso etc.

As regras desse relacionamento têm um tempo ideal para acontecer e funcionam com respostas esperadas para cada tipo de ação. Caso esse delicado sistema não funcione de forma ordenada, observa-se uma chateação tanto por parte da mãe quanto do filho. Para Ellen, essa coreografia comportamental é muito semelhante ao processo técnico e construtivo da arte. Essas operações rituais, estruturadas entre mãe e filho, teriam um grande valor estético.

E operações estéticas são operações artísticas. Seja numa peça musical ou numa coreografia de dança, o artista sempre procura repetições, exageros, manipulação da expectativa e variações dinâmicas sobre um mesmo tema. Ele usa as ferramentas que mães usaram, e ainda usam, para criar uma conexão com os filhos durante milhares de anos.

Segundo essa visão, que me agrada muito, somos todos artistas inatos e, na sociedade ocidental, desaprendemos arte conforme nos tornamos adultos, trucidando uma das mais belas características humanas.

E chegam as células 3i

sex, 08/02/08
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

JapaRecentemente participei de um congresso científico sobre o desenvolvimento embrionário de diversas espécies na simpática cidade de Nara, no Japão. A idéia era juntar especialistas em diferentes aspectos do desenvolvimento animal com o intuito de descobrir vias bioquímicas comuns que levam o zigoto (o óvulo fecundado) a se desenvolver num organismo adulto.

Um ponto interessante nesse congresso foi que os palestrantes tiveram de se apresentar dentro de um típico teatro Noh e, como manda a tradição, sem os sapatos. Por incrível que pareça, esse simples ato ajudou a limpar o ego de muitos palestrantes, prevalecendo um clima de amizade e companheirismo científico que havia tempo eu não presenciava.

As etapas iniciais do desenvolvimento são extremamente complicadas: uma única célula tem de ser capaz de se dividir e se especializar em todas as células do organismo, formando tecidos organizados e interligados, incluindo órgãos complexos como o cérebro. Na minha visão, o que muitos chamam de “milagre” não passa de uma série de reações físico-químicas que podem ser compreendidas, da mesma forma que entendemos como diversas partes formam um computador com rápida capacidade de processamento.

Obviamente as células-tronco embrionárias são uma das melhores ferramentas para o estudo de estágios iniciais do desenvolvimento. De fato, desde 1998, quando a primeira linhagem de célula-tronco embrionária humana foi isolada, o número de trabalhos científicos na área tem crescido de forma exponencial. Esse reconhecimento é devido ao fato de que, a partir delas, podemos estudar os fatores genéticos, epigenéticos e ambientais que influenciam a capacidade de elas se especializarem em outras células. Por isso mesmo, esse estado “imortal” em que as células-tronco embrionárias são mantidas é chamado de estado pluripotente.

Não foi fácil conseguir definir as condições de cultura para que as células se mantivessem nesse estado pluripotente. Atualmente, usa-se uma série de fatores derivados de animais, como o soro bovino e a presença de células-suporte derivadas de camundongos. E é por isso mesmo que as células-tronco humanas embrionárias estão, até hoje, contaminadas por produtos animais e não são aconselháveis para ensaios clínicos em humanos (ver “Células-tronco, células ainda contaminadas…”).

Mas nesse congresso um grupo de pesquisadores da Inglaterra apresentou resultados extremamente importantes, mostrando que é possível manter as células no estado pluripotente utilizando apenas três compostos sintéticos. Melhor ainda, são compostos que podem ser adquiridos por qualquer grupo de pesquisa no mundo. Na presença dessas drogas, as células conseguem propagar-se indefinidamente e permanecer pluripotentes, sem nenhum outro auxílio externo. Pôde-se inclusive derivar novas células-tronco embrionárias na ausência de qualquer produto animal. Essas novas células foram batizadas de células 3i (no inglês, “3i cells”). O “i” se refere à natureza química dos compostos – são três inibidores.

Para chegar a esse coquetel de inibidores, o grupo partiu de uma triagem racional de uma biblioteca de compostos químicos. Sem entrar em detalhes muito técnicos, já se sabia que as células-tronco embrionárias usavam seus receptores para captar fatores do ambiente que poderiam induzir sua especialização. Então é óbvio que um desses inibidores esteja atuando nesses receptores (mais precisamente, receptores conhecidos como FGF). Os outros dois compostos atuam em proteínas encarregadas de controlar a divisão celular.

Toda célula precisa duplicar seu DNA antes de se dividir, mantendo sua imortalidade. Algumas proteínas internas da célula auxiliam nessa tarefa e, ao mesmo tempo, monitoram a integridade do novo DNA sintetizado. Durante esse controle de qualidade do DNA, a célula toma a decisão de se especializar, continuar se dividindo ou morrer. Esses dois inibidores enganam as células, fazendo com que elas pulem a parte do ciclo no qual tinham a chance de optar por se especializar. Ou seja, ou elas continuam a se dividir ou morrem. Logicamente, nessas condições, apenas as células-tronco embrionárias serão selecionadas em cultura. Esses compostos são conhecidos como inibidores de MAPK e de Erk, duas proteínas que compartilham vias bioquímicas comuns durante a divisão das células-tronco embrionárias.

A descoberta ainda inédita, assim que passar pelo crivo da crítica dos revisores e for publicada, promete dar uma chacoalhada no meio científico. Não só porque nos livra de uma xenocontaminação (ou seja, contaminação por outras espécies) indesejada, mas também porque elimina o conceito de diferenciação por “default”. Eu explico. Muitos pesquisadores acreditam que as células-tronco embrionárias tendem a se especializar sozinhas, de forma espontânea. Na verdade, ignoram que fatores secretados por elas mesmas são os responsáveis pela saída do estado pluripotente. O que o grupo inglês mostrou com as células 3i é que o “default”, ou seja, o estado “normal”, é justamente o estado pluripotente.

Depois da reprogramação de células somáticas e origem das células iPS (“induced Pluripotent Stem”, ou “células-tronco pluripotentes induzidas”) pelo grupo japonês de Shinya Yamanaka, faltava justamente saber como manter essas células indefinidamente no estado pluripotente. A união dessas duas ferramentas promete alavancar as pesquisas, tornando o sonho de uma eventual terapia celular um pouco mais real.

Infelizmente, as descobertas revolucionárias na área das células-tronco embrionárias continuam saindo dos mesmos países: EUA, Japão e Inglaterra. Erra quem acha que isso só acontece por causa das verbas destinadas à pesquisa. Conversando com líderes japoneses, descobri que a maioria dos grupos tem um orçamento parecido com o de grupos brasileiros. Também descobri que eles sofrem com taxas de importação de material científico caríssimas, além do óbvio problema com a língua inglesa. Mas o que eles têm de forte é muita determinação, longas horas de trabalho pesado no laboratório, um planejamento ousado, vontade política de atrair seus jovens pesquisadores que saíram para o exterior e visão de futuro, principalmente em áreas tecnológicas de ponta. Tirei os sapatos e o chapéu.



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