Gordo Pêra x Gordo Maçã

sex, 30/11/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Vivemos uma epidemia mundial de obesidade, um dos fatores principais relacionado a diversas doenças, como diabete tipo 2, problemas cardiovasculares, Alzheimer e mesmo câncer. A maioria dessas doenças acontece em parte pela resistência à insulina causada pela obesidade e também pelo fato de que gorduras estocadas no corpo funcionam como um órgão endócrino, secretando hormônios e proteínas que afetam a função de diversas outras células no corpo.

Mas o que realmente causa a obesidade? A obesidade começa a se desenvolver quando a quantidade de energia consumida é maior do que a utilizada, gerando um desbalanço calórico. Mas isso não é tudo. A forma como a gordura é distribuída no corpo também contribui para a obesidade, aumentando o risco metabólico. Acúmulo de gordura na região intra-abdominal ou visceral, gerando o obeso em formato de maçã, está diretamente relacionado a doenças do metabolismo. Em comparação, em obesos com formato de pêra, com gorduras acumuladas de forma subcutânea, principalmente nas coxas e quadris, o risco de doenças metabólicas é menor. Apesar de os cientistas já saberem disso faz um tempo, o mecanismo da distribuição de gordura no corpo ainda é um mistério.

Praticamente todas as espécies animais investigadas até hoje, de pequenos vermes até humanos, encontraram uma forma de estocar energia em forma de gordura, para um futuro de vacas magras. Esse tipo de gordura energética, também conhecida como gordura branca, pode se localizar em regiões subcutâneas (como nas focas e baleias), abdominais (sapos e serpentes) ou em ambos (como na maioria dos mamíferos e pássaros). Essa distribuição não significa uma forma de adaptação evolutiva para isolamento térmico, uma vez que mamíferos do ártico e dos trópicos, com a mesma massa corpórea, possuem semelhante distribuição de gordura.

20071130alysson1.jpgNos humanos, a distribuição da gordura branca no corpo varia com a idade. Perdemos gorduras subcutâneas e aumentamos gorduras intra-abdominais conforme envelhecemos. O fator genético também influencia. Estudos com gêmeos revelaram que fatores genéticos podem contribuir de 30 a 70% para as chances de obesidade. É o caso das mulheres africanas da tribo de Hottentot/Khoisan, conhecidas pela maneira como carregam as crianças nas costas — literalmente sentadas nas fartas nádegas. Isso me lembra um livro de Rachel Holmes que descreve a drástica história de uma mulher dessa região, Saartjie Baartman, que foi levada para a Europa como uma atração bizarra (ou uma vênus exótica, para os mais românticos). Da mesma forma, mulheres da tribo africana dos Bundus, apresentam acentuado acúmulo de gordura nas nádegas. Curiosidade: o fato de mulheres dessa tribo terem vindo ao Brasil durante o período de escravidão, sugere que a palavra “bunda” tenha sua origem nessa característica física.

De qualquer forma, a distribuição de gordura branca pelo corpo humano influencia a predisposição a doenças. Existem duas teorias, não necessariamente exclusivas, para explicar o porquê disso. A primeira é baseada na anatomia e no fato de que células de gordura branca descarregam seus produtos metabólicos (como ácidos graxos, por exemplo) na circulação próxima ao fígado, prejudicando o metabolismo. A outra teoria diz respeito à natureza genética das células de gordura — nem todas seriam iguais e o balanço dos diferentes tipos de gordura seria um dos fatores que causam doenças.

De fato, mamíferos apresentam um outro tipo de gordura, a chamada gordura marrom. Ao contrário da gordura branca (energética), a marrom tem a função de regulação térmica. Isso acontece porque nessas células temos a ativação de um gene chamado UCP-1, cuja proteína participa da conversão da energia química das mitocôndrias em energia térmica. Diferentemente dos outros mamíferos, que mantém um nível relativamente constante de gordura marrom durante toda a vida, humanos nascem com um estoque, mas vão perdendo durante a fase adulta.

Além disso, vale notar que esse tipo de gordura pode ser induzido pela exposição prolongada ao frio. Mais: observou-se um acúmulo de gordura marrom, com o gene UCP-1 induzido numa linhagem de camundongos resistente à obesidade, sugerindo que essa gordura marrom deva participar da regulação homeostática do corpo (Almin e colegas, PNAS 2007). Ora, isso sugere que a adição de pequenas quantidades de gordura marrom em humanos possa ser uma nova alternativa para o tratamento ou prevenção da obesidade e de suas complicações metabólicas.

Mas, para fazer isso, precisamos saber de onde vêm as gorduras marrons ou como podemos induzi-las. O estudo da origem das células de gordura humana remete às células-tronco embrionárias. Dessas, podem ser geradas as chamadas células-tronco mesenquimais, também presentes em indivíduos adultos. E são as células-tronco mesenquimais as responsáveis pela produção do tecido adiposo. A questão agora é definir quais são os fatores (intrínsecos e ambientais) que estimulam as células-tronco mesenquimais a se especializar numa célula de gordura branca ou gordura marrom.

Sabendo-se disso, podemos compreender melhor a origem dessa epidemia de obesidade, além de possibilitar o uso terapêutico de células-tronco no tratamento de obesidade. Tenho certeza que meu grande amigo de infância, vulgarmente conhecido como “o Gordo”, ficará feliz se um dia isso virar realidade.

Reprogramação: de volta para a imortalidade, parte II

qua, 21/11/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Quem acompanha as minhas colunas no G1 sabe que faz tempo que venho chamando a atenção para a reprogramação celular como forma de obter células-tronco paciente-específicas. Nestas últimas semanas foram publicados importantes trabalhos na área da reprogramação, embora nem todo mundo compreenda a relação entre eles.

Primeiro, saiu na “Nature” na semana passada a derivação de células-tronco embrionárias através da transferência somática de células adultas de primatas. A técnica é vulgarmente conhecida como “clonagem terapêutica” e nunca tinha sido demonstrada em primatas. Por alguma razão desconhecida, conseguíamos clonar uma ovelha, um cachorro, mas nada de primatas.

Conheci o primeiro autor desse trabalho, James Byrne, quando perdemos nosso vôo para o congresso internacional de células-tronco (ISSCR) na Austrália, em junho deste ano. Paramos pra uma cerveja no bar do aeroporto e ele contou como havia conseguido sua façanha: “Um dia, desliguei a luz do microscópio”, disse ele. Ou seja, a combinação do corante usado para marcar o núcleo da célula de primata com a luz UV do microscópio estava sendo tóxico durante o procedimento. Macacos me mordam! Sempre me impressiona como a ciência avança por vias inusitadas.

O que Byrne fez foi usar o citoplasma de um óvulo enucleado (ou seja, sem o seu DNA nuclear) para reprogramar o DNA uma célula da pele já especializada. Existe alguma coisa no citoplasma do óvulo que consegue reverter as alterações epigenéticas das células mais diferenciadas. Mas o que seriam esses fatores? E mais ainda, por que eles são específicos do óvulo?

Ano passado, o grupo japonês liderado por Shinya Yamanaka não só isolou esses fatores, como também mostrou que eles seriam capazes de reprogramar células de camundongos especializadas, sem o uso de óvulos ou de qualquer outro material embrionário. Um feito espetacular! Surpreendente também foi a descoberta que são poucos os fatores responsáveis por isso, meros quatros genes, cuja função é ativar outros genes em cascata.

Nesta semana, tanto Yamanaka como o grupo americano de James Thomson conseguiram reproduzir a façanha usando células humanas de diversos indivíduos. Isso demonstra que a reprogramação epigenética é conservada evolutivamente, de camundongos até humanos. Além disso, Thomson descobriu que é possível substituir alguns dos genes iniciais por outros, sugerindo que a via de reprogramação não é única, abrindo outras possibilidades de manipulação do estado “embrionário”.

Essa manipulação molecular dribla os entraves morais das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, pois nenhum embrião ou óvulo foi necessário. Apesar de não invalidar as pesquisas com células-tronco embrionárias, o método molecular de reprogramação já causa um reboliço científico. Primeiro porque, ao contrário do tedioso, meticuloso e pouco eficiente transplante nuclear usado por Byrne, o método de reprogramação molecular é relativamente simples. Sua maior vantagem é poder ser reproduzido em qualquer laboratório de biologia do mundo e, em teoria, com qualquer tipo celular de uma pessoa (da pele, do cabelo ou mesmo daquelas células do cordão umbilical que meus pais congelaram quando nasci).

Mas existem alguns entraves técnicos. Aparentemente, a “dose” desses genes parece ser importante para reprogramar as células. Uma dose muito alta acaba por transformar as células adultas em células cancerígenas. Também não está claro o quanto as células reprogramadas são parecidas com as células-tronco embrionárias tradicionais. Parece que existem algumas diferenças, mas são pequenas e não devem ser um problema para a pesquisa básica. Aplicações terapêuticas então estariam fora de alcance, mas isso não deve ser surpresa pra ninguém, uma vez que mesmo as células-tronco embrionárias apresentam diversos entraves. Além disso, os métodos para entregar esses genes dentro das células são baseados em vírus, o que também pode estimular o processo cancerígeno. Esses entraves técnicos já foram apontados pelos próprios pesquisadores e deverão ser resolvidos em breve.

Minha perspectiva para o futuro é otimista. Acredito que em pouco tempo, “kits” contendo esses genes serão comercializados e os pesquisadores poderão gerar milhares de tipos de células com características embrionárias. Por exemplo, pode-se então gerar células do fígado e testar a toxicidade de diversas drogas antes que estas sejam testadas em humanos. A toxicidade hepática é um dos maiores entraves na descoberta de novas drogas atualmente. O mesmo vale pro coração.

Outra aplicação é a conservação de espécies. Com a reprogramação, pode-se utilizar tecidos de espécies em extinção para produzir células germinativas, aumentando as chances reprodutivas.

E será que não podemos inclusive ressuscitar espécies extintas? Lembra daqueles cabelinhos dos mamutes, ossos de neandertais… basta ter um genoma e um útero receptivo… onde estará o limite? Essa questões devem ser ativamente discutidas pela sociedade e não só pelos cientistas.

Esse tipo de avanço deverá atrair mais investidores, um tanto receosos até agora, culpa do desgaste jurídico e moral acerca das células-tronco embrionárias humanas. Empresários e investidores vão olhar isso com outros olhos. Primeiro porque a nova técnica revelou uma via epigenética que pode ser manipulada em laboratório e isso os cientistas moleculares sabem fazer bem. Segundo, porque escapa da patente mantida pela Universidade de Wisconsin, sobre o cultivo e manutenção de células-tronco embrionárias humanas derivadas de forma convencional.

Até o governo Bush se pronunciou de forma favorável a essa nova tecnologia! Nunca foi tão excitante ser um biólogo como hoje em dia, as possibilidades de pesquisa são infinitas, tanta coisa para fazer, para avançar o conhecimento. Quero saber agora, se existe alguma religião que acredita que a reprogramação molecular usando células de um paciente seja uma forma de vida alternativa, não fecundada, de um indivíduo que já nasceu e não morreu.

Meu Deus!

sex, 16/11/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

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O gráfico acima representa a probabilidade que pessoas de uma determinada religião tem de culpar o seu próprio Deus, ou o Deus das outras religiões sobre os males do mundo. Aparentemente, a maioria dos religiosos culpa o próprio Deus pela violência, fome, doenças ou desastres naturais. Afinal, foi Deus quem quis assim. No entanto, é curioso notar que, em alguns momentos, essas mesmas pessoas podem culpar o Deus das outros, numa incrível contradição religiosa uma vez que aceita-se a existência de outros deuses.

Esses dados, e outros memoráveis exemplos de como a religião agride a razão foram apresentados no simpósio “Beyond Belief – Enlightenment 2.0”, realizado no início de novembro no Instituto Salk de pesquisas, na bela La Jolla, Califórnia. Esse evento é o segundo desse tipo e acontece anualmente, organizado pela associação “The Science Network”. Infelizmente, esses encontros acontecem propositalmente a portas fechados e não são divulgados pela mídia, com seletos grupos de filósofos, religiosos e pesquisadores. Nesse último grupo, encontramos principalmente cientistas cujas linhas de pesquisa podem auxiliar na compreensão da consciência e do conceito de “Deus”, como a neurociência, antropologia e evolução.

O primeiro encontro, no ano passado, culminou com o lançamento do polêmico livro “The God Delusion” (Deus, um delírio), de Richard Dawkins. No livro, o autor faz um ataque pesado as religiões, mostrando detalhes das perversões humanas que foram feitas em nome das diversas religiões, em geral sob o comando de Deuses tiranos, insensíveis e obcecados sexualmente. Para Dawkins, religiões e Deuses não são conceitos apenas ilógicos ou irracionais, mas potencialmente letais, basta pensar nas inúmeras guerras santas travadas no passado e no presente. No último encontro, Dawkins pintou e bordou em cima de líderes religiosos e teólogos, obviamente já acanhados de discutir religião numa “catedral” científica como o Salk.

Esse ano, a conversa focou mais nas conseqüências para a humanidade de se acreditar em um Deus ou de seguir uma vida religiosa. Como a ciência não reconheceu até hoje nenhum “fato” divino, ela enxerga “Deus” da mesma forma que “unicórnios” ou “gnomos”. Porém, pessoas que acreditam em Deus não sofrem as mesmas pressões sociais que pessoas que acreditam em gnomos. Imagina você falar em uma entrevista de emprego que você acredita em duendes ou que acha que Elvis está vivo! Você certamente perderá o emprego para alguém mais “razoável”. O mesmo não acontece quando você fala que acredita em Deus.

Idéias são julgadas a todo momento e não existe lei que proíba a divulgação de conceitos falsos ou ridículos, mas nos importamos com idéias potencialmente perigosas. Por alguma razão isso não acontece com o conceito de Deus. A grande maioria da população humana aceita o conceito divino, como se estivesse pré-programado na nossa existência.

Pensando nisso, muitos já tentaram encontrar Deus no próprio DNA. Uma variação do gene VMAT2, também conhecido como o gene-Deus, é responsável pelo processamento de neurotransmissores envolvidos com a sensibilidade emocional e que produz a sensação de “revelação divina”, “êxtase espiritual” ou outras descrições místicas. A teoria de um gene-Deus foi proposta inicialmente em 2004 pelo geneticista Dean Hamer, que caracterizou o VMAT2 em diversas famílias que relataram ter passado por experiências divinas. Infelizmente, seus estudos nunca foram publicados em revista de impacto ou replicados por outros cientistas. Outros, tentaram mapear regiões no cérebro responsáveis pela espiritualidade, o chamado cérebro espiritual ou “ponto Deus”. Mas a maioria dos trabalhos são estudos de casos isolados, faltam grupos controles ou estão baseadas numa fraca estatística.

Apesar dessas tentativas frustradas, parece lógico que a ciência pode auxiliar na interpretação de Deus. Mesmo os mais religiosos baseiam suas vidas em conceitos testados pela ciência. Afinal, todo mundo com miopia passa a usar óculos – uma descoberta experimental e não atribuída a um ser divino.

A ciência não pode negar Deus, mas acumula evidências de que se existir, ele provavelmente não rege o universo. Das diversas discussões sobre esse assunto, comento uma que me chamou a atenção. Um dos participantes propôs que as religiões e rituais sobrevivem apenas como uma estratégia evolutiva para manter a espécie humana agrupada socialmente – conseguimos ir mais longe quando trabalhamos juntos. Além disso, os humanos tem uma teoria da mente (conceito já discutido aqui previamente) mais sofisticada, que serve como um mecanismo de empatia entre semelhantes. Apesar de lógica, não existe qualquer suporte que prove que essa adaptação social das religiões foi selecionada evolutivamente. A maioria das espécies já foram extintas, independente de adaptação social. A verdade é que a evolução não está nem ai pra espécie humana. Tanto faz se estamos presente no mundo ou se seremos completamente extintos como espécie, com ou sem religião.

A discussão sobre o papel das religiões e as conseqüências de Deus na cultura humana não vai parar tão cedo. Vou terminar por aqui e lançar um desafio ao leitor, um estímulo criativo, encare como um exercício mental: como você idealizaria uma nova religião global, que não ignorasse fundamentos científicos, incorporasse toda diversidade humana e que não fosse maléfica para nós mesmos ou para o planeta? Será realmente possível?

About

qua, 14/11/07
por Globomail |
categoria Espiral

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Vive la difference!

sex, 02/11/07
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Há mais de sete anos, concluiu-se um dos projetos científicos mais audaciosos da história e a biologia molecular ganhava uma poderosa ferramenta: a seqüência do genoma humano. Dois grupos foram os responsáveis pelo feito -a empresa de J. Craig Venter, a Celera Genomics, e o consórcio internacional conhecido como Projeto Genoma Humano. O impacto do projeto já trouxe diversos insights sobre a estrutura do nosso genoma, com conseqüências diretas para o desenvolvimento de diversos medicamentos, só para citar algo aplicado. Na época, também foi dito que o genoma seria de todos nós, um reflexo da identidade humana.

Porém, o que o leitor talvez não saiba é que, para economizar tempo e dinheiro, os dois grupos combinaram amostras de diversas pessoas (em sua maioria) anônimas e criaram um “genoma referência”, conhecido no meio acadêmico como NCBI 36. Esse genoma só continha metade da informação genética celular, ou seja, apenas um cromossomo de cada par foi seqüenciado. Vale lembrar que, com exceção das células germinativas (os óvulos e os espermatozóides), o genoma humano é constituído de 23 pares de cromossomos, nos quais um cromossomo veio do pai e outro da mãe – também conhecido como genoma diplóide.

Efetivamente, esse genoma humano contém apenas a seqüência genética de um dos progenitores. Além disso, quando deparados com variações no seqüenciamento (como a falta de um trecho numa das amostras ou uma eventual duplicação em outra amostra), os dois grupos optaram pela média, excluindo a variação. Os pesquisadores acharam que a eliminação desses “detalhes”, talvez gerados por alguma variação experimental, não sacrificaria muito o resultado final. Como é doce a ilusão biológica.

Recentemente, o primeiro genoma humano individual foi publicado, contando com as seqüências dos dois cromossomos, batizado de “HuRef”. O indivíduo “seqüenciado” foi o próprio Craig Venter, que liderou esse megaprojeto com mais 30 colaboradores. De acordo com o trabalho, o NCBI 36 subestima a variação individual em até 5 vezes. Quando o genoma materno de Venter foi comparado com o paterno, achou-se cerca de 4 milhões de variações genéticas, indicando que a diferença entre dois indivíduos é cinco vezes maior do que o anteriormente estimado.

A publicação do primeiro genoma diplóide, como é chamado, já estimula acaloradas discussões sobre a privacidade genética. Com o surgimento de novas tecnologias de seqüenciamento, mais genomas individuais vão estar disponíveis. Ao contrário de Venter que liberou geral suas seqüências nuas e cruas, Jim Watson (co-descobridor da estrutura do DNA e que teve seu genoma seqüenciado recentemente) preferiu censurar informações de genes que predispõem ao Alzheimer, doença presente no histórico familiar do cientista. Dê uma espiada no genoma do Venter clicando aqui.

Venter levou quase 5 anos para publicar esse trabalho. Não foi à toa. Além de usar uma tecnologia mais avançada e de aumentar o número de leituras experimentais do DNA, o grupo teve de redesenhar os algoritmos usados para o alinhamento dos fragmentos do genoma, permitindo a identificação da origem (materna ou paterna) dos cromossomos. Essa estratégia, longa e trabalhosa, permitiu concluir de forma confiante que as variações observadas eram de fato reais.

Parte das variações encontradas são duplicações gênicas, que levam a diferenças no número de cópias de certos genes em cada indivíduo. Já se sabia que essas variações estavam implicadas em diversos tipos de doenças, como autismo, Alzheimer, distrofia muscular, cegueira ou mesmo deformações anatômicas. Entretanto, para a maioria dos genes, ainda não sabemos quais são as conseqüências de uma diferente dosagem gênica. O fato é que, sabendo-se disso, pode-se receitar doses diferentes de medicamentos para cada indivíduo, numa futura medicina personalizada.

Outra fonte de variação são as alterações de bases únicas do DNA (abreviadas em inglês como SNPs – pronuncia-se “snips”). Genes são formados por fragmentos de DNA que, por sua vez, são formados por uma seqüência de 4 bases: A, T, C e G. Por exemplo, ao seqüenciar o trecho …AATTCC… você pode encontrar a versão …ACTTCC…. Nesse caso, a segunda base aparece como “A” em um indivíduo e como “C” em outro. Dependendo da população humana e da região gênica, essas pequenas variações estão associadas com alto risco de diabetes e outras doenças complexas. Nos EUA, a empresa 23andMe, em parceria com a Google e a Navigenics, estão oferecendo uma análise paga dos SNPs, a partir de seqüências dos potenciais consumidores.

No caso do Venter, é curioso observar que no trabalho encontra-se uma tabela com diversas variações genéticas que estão associadas ao alcoolismo, tabagismo, comportamento anti-social, doenças do coração e Alzheimer. Felizmente, nenhuma dessas doenças é causada por um único gene. O pai de Venter, que morreu aos 54 anos de ataque cardíaco, era fumante. Já sua mãe, com 84 anos, continua jogando golf e velejando com ele. Que genoma prevalece? Na verdade, deve haver uma resposta diferente em cada um de nós.

Considere que a intricada complexidade entre o genoma materno, paterno e o ambiente em que o indivíduo se encontra, seja responsável pelas características físicas e cognitivas de cada pessoa (o que chamamos de fenótipo). A seqüência de mais genomas diplóides permitirá correlacionar as variações genéticas com fenótipos específicos. Por isso mesmo, Venter não só deu o sangue (literalmente, foi daí que extraíram o DNA) pelo trabalho, como também respondeu a uma série de questões sobre sua família, histórico médico, personalidade e características físicas. Quando tivermos milhares de genomas diplóides, com milhares de fenótipos correspondentes, talvez consigamos encontrar o melhor pareamento entre genoma e ambiente. Assim, uma pessoa de uma determinada região poderia ter menos chance de desenvolver câncer se fosse colocada em uma outra cultura desde cedo. Por que não?

Mas a surpresa mesmo foi o incrível número de inserções e deleções (“apagamentos” de DNA) encontradas quando comparamos os cromossomos maternos e paternos. Dados recentes apresentados no congresso da Sociedade Americana de Genética Humana, em San Diego na semana passada, revelaram que muitas dessas variações são causadas pela atividade de entidades retrovirais endógenas – ou seja, um tipo de vírus “fossilizado” no interior do nosso genoma. Esses elementos possuem a habilidade de se locomover pelo DNA, usando um mecanismo de copia-e-cola, igual ao que alguém poderia utilizar para editar este texto em outra página, por exemplo.

Ao fazer isso, os elementos retrovirais embaralham o genoma com inserções e deleções, gerando diversidade genética. Ora, a atividade desses elementos varia de célula para célula, com uma curiosa vivacidade no sistema nervoso. Isso indica que a relação entre genoma e fenótipo é ainda mais complexa, com variações entre as células do mesmo indivíduo e sugerindo que o sistema nervoso seja o tecido com o maior número de variantes genéticas no organismo. Aproveito aqui para registrar uma nova idéia: o Projeto Genoma Cérebro!

E é justamente no sistema nervoso que a diversidade vai contribuir para diferenças na capacidade de memória, criatividade, sensibilidade e outras características cognitivas. O maravilhoso disso tudo é que a plasticidade do sistema nervoso evita que isso seja fixo ou imutável. Pelo contrário, quanto mais informação e desafios ao cérebro, mais afiado ele fica. Estamos sempre em transformação, interagindo com o ambiente para moldar nossa essência.

Dessa forma, a variação humana é ainda maior se considerarmos o aspecto cognitivo. Somos mais diferentes em termos de atividade mental do que em aspectos estruturais, fisiológicos ou anatômicos. Li em algum lugar que a diferença cognitiva entre Einstein e a média da população humana é muito maior que a diferença entre a média humana e a média dos chipanzés. Então por que temos tão poucos gênios se geramos tanta variação? O que nos impede de alcançarmos o nosso potencial mental, como indivíduos e como espécie? Preguiça? Medo? Religião? Falta de livre arbítrio, de tempo?

E para aqueles que achavam que a era genômica tinha se esgotado, digo que as seqüências geradas até agora, e as milhares que estão por vir, vão se transformar em uma preciosa ferramenta para a reconstrução dos agentes moleculares da evolução e do desenvolvimento humano. Salvo nos casos de doenças causadas por mutações em genes únicos, ninguém deve esperar que, apenas lendo a seqüência genética de um único tecido de uma pessoa, conseguirá dizer se ela terá ou não câncer. Mas vamos conseguir definir melhor a contribuição dos genes e do ambiente para o fenótipo de cada um.



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